I – O factor/elemento essencial para caracterizar uma situação de usura reside no desequilíbrio e injustiça do negócio em resultado de uma determinada conduta do usurário: a conduta por via da qual o lesado se vê compelido – ainda que por iniciativa própria, mas em resultado de uma concreta fragilidade que foi aproveitada e explorada pelo usurário – a conceder-lhe um benefício excessivo ou injustificado em termos que se configuram como desequilibrados e injustos.
II – A usura pressupõe, portanto, a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:
- A existência de uma situação de fragilidade concreta do lesado;
- A exploração dessa situação de fragilidade por outrem (o usurário);
- A obtenção, na sequência dessa exploração, de concessão – ou promessa de concessão – de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou para terceiro.
III – Para efeitos de usura, não releva qualquer ascendente que uma pessoa possa ter sobre outra no âmbito, designadamente, de relações amorosas ou relações afectivas em geral e que, eventualmente, possa determinar um dos elementos a conceder ao outro determinado benefício para lhe agradar ou satisfazer a vontade; mais do que um ascendente de uma pessoa sobre outra, aquilo que se exige, para efeitos de usura, é uma efectiva e concreta fragilidade do lesado (determinada por situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter) e, sobretudo, o aproveitamento e exploração dessa fragilidade pelo usurário para conduzir e determinar o lesado a conceder-lhe (a si ou a terceiro) um benefício excessivo e injustificado.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I.
AA, residente em ..., ... ..., Alemanha, e BB, residente na Rua ..., ... ..., intentaram a presente acção, sob a forma de processo comum, contra CC, residente no Largo ..., ... ..., pedindo a anulação, por usura, do testamento celebrado em 16/05/2013 pelo seu pai DD a favor da Ré e por via qual instituiu esta herdeira da sua quota disponível.
Alegam, em resumo, para fundamentar a sua pretensão: que a Ré se introduziu na casa dos pais dos Autores em Maio de 2012, visto que a progenitora dos Autores sofria de Alzheimer e o pai era pessoa doente, ali tendo passado a residir; que a Ré, aproveitando-se da doença da mãe dos Autores e da fragilidade física e psíquica do pai dos Autores (que já apresentava sinais de debilidade e depressão), iniciou com este uma relação extraconjugal e passou a controlar a vida e património do casal; que a Ré afastou o pai dos Autores dos filhos, de toda a família e amigos, inviabilizando os contactos entre eles e criando uma situação de dependência em virtude da qual o pai dos Autores veio a outorgar o testamento referido por temer que a Ré o abandonasse e concedendo-lhe, por essa via, um beneficio excessivo e injustificado.
A Ré contestou, impugnando muitos dos factos vertidos na petição inicial e alegando, em resumo: que passou a trabalhar para os pais dos Autores como empregada doméstica em 2011, tendo sido a pedido da Autora que, a partir de Maio de 2012, passou a residir com eles no sentido de cuidar deles também durante a noite; que nunca proibiu contactos entre os Autores e o pai, tendo sido eles que deixaram de visitar o pai (o Autor desde 2016 e a Autora desde 2013); que nunca lhe foi paga (nem por DD nem pelos filhos) qualquer remuneração pelo trabalho doméstico que desempenhava, tendo proposto o referido DD que, por não ter recursos, lhe pagaria esses serviços através de testamento da sua quota disponível; que, quando outorgou o testamento aqui em causa em 16/05/2013, DD manifestou a sua vontade de forma livre, plena e consciente, tendo mantido essa vontade até à data da sua morte e que o benefício por si obtido não é excessivo, tendo em conta que prestou serviços de trabalho doméstico por mais de nove anos sem nunca receber qualquer compensação pelo seu trabalho.
Conclui pela improcedência da acção.
Na sequência dos restantes trâmites processuais e após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu julgar a acção improcedente e absolver a Ré dos pedidos.
Inconformados com essa decisão, os Autores vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
Não houve resposta ao recurso.
II.
Questões a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
· Saber se deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos propostos pelos Apelantes;
· Saber se, em relação ao testamento outorgado pelo pai dos Autores a favor da Ré, estão (ou não) verificados os pressupostos exigidos pelo art.º 282.º do CC para que se possa ter como verificada uma situação de usura e se, nessa medida, há (ou não) fundamento para anular o referido testamento.
III.
Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto:
a) DD e EE contraíram casamento católico no dia ../../1964.
b) O Autor AA nasceu no dia ../../1965, sendo filho de DD e de EE.
c) A Autora BB nasceu no dia ../../1970, sendo filha de DD e de EE.
d) No dia 16 de Maio de 2013, em Cartório Notarial ..., foi outorgado o testamento a que se reporta o documento de fls. 32 a 34 do processo físico, do qual consta, além do mais, que por DD foi declarado que “faz o seu testamento da seguinte forma: institui herdeira da quota disponível de sua herança CC, casada (…), residente no Largo ..., ..., na cidade ...”.
e) EE faleceu no dia 4 de Abril de 2020.
f) DD faleceu no dia 5 de Abril de 2020.
g) Em Maio de 2012, a Ré CC, apesar de casada, passou a residir na casa dos pais dos Autores, porque a mãe dos Autores sofria de doença de Alzheimer e o pai era pessoa doente, necessitando de ajuda para cuidar da mulher e da casa.
h) Em Setembro, o estado de saúde do pai dos Autores piorou, pelo que, em Outubro de 2012, foi encaminhado para as urgências do Hospital de Pombal, tendo depois sido enviado para o Hospital dos Covões.
i) Aí foi-lhe diagnosticada uma vasculite que lhe atacou os vasos sanguíneos que irrigam os rins.
j) A partir de então, começou a fazer hemodiálise e tratamentos de quimioterapia.
l) O pai dos Autores permaneceu internado durante um mês, tendo a Ré, durante esse tempo, permanecido na casa do casal.
m) Durante esse internamento, a Ré colocou a mãe dos Autores numa família de acolhimento, inicialmente sem o conhecimento dos Autores.
n) A Ré sabia que o pai dos Autores necessitava do seu apoio.
o) Era a Ré que pagava a mensalidade do internamento da mãe dos Autores (com dinheiro do pai destes e com o seu conhecimento) e que deu instruções para que lhe deixassem de fazer fisioterapia, para que lhe deixassem de ser prestados cuidados de enfermagem e para não comprarem medicamentos, entregando apenas aqueles que entendia, instruções dadas à cuidadora por decisão conjunta da Ré e do pai dos Autores.
p) Por este motivo, os Autores passaram a pagar directamente estas despesas.
q) Em data não concretamente apurada após Maio de 2012, a Ré passou a dormir na mesma cama do pai dos Autores e a manter com ele relações de sexo.
r) DD sempre foi amigo de seus filhos.
s) A herança deixada por óbito de DD é constituída pela casa de morada de família (constituída por casa de habitação de cave, rés-do-chão e primeiro andar, com a área coberta de 214 m2 e logradouro com 786 m2), seis prédios rústicos, um veículo ligeiro de passageiros de marca Mercedes Benz, modelo C220 D, de matrícula ..-..-QD, e de uma conta bancária com o saldo de 6.303,95 €.
t) Em data não concretamente apurada anterior a Maio de 2012, a Ré passou a trabalhar em casa dos pais dos Autores como empregada doméstica, prestando cuidados de higiene e de alimentação à mãe dos Autores e cuidando da roupa de ambos.
a) Em Maio de 2012, já ao pai dos Autores AA e BB havia sido diagnosticada uma depressão.
b) Nunca o pai dos Autores pensara separar-se de sua mulher.
c) Aceitando a colocação de sua mulher na família de acolhimento pelo seu estado de saúde que obrigava a cuidados de terceiros, que lhe eram prestados pela Ré CC, que lhe dizia que não podia tratar de dois doentes.
d) Ao colocar a mãe dos Autores na família de acolhimento, a Ré disse à pessoa a quem a entregou que “isto é para morrer, não precisa de tomar medicamentos nem ter visitas”.
e) Era a Ré quem recebia todos os telefonemas dirigidos ao pai dos Autores, tanto no telefone fixo como no telemóvel, e “filtrava”, assim, as pessoas com quem este podia contactar.
f) Nos inícios de 2013, a Ré mandou colocar uma câmara de vídeo junto ao portão da entrada da casa onde residia com o pai dos Autores para poder controlar quem pretendia visitá-lo, só abrindo a porta a quem entendia.
g) Não permitindo assim que os familiares da mãe dos Autores visitassem o pai dos Autores.
h) E o mesmo fazia com os amigos de quem não gostava.
i) Por outro lado, era a Ré que tinha em seu poder os cartões das contas bancárias dos pais dos Autores e que as movimentava como queria.
