I – As alterações introduzidas pelo Dl 291/07, na al. c) do art. 27.º do regime do seguro obrigatório, não vieram prescindir do nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente, apenas o presumindo, nos termos do artigo 350º do CC.
II – Para o exercício do direito de regresso, a seguradora cumprirá o seu ónus probatório com a prova da existência do acidente e a taxa de alcoolémia superior ao permitido por lei, permitindo-se, no entanto, ao lesante provar que a causa do acidente não foi a taxa de alcoolémia no sangue.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Relator: Maria João Areias
1º Adjunto: Anabela Marques Ferreira
2º Adjunto: Chandra Gracias
Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – RELATÓRIO
A..., S.A., intenta a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra AA, pedindo a condenação da Réu a pagar ao autor a quantia de 29.779,78 €, acrescida de juros de mora desde maio de 2021 e vincendos, até integral pagamento.
Alegando, para tal e em síntese:
a autora procedeu à regularização de um sinistro ocorrido em 1 de janeiro de 2016, pelas 11h26m, no Lugar ..., ..., ..., em que apenas foi interveniente o veículo de matrícula ..-..-AV, tripulado pelo Réu, de forma desatenta, o qual não conseguiu controlar o mesmo, com consequente despiste e queda para uma ribanceira, conduzindo com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,89g/l, ou seja, uma taxa superior à legalmente permitida.
em cumprimento do contrato de seguro celebrado com o réu relativamente aos danos decorrentes da circulação do veículo com a matrícula ..-..-AV, a primeira liquidou a quantia total de € 29.779,78, para efeitos de regularização do sinistro.
O Réu apresentou Contestação, negando ter desrespeitado qualquer regra estradal e alegando que a taxa de alcoolémia se deveu ao facto de, enquanto esperava no Hospital, ter ingerido bebidas alcoólicas no bar aí situado, concluindo pela improcedência da ação.
Realizada audiência final, foi proferida Sentença, a julgar a ação procedente, provada e, em consequência, condenando o Réu a pagar à Autora A..., S.A., a quantia de € 29.759,78, acrescida dos juros de mora à taxa civil, vencidos e vincendos, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.
(…).
Na decisão recorrida foi proferido o seguinte julgamento relativamente à matéria de facto apresentada nos autos e que aqui reproduzimos parcialmente, na parte em interessa ao conhecimento do objeto do recurso:
1.Factos Provados
(…).
5. No exercício da sua atividade, a Autora celebrou com BB um contrato de seguro do ramo automóvel, através do qual transferiu para si a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula ..-..-AV, titulado pela Apólice n.º ...98 – cf.Doc. 1 anexo com a petição inicial, que dá por integralmente reproduzido.
6. No dia 1 de janeiro de 2016, em hora não concretamente apurada, mas entre as 16h00m e as 17h00m, no Lugar ..., ..., ..., ocorreu um despiste do veículo de matrícula ..-..-AV, marca Ford, modelo Transit, do ano de 1992, com tração traseira, tripulado pelo Réu.
7. E no qual seguia como ocupante CC.
8. O local configura uma curva suave para a esquerda, atento o sentido de marcha do veículo de matrícula ..-..-AV, com inclinação ascendente.
9. Apresenta piso asfaltado, em bom estado de conservação, o qual se encontrava molhado no momento do despiste.
10. O limite de velocidade no local é de 50 km/hora.
11. Nestas circunstâncias de tempo e lugar, o veículo de matrícula ..-..-AV seguia a uma velocidade não concretamente apurada, mas excessiva para o local.
12. O Réu tripulava o veículo de matrícula ..-..-AV desatento e alheado às características, condições, sinalização e demais utentes da via.
13. Com os reflexos, sentidos e discernimento diminuídos e comprometidos pelo consumo de álcool.
14. O Réu perdeu o controlo do veículo de matrícula ..-..-AV, por si tripulado, que seguiu desgovernado, primeiramente, para a direita, e, de seguida, em face da manobra de recurso levada a cabo por aquele, mudou de direção à esquerda, invadiu a via de sentido contrário e caiu na ribanceira ali presente.
