I – O princípio ne bis in idem, como máxima orientadora do ordenamento penal vigente, embora não sistemática e expressamente regulado no atual CPPenal, contrariamente ao que sucedia no domínio do CPPenal de 1929 –, afirma-se, à luz dos artigos 14º, nº 7, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 , 4º do protocolo n° 7 da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais , datado de 22 de Novembro de 1984, 50º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e dos preceitos constitucionais conjugados dos artigos 29º, nº 5 e 18º, nº 1, da CRP .
II – Por via desta máxima, é a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar pois, o que o nº 5 do artigo 29º da CRP proíbe é que um mesmo concreto objeto processual possa suportar um outro processo penal.
III – Assim, em situação em que o arguido não foi julgado e absolvido num processo e depois condenado num outro, completamente distinto, a respeito da mesma realidade histórica / dos mesmos factos daquele outro primeiro, sendo que o acontecido surge de decisão proferida em primeira instância, a qual foi objeto de recurso onde, nesta sede, o Tribunal ad quem, entendendo de modo diferente, e pelas razões que expôs, decidiu converter uma absolvição em condenação, inexiste qualquer violação do aludido princípio.
IV – Entender diversamente seria, no fundo, e para não se ofender o princípio a que se apela, defender que existindo uma absolvição em primeira instância, ainda que admissível recurso para o tribunal superior, e no mesmo processado, estaria este impedido de condenar, convertendo em letra morta, e completamente inútil, a previsão legal inserta no artigo 400º, nº 1, alínea e) do CPPenal, lida conjugadamente com ao artigo 399º do mesmo complexo legal.
V – Ao requerer-se a constituição como Assistente, em momento manifestamente anterior ao decurso do prazo de seis meses inserto no artigo 115º, nº 1 do CPenal é patente que se mostra clara intenção na prossecução dos autos, o desejo de que haja procedimento criminal.
VI - Ignorar esta manifestação de vontade, seria denegar o princípio da confiança, frustraria as legítimas expetativas do Assistente e representaria uma incompreensível injustiça e uma inaceitável (embora não propositada) “deslealdade processual”, redundando pura e simplesmente na redução de todo o processo criminal a meras questões de forma.
1. No processo 1618/16.5T9VRL da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal de Matosinhos – Juiz 2, foi proferida sentença, em 28 de fevereiro de 2024 onde se decidiu:
- Absolver o arguido AA da prática do crime de homicídio por negligência, previsto e punido, pelos art. 15.º e 137.º n. º 1 e n.º 2, do Código Penal, de que vinha acusado;
- Absolver o arguido BB da prática do crime de homicídio por negligência, previsto e punido, pelos art. 15.º e 137.º n. º 1 e n.º 2, do Código Penal, de que vinha acusado;
- Julgar o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante CC improcedente e, em consequência, absolver os demandados AA, BB e Unidade Local de Saúde de Matosinhos, E.P.E. do pedido formulado.
2. Inconformados com o decidido, o Digno Mº Pº e o Assistente CC1, recorreram para o Venerando Tribunal da Relação do Porto, suscitando as seguintes questões:
i) Digno Mº Pº
- erro notório na apreciação da prova;
- erros de julgamento;
- violação do artigo 137º nºs 1 e 2 CPenal;
ii) Assistente
- valoração da prova pericial, desconsiderando o juízo científico e laborando em raciocínios fácticos sem suporte probatório;
- apurar do cometimento pelos arguidos um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art. 137º, nºs 1 e 2, do CPenal;
- apurar da possibilidade de condenação dos demandados no pagamento da quantia de € 150.000,00, a título de indemnização, devida por danos não patrimoniais pelo sofrimento de que foi alvo DD desde que lhe foi administrada a amoxicilina e ácido clavulânico até falecer e, por dano não patrimonial resultante do seu falecimento.
- saber se os factos são suscetíveis de integrar o tipo legal de crime de ofensa à integridade física grave p. e p. pelo artigo 144º do CPenal;
- saber se devem os demandados ser condenados pelo sofrimento de que DD padeceu, em indemnização a fixar no mínimo de € 25.000,00;
- violação dos artigos 127º, 163º e 358º do CPPenal, 137º nºs 1 e 2, 144º e 143º do CPenal e 483º, 494º e 496º do CCivil;
- na eventualidade de proceder o recurso do MP e do assistente – quanto à matéria de facto - saber se devem ser aditados outros factos ao elenco dos factos provados e,
- se tal permite se conclua que ao cumprir com a prescrição efetuada pelo médico, agiu no cumprimento de uma ordem dada pelo médico, executando um ato que, funcionalmente tinha o dever de cumprir, pelo que cumprindo com as sua funções, executando o ato de enfermagem a que estava obrigado, não agiu ilicitamente, não se mostrando preenchido um dos elementos do tipo objetivo do crime pelo qual vem acusado, impondo-se a sua absolvição.
3. Por Acórdão datado de 5 de março de 2025, o Venerando Tribunal da Relação do Porto, pronunciando-se sobre as questões supra notadas, decidiu da seguinte forma:
- Conceder no parcial provimento aos recursos interpostos pelo Magistrado do MP e pelo assistente e,
- Alterar a matéria de facto provada, passando para o elenco dos factos provados, de entre os não provados, os seguintes:
a) A prescrição e a administração da amoxicilina com ácido clavulânico foram a causa direta e necessária do choque anafilático de DD.
b) Ao omitirem os deveres referidos em 14., 15. e 17. a 19., os arguidos criaram grave perigo para a vida, corpo ou saúde de DD.
c) Ao assim agirem, os arguidos representaram como possível que o paciente DD, em virtude da administração de amoxicilina com ácido clavulânico, viesse a sofrer um choque anafilático.
e) Mais sabiam os arguidos que, com as condutas descritas, praticavam atos proibidos e punidos pela lei penal.
- Condenar os arguidos AA e BB, enquanto autores materiais, na forma consumada, pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo artigo 148º, nº1 CPenal, na pena de 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de € 10,00 (dez euros).
- Condenar os arguidos/demandados a pagarem ao assistente/demandante CC, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo pai, o valor de € 25.000,00, acrescido de juros de mora à taxa legal, hoje de 4%, desde a notificação dos demandados para contestarem o pedido civil até efetivo e integral pagamento.
4. Discordando deste decidido, o arguido BB2 veio recorrer, para este Supremo Tribunal de Justiça, questionando o aresto prolatado, retirando das suas motivações, as seguintes conclusões: (transcrição)
1) O presente recurso é admissível nos termos das disposições conjugadas dos artigos 400.º n.º 1 al. e) e 432.º n.º 1 al. b) ambos do Código do Processo Penal (CPP).
2. O acórdão recorrido ofende o princípio constitucional ne bis in idem consignado no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa, pois ao considerar não ser “… possível extrair a convicção necessária, segura, acima de qualquer suspeita razoável, que a causa da morte foi o choque anafilático decorrente da administração de antibiótico ao qual o paciente era alérgico, nem causa única e exclusiva nem concausalidade” (vide página 65 do acórdão, último parágrafo, o realce é nosso), não pode vir a dar como provado o crime de ofensas à integridade física por negligência.
3. Entre o crime de homicídio por negligência p.e p. no artigo 137.º n.º1 e 2 do Código Penal e o crime de ofensas à integridade física por negligência consignado no artigo 148.º n.º 1 do mesmo diploma legal existe um concurso aparente de crimes assente numa relação de especialidade, dado que, apesar do comportamento global do agente preencher diferentes tipos legais de crimes, este comportamento é apenas dominado por um único sentido social autónomo de ilicitude, a que corresponde uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos típicos praticados, pelo que a punição é aquela que decorre do crime que incorpora o sentido dominante do ilícito.
4. No caso dos autos, os atos imputados ao Recorrente foram praticados ou omitidos num mesmo contexto técnico e fático, sendo a globalidade dos factos abrangidos pelo mesmo sentido social de ilicitude reconduzível a único tipo legal de crime: o de homicídio por negligência pelo qual o Recorrente vinha acusado e foi absolvido por falta de prova do nexo de causalidade adequada.
5. Assim, não tendo o Recorrente sido condenado pelo tipo legal prevalecente – o crime de homicídio negligente –, não pode o acórdão recorrido vir apelar ao tipo legal derrogado, para condenar aquele, pois essa decisão representa o sancionamento do mesmo desvalor criminal pelo qual o Recorrente foi não condenado, ofendendo-se o princípio-garantia ne bis in idem.
6. Deste modo, a interpretação que consta do acórdão recorrido ofende valores jurídicos fundamentais, em particular o princípio-garantia ne bis in idem, decorrência do n.º 5 do artigo 29.º da CRP.
SEM PRESCINDIR: DA VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 412.º DO CÓDIGO DO PROCESSO PENAL
7. Nos termos do disposto artigo 412.º do CPP, aquele que interpõe o recurso tem de enunciar especificamente os seus fundamentos e de formular as respetivas conclusões, deduzidas por artigos, em que resume as razões do pedido.