j) Era a Ré que efectuava o pagamento de todas as despesas da casa e que fazia todas as compras.
l) Foi devido ao seu estado de doença e de fraqueza, assim como devido à necessidade do apoio da Ré, que o pai dos Autores outorgou o testamento identificado na alínea d) dos factos provados.
m) Após Outubro de 2012, a Ré começou a dizer ao pai dos Autores que a Autora fumava, quando sabia que para ele era a pior coisa que ela podia fazer.
n) Acusava-a ainda de utilizar o seu veículo sem autorização, de fumar no seu interior e de o abandonar na via pública, sem ter o cuidado de o guardar na garagem.
o) Em inícios de 2013, estando os Autores em casa do pai, a Ré disse a este que “os filhos não a respeitavam e que assim não conseguia viver”.
p) Tais palavras geraram uma discussão entre o pai e os Autores, sendo que a partir daí, o pai deixou praticamente de lhes falar.
q) Sempre que o Autor (emigrante na Alemanha) lhe telefonava, a Ré não lhe permitia aceder ao telefone e proibiu-o de enviar prendas aos netos pelo Natal, o que este sempre tinha feito até então.
r) Também não permitia que o pai dos Autores atendesse os telefonemas da Autora.
s) A Ré também não permitia que o pai dos Autores recebesse telefonemas de familiares da mulher e não permitia que estes acedessem à casa para o visitar.
t) Sempre que os familiares da mãe dos Autores se deslocavam a casa do pai dos Autores, nunca ninguém lhes abria a porta.
u) A Ré não permitia que o pai dos Autores visitasse a mulher.
v) A Ré discutia e contava as fraldas que a cuidadora da mãe dos Autores gastava.
x) A Ré proibiu à cuidadora da mãe dos Autores que esta recebesse visitas.
z) O pai dos Autores fazia tudo o que a Ré queria com medo de que esta o abandonasse e o deixasse sozinho.
aa) Desde que a mãe dos Autores foi internada e até à sua morte, o pai dos Autores nunca a foi visitar sozinho porque a Ré assim o queria e decidia, dizendo às empregadas do lar que o marido não ia “porque lhe fazia mal”.
bb) Em inícios de 2012, a Ré aproximou-se dos pais dos Autores dizendo que gostava de fazer voluntariado.
cc) O pai dos Autores pagava todas as despesas de alimentação e de vestuário da Ré, assim como todos os seus produtos de higiene.
dd) A Ré utilizava o dinheiro do pai dos Autores para comprar uma máquina da Bimby, uma máquina “Nespresso”, uma televisão e até para pagar a mensalidade do próprio marido que estava internado no Lar ....
ee) A Ré não tinha qualquer fonte de rendimento, só tendo passado a receber uma pensão após a morte do marido, em 2014.
ff) O pai dos Autores nunca referiu a ninguém que tinha efectuado testamento.
gg) A Ré recusou dizer aos Autores onde havia internado a mãe, tendo-o feito só após ter sido ameaçada pela polícia.
IV.
Impugnação da matéria de facto
(…).
Direito (pressupostos da usura)
Pretendem os Autores, por via desta acção – e agora por via deste recurso –, obter a anulação de um testamento que foi efectuado pelo seu pai em 16/05/2013 e pelo qual declarou instituir a Ré herdeira da quota disponível da sua herança.
Segundo os Autores, o aludido testamento é um negócio usurário que, por isso e conforme previsto no art.º 282.º do CC, é anulável.
Refira-se que, conforme alegado na petição e conforme cópia da sentença que foi junta aos autos, os Autores já haviam instaurado uma outra acção onde pediam a declaração de nulidade ou anulação do testamento com outros fundamentos e, designadamente, com fundamento no disposto no art.º 2196.º do CC, pretensão que foi julgada improcedente por se ter considerado que, à data da abertura da sucessão do testador, o seu casamento já estava dissolvido pela morte do cônjuge (ocorrida no dia anterior ao da morte do testador) e que, por essa razão, não se mostrava verificada a referida previsão legal.
O que está agora em causa – é essa a causa de pedir da pretensão aqui formulada – é a usura.
Os negócios usurários vêm previstos no art.º 282.º do CC onde se dispõe nos seguintes termos:
“É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados”.