15. Após a ocorrência do acidente, foi chamada a GNR ao local, que esteve no local e elaborou a respetiva participação.
16. O Réu, submetido à realização do teste de pesquisa de álcool ao sangue, no Hospital ..., acusou a presença de uma TAS 1,89 g/l, correspondente à taxa de 2,13 g/l, deduzido o erro máximo admissível – cf. auto de ocorrência e aditamento juntos a Docs. 2 e 3, cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos.
17. Em consequência do evento supra descrito, foi interposta uma ação declarativa de condenação pelo ocupante CC, pedindo a condenação da Autora no valor global de € 42.082,40, que correu termos no Juízo Local Cível de Lamego, do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, o processo n.º 165/17.....
18. Em sede de contestação, a Autora, Ré naquele processo, chamou aos autos o aqui Réu, enquanto interveniente acessório, para acautelar o seu direito de regresso.
19. Sucede que, no decurso do processo as Partes alcançaram um entendimento, tendo celebrado uma transação judicial, mediante a qual a Autora se obrigou a liquidar a quantia de € 25.000,00 ao ocupante CC.
(…).
22. Em cumprimento do acordo alcançado, em fevereiro de 2021, a Autora liquidou a CC, através do seu mandatário, a quantia de € 25.000,00.
23. Ainda em consequência do despiste, a Autora teve de suportar as seguintes quantias:
(…).
24. O Réu sofreu escoriações no rosto, com sangramento, o que determinou a sua condução e assistência médica no Hospital ....
(…).
a. À data e hora do despiste, encontrava-se a chover e o piso estava escorregadio.
b. No local do acidente, concretamente, no pavimento, existiam produtos lubrificantes ou produtos semelhantes, que descaraterizaram os níveis de aderência dos pneumáticos do veículo de matrícula ..-..-AV.
c. O Réu, no momento do despiste, tripulava o veículo de matrícula ..-..-AV a uma velocidade inferior a 50 km/h e adequada ao estado da via e às condições atmosféricas no momento.
d. O veículo de matrícula ..-..-AV capotou na faixa de rodagem.
e. As condições da via, o piso escorregadio, a falta de aderência dos pneumáticos ao pavimento e as condições climatéricas verificadas nas circunstâncias espaciotemporais do evento, fizeram com que o Réu perdesse o controlo do veículo de matrícula ..-..-AV e, consequentemente, motivaram o despiste do mesmo.
f. Em virtude do impacto psicológico, perturbação e agitação causados pela ocorrência do evento, o Réu, enquanto aguardava na sala de espera do Hospital ..., dirigiu-se ao bar localizado no exterior e ingeriu bebidas alcoólicas.
Os tribunais da Relação, sendo tribunais de segunda instância, têm atualmente competência para conhecer tanto de questões de direito, como de questões de facto.
Segundo o nº1 do artigo 662º do NCPC, a decisão proferida sobre a matéria de pode ser alterada pela Relação, “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
12. O Réu tripulava o veículo de matrícula ..-..-AV desatento e alheado às características, condições, sinalização e demais utentes da via.
13. Com os reflexos, sentidos e discernimento diminuídos e comprometidos pelo consumo de álcool.
Impugnado ainda a decisão de dar como “não provados” os factos contidos nas alíneas a), c) e e), formulando a pretensão de que os mesmos sejam julgados como “provados”:
a. À data e hora do despiste, encontrava-se a chover e o piso estava escorregadio.
c. O Réu, no momento do despiste, tripulava o veículo de matrícula ..-..-AV a uma velocidade inferior a 50 km/h e adequada ao estado da via e às condições atmosféricas no momento.
e. As condições da via, o piso escorregadio, a falta de aderência dos pneumáticos ao pavimento e as condições climatéricas verificadas nas circunstâncias espaciotemporais do evento, fizeram com que o Réu perdesse o controlo do veículo de matrícula ..-..-AV e, consequentemente, motivaram o despiste do mesmo.
Quanto ao ponto 12 dos factos dados como provados, o respetivo teor é meramente conclusivo, pelo que será de eliminar da matéria de facto.