8. Da sentença proferida pela 1ª instância foram interposto dois recursos – o do Ministério Público e o do Assistente – tendo o aqui ora Recorrente requerido a ampliação do objeto do recurso
9. De ambos os recursos em momento algum resulta que os ali Recorrentes – aqui Recorridos – tenham tido a pretensão de ver alterada a matéria de facto no sentido que consta a fls. 66-67 do acórdão recorrido (alíneas a), b), c) e),
10. pelo que, o acórdão proferido ofende os limites que decorrem, para o tribunal de recurso, do artigo 412.º n.º 3 do CPP e que delimita os poderes de cognição do Tribunal ad quem.
11. Acresce que, o artigo 431.º do CPP determina que “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada a) Se do processo constaremtodos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova”.
12. Isto é, também esta disposição não autoriza a que o tribunal de recurso altere as resposta à matéria de facto, num sentido distinto daquele que resulta do alegado pelas partes.
13. A alteração dos factos por iniciativa do julgador, apenas pode ter lugar em sede de julgamento em 1ª instância, devendo o Tribunal observar o regime dos artigos 358.º e 359.º do Código do Processo Penal, o que não foi o caso.
14. Assim, também por esta via, o acórdão recorrido viola o direito aplicável. AINDA SEM PRESCINDIR E AINDA POR DEVER DE PRUDENTE PATROCÍNIO: - DA DEGRADAÇÃO DO CRIME PÚBLICO EM CRIME SEMIPÚBLICO
15. No caso de degradação de um crime público em crime semipúblico, a queixa como “condição de procedibilidade” do procedimento criminal tem de estar verificado.
16. Os factos suscetíveis de gerarem responsabilidade penal ocorreram no dia 06 de janeiro de 2015, tendo o presente processo sido instaurado em 24 de novembro de 2016 com base em certidão extraída de um primeiro processo crime.
17. Na data da instauração do presente processo há muito que os 6meses para apresentação de queixa por parte do Assistente se tinham esgotado, tendo decorrido 01 ano e 10 meses sobre a data da prática dos factos, seja, sobre a data da atuação do Recorrente no Hospital Pedro Hispano – ULS de Matosinhos EPE, sendo que o Assistente jamais apresentou tal queixa.
18. Mesmo que se admita que, a instauração do processo pelo Ministério Público possa in casu cumprir com o pressuposto processual da apresentação da queixa pelo ofendido, estes autos foram, como supra referimos, instaurados em 24 de novembro de 2016, seja muito para além dos 06 meses para apresentação de queixa.
19. E mesmo que procuremos ser ainda mais favoráveis na interpretação a dar ao caso, fazendo retroagir o início da contagem dos 06 meses para apresentação de queixa à data em que o Ministério Público do primeiro processo crime se apercebeu que podia estar em causa um crime de homicídio negligente por erro médico (e que, portanto, havia que iniciar outro processo crime), o despacho que evidencia esse conhecimento foi proferido, como decorre do acórdão recorrido e da certidão que serve de base à instauração dos presentes autos, em 17 de maio de 2016, seja, mais de 6 meses antes da instauração do presente processo que foi, repita-se, a 24 de novembro de 2016.
20. Isto é, se se prescindir da verificação da queixa por parte do ofendido enquanto “manifestação de vontade do procedimento criminal corporizada em qualquer meio capaz de a levar ao conhecimento do Ministério Público em tempo, apresentada pelo respetivo titular do direito, em regra o ofendido, para que, com os factos relatados, o MP exerça a ação penal contra o autor do crime (artigos 113.º CP e 49.º CPP)” (sic AUJ n.º 6/2024), e que consubstancia uma “conditio sine qua non do início do processo”, substituindo-a pela instauração do procedimento criminal pelo Ministério Público em caso de crime público (que, posteriormente e por falta de prova da matéria de facto, vem a ser degradado em crime semipúblico), na data em que o presente processo foi instaurado (24 de novembro de 2016) há muito que tinha decorrido o prazo de 06 meses que, em todo o caso, e por uma questão de justiça e igualdade material, o Ministério Público sempre teria de observar na instauração do processo.
21. Mais: pretender que o início da contagem do prazo que o Ministério Público tinha para instaurar o procedimento criminal como se de queixa se tratasse, coincidia com o conhecimento por parte do Assistente do facto e dos seus autores, é uma interpretação que coloca em causao próprio princípio da justiça material.
22. Porque das duas uma: ou a queixa teria de ser apresentada pelo Ofendido/Assistente e, então, o prazo de seis meses iniciaria a sua contagem na data em que o ofendido tivesse tido conhecimento do facto e dos seus autores (artigo 115.º n.º 1 do Código Penal) e ter-se-á que concluir que no vaso dos autos tal queixa nunca foi apresentada, ou a instauração da ação penal pelo Ministério Público como crime público (que é posteriormente degradado em crime semipúblico) preenche aquele requisito da queixa, mas então este exercício ter-se-á de verificar no prazo de 06 meses a contar da notícia do crime, já que será no contexto do inquérito que o Ministério Público irá investigar todos os factos e apurar os seus autores.
23. O que não pode é pretender-se ambas as coisas, num entendimento inteiramente parcial, desequilibrado e favorável ao Assistente, colocando em causa a garantia que, em si mesma, deriva para o Arguido da necessidade de apresentação de queixa no caso de crimes semipúblicos.
24. Muito menos se pode pretender que o entendimento ora propugnado conduz a uma solução que fere o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, dado que se confia no procedimento criminal instaurado pelo Ministério Público com base em suspeita da prática de crime público, deste modo dando-se guarida à justiça material, afastando o formalismo da aplicação da lei processual em face da ausência de prova.
25. Mas não se podem comprometer as razões que determinam o legislador a exigir que, nos crimes semipúblicos, para haver procedimento criminal seja necessária a formalização de uma queixa dentro de um determinado prazo.
26. E essas razões são de índole de política criminal, atinentes à gravidade das infrações, ou à natureza dos interesses e bens ofendidos e ao seu grau de ofensa.
27. Pelo que, qualquer que seja a interpretação a dar ao caso, sempre se terá por concluir que caducou o direito de instaurar o procedimento criminal com fundamento no crime de ofensa à integridade física por negligência.
DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
28. Soçobrando a condenação pela prática de qualquer crime, dado que não ficou provado que entre o choque anafilático e a morte se pudesse estabelecer qualquer relação de causalidade adequada ou de concausalidade, naturalmente que o pagamento de uma indemnização por quaisquer danos que se pretendam imputar ao aqui Recorrente caem por terra, incluindo os danos não patrimoniais sofridos pelo Sr. DD no valor de €25.000,00, acrescido de juros de mora.
29. Tal condenação, constante do acórdão recorrido, teve por fundamento a Lei 67/2007 de 31 de dezembro, que consagra o regime da responsabilidade extracontratual do Estado, pelo que, mesmo que se admita – o que apenas se concebe por mero dever de prudência de patrocínio - que o Recorrente deva ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, é manifesto que o pedido de indemnização cível não pode ser julgado procedente no que ao aqui Recorrente diz respeito.
30. Dispõe o artigo 7.º n.º 1 da citada Lei que “O Estado e as demais pessoas coletivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de ações ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício”.
31. E, nos termos do disposto no artigo 10.º “1 - A culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor. 2 - Sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave, presume-se a existência de culpa leve na prática de atos jurídicos ilícitos. 3 - Para além dos demais casos previstos na lei, também se presume a culpa leve, por aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil, sempre que tenha havido incumprimento de deveres de vigilância. 4 - Quando haja pluralidade de responsáveis, é aplicável o disposto no artigo 497.º do Código Civil”.
32. Sendo o Recorrente agente do Estado, só poderia responder civilmente se, para além da prova do nexo de causalidade adequada, também tivesse sido provado que a sua conduta se ficara a dever a uma conduta dolosa ou praticada com culpa grave, o que não seria o caso.
5. O arguido AA veio responder, aderindo ao posicionamento assumido pelo arguido BB, atrás vertido.
6. Digno Ministério Público, junto do Venerando Tribunal da Relação do Porto, respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência, concluindo: (transcrição)
1-Como é evidente, e na prática médica, com especial relevo, o comportamento, por acção ou omissão, violador do dever especial de cuidado, pode ser espoletador da possibilidade de ocorrência de vários resultados, tal como no caso concreto, ou seja, o resultado morte ou de lesão.
2-Na verdade, e no caso concreto, e perante a factualidade que era imputada ao arguido Recorrente, a violação da legis artis- ministrar medicamento, com um derivado de penicilina, sendo o ofendido alérgico, foi causal do choque anafilático sofrido pelo ofendido, havendo por isso um resultado imediato da conduta descrita que necessariamente também tinha que ser representado pelo arguido, resultado ao qual se veio associar a morte do ofendido.