Não vem posta em causa no recurso – e também não encontramos fundamento para questionar – a aplicabilidade dessa disposição legal ao testamento que foi admitida pela sentença recorrida com apoio em doutrina e jurisprudência que aí foram citadas e para onde remetemos.
Centremo-nos, portanto, na questão de saber se estão (ou não) verificados os pressupostos legais da usura enquanto fundamento de anulabilidade dos negócios jurídicos nos termos previstos na referida disposição legal, sendo certo que é esse o objecto do recurso que vem submetido à nossa apreciação.
Tendo em conta a previsão legal, é certo poder afirmar-se – como se afirmou na sentença recorrida – que a anulabilidade do negócio com fundamento em usura pressupõe a verificação de três requisitos cumulativos:
· A existência de uma situação de fragilidade concreta do lesado (resultante de situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter);
· A exploração dessa situação de fragilidade por outrem (o usurário);
· A obtenção, na sequência dessa exploração, de concessão – ou promessa de concessão – de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou para terceiro.
Refira-se que a usura não se reconduz necessariamente a um vício de vontade, ainda que, frequentemente, aquilo que lhe está subjacente seja uma limitação ou diminuição da capacidade de discernimento da vítima que afecta a sua liberdade de decisão. Podendo (ou não) existir um vício de vontade, não é aí que reside a tónica da usura; a tónica ou elemento central da usura é o aproveitamento ou exploração de uma fragilidade de outrem para o efeito de obter um benefício excessivo ou injustificado, ou seja, o factor essencial para a sua caracterização é, em termos objectivos, o desequilíbrio e a injustiça do negócio em resultado de uma determinada conduta do usurário: a conduta por via da qual o lesado se vê compelido – ainda que por iniciativa própria, mas em resultado de uma concreta fragilidade que foi aproveitada pelo usurário – a conceder-lhe um benefício excessivo ou injustificado em termos que se configuram como desequilibrados e injustos. Poder-se-á dizer – como se diz no Acórdão do STJ de 21/04/2009[1], citando Pedro Pais de Vasconcelos, que “a usura é fundamentalmente um vício de conteúdo do negócio jurídico, por desequilíbrio e injustiça, mas não o é exclusivamente: essa injustiça é qualificada com deficiência de discernimento e liberdade do lesado, e com a imoralidade da exploração dessa deficiência pelo usurário”.
A sentença recorrida considerou que não se mostrava verificado nenhum dos pressupostos da usura acima mencionados. Segundo a sentença recorrida, não resultou provado qualquer facto que apontasse para qualquer doença ou fragilidade do testador à data da outorga do testamento ou sequer em momento próximo, não resultou provado qualquer facto que permita concluir pela exploração, por parte da Ré, de uma qualquer suposta inferioridade do testador e também não se verificaria o último requisito uma vez que apenas estava em causa a quota disponível do testador, ou seja, a quota de que poderia dispor.
Sem contestar a necessidade de verificação dos apontados três requisitos, sustentam, no entanto, os Apelantes que eles se mostram verificados, argumentando, no essencial:
- Que o primeiro requisito também se verifica quando essa situação resulta de uma relação amorosa que determina que uma pessoa tenha ascendente sobre o outro, o que, no caso, acontecia, sendo certo que há prova clara do ascendente da Ré sobre o pai dos Autores (seja por força da sua actuação em relação à mãe dos Autores que demonstra o seu poder de dar ordens sobre essa matéria enquanto o pai dos Autores estava internado, seja pelo facto de ele estar doente, fragilizado e incapaz de fazer esforços quando saiu do hospital ou pelo facto de controlar o telefone e as visitas ao pai dos Autores);
- Que também não há dúvida de que a Ré explorava essa situação de inferioridade, dirigindo e controlando a sua vida, os telefonemas e as visitas, fazendo com que o pai dos Autores cortasse relações com os filhos (o que aconteceu com a Autora BB em 2013) e explorando o receio do pai dos Autores que ela o deixasse e que ficasse sozinho, pressionando-o para outorgar o testamento;
- Que também se mostra verificado o último requisito, porquanto, ao deixar 1/3 da sua herança à Ré, estava a desviar dos filhos a casa que, conjuntamente com a mulher, havia construído para eles e para os filhos, herança essa que incluía uma parte da herança que ele recebera por morte de sua mulher que havia traído precisamente com a Ré com quem viveu desde 2012, partilhando o quarto junto do quarto onde a sua mulher dormia, sendo que todas estas circunstâncias tornam injustificado e imoral o benefício concedido.