Quanto ao mais encontra-se em causa a prova da seguinte factualidade:
1. Se estava a chover e o piso escorregadio;
2. se, no momento do despiste, o réu circulava a velocidade inferior a 50 Km/hora;
3. Se o réu circulava com os reflexos, sentidos e discernimento diminuídos e comprometidos pelo consumo de álcool.
Segundo o Apelante, relativamente ao estado do piso, os factos da al. a) devem ser dados como provados, desde logo, aproveitando o que é dito em sede de motivação da sentença:
“…Isto posto, valorou positivamente o Tribunal o depoimento testemunhal prestado por DD, militar da GNR, a exercer funções no posto territorial de ..., à data do acidente ora em discussão. De forma séria, isenta e escorreita, confirmou o teor da participação de acidente por si elaborada, explicitou que o que aí verteu foi com base no recolhido, à data, no local.
(…)
Após concretizar onde ocorreu o acidente, afirmou que «aquilo é uma subida, a estrada tem bom piso, estava chuvosa, é asfaltada, em bom estado de conservação», «aquilo é uma curva muito ligeira para a esquerda, no sentido de marcha do veículo», «o limite será de 50 km/h». Concretizou que «tinha chovido», encontrando-se o piso molhado, aludindo que até é «mais perigoso, foi chuva miudinha» –
Mais invoca o que a tal respeito foi afirmado pela testemunha CC, no sentido de estava a chuviscar e a estrada estava meia húmida.
Confirmando-se as declarações das duas referidas testemunhas, e que a testemunha DD, militar da GNR, confirmou que o piso estava escorregadio, aliado ao teor da Participação do acidente onde consta: “condições meteorológicas: chuviscos”, é de alterar a decisão proferida quanto a tal matéria, dando-se como provado que:
“12. À data e hora do despiste, estava uma chuva miudinha e o piso estava escorregadio”;
Quanto à velocidade a que o réu seguiria, o juiz a quo motiva pelo seguinte modo, a sua decisão de dar como “não provado” que o réu seguisse a velocidade inferior a 50 km/hora:
(citando as declarações da testemunha CC) “Pelas 17h00m, saíram do convívio e o Réu disponibilizou-se para o deixar em sua casa, sendo que, nesse dia, «estava a chuviscar. Não chovia muito» e «a estrada estava meia húmida». Afirmou que, no caminho, a dado momento, «começou a fugir a carrinha para o lado direito e para o lado esquerdo», «até capotar», «capotei depois de entrar na ribanceira» – donde extraiu o Tribunal, com a demais prova produzida que infra se explana, o facto não provado vertido na alínea d. – contudo sabe que «ele ia a menos de 50, 40/45, não sou condutor, mas era pouca, era menos de 50». Nesse seguimento, questionado se observou hodómetro, respondeu em sentido negativo, e confrontado com a sua versão apresentada na ação que moveu contra a empresa seguradora, onde invocou, no artigo 6.º da sua petição, que o Réu circulava a uma velocidade excessiva – que, diga-se, esclareceu que foi a versão que indicou ao seu advogado e que se está escrita é a correta – prosseguiu o seu testemunho, indicando «agora já não me lembro muito bem», «muitas coisas já não me lembro», «não sei se ia ou não com cuidado», mantendo porém a postura de que o Réu «ia bem», que «a velocidade era pouco porque ia devagar» e que «álcool não tinha». O comprometimento por si preconizado, em sede de audiência de julgamento, fizeram com que o Tribunal não atendesse ao por si descrito quanto à velocidade a que seguia o condutor, aqui Réu, quanto ao alegado «fino» por este último ingerido e quanto à circunstância de este se encontrar «bem». Veja-se que, não só esta nova versão em nada é coincidente com o por si declarado na aludida ação judicial que moveu contra a aqui Autora, como também se mostra inverosímil, segundo as regras de experiência, como é que esta testemunha se recorda tão bem «da bifana», do «fino» e da velocidade a que circulavam, quando não sabe a data do acidente que lhe determinou uma incapacidade de 8 pontos, não se recorda da dinâmica do acidente e, bem assim, tão pouco é condutor de veículos automóveis.”