3-Ou seja, após a consequência causal da conduta violadora da legis artis - choque anafilático- houve uma outra ocorrência que resultou na morte do ofendido, sendo que relativamente à morte ocorrida, já não se consegue estabelecer um nexo causal entre a conduta do arguido e o resultado, pelo que para a avaliação jurídico penal do comportamento imputado ao arguido Recorrente passa a relevar apenas o resultado causal da sua conduta, concretamente, a verificação de um choque anafilático que provocou lesão física e perigo para a saúde do ofendido.
4-O comportamento imputado ao arguido- violação da legis artis- era suscetível de ser causal de dois tipos de resultado- morte e lesão física para a saúde- resultados que necessariamente tinham que ser representados pelo arguido.
5-A realidade fáctica imputada ao arguido e que delimitava o objecto temático do processo continuou a mesma, apenas se quebrando, por falta de prova suficiente, o nexo causal entre a conduta do arguido e o resultado morte, subsistindo o 1.º resultado decorrente da conduta do arguido que foi o choque anafilático sofrido pelo ofendido.
6-No caso concreto do recurso interposto pelo arguido, e não se discutindo esta realidade dada como provada, existiu violação da legis artis, pelo que o resultado possível decorrente desse erro inadmissível e que necessariamente teria que ser representado pelo arguido seria a possibilidade da ocorrência de lesão física e para a saúde, ou a própria morte do ofendido.
7-Em termos causais apenas se prova o resultado lesão física- a ocorrência do choque anafilático- pelo que é este o crime de resultado ocorrido, na forma negligente.
8- Não se verifica a violação no princípio ne bis in idem.
9-Alegava ainda o Recorrente que a condenação do arguido pelo crime de ofensa à integridade física negligente extravasa o objecto do recurso interposto pelo Ministério Público e assistente, pelo que não podia o tribunal ad quem ir mais longe do que o objecto dos recursos interpostos.
10-No entanto, não assiste razão ao Recorrente, considerando que o assistente colocava no seu Recurso como possibilidade subsidiária que o arguido viesse a ser condenado pelo crime de ofensa à integridade física na forma negligente.
Quanto à condenação do arguido por um crime de natureza semi-pública, dependente do exercício do direito de queixa, subscreve-se a fundamentação do acórdão recorrido, acrescentando-se apenas em ligeira discordância com o afirmado no que diz respeito ao exercício do direito de queixa de que o titular do exercício do direito de queixa logo que teve conhecimento da realidade típica- homicídio negligente por violação de legis artis e dos seus autores- constituiu-se como assistente e como colaborador do Ministério Público, havendo por isso uma vontade que se revela inequívoca ou esclarecedora- por actos praticados concludentes nesse sentido- de que o procedimento criminal prosseguisse relativamente aos facos em investigação, independentemente da sua coloração típica, o que se reflecte no que foi pugnado em sede de Recurso.
7. O assistente CC, igualmente, apresentou resposta, sem quaisquer conclusões, defendendo que (…) deve o recurso ser julgado improcedente com as demais consequências.
8. Subidos os autos a este Supremo Tribunal de Justiça, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416º do CPPenal, emitiu competente parecer, defendendo: (transcrição)3
(…)
Ne bis in idem.
(…)
Não tem razão o recorrente, com todo o respeito:
Precisamente por haver uma relação de concurso aparente entre os crimes de “homicídio por negligência”, p. e p. na disposição do art. 137.º/1 e 2 do Código Penal e de “ofensa à integridade física por negligência”, p. e p. na disposição do art. 148º/1 do mesmo diploma legal – assente, em rigor, numa relação de consumpção (lex consumens derogat legi consumptae, ou seja, o concreto sentido de ilicitude do crime mais grave integra e absorve o do crime menos grave), e não de especialidade (lógico-formal), é processual-penalmente viável a convolação do primeiro para o segundo crime.
(…)
Ou seja:
Ao condenar o arguido, ora recorrente, pelo crime menos grave, o Tribunal da Relação do Porto, mantendo-se adentro do objecto do processo (thema decidendi) deu cumprimento aos princípios da identidade e da indivisibilidade do processo penal, condenando pelo mesmo crime (embora na sua formulação ético-penal menos grave), e não por crime diverso (cfr, o art. 1º-f) do Código de Processo Penal).
(…)
E, aliás, constitui, no caso, mero exercício da ilogicidade a invocação do princípio do ne bis in idem:
Por um lado, porque o arguido, ora recorrente, não foi condenado ou absolvido, com trânsito em julgado, do crime de “homicídio por negligência”, mais grave, nem os crimes em causa lhe foram imputados nos autos simultaneamente;
(…)
Por outro lado, porque a condenação pelo crime de “ofensa à integridade física por negligência”, menos grave – apoiada nos mesmos factos –, assentou apenas na demonstração de um evento do real-social que se constitui numa relação de mera gradação (por diminuição, um estádio prévio) com o bem-jurídico-penal que constitui o objecto da acção protegido do crime de “homicídio por negligência” – a vida humana.
(…)
Donde:
O ministrar do medicamento em causa à vítima nas circunstâncias em questão poderia, em termos lógico-causais, ter-lhe provocado a morte (pela via do choque anafiláctico), o que, contudo não se comprovou, mas, de todo o modo, provocou-lhe, pela mesma via, um agravamento do seu estado de saúde, o que constituiu uma “ofensa à integridade física por negligência”, por cuja prática o arguido, ora recorrente, foi condenado em recurso, de uma forma que lhe era de todo expectável.
(…)
O referido princípio da identidade do processo penal (os factos imputados devem ser, tendencialmente, os mesmos entre a acusação e o trânsito em julgado) – como depositário do acusatório e do contraditório e reverso do princípio da indivisibilidade (o Tribunal deve conhecer de todos os factos que lhe seja lícito conhecer) – não implica, pois, que o objecto do processo deva ser linear e imutavelmente expresso em fórmulas prático-empíricas cristalizadas, num ritualismo formalista, vazio, sem espaço para que o julgador, na sua justeza, prudência e lucidez, possa, sem atropelo da previsibilidade e da confiança jurídicas, acrescentar, modificar ou subtrair concretos episódios a um evento do real-social que se mantenha inalterado na significação critico-dialéctica atinente ao processo probatório e na sua relevância jurídico-penal, especialmente quando em benefício do arguido.
(…)
Não foi violado o ne bis in idem (nem, segundo cremos, a disposição do art. 358º do Código de Processo Penal).
(…)
Violação da disposição do artigo 412º do Código de Processo Penal.
(…)
Cremos que também não tem também aqui razão tem razão o recorrente, com todo o respeito.
(…)
O recurso do Ministério Público assentou, nomeadamente, na invocação do vício de “erro notório na apreciação da prova” e de erro de julgamento, tendo em vista a alteração de facto no sentido da condenação pela prática do crime de “homicídio por negligência”;
No seu recurso, o assistente pugnou também pelo erro de julgamento (invocando erra na apreciação da prova pericial), com vista à condenação do arguido, ora recorrente, pela prática do crime de “ofensa à integridade física por negligência”.
(…)
E, consentaneamente, o Tribunal a quo decidiu, nomeadamente:
Declarar em vício de “erro notório na apreciação da prova”, embora sem consequências práticas ao nível do arranjo dos factos relevantes;
Alterar a matéria de facto nos termos ali expostos (cfr, pág. 66), com base na reapreciação da prova documental/pericial produzida em julgamento e invocada em recurso.
Condenar, em conformidade, o arguido, ora recorrente, pela prática do crime de “ofensa à integridade física por negligência”.
(…)
Pelo que se nos afigura que o Tribunal recorrido se manteve nos limites dos seus poderes de cognição, tanto mais que, no essencial, os recorrentes cumpriram o ónus da disposição do art. 412º/3 do Código de Processo Penal (cfr, também as disposições dos arts. 402º e 417º/3 e 4 do mesmo diploma legal).
(…)
Não foi violada a disposição do art. 412º do Código de Processo Penal).
(…)
Degradação do crime-público em crime semi-público (queixa).
(…)
Volta a não ter razão o recorrente, com todo o respeito.
(…)
A degradação do objecto do processo, após o recebimento da acusação, de crime-público para crime semi-público (decorrido já o prazo de seis meses para formulação da queixa, não apresentada pelo respectivo titular) não pode, sob pena de violação dos princípios do acesso à justiça e da confiança, induzir a falta de condição de procedibilidade, com a consequente ilegitimidade superveniente do Ministério Público para o exercício da acção penal (cfr, os arts. 113ºss do Código Penal e 49ºss do Código de Processo Penal).
(…)
Tanto mais, que, no caso, o titular do direito respectivo veio aos autos, em tempo, constituir-se assistente e exercer os seus direitos.
(…)
É o que decorre, aliás, como foi sublinhado no Acórdão recorrido, do AUJ 9/2024, de 29/05 (proferido numa situação, se não idêntica, com a similitude bastante para servir de sólido argumento interpretativo):
O Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da ação penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento, por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no artigo 181º, nº 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público.