Pensamos, no entanto, que não existe prova de qualquer situação de inferioridade ou fragilidade do testador e muito menos de exploração, por parte da Ré, de qualquer fragilidade que pudesse existir.
A matéria de facto que resultou provada não deixa transparecer qualquer situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental, fraqueza de carácter ou qualquer outra fragilidade do testador (o pai dos Autores) que, de alguma forma, o colocasse em situação de inferioridade que pudesse ser aproveitada e explorada pela Ré por via do ascendente que essa situação lhe proporcionava.
Sabemos – pelo teor do testamento junto aos autos – que o pai dos Autores nasceu em ../../1939, pelo que tinha 73 anos à data em que outorgou o testamento, idade que não nos permite avançar com uma presumida deterioração das suas capacidades físicas e mentais.
Sabemos apenas que em Setembro/Outubro de 2012 (uns meses antes da data em que outorgou o testamento) o pai dos Autores teve problemas de saúde, esteve internado durante um mês e começou, a partir de então, a fazer hemodiálise e tratamentos de quimioterapia. Desconhecemos, contudo, a evolução dessa situação e do estado de saúde do pai dos Autores até à data da sua morte que veio a ocorrer cerca de oito anos depois e desconhecemos, designadamente, se o estado de saúde mais precário ainda se mantinha à data em que fez o testamento (não obstante resulte de depoimentos prestados – como se referiu a propósito da matéria de facto – que esses problemas não lhe retiraram a mobilidade, a autonomia e a lucidez nem lhe determinaram qualquer incapacidade efectiva).
Na perspectiva dos Apelantes, o apontado requisito da usura também se deve ter como demonstrado quando existe uma relação amorosa em que uma das pessoas tenha ascendente sobre a outra, o que entendem verificar-se no caso dos autos.
Não nos parece que seja exactamente assim. Para efeitos de usura, não releva qualquer ascendente que uma pessoa possa ter sobre outra; o que releva para o efeito é o ascendente que resulte de uma concreta fragilidade, resultante de uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter, podendo, eventualmente, ser concedida relevância – como admite António Menezes Cordeiro[2]– a “...qualquer outro factor, com relevo para a ignorância ou para a concreta falta de informação”.
O eventual ascendente de uma pessoa sobre outra no âmbito de relações afectivas ou de parentesco (sejam elas matrimoniais ou de outra natureza) e que resultam apenas dos deveres de respeito de um dos elementos em relação ao outro ou de um estar mais disponível para aceder e satisfazer as vontades do outro não será, em princípio, suficiente para determinar uma situação de usura. Veja-se que o temor reverencial, normalmente definido como medo de desagradar às pessoas a quem se deve submissão e respeito[3] ou, segundo as palavras de Carlos da Mota Pinto[4], “o medo de incorrer em desagrado ou desafecto de outrem, a quem se deve respeito, gratidão, etc.” – o receio, por exemplo, de magoar os pais ou o desejo de lhes fazer a vontade – e, por maioria de razão, segundo Manuel Domingues de Andrade[5], também o mero receio de desgostar ou de desagradar no âmbito das relações afectivas em geral, não relevam para efeitos de anulação do negócio por coacção, como expressamente dispõe o n.º 3 do art.º 255.º do CC e, portanto, também não haveria razão para que pudessem valer para efeitos de usura onde, mais do que um ascendente de uma pessoa sobre outra, aquilo que se exige é uma efectiva fragilidade resultante das circunstâncias ali mencionadas e, sobretudo, o seu aproveitamento pelo usurário para obter benefícios.
De qualquer forma, nem sequer resultou provado que, conforme sustentam os Apelantes, existisse qualquer ascendente da Ré sobre o pai dos Autores por força da relação amorosa que mantinham.
Os Apelantes encontram a demonstração desse ascendente na circunstância de a Ré, durante o internamento do pai dos Autores, na sua ausência e sem falar com os filhos, ter internado a mãe dos Autores numa família de acolhimento e se ter permitido dar ordens sobre o seu tratamento. Mas, salvo o devido respeito, essa afirmação não encontra apoio na matéria de facto provada. Na verdade, ainda que tenha sido a Ré a colocar a mãe dos Autores naquela casa ou família e a dar instruções sobre o seu tratamento, nada permite afirmar que isso tenha resultado de decisão sua e que não tenha sido determinado por decisão do pai dos Autores (em relação às instruções dadas sobre esse tratamento, resultou mesmo provado – cfr- alínea o) – que elas resultaram de decisão conjunta da Ré e do pai dos Autores), importando notar que não resulta da matéria de facto que a doença que afectou o pai dos Autores e determinou o seu internamento tivesse determinado qualquer incapacidade de tomar decisões ou que o tivesse colocado em situação de especial e relevante vulnerabilidade.