O Apelante insurge-se contra o decidido, invocando precisamente o depoimento da testemunha CC, transcrevendo excertos do mesmo, sem aditar qualquer elemento às considerações tidas pelo tribunal a quo.
Como tal, na inexistência de qualquer outro elemento indiciador da concreta velocidade tomada pelo Réu, nenhuma censura nos merece a decisão de dar como não provado tal facto.
Por fim, quanto ao facto de o réu circular com os reflexos diminuídos pelo efeito do álcool, o Apelante volta a invocar o depoimento da testemunha CC e de DD, dos quais reproduz alguns excertos, conjugados com o facto de o valor de alcoolemia apresentado pelo Réu, se reportar a um teste efetuado 3 horas após o acidente.
Contudo, o depoimento da testemunha CC, amigo do réu de longa data, e que com ele seguia na carrinha, levanta-nos dúvidas quanto à sua credibilidade, notando-se nele a preocupação de não prejudicar o réu com as suas declarações; afirma que vinham de um “convívio”, onde o réu tinha bebido “um fino, só.” (embora, mas à frente, afirme que, quando chegou lá, aquilo já ia a meio do convívio e ele já lá estava); e quanto ao estado em que se encontraria durante a condição, afirmar que ele estava “normal”; e, tendo ambos sido transportados para o Hospital após o acidente e, sendo-lhe perguntado se o réu não comentou consigo que lhe tinham tirado sangue para fazer o teste de álcool e se apresentava álcool, respondeu que não, que ele não falou isso consigo (o que se afigura estranho uma vez que são amigos).
Quanto à testemunha DD, GNR que elaborou o Auto de Noticia respeitante ao acidente em causa, confirma-se que o mesmo declarou que o réu não deu qualquer indício de estar com álcool.
Contudo, o grau de alcoolemia acusado pelo réu, quando para tal efeito foi testado no Hospital – 1,89g/l – cerca de três horas após o embate, aliado às circunstâncias do acidente – o réu despistou-se sozinho perante uma curva para a sua esquerda, quando a estrada tinha uma inclinação ascendente, sem que se mostre demonstrada a contribuição de qualquer outro elemento externo -, são de molde a criar a convicção de que o facto de conduzir com excesso de álcool no sangue lhe diminuiu os reflexos, razão pela qual não terá conseguido adequar a velocidade às condições do asfalto (que estaria húmido) e da via. Nas suas declarações, o réu tenta negar tal influencia, afirmando que antes do acidente só bebeu duas cervejas, e que bebeu “bagaço”, “bastante”, mas foi já no Hospital (o que não é minimamente credível, pois, apresentando ferimentos e sendo obrigatória a realização do teste ao sangue, e uma vez feita a triagem, não lhe seria permitido deslocar-se ao bar do hospital e aí beber bagaços”.
Quanto ao facto de o teste ao sangue só ter sido efetuado três horas após o acidente, desconhecendo-se o concreto valor que o mesmo acusaria à data do acidente, tal circunstancia não será suscetível de o prejudicar: com efeito, contraria as regras da experiência que, decorridas três horas, o réu apresentasse uma taxa de álcool no sangue superior à da hora do acidente.
Concluindo, a impugnação deduzida à matéria de facto é de improceder na sua quase totalidade, com exceção:
- da eliminação do ponto 12 dos factos dados como provados na sentença;
- da matéria contida na al. a) dos factos dados como não provados, e que agora se dá como provada.
2. Verificação dos pressupostos do direito de regresso com fundamento na al. c) do artigo 27º do DL 291/2007
Tendo sido condenado a pagar à seguradora, em sede de direito de regresso, ao abrigo da al. c) do nº1 do artigo 27º, do DL 291/2007, as quantias por esta suportadas em cumprimento do contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado com a autora, o Réu/Apelante apresenta as seguintes discordâncias com o decidido:
para exercer o seu direito de regresso, a seguradora teria de provar: i) que o condutor demandado deu causa ao acidente, por violação de qualquer regra estradal e, ainda, ii) que o álcool foi causa real e efetiva ao desencadear do acidente;
no caso dos autos, o acidente foi provocado por uma situação de força maior, atentas as condições anormais existentes;
nada resultando provado nos autos relativamente à respetiva dinâmica do acidente no sentido de poder concluir que o acidente se deveu ao facto de o réu ter ingerido bebidas alcoólicas.