(…)
E, como bem fundamenta o Tribunal a quo:
… …
Passa também por esta exigida inequivocidade, que perpassa nos sucessivos actos processuais de que depende o andamento processual, desde a apresentação de queixa e a constituição como assistente, que determinam o início do processo investigativo e a passagem a verdadeiro sujeito processual do queixoso, até á dedução da acusação particular, sedimentadora da vontade do assistente de perseguição criminal e de prossecução penal, a modelação processual com tal inexigibilidade da acusação particular a final do julgamento e pós-convolação. Queixa, constituição de assistente e acusação particular são instrumentos processuais disponibilizados pelo legislador ao particular assistente. Seria absurdo que, pese embora a total inequivocidade de propósito, tão abundantemente demonstrado, lhos conferisse com uma mão e lhos retirasse com a outra, com base não na falta de acusação, que essa existe, mas sim na falta de um formal nomen juris.
O Tribunal Constitucional no acórdão 523/99, registou também o absurdo a que a exigência de uma regularidade formal a destempo pode conduzir. “Seria absurdo, além de praticamente impossível, obrigar o ofendido a retroceder no tempo e a apresentar uma queixa num prazo que a lei estabelecia para crimes de outra natureza, a fim de impedir a extinção do procedimento criminal. O ofendido não contava, nem tinha razoavelmente motivos para contar, com a alteração legislativa. Logo, não estava sujeito a qualquer prazo para desencadear o exercício da acção penal. Fê-lo, na altura, sem que tal fosse exigido, assim se comprovando o seu interesse em ver o agente penalmente perseguido pelo comportamento adoptado.
(…)
Não foram violadas as disposições dos arts. 113ºss do Código Penal e 49ºss do Código de Processo Penal
(…)
Em síntese:
1)-A condenação, em recurso, do arguido por crime de “ofensa à integridade física por negligência”, por convolação do crime de “homicídio por negligência”, por cuja prática fora absolvido, decorrente da alteração de facto correspondente, não constitui violação do ne bis in idem;
2)-Tendo os recursos interpostos assentado, nomeadamente, na invocação de erro de julgamento, por defeituosa apreciação da prova documental/pericial, tendo em vista a alteração de facto no sentido da revogação da absolvição e da condenação pela prática do crime de “homicídio por negligência” ou pelo crime de “ofensa à integridade física por negligência”, não constitui violação da disposição do art. 412º do Código de Processo Penal a decisão, pelo Tribunal “ad quem”, de alterar a matéria de facto, com base na reapreciação da prova em questão, assim induzindo a condenação pela prática do crime referido em segundo lugar.
3)-A degradação do objecto do processo, após o recebimento da acusação, de crime-público para crime semi-público (decorrido já o prazo de seis meses para formulação da queixa, não apresentada pelo respectivo titular) não pode, sob pena de violação dos princípios do acesso à justiça e da confiança, induzir a falta de condição de procedibilidade, com a consequente ilegitimidade superveniente do Ministério Público para o exercício da acção penal, tanto mais que o titular do direito de queixa oportunamente se constituiu assistente nos autos e exerceu os direitos respectivos.
(…)
Deverá o presente recurso ser julgado não provido e improcedente, sendo de manter os termos da decisão recorrida.
Não foi apresentada qualquer resposta.
9. Efetuado o exame preliminar e colhidos que foram os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Questões a decidir
Face ao disposto no artigo 412º do CPPenal, considerando a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19 de outubro de 19954, bem como a doutrina dominante5, o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo da ponderação de questões de conhecimento oficioso que possam emergir6.
Isto posto, e vistas as conclusões do instrumento recursivo do arguido recorrente, e os poderes de cognição deste tribunal, sempre considerando que o tribunal de recurso deve observar uma ordem de apreciação preclusiva das questões que se suscitem, importa apreciar e decidir:
- da violação do princípio ne bis in idem;
- da violação do disposto no artigo 412º do CPPenal;
- da degradação do crime público em crime semipúblico;
- da indemnização civil arbitrada.
2. Apreciação
2.1. O Tribunal recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos: (transcrição7)
(…)
Factos Provados
1. no dia 4 de janeiro de 2015, pelas 21h00, DD deu entrada no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, E.P.E - CHTMAD, sito na Avenida Noruega, Lordelo, em Vila Real, na sequência de acidente de viação no IC5, Km 43,2;
2. apresentava fratura exposta da tíbia direita (grau III); fratura bimaleolar esquerda; fratura do estiloide radial esquerda, e estava hemodinamicamente estável, consciente, colaborante com Glasgow de 15;
3. no dia 5 de janeiro de 2015, DD foi operado à fratura dos ossos da perna, tendo-se procedido a encavilhamento da tíbia e tratamento cirúrgico da fratura bimaleolar esquerda com osteossíntese do perónio e sutura do ligamento deltoide;
4. no dia 6 de janeiro de 2015, DD foi transferido para a Unidade Local de Saúde de Matosinhos, E.P.E., mais conhecida por Hospital Pedro Hispano, sito na Rua Dr. Eduardo Torres, na Senhora da Hora, Matosinhos, por ser a sua área de residência, após contacto prévio com o mesmo;
5. constava da nota de alta de DD emitida pelo CHTMAD em 6 de janeiro de 2015, que aquele “refere alergia à penicilina”;
6. DD chegou ao Hospital Pedro Hispano, no dia 6 de janeiro de 2015, pelas 16:04 horas, transferido de Vila Real medicado com antibioterapia (clindamicina), analgesia e lovenox;
7. pelas 21h48 horas, DD foi observado pelo médico, ora arguido, AA que, sem aceder aos elementos clínicos que acompanharam DD, sem questionar o mesmo acerca de alergias, e sem questionar o CHTMAD acerca do seu historial clínico, lhe prescreveu, além de outra medicação, injeção intravenosa de 2.20g de amoxicilina + ácido clavulânico IV, a administrar de 8 em 8 horas;
8. então, o enfermeiro, ora arguido, BB, também sem consultar elementos clínicos, nomeadamente o diário de enfermagem onde constava referência a alergia a penicilina, pelas 22h00 do dia 6 de janeiro de 2015, efetuou injeção intravenosa de 2.20g de amoxicilina + ácido clavulânico IV, nos termos prescritos;
9. a amoxicilina com ácido clavulânico é um antibiótico e pertence ao grupo das penicilinas, o que os arguidos bem sabiam;
10. pelas 22h10 do dia 6 de janeiro de 2015, DD manifestou dificuldade respiratória, taquicardia, saturação de O2 < 90%, quadro compatível, entre outros diagnósticos diferenciais, com o diagnóstico de reação anafilática aguda;
11. de imediato, foi admitido na sala de emergência e iniciou manobras terapêuticas com administração de hidrocortisona, adrenalina subcutânea e intubação orotraqueal com tubo 7.5;
12. a situação evoluiu para uma degradação progressiva, tendo iniciado SAV - suporte avançado de vida - com ventilação assistida e com pressões torácicas;
13. após o insucesso de todas estas medidas, decorridos 40 minutos, foram suspensas as manobras de reanimação e foi verificado o óbito de DD, às 23h00;
14. o médico arguido AA omitiu o dever, que se lhe impunha e de que era capaz, de analisar os documentos clínicos que acompanharam DD provindos do CHTMAD, ou o diário de enfermagem, ou de perguntar a DD se era alérgico a alguma substância, ou de solicitar ao CHTMAD documentos clínicos, antes de prescrever amoxicilina com ácido clavulânico;
15. omitiu também o enfermeiro, arguido BB, o dever de verificar o diário de enfermagem atempadamente, ou analisar os documentos clínicos que acompanharam DD provindos do CHTMAD, ou de perguntar a DD se era alérgico a penicilina, nomeadamente antes de administrar a amoxicilina com ácido clavulânico a DD;
16. o médico arguido AA e o enfermeiro arguido BB sabiam que a prescrição e administração de amoxicilina com ácido clavulânico a um paciente alérgico a penicilina lhe poderia provocar um choque anafilático;
17. os arguidos, agindo da forma descrita, exerceram a sua profissão preterindo a atenção e o cuidado que o exercício de medicina e as técnicas de enfermagem requerem, cuidado e atenção que lhes eram exigíveis e de que eram capazes;
18. o médico AA, segundo os seus conhecimentos e as suas capacidades pessoais, e, tendo ainda em conta a sua liberdade na escolha dos meios de diagnóstico e tratamento, encontrava-se em condições de ter averiguado se DD era alérgico à penicilina;
19. o enfermeiro BB, segundo os seus conhecimentos e as suas capacidades pessoais, e, tendo ainda em conta a sua liberdade na administração da medicação, devendo recusar a mesma quando tal ponha em perigo a saúde ou a vida do paciente, encontrava-se em condições de ter averiguado se DD era alérgico à penicilina;
20. no dia 5 de janeiro de 2015, no CHTMAD, DD referiu ao médico ortopedista EE que era alérgico à penicilina, o que foi feito constar do diário clínico do paciente;