Os Apelantes também encontram a demonstração de um ascendente da Ré sobre o seu pai na circunstância de ela controlar o telefone e as visitas ao pai dos AA., sendo certo, no entanto, que também não resultou provado o alegado controlo da Ré sobre os contactos e as visitas ao Autor.
Na verdade, a única fragilidade do pai dos Autores que se provou existir corresponde, como já se referiu, aos problemas de saúde que teve uns meses antes de outorgar o testamento sem que tivesse sido demonstrado que esses problemas lhe tivessem determinado qualquer limitação, incapacidade (física ou psíquica) ou dependência de terceiros – mais concretamente da Ré – que o tivessem colocado numa situação de inferioridade ou maior fragilidade.
Era possível, naturalmente, que, quando confrontado com esses problemas de saúde, o pai dos Autores tivesse ponderado o seu possível agravamento e a necessidade que poderia vir a ter do apoio da Ré e que tivesse sido em função disso que outorgou o testamento (ainda que tal não tenha resultado provado).
Mas, ainda que assim fosse e ainda que essas circunstâncias pudessem ser encaradas como situação de fragilidade relevante para os efeitos previstos no citado art.º 282.º, sempre seria necessário – para que se configurasse uma situação de usura – que essa fragilidade tivesse sido aproveitada/explorada pela Ré para o efeito de obter a outorga de testamento em seu benefício.
Conforme se disse supra, a usura pressupõe a existência de uma conduta do usurário de aproveitamento/exploração de uma fragilidade de outrem e essa conduta – como se afirma no Acórdão do STJ de 09/05/2023[6] – não se presume e tem que ser provada (conforme sumário do referido Acórdão “a exploração não se presume, nem pode ser deduzida do requisito da situação de dependência, sem apoio de uma factualidade global relevante que demonstre intenção da beneficiária do testamento de controlar o património da testadora”).
Ora, no caso dos autos, não resultou provada nenhuma conduta da Ré que possa ser vista e entendida como aproveitamento ou exploração de qualquer fragilidade do pai dos Autores, designadamente, a que, eventualmente, pudesse ter resultado do estado de saúde mais precário que o afectou uns meses antes da outorga do testamento.
Segundo os Apelantes, essa conduta estaria evidenciada pelas seguintes circunstâncias: a circunstância de a Ré dirigir e controlar a vida do pai dos Autores, bem como os telefonemas e as visitas que recebia; a circunstância de ter provocado o corte de relação entre os Autores e o pai (o que aconteceu com a Autora BB em 2013), a circunstância de explorar o receio que ele tinha que ela o deixasse e que ficasse sozinho e a circunstância de o ter pressionado para outorgar o testamento.
A verdade, porém, é que nenhuma dessas circunstâncias resultou provada. Não resultou provado qualquer facto com base no qual possa afirmar-se que a Ré dirigisse e controlasse a vida do pai dos Autores (cfr. alíneas i), j), z), u) e aa) dos factos não provados em relação aos quais os Apelantes nem sequer impugnaram a decisão que não os julgou provados); não resultou provado que a Ré controlasse os telefonemas e as visitas que o pai dos Autores recebia ou que impedisse o seu contacto com outras pessoas (cfr. alíneas e), f), g), h), q), r), s) e t) dos factos não provados em relação à maioria dos quais os Apelantes nem sequer impugnaram a decisão que não os julgou provados, tendo improcedido a impugnação que deduziram em relação às alíneas e), f) e g)); não resultou provado que o pai dos Autores tenha cortado relações com os Autores por qualquer influência ou interferência da Ré (cfr. alíneas m) a p) dos factos não provados em relação aos quais os Apelantes nem sequer impugnaram a decisão que não os julgou provados); não resultou provada qualquer conduta da Ré que possa ser entendida como exploração de qualquer receio do pai dos Autores, designadamente o receio que, eventualmente, tivesse de ficar sozinho por a Ré o deixar (os Apelantes não impugnaram a decisão que não julgou provado o facto constante da alínea z) dos factos não provados e nada mais alegaram de concreto, sendo certo que não alegaram as concretas condutas da Ré por via das quais se evidenciava a exploração desse receio) e não está provado que a Ré tivesse pressionado o pai dos Autores – nem sequer que lhe tivesse pedido – para outorgar o testamento (facto que nem sequer foi alegado).