A resposta a dar aos fundamentos da Apelação exige a dilucidação dos pressupostos do direito de regresso da seguradora contra o condutor em caso de condução sob o efeito de álcool, consagrado na al. c), do nº 1 do artigo 27º do DL 291/2007, de 21 de agosto, que aprovou o regime do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel.
Quanto ao primeiro dos pressupostos – que o condutor tenha dado causa ao acidente – não levanta aqui especiais considerações.
Nesta 1ª fase, a culpa do condutor tem de ser demonstrada pela aplicação das regras gerais da responsabilidade civil extracontratual (sem que se possa falar em presunção de culpa na produção do acidente pelo simples facto de um dos condutores apresentar uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida).
Quando se parte para o direito de regresso já tem de se encontrar assente a imputação subjetiva do acidente à culpa do condutor.
No caso em apreço, a materialidade de facto dada como provada, não nos permite dar razão à apelante quanto à não verificação deste 1º requisito, sendo que, lida a sentença recorrida, pouco haverá a acrescentar ao aí exposto, quanto à imputabilidade do acidente à culpa do réu:
“Dos factos dados como assentes resulta a culpa do Réu, porquanto (i) o veículo que tripulava seguia a uma velocidade não concretamente apurada, mas excessiva para o local; e (ii) perdeu o controlo do aludido veículo, que seguiu desgovernado, primeiramente, para a direita, e, de seguida, em face da manobra de recurso levada a cabo por aquele, mudou de direção à esquerda, invadiu a via de sentido contrário e caiu na ribanceira ali presente.
Impõem as regras e normas estradais que os condutores adequem a velocidade do veículo que tripulavam às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever.
Ora, não foi esse, pois que o comportamento adotado pelo Réu, que violou as normas supra citadas, determinou que este perdesse o controlo sobre o veículo automóvel em apreço, com o consequente, capotamento do mesmo a uma ribanceira.”
A circunstância de, em sede de impugnação da matéria de facto, ter sido dado como provado que, à data e hora do despiste, se encontrava a chover e o piso estava escorregadio, em nada altera a bondade de tal raciocínio.
Estando o piso escorregadio, tal significa que se lhe impunha um dever acrescido de cuidado, nomeadamente, quanto à velocidade a que circulava, de modo a não perder o controlo do veículo, tal como prescreve o artigo 145º, al. e), do Código da Estrada.
A circunstância de se dar como provadas as condições atmosféricas e do piso é insuficiente para se afastar a imputabilidade do acidente ao autor, uma vez que lhe incumbia adequar a velocidade e a atenção à condução, de modo a evitar o acidente.
Assente em que o acidente é de imputar a culpa do réu, por violação do artigo 145º, al. e), do Código da Estrada, passamos à análise da verificação do segundo dos requisitos previstos na al. c) do artigo 27º – “conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”.
O artigo 19º do DL nº 522/85, consagrava o direito de regresso da seguradora contra “o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado”.
Na vigência de tal diploma discutia-se se, uma vez demonstrado que o condutor conduzia com uma taxa superior à legalmente permitida, tal era suficiente para a seguradora exercer automaticamente o direito de regresso ou se tinha, ainda, de provar o nexo de causalidade entre a condução sob influência do álcool e a causação do acidente.
Tal discussão deu origem ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 6/2002, de 28 de maio, estabelecendo que se exige, “para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool, o ónus da prova pela Seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”.
Com o DL 291/2007, de 21-08 (Regime Jurídico do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), o artigo 27.º, n.º 1, al. c) (correspondente ao anterior artigo 19º) sob a epígrafe “direito de regresso da empresa de seguros”, viu alterada a sua redação:
“1. Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso:
c) contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.”.