21. no dia 6 de janeiro de 2015, antes de ser transferido para o CH de Matosinhos, a médica do CHTMAD, FF, falou ao telefone com o médico EE, do Serviço de ortopedia do Hospital Pedro Hispano, comunicando a futura transferência do paciente;
22. pelas 17:47:30 do dia 6 de janeiro de 2015 foi feito constar no “registo de enfermagem” respeitante a DD, pela Enfermeira GG:
“Doente com 49 anos que deu entrada no su por fractura…
Consciente, orientado, colaborante dentro das possibilidades
Corado, hidratado
alérgico a penicilina
apresenta ferida suturada na região frontal cateter ev no sangradouro direito
sem antecedentes pessoais historia transfusional – presente”;
23. pelas 22:04:53 do dia 6 de janeiro de 2015, após a administração referida em 8., o arguido BB acedeu ao mencionado registo de enfermagem, fazendo dele constar:
“AREA CIRURGICA – NOITE
Transferido do hospital de vila real – acidente de trabalho
Internado com diagnostico de #radio distal esq com env articular + #diafise ossos da perna drt (exposto grau III já com encavilhamento no hospital de admissão + #diafise peroneo esq e bimaleolar à esq (já operado com placa 1/3 cano no hospital de admissão)”;
24.logo após a administração da amoxicilina + ácido clavulânico 2.20 via endovenosa o paciente DD começou a sentir alterações solicitando ajuda ao auxiliar do hospital de Matosinhos e referindo que era alérgico à penicilina;
25. a autópsia demonstrou que DD, à hora da morte, apresentava enfarto agudo de miocárdio (EAM) com 4 (quatro) a 12 (doze) horas de evolução;
26. uma reação anafilática pode determinar alterações cardíacas, vasculares e respiratórias que acentuem as consequências de EAM;
27. os compromissos funcionais de um EAM podem comprometer os mecanismos fisiológicos de compensação das alterações produzidas por um quadro de anafilaxia;
28. a ocorrência simultânea de ambos os processos pode agravar o prognóstico isolado de cada um;
29. o EAM detetado em DD era assintomático, designando-se por EAM silencioso;
30. existem achados autópticos objetivos de EAM no sentido de que este pode, exclusivamente, ter determinado a morte de DD;
31. o EAM silencioso pode ter como única manifestação colapso e morte súbita;
32. a hipótese de EAM, em vida de DD, foi afirmada no eletrocardiograma realizado na sala de emergência no dia 06-01-2015, constando no diário médico “Degradação progressiva, com PCR com ritmo inicial de EAM, às 22:20”;
53. à data dos factos o arguido era médico interno no 2º. ano de formação específica em Ortopedia e traumatologia, sob responsabilidade do serviço de Ortopedia do Hospital Pedro Hispano;
54. na anamnese, o doente enquanto consciente e colaborante foi considerado uma fonte fiável e inteligível para dar as informações necessárias e com pleno interesse na sua recuperação;
55. do relatório toxicológico inerente à autópsia de DD consta a deteção de canabinóides;
56. a plataforma de dados em saúde (plataforma que permite o acesso à informação informatizada dos vários hospitais) à data dos factos estava em modo experimental, com acesso muito limitado e falhas constantes, ainda hoje presentes embora em menor grau;
57. nos casos de fratura exposta está estipulado que a cobertura antibiótica por via endovenosa deve ser introduzida precocemente e mantida por um período variável, associado à lavagem e desbridamento cirúrgico agressivos e à estabilização da fratura;
58. a antibioterapia deve cobrir os agentes (bactérias) GRAM positivas, sendo que um dos antibióticos de escolha é a Amoxicilina e ácido clavulânico que deverá ser mantido segundo alguns autores numa fratura exposta de grau III durante 72 horas;
59. a fratura exposta que o doente apresentava era um grau III/III de Gustilo - Anderson, que corresponde a uma grande exposição (<10cm) e, portanto, com nível de contaminação elevada, tendo sido preocupação da equipa de ortopedia do Hospital Pedro Hispano a manutenção da antibioterapia;
60. a adrenalina, quando administrada precocemente e pela via adequada é essencial e eficaz na reversão do quadro de choque anafilático;
61. a precocidade da administração da adrenalina é o fator essencial para a reversão do quadro de choque anafilático;
62. a adrenalina foi administrada e não teve sucesso na reversão do quadro: pelo oposto, o estado clínico de DD agravou e deteriorou-se progressivamente.
a) A prescrição e a administração da amoxicilina com ácido clavulânico foram a causa direta e necessária do choque anafilático de DD.
b) Ao omitirem os deveres referidos em 14., 15. e 17. a 19., os arguidos criaram grave perigo para a vida, corpo ou saúde de DD.
c) Ao assim agirem, os arguidos representaram como possível que o paciente DD, em virtude da administração de amoxicilina com ácido clavulânico, viesse a sofrer um choque anafilático.
e) Mais sabiam os arguidos que, com as condutas descritas, praticavam atos proibidos e punidos pela lei penal8.
a) A prescrição e a administração da amoxicilina com ácido clavulânico foram a causa direta e necessária da morte por choque anafilático de DD.
b) Sendo muito provável o resultado que se verificou à luz daquela conduta adotada, tendo-se tal perigo concretizado na morte do mesmo.
c) Ao assim agirem, os arguidos representaram como possível que o paciente DD, em virtude da administração de amoxicilina com ácido clavulânico, viesse a falecer em virtude de choque anafilático.
d) Com a sua atuação os arguidos representaram como possível que o paciente DD viesse a falecer em virtude de enfarte agudo do miocárdio.
f) Foi feita colheita Triptase na sala de emergência.
arguidos de forma livre, voluntária e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.
2.2 Motivação da Decisão9
- facto 1. assenta no teor de fls. 9 e 43-45,
- o 2. em fls. 43-45,
- o 3. reflete fls. 43-45,
- o 4. está a fls. 43 e 54,
- o 5. consta de fls. 43, sendo contextualizado e, novamente, junto a fls. 1024 a 1025 v.º e confirmado pela signatária a FF, ouvida em julgamento;
- o facto 6. resulta de fls. 54, 76-77 (quanto ao antibiótico prescrito), 96 e 449,
- o facto 7., com exceção de “sem questionar o mesmo acerca de alergias”, está patente a fls. 54, 68-69, 92-95 e foi confirmado pelo arguido AA, em julgamento;
- o facto 8. está vertido a fls. 68-69, tendo o comportamento demonstrado sido admitido pelo arguido BB;
- quanto à caracterização do fármaco, ínsita no facto 9., corresponde a fls. 194-197;
- no que tange ao facto 10., quanto ao dia, hora e sintomatologia,
- factos 11., 12. e 13., os mesmos assentam nos documentos de fls. 55 e 70-71;
- factos 20. e 21. estão vertidos de fls. 43 a 45 v.º e fls. 76/77, sendo confirmados em audiência pelas testemunhas EE (médico que assistiu DD no CHTMAD), FF (médica que elaborou a nota de alta no CHTMAD), EE (médico ortopedista do Hospital Pedro Hispano que recebeu o telefonema) e HH (Diretor do Serviço de Ortopedia do Hospital Pedro Hispano, à data da prática dos factos, a quem EE deu conta do telefonema a alertar a transferência);
- factos 22. e 23. resultam de fls. 750 a 753, e foram confirmados, em julgamento, pelo arguido BB e pela testemunha GG, enfermeiros autores dos registos;
- o facto 24. foi também reconhecido pelo arguido BB;
- sem prejuízo da documentação junta e da parcial assunção dos acontecimentos 1. a 13. e 20. a 24. pelos arguidos, na parte em que são do seu conhecimento, mantiveram-se controvertidas em julgamento, quanto a este bloco de factos, as circunstâncias de a nota de alta, de fls. 43, ter, efetivamente, acompanhado DD e chegado ao Hospital Pedro Hispano e, ainda, de o arguido AA ter ou não questionado o malogrado DD acerca de alergias;
- no que concerne à “nota de alta”, firmamos a convicção de que a mesma, além de elaborada (fls. 43), foi efetivamente enviada;
- o CHTMAD confirmou a sua remessa a fls. 455-456 e 469;
- o médico EE, que recebeu o telefonema do CHTMAD (por parte de FF) a dar conta da transferência de DD, foi perentório quando afirmou ter sido essa a sua única intervenção, pois que no dia em que DD chegou a Matosinhos, já não se encontrava a trabalhar; confrontado com fls. 43 disse tratar-se do “documento habitual nas transferências” e ser “neste papel que deve constar a informação de alergias”, sem prejuízo, reconheceu já ter recebido doentes sem essa informação;
- II, médico que assistiu DD na sala de emergência disse que, num primeiro momento, não havia informações, mas que, embora não saiba precisar onde estava a “carta de transferência”, dada a distância temporal, “algures durante o processo leu o documento”;
- JJ - enfermeiro – estava também na sala de emergência e, após reavivamento de memória, sustentado na leitura das declarações prestadas em inquérito, admitiu haver uma “carta de referência”, vinda de Vila Real, mas que já só viu após o óbito;
- FF, afirmou sem hesitações que foi ela quem elaborou a “nota de alta”, confiando nas informações constantes do diário clínico do doente, nas quais se lia a menção à alergia a penicilina; fez a nota de alta e entregou-a, a fim de acompanhar a transferência, pois que a mesma é obrigatória e deverá ser entregue ao enfermeiro da triagem que recebe o paciente transferido, sendo esse o procedimento;