Não resulta, na verdade, da matéria de facto qualquer conduta da Ré que possa ser subsumida no âmbito de previsão da norma acima citada e que seja relevante para efeitos de caracterização de uma situação de usura.
Não se mostrando verificados os dois primeiros requisitos da usura, é inútil saber se se verificaria (ou não) o último requisito que, além do mais e dada a natureza e o conteúdo do negócio aqui em causa, dificilmente se poderia ter como verificado sem a verificação dos primeiros.
Na verdade, conforme se refere no Acórdão do STJ de 23/06/2016[7], faz parte da natureza do testamento a possibilidade de através dele se atribuírem benefícios que excedem, total ou parcialmente, os merecimentos de quem os recebe e sem outra justificação que não a vontade do testador e, nessa medida, é difícil constatar, em termos objectivos, a existência de um desequilíbrio e injustiça do negócio (traduzido no benefício excessivo ou injustificado que é atribuído) que não seja normal e natural no tipo de negócio em causa. Daí que, conforme também resulta do citado Acórdão e do Acórdão do STJ de 09/05/2023[8] será, sobretudo, a demonstração dos primeiros dois requisitos que permitirá concluir pela verificação do último requisito, devendo entender-se, como se refere nos citados Acórdão e à luz do pensamento de António Menezes Cordeiro[9] que “...a prova do requisito da “lesão”, i.e. a concessão de benefícios injustificados ou excessivos, não deve ser muito exigente, tendo a fragilidade da prova deste requisito que ser compensada por uma maior intensidade da prova dos restantes, de acordo com uma conceção de sistema móvel”. Ou seja, é a intensidade da prova dos dois primeiros pressupostos (a fragilidade da vítima e a conduta do usurário de aproveitamento e exploração dessa fragilidade) que permitirá concluir que o benefício concedido pelo testamento é, nas circunstâncias concretas, um benefício relevante para efeitos de concluir pela efectiva verificação de uma situação de usura.
No caso, conforme se referiu, tais pressupostos não resultaram demonstrados: não resultou provada qualquer fragilidade concreta e relevante do pai dos Autores (testador) e não resultou provada qualquer conduta da Ré que pudesse ser vista como aproveitamento ou exploração de qualquer fragilidade do referido testador para o efeito de obter o benefício que lhe veio a ser atribuído pelo testamento aqui em causa e que, do ponto de vista do testador, poderia encontrar justificação na circunstância de viver com a Ré em união de facto e de pretender, por essa razão, aproximá-la da situação em que ficaria caso fossem casados.
Não é possível, portanto, concluir pela verificação de uma situação de usura.
Em consequência, improcede o recurso e confirma-se a sentença recorrida.
SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):
(…).
V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo dos Apelantes.
Notifique.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves)
(Chandra Gracias)
(Anabela Marques Ferreira)
[1] Processo n.º 09A0653, disponível em https://www.dgsi.pt.
[2] Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, tomo I, 3.ª edição, 2009, pág. 650
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª edição revista e actualizada, pág. 238 e Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 1987, pág. 278.
[4] Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição, pág. 530
[5] Ob. e loc. Citados.
[6] Proferido no processo n.º 1084/19.3T8GDM.P1.S1, disponível em https://www.dgsi.pt.
[7] Processo n.º 1579/14.5TBVNG.P1.S1, disponível em https://www.dgsi.pt.
[8] Processo n.º 1084/19.3T8GDM.P1.S1, disponível em https://www.dgsi.pt.
[9] Cfr. Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, tomo I, 3.ª edição, 2009, pág. 651, onde se sustenta que “As proposições do artigo 282.º devem ser interpretadas e aplicadas em conjunto, dentro da mecânica de um sistema móvel. Quando a lesão seja muito grande, a exploração e a fraqueza do prejudicado poderão estar menos caracterizadas. E quando a dependência do prejudicado seja escandalosa – por exemplo – não será de exigir um tão grande desequilíbrio”.