Não obstante as alterações introduzidas, continuamos a assistir a três distintas posições jurisprudenciais: a) automaticidade do direito de regresso[1]; b) exigência da prova, por parte da seguradora, do nexo de causalidade entre a condução com uma TAS superior ao legalmente permitido e o acidente[2]; c) exigência da verificação de um nexo de causalidade entre a condução com uma taxa de alcoolemia superior ao legalmente permitido e o acidente, que se presume, dispensando a segurador da respetiva prova.
“Com a revisão do regime do seguro obrigatório de responsabilidade automóvel, realizada pelo Dec. Lei nº 291/07, de 21-8, caducou a jurisprudência uniformizadora do Ac. UJ nº 6/02, que fazia depender o direito de regresso da seguradora contra o condutor que conduzisse sob o efeito do álcool, da prova da existência de um nexo de causalidade entre esse facto ilícito e o acidente, e passou a dispensar-se essa relação de causalidade, bastando que se apure que na ocasião do embate o condutor apresentava taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, e que foi o responsável pelo acidente[3]”.
Contudo, convém precisar que a tese que tem vindo a ganhar espaço na doutrina e na jurisprudência e à qual aderimos, não dispensa a relação de causalidade entre o facto ilícito e o acidente, apenas a presumindo.
Em tal sentido, é de citar a posição sustentada no Acórdão do STJ de 06-04-2017, relatado por Lopes do Rego:
“1. A alteração legislativa (…) teve como consequência dispensar a seguradora do ónus de demonstração de um concreto nexo causal entre o erro ou falta, cometida pelo condutor alcoolizado no exercício da condução – e que despoletou o acidente – e a situação de alcoolemia, envolvendo a normal e aprovável diminuição dos reflexos e capacidade reativa do condutor alcoolizado.
2. O sentido a atribuir ao regime normativo introduzido pelo DL 291/07 é o de ter estabelecido uma presunção legal, assente nas regras máximas de experiência, na normalidade das situações da vida, segundo a qual o concreto erro ou falta cometido pelo condutor alcoolizado – e que consubstancia a responsabilidade subjetiva por facto ilícito que lhe é imputada – se deveu causalmente à taxa de alcoolémia verificada objetivamente por meios técnicos adequados – deixando naturalmente a parte beneficiada pelo estabelecimento desta presunção legal de estar onerada com a prova efetiva do facto a que conduz a presunção, nos termos do artigo 305º, nº1, do CC”
A posição semelhante tem chegado também a doutrina[4], de onde destacamos a opinião de Mafalda Miranda Barbosa:
“Estando em causa o direito de regresso das seguradoras, parece que, nos termos do artigo 27º, nº1, al. c), do DL 291/2007, se têm de edificar dois nexos causais, para que elas possam vir ser reembolsadas do que pagaram ao primeiro lesado: um nexo de causalidade entre os danos e o acidente; um nexo de causalidade entre a condução sob o efeito de álcool e o acidente ocorrido. (…) Se o que revela não é a causação do acidente pelo segurado, mas a causação deste enquanto ele conduzia com excesso de álcool no sangue, teremos de concluir que o direito de regresso tem como objeto os danos que sejam causados pela condução sob o efeito do álcool, o que pressupõem, necessariamente a ocorrência do acidente[5]”.
Contudo, segundo tal autora, a seguradora cumprirá o seu ónus probatório ao provar a existência do acidente e a taxa de alcoolémia superior ao permitido por lei, sendo que, ainda que haja de ter em conta outras esferas de risco, a sua comprovação em concreto não fica dependente da prova que seja oferecida pela seguradora, antes correspondendo a um ónus de contraprova do demandado na ação de regresso.
Apelando ao mecanismo do direito de regresso enquanto instrumento de salvaguarda do equilíbrio contratual que foi quebrado, Mafalda Miranda Barbosa considera que, ao conduzir com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente permitida, o condutor não só violou deveres de segurança no trafego em relação ao lesado, como chamou a si o risco de suportar o prejuízo[6]. Quer isto dizer que o juízo imputacional não deve ser substituído pela procura da causa efetiva ou da causa próxima, permitindo-se, no entanto, ao lesante provar que a causa do acidente não foi a taxa de alcoolemia no sangue, por mais complexa que se afigure a negativa[7].