- EE, médico do CHTMAD que recebeu primeiramente DD e elaborou os diários clínicos em que se sustenta a “nota de alta”, confirmou os procedimentos, tais como descritos por FF;
- KK, Diretor do Serviço de Ortopedia do CHTMAD asseverou as condutas descritas, afirmando convictamente que nenhum doente é transferido sem “nota de alta”, a qual é imprimida em papel e entregue ao profissional que acompanha o paciente;
- LL, Diretor do Serviço de Ortopedia do Hospital Pedro Hispano à data dos factos, deu conta de a habitualidade da carta de alta acompanhar os doentes transferidos;
- analisada a situação, concluímos não ser verosímil que, em 2015, a transferência de um doente entre hospitais fosse realizada sem qualquer tipo de documento clínico que permitisse aos profissionais de saúde do hospital de destino inteirar-se do estado de saúde do utente;
- considerando o teor do documento, os depoimentos, bem como a normalidade do acontecer, gerou-se o grau de certeza necessário quanto à existência da nota de alta, bem como o seu envio para o Hospital de Matosinhos;
- quanto à segunda questão - se o arguido AA indagou de forma conveniente, junto de DD, da existência de alergias - cremos que não;
- o arguido AA afirmou,
- não ter feito qualquer contacto com o CHTMAD e que DD não vinha acompanhado de “carta” alguma, assumindo, neste ponto, que não consultou quaisquer registos, quer médicos, quer de enfermagem, tanto mais que a plataforma informática apresentava falhas de sistema;
- bastou-se com o interrogatório ao paciente, o qual se apresentava “intelectualmente íntegro”;
- do questionário feito, consta protocolarmente a pergunta “tem alergias conhecidas?”, ao que DD terá respondido negativamente – “não foi feita referência a alergia nem à penicilina, nem a qualquer medicamento” - pois que, de contrário teria anotado e não teria prescrito o derivado de penicilina “Clavamox” (nome pelo qual é conhecido o medicamento que resulta da combinação de amoxicilina e ácido clavulânico, aqui em causa);
- não ter sido feito qualquer teste para despiste de alergia, por ser não haver suspeita prévia;
- MM, médico ortopedista, orientador de formação de AA – que estava a cumprir o “internato – que estava, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar onde o arguido AA efetuou a observação de DD, mencionou que,
• o arguido AA não recebeu nenhum documento provindo do CHTMAD;
• aquele perguntou a DD a “história clínica habitual”, no que se inclui a questão acerca de alergias e interações medicamentosas;
• discutiu com o arguido AA qual a terapêutica adequada, tendo concordado com a administração de amoxicilina, reconhecendo que se fosse mencionada a alergia não teria sido esse o medicamento prescrito - vê como “única explicação o doente ter negado a alergia”;
tal facto não é credível em face da demais prova; não é possível que, questionado, DD tivesse negado qualquer alergia atá porque o mesmo fez menção à alergia à penicilina logo no CHTMAD, conforme atesta, como vimos, o diário clínico de fls. 45; já em Matosinhos, a enfermeira GG, pelas 17:47 horas do dia 6 de janeiro de 2015, observou DD, tendo feito constar, nesse momento e no registo de enfermagem, que aquele era alérgico a penicilina (cf. fls. 750-752);
- ouvida em julgamento, esta testemunha descreveu o paciente como estando “lúcido e colaborante”, afirmando sem pejo que a questão das alergias é uma pergunta standard, não duvidando que foi com base na resposta que anotou a referida menção;
- o assistente CC, filho de DD, foi claro e convincente quando disse que o seu pai mencionava regularmente que era “alérgico à penicilina”, o que fez, tem a certeza, no contexto do internamento hospitalar, quer em Vila Real, quer em Matosinhos;
- asseverou, também, que o pai estava “completamente lúcido, em condições de dar resposta a qualquer questão”;
- o arguido BB, mesmo reconhecendo que apenas viu as notas da colega GG após a administração do fármaco, deu a conhecer que, mais ou menos na mesma altura, foi alertado pela auxiliar NN que DD, tendo começado a sentir alterações no seu estado, lhe havia dito que era alérgico a penicilina;
- apesar da penicilina e seus sucedâneos serem os antibióticos de “primeira linha” para o tipo de fratura exposta exibida por DD (o que foi globalmente afirmado por todos os peritos e profissionais de saúde ouvidos em julgamento) houve um motivo para que o médico prescritor no CHTMAD tivesse recorrido à clindamicina, cfr. fls. 76-77 - o facto de DD ter mencionado a alergia, sempre que confrontado com a pergunta;
- não é, pois, minimamente credível que DD, ao interrogatório levado a cabo pelo arguido AA, tivesse respondido com a negação da alergia - não só não o fez, como tampouco lhe foi perguntado;
- facto 16. foi reconhecido pelos arguidos;
- quanto às demais circunstâncias, reconduzíveis à atuação dos arguidos em violação dos cuidados que lhes eram devidos em virtude das profissões que desempenham:
- o arguido AA tem por cumprido o seu dever de diligência e zelo com o questionário protocolar a paciente lúcido e colaborante negando a necessidade, nessa situação e no contexto de urgência, de consulta de registos prévios;
- o arguido BB, embora reconhecendo que “se tivesse mais tempo tinha consultado processo e averiguado antes”, assumiu que não o fez e assumiu mais, embora afirmando não poder, à partida, por em causa a prescrição médica; diz que “não perguntou diretamente, mas se tivesse lido a nota não lhe tinha dado [o antibiótico]”;
- no que diz respeito aos procedimentos de enfermagem, as testemunhas JJ, OO e GG afirmaram de forma consentânea que o enfermeiro deve consultar as notas anteriores dos colegas (embora digam todos que é muito difícil fazê-lo em contexto de urgência), acrescentando esta última que, antes da administração de um fármaco, costuma questionar acerca de alergias conhecidas;
- que outra será a utilidade de um histórico clínico registado, senão a sua consulta antes da prática de qualquer ato médico ou de enfermagem, de forma a que a prática desse ato seja a mais segura possível?
- Resulta do parecer técnico-científico do INML de fls. 238-240, bem como do esclarecimento da Ordem dos Enfermeiros, a fls. 370/1, assim como do parecer técnico-científico do INML de fls. 1055 e ss., que o profissional de saúde que pretenda prescrever ou administrar medicamentos, na respetiva avaliação clínica, deve tomar em consideração o histórico de alergias ou interações medicamentosas relatadas pelo doente, devendo a prescrição farmacológica ter em consideração tal informação;
- nesse sentido, conclui o parecer, deveria também ter sido consultada a nota de alta hospitalar do CHTMAD, bem como o registo de enfermagem do próprio Hospital Pedro Hispano;
- em contrário, escudaram-se, quer os arguidos, quer alguns dos profissionais de saúde ouvidos em julgamento (Professor PP, MM, JJ, GG, OO, QQ) no estado “caótico” (sic) das urgências à data dos factos, no excesso de serviço, nas constantes falhas do sistema informático, na falta de meios e de pessoal, e na desarticulação das várias entidades;
- sem prejuízo, e não sendo o tribunal insensível a todos estes argumentos que se têm por bons e demonstráveis (cfr. fls. 853), tanto mais que se tratam de factos notórios, a verdade é que é de exigir, pelo menos que, quer o médico, quer o enfermeiro questione o paciente sobre possíveis alergias ou outras contraindicações farmacológicas, atenta a simplicidade e rapidez desse procedimento;
- factos 25. a 32. assentam em prova pericial – cujo juízo está subtraído à livre apreciação do julgador, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do CPP, não tendo este tribunal razões para divergir (n.º 2, do citado artigo) - concatenada e integrada pelos registos clínicos a que se vem fazendo referência, bem como pelo pelos esclarecimentos dos Senhores Peritos ouvidos em julgamento - concretamente, foram considerados o relatório de autópsia, a fls. 4 a 10, e os sucessivos pareceres do conselho médico-legal de fls. 159 a 161 e 236 a 240, fls. 922 a 937, fls. 1055 a 1062, 1064 e 1065 e ss.;
- quanto ao facto 32., foi essencial também o documento de fls. 22 e tiveram-se em consideração, neste conspecto, a prestação esclarecedora e desinteressada dos Senhores Peritos Professor Doutor PP e RR, respetivamente relator e um dos subscritores dos pareceres do Conselho Médico- Legal, SS e Professora Doutora TT, médicas legistas subscritoras do relatório de autópsia de fls. 4 a 10 e UU, autora do relatório de anatomia patológica;
- factos 53 a 62, resultam, como decorrência lógica dos demais factos demonstrados, mas também da prova pericial já enunciada, quer dos depoimentos dos profissionais de saúde do Hospital Pedro Hispano que contactaram com DD no malogrado dia 6 de janeiro de 2015, todos eles coincidentes no sentido de que o falecido se encontrava, à data, lúcido e colaborante;
- concretamente quanto o facto 55., está evidenciado no parecer de fls. 160/1.
Em face do exposto, vejamos, então, primeiramente os factos não provados.
a) A prescrição e a administração da amoxicilina com ácido clavulânico foram a causa direta e necessária da morte por choque anafilático de DD;
b) Ao omitirem os deveres referidos em 14., 15. E 17. A 19., os arguidos criaram grave perigo para a vida, corpo ou saúde de DD, sendo muito provável o resultado que se verificou à luz daquela conduta adotada, tendo-se tal perigo concretizado na morte do mesmo;
c) Ao assim agirem, os arguidos representaram como possível que o paciente DD, em virtude da administração de amoxicilina com ácido clavulânico, viesse a falecer em virtude de choque anafilático;
d) Com a sua atuação os arguidos representaram como possível que o paciente DD viesse a falecer em virtude de enfarte agudo do miocárdio;
e) Mais sabiam os arguidos que, com as condutas descritas, praticavam atos proibidos e punidos pela lei penal;
f) Foi feita colheita Triptase na sala de emergência.
É certo que estamos aqui, maioritariamente, perante um caso de prova vinculada ou tarifada – cujo não atendimento, como é sabido, fora da situação do n.º 2 do artigo 163.º CPP, constitui um dos exemplos padrão da verificação do vício do erro notório na apreciação da prova.
É certo que, reportado ainda ao caso concreto será de realçar que, se de facto a divergência não fundamentada da convicção do julgador relativamente ao juízo contido no parecer dos peritos traduz um erro notório na apreciação da prova (cfr. artigo 163.º CPP), acerca do valor daquele tipo de prova, importará aqui questionar que prova pericial, prova legal, prova tarifada, têm os recorrentes em mente.
O primeiro elemento de prova pericial consta do processo de fls. 7. A fls. 10. Trata-se do relatório da autópsia. E, ninguém coloca em causa, de forma séria e razoável que o que dela consta, quanto à causa provável de morte, veio, posteriormente a ser debatido, discutido, de forma assaz pertinente, em vista de uma completa, cabal e definitiva dilucidação, sobre qual a resposta a dar a tal pergunta, em face da invocação de elementos novos que no momento da realização da dita autópsia, não estariam na posse de quem a levou a cabo – no caso do resultado do electriocardiograma efectuado já depois de terem surgido os primeiros sintomas do choque anafilático.
Assim, veio a ser produzida nova prova pericial, em quatro distintas ocasiões, que veio a ser complementada com a prestação de esclarecimentos, pessoalmente, em sede de julgamento, o que bem demonstra o intenso debate e dúvida sobre a resposta a dar àquela questão (que prova pericial, prova legal, prova tarifada, têm os recorrentes em mente), de que ambos os recursos, aliás, constituem exemplo paradigmático.
Se nem os muitos técnicos especializados sobre a matéria, nem os juristas que até aqui tiveram intervenção nos autos, estão de acordo, sobre a resposta a dar à causa de morte, muito menos, se poderá dizer que o homem normal, o homem, médio, sem particulares conhecimentos, da mera leitura do texto da decisão recorrida possa surpreender o invocado erro notório na apreciação da prova – quanto a esta particular questão. Questão que é muito mais complexa do que aquilo que o homem médio possa percepcionar ou entender.
Já, contudo, quanto às questões que lhe antecede, cronologicamente, cremos que a análise crítica da prova falhou de forma manifesta, o que poderá ter viciado, inquinado, sugerido, por arrastamento o julgamento como não provado do invocado nexo de causalidade. Pelo menos como uma das causas, como se verá.
Com efeito, o processo de raciocínio que culminou com a conclusão de que se não provou que o choque anafilático constituísse causa provável de morte, passou por se ter colocado em causa, a ocorrência, desde logo, do choque anafilático, depois de se ter iniciado com o colocar em causa, sequer, que a vítima fosse alérgica à penincilina.
Foi um encadeamento de erros notórios que culminou com a remissão para o relatório da autópsia – onde consta como causa provável de morte o choque anafilático – para dali se aproveitar, tão só, o facto de se ter feito constar a lesão de esquemia aguda com cerca de 4 a12 horas de tempo de evolução estimado em miocárdio com lesões de cardiopatia hipertrófica.
E, assim, se afirmou no ponto 25., que a autópsia demonstrou que DD, à hora da morte, apresentava enfarto agudo de miocárdio (EAM) com 4 (quatro) a 12 (doze) horas de evolução.
Colocou, então, a decisão recorrida em causa que,
- a vítima era, efectivamente, alérgico à penincilina – dizendo-se que não sabemos, sequer se o era; a alergia é dinâmica, varia ao longo da vida, não há análises nem registos clínicos prévios que o atestem;
- o EAM é certo – DD estava nessa condição há, pelo menos, 4 horas antes da morte;
- o choque anafilático não é – apesar da coincidência entre a administração do antibiótico e o início dos sintomas, não sabemos, sequer, se DD era efetivamente alérgico à penicilina;
- quer o choque anafilático, quer o enfarte agudo de miocárdio são causa de morte – qualquer deles poderia levar à morte;
- os sintomas de EAM são semelhantes, o diagnóstico diferencial de choque anafilático foi estabelecido porque foi transmitido ao médico na sala de emergência que o paciente era alérgico;
- no expressivo dizer do Senhor Perito, Professor Doutor PP “é impossível saber o que levou à morte de DD”;
- não se pode afirmar com o grau de certeza que se exige que o comportamento dos arguidos tenha sido causador de um choque anafilático que levou à morte de DD, por não ser minimamente certo que o mesmo tenha falecido em virtude disso;
- sendo impossível saber o que levou à morte de DD, era impossível aos arguidos prever que o seu comportamento pudesse levar ao resultado morte, motivo pelo qual se não demonstram os factos a) a e).
Vejamos a lógica intrínseca destas afirmações – com base na decisão recorrida, como é suposto:
- não se sabe se a vítima era, efectivamente, alérgica à penincilina.
- não se pode afirmar com o grau de certeza que se exige que o comportamento dos arguidos tenha sido causador de um choque anafilático.
- não é minimamente certo que a vítima tenha falecido em virtude do choque anafilático.
- é impossível saber o que levou à morte da vítima.
- era impossível aos arguidos prever que o seu comportamento pudesse levar ao resultado morte.
a) o primeiro erro consiste na afirmação de que não se sabe se a vítima era, efectivamente, alérgica à penicilina.
Vem provado e não impugnado que,
20. no dia 5 de janeiro de 2015, no CHTMAD, DD referiu ao médico ortopedista EE que era alérgico à penicilina, o que foi feito constar do diário clínico do paciente;
5. na nota de alta de DD emitida pelo CHTMAD em 6 de janeiro de 2015 conta que aquele “refere alergia à penicilina”;
6. DD chegou ao Hospital Pedro Hispano, no dia 6 de janeiro de 2015, pelas 16:04 horas, transferido de Vila Real medicado com antibioterapia (clindamicina), analgesia e lovenox;
22. pelas 17:47:30 do dia 6 de janeiro de 2015 foi feito constar no “registo de enfermagem” respeitante a DD pela Enfermeira GG:
“Doente com 49 anos que deu entrada no su por fractura…
Consciente, orientado, colaborante dentro das possibilidades
Corado, hidratado
issipa a penicilina
apresenta ferida suturada na issip frontal cateter ev no sangradouro direito
sem antecedentes pessoais historia transfusional – presente”;
7. pelas 21h48 horas, DD foi observado pelo médico, ora arguido, AA que, sem aceder aos elementos clínicos que acompanharam DD, sem questionar o mesmo acerca de alergias, e sem questionar o CHTMAD acerca do seu historial clínico, lhe prescreveu, além de outra medicação, injeção intravenosa de 2.20g de amoxicilina + ácido clavulânico IV, a administrar de 8 em 8 horas;
8. então, o enfermeiro, ora arguido, BB, também sem consultar elementos clínicos, nomeadamente o diário de enfermagem onde constava referência a alergia a penicilina, pelas 22h00 do dia 6 de janeiro de 2015, efetuou injeção intravenosa de 2.20g de amoxicilina + ácido clavulânico IV, nos termos prescritos;
9. a amoxicilina com ácido clavulânico é um antibiótico e pertence ao grupo das penicilinas, o que os arguidos bem sabiam.
Cremos que do exposto, não se pode daqui afirmar, como se faz na decisão recorrida, que não se sabe se a vítima era, efectivamente, alérgico à penincilina, com o argumento de que se trata de uma alergia dinâmica, varia ao longo da vida e, não há análises nem registos clínicos prévios que o atestem.
É certo que a vítima não tinha cartão de alérgico à penincilina; é certo que não existe um registo nacional de alérgicos à penincilina; é certo que não existe um banco de dados onde constem os alérgicos à penincilina; é certo que não lhe foi feito qualquer teste ou análise para se averiguar se o era ou não.