Esta opção legislativa é justificada pelo entendimento de que no caso de condução sob efeito de álcool existe um aumento do risco normal associado à circulação de veículos automóveis não contemplado no risco assumido pela seguradora e que foi determinante para a fixação do prémio a suportar pelo segurado[8].
Isto, sem prejuízo de o condutor/demandado poder alegar e demonstrar na ação de regresso, com vista a ilidir tal presunção legal: i) que a situação de alcoolemia não lhe é imputável, por não ter na sua base um comportamento censurável de ingestão de bebidas alcoólicas; ii) que apesar da taxa de alcoolemia objetivamente verificada, não ocorreu, no caso, qualquer nexo causal efetivo entre tal situação e o acidente. Não é a seguradora que tem de provar, como pressuposto do direito de regresso, a existência de um concreto nexo causal entre a taxa de alcoolémia verificada e o erro de condução que desencadeou o acidente, mas o próprio condutor que, se quiser afastar a sua responsabilidade em via de regresso, terá de ilidir tal presunção, perspetivada como presunção iuris tantum, nos termos do artigo 350º do CC[9].
Encontrando-se provado que o réu conduzir com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente permitida, é quanto basta para que se mostre preenchido o segundo dos requisitos exigidos pela al. c) do artigo 27º.
A impugnação é de improceder.
Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a Apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas da Apelação a suportar pelo Apelante.
Notifique.
Coimbra, 16 de setembro de 2025
V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
(…).
[1] Neste sentido, Maria Manuela Ramalho Sousa Chichorro, “O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel”, Coimbra Editora, pp. 211-212.
[2] Tese minoritária, manifestada no Ac. do STJ de 06-07-2011, relatado por João Bernardo e ac. do TRP de 08-4-2014, relatado por Maria Amália Santos Rocha.
[3] Acórdão do STJ de 10-12-2020, relatado por Manuel Capelo, e Acórdão do TRC de 10-10-2023, relatado por Rui Moura, para uma situação semelhante à dos autos, disponíveis in www.dsi.pt
[4] Em igual sentido, Arnaldo Filipe da Costa Oliveira, “Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Síntese das Alterações de 2007 – DL 291/2007, 21 Ago”, Almedina, pp. 64-65.
[5] Direito de regresso no caso de seguro automóvel obrigatório: a taxa de alcoolemia superior ao legalmente permitido e o problema da causalidade – Cadernos de Direito Privado, Nº50 – Abril/Junho 2015, p. 43.
[6] Na reflexão sobre o que subjaz ao exercício do direito de regresso, afirma tal autora “No contrato de seguro obrigatório automóvel, a seguradora irá cobrir uma indemnização devida pelo dano que se inscreva num circulo de risco assumido pelo lesante e delineado a priori pelo legislador. Mas o impacto desse risco na esfera da seguradora fica limitado pelo sentido do que é o próprio risco do veículo, sendo que, dentro dos próprios riscos do veículo se conta igualmente o risco de uma condução não prudente. Assim, a causação do acidente pelo condutor só justificará o direito de regresso, se acompanhada da preterição grave de determinadas regras de conduta, à qual o próprio acidente possa ser imputado. No caso da condução sob a influência de álcool, o que está em causa é o agravamento do risco de acidentes, sendo que o simples agravamento do risco de acidentes não é bastante para fundar o direito de regresso. “Na verdade, a justiça comutativa pressuposta pelo contrato só é quebrada a partir do momento em que a conduta do segurado tenha impacto na obrigação que a seguradora há-se suportar. O que quer dizer que a violação do dever imposto por lei há de concatenar-se com a produção do acidente” – pp. 30-31
[7] Artigo citado, p. 45.
[8] Acórdão do STJ para fixação de jurisprudência nº10/2024, relatado por Nuno Ataíde das Neves, disponível in https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/10-2024-871917724
[9] Ac. STJ de 06-04-2017, já citado.