Mas já não é certo que não existam registo clínicos que o atestem.
É certo que a pergunta standard, em casos similares, é perguntar ao próprio doente – se, estiver em condições de responder, consciente e colaborante – se é alérgico.
Foi o que, de resto foi feito em Vila Real primeiro e, depois à chegada a Matosinhos – em Vila Real, em dois momentos distintos. No diário clínico e na nota de alta.
E, que em ambos os casos, coincidindo a resposta da vítima, no sentido afirmativo, foi feito constar dos registos clínicos.
E, acrescente-se, foi tratado em Vila Real, em consonância com tal informação. Sem razão para duvidarem da informação transmitida pela vítima, foi-lhe ministrado, como antibioterapia, clindamicina, tratamento absolutamente distinto do que a vítima recebeu em Matosinhos.
Também, aqui sem razão para colocarem em causa a credibilidade da informação que a vítima vinha apresentando sempre que lha solicitavam, foi feito constar na triagem que referia ser alérgico à penincilina.
Contudo, não obstante, tal constar de todos os registos clínicos, o certo é que o procedimento dos arguidos foi diferente, violando as legis artis, as boas práticas exigidas no caso.
Conclusão que resulta, aliás, desde logo, do terceiro relatório, de 29.04.2023: a administração desta amoxicilina foi uma violação das “legis artis”, quando perguntado, e que a sua administração criou, agravou, aumentou e potenciou um perigo indevido, evitável, desnecessário e/ou proibido (resposta sim a ambos os quesitos) porque a reação anafilática desencadeada pode determinar alterações cardíacas, vasculares e respiratórias que acentuam as consequências de um enfarte do miocárdio e que a ocorrência simultânea de ambos os processos agrava o prognóstico isoladamente dependente de cada um.
Em Matosinhos ninguém leu os registos clínicos e antes da administração da amoxicilina ninguém perguntou ao infelizmente falecido, se ele tinha alguma alergia.
O médico prescreveu e o enfermeiro ministrou não clindamicina, mas sim, amoxicilina + ácido clavulânico IV, a administrar de 8 em 8 horas, sendo que a amoxicilina com ácido clavulânico é um antibiótico e pertence ao grupo das penicilinas, o que os arguidos bem sabiam.
Falha, assim, de forma grosseira, o raciocínio em que assenta o primeiro pressuposto lógico seguido na decisão recorrida, para afastar a causa provável de morte.
E, se dúvidas pudessem, ainda, pairar acerca da veracidade do que a vítima vinha informando, o que se passou a seguir issipa-las-ia, irremediável e inquestionavelmente.
E, assim, chegamos ao segundo erro.
b) não se pode afirmar com o grau de certeza que se exige que o comportamento dos arguidos tenha sido causador de um choque anafilático.
Vem provado e, não impugnado, que,
7. pelas 21h48 horas, DD foi observado pelo médico, ora arguido, AA que, sem aceder aos elementos clínicos que acompanharam DD, sem questionar o mesmo acerca de alergias, e sem questionar o CHTMAD acerca do seu historial clínico, lhe prescreveu, além de outra medicação, injeção intravenosa de 2.20g de amoxicilina + ácido clavulânico IV, a administrar de 8 em 8 horas;
8. então, o enfermeiro, ora arguido, BB, também sem consultar elementos clínicos, nomeadamente o diário de enfermagem onde constava referência a alergia a penicilina, pelas 22h00 do dia 6 de janeiro de 2015, efetuou injeção intravenosa de 2.20g de amoxicilina + ácido clavulânico IV, nos termos prescritos;
9. a amoxicilina com ácido clavulânico é um antibiótico e pertence ao grupo das penicilinas, o que os arguidos bem sabiam;
10. pelas 22h10 do dia 6 de janeiro de 2015, DD manifestou dificuldade respiratória, taquicardia, saturação de O2 < 90%, quadro compatível, entre outros diagnósticos diferenciais, com o diagnóstico de reação anafilática aguda;
11. de imediato, foi admitido na sala de emergência e iniciou manobras terapêuticas com administração de hidrocortisona, adrenalina subcutânea e intubação orotraqueal com tubo 7.5;
12. a situação evoluiu para uma degradação progressiva, tendo iniciado SAV - suporte avançado de vida - com ventilação assistida e com pressões torácicas;
13. após o insucesso de todas estas medidas, decorridos 40 minutos, foram suspensas as manobras de reanimação e foi verificado o óbito de DD, às 23h00;
14. o médico arguido AA omitiu o dever, que se lhe impunha e de que era capaz, de analisar os documentos clínicos que acompanharam DD provindos do CHTMAD, ou o diário de enfermagem, ou de perguntar a DD se era alérgico a alguma substância, ou de solicitar ao CHTMAD documentos clínicos, antes de prescrever amoxicilina com ácido clavulânico;
15. omitiu também o enfermeiro, arguido BB, o dever de verificar o diário de enfermagem atempadamente, ou analisar os documentos clínicos que acompanharam DD provindos do CHTMAD, ou de perguntar a DD se era alérgico a penicilina, nomeadamente antes de administrar a amoxicilina com ácido clavulânico a DD;
16. o médico arguido AA e o enfermeiro arguido BB sabiam que a prescrição e administração de amoxicilina com ácido clavulânico a um paciente alérgico a penicilina lhe poderia provocar um choque anafilático;
17. os arguidos, agindo da forma descrita, exerceram a sua profissão preterindo a atenção e o cuidado que o exercício de medicina e as técnicas de enfermagem requerem, cuidado e atenção que lhes eram exigíveis e de que eram capazes;
18. o médico AA, segundo os seus conhecimentos e as suas capacidades pessoais, e, tendo ainda em conta a sua liberdade na escolha dos meios de diagnóstico e tratamento, encontrava-se em condições de ter averiguado se DD era alérgico à penicilina;
19. o enfermeiro BB, segundo os seus conhecimentos e as suas capacidades pessoais, e, tendo ainda em conta a sua liberdade na administração da medicação, devendo recusar a mesma quando tal ponha em perigo a saúde ou a vida do paciente, encontrava-se em condições de ter averiguado se DD era alérgico à penicilina;
23. pelas 22:04:53 do dia 6 de janeiro de 2015, após a administração referida em 8., o arguido BB acedeu ao mencionado registo de enfermagem, fazendo dele constar:
“AREA CIRURGICA – NOITE
Transferido do hospital de vila real – acidente de trabalho
Internado com diagnostico de #radio distal esq com env articular + #diafise ossos da perna drt (exposto grau III já com encavilhamento no hospital de admissão + #diafise peroneo esq e bimaleolar à esq (já operado com placa 1/3 cano no hospital de admissão)”;
24. logo após a administração da amoxicilina + ácido clavulânico 2.20 via endovenosa o paciente DD começou a sentir alterações solicitando ajuda de auxiliar do hospital de Matosinhos e referindo que era alérgico à penicilina;
57. nos casos de fratura exposta está estipulado que a cobertura antibiótica por via endovenosa deve ser introduzida precocemente e mantida por um período variável, associado à lavagem e desbridamento cirúrgico agressivos e à estabilização da fratura;
58. a antibioterapia deve cobrir os agentes (bactérias) GRAM positivas, sendo que um dos antibióticos de escolha é a Amoxicilina e ácido clavulânico que deverá ser mantido segundo alguns autores numa fratura exposta de grau III durante 72 horas;
59. a fratura exposta que o doente apresentava era um grau III/III de Gustilo - Anderson, que corresponde a uma grande exposição (<10cm) e, portanto, com nível de contaminação elevada, tendo sido preocupação da equipa de ortopedia do Hospital Pedro Hispano a manutenção da antibioterapia.
Não se pode daqui afirmar, como também se faz na decisão recorrida, que não se sabe, com o grau de certeza que se exige, se o comportamento dos arguidos foi causador de um choque anafilático.
Se bem interpretamos a decisão recorrida, cremos que se chega, mesmo, a colocar em causa que a vítima haja sofrido um choque anafilático.
E, aqui cumpre salientar que, em consonância, vem provado, no ponto 25 que a autópsia demonstrou que DD, à hora da morte, apresentava enfarto agudo de miocárdio (EAM) com 4 (quatro) a 12 (doze) horas de evolução, sem que se faça qualquer referência ao choque anafilático – que no relatório de anatomia patológica forense, vulgo relatório de autópsia, consta como causa provável de morte.
E, este será o primeiro documento a sustentar a primeira prova pericial, das várias produzidas nos autos, pelo que, do que dele consta (ou melhor não consta) não se podere colocar em causa, desde logo, no que aqui releva, a ocorrência do dito choque anafilático.
Como raciocínio para afastar o choque anafilático como causa provável de morte – que é o que aqui está em causa – refere-se na decisão recorrida (depois, como vimos já, de se afirmar não se saber, sequer, se a vítima seria alérgica à penincilina) que,
- o EAM é certo - DD estava nessa condição há, pelo menos, 4 horas antes da morte;
- o choque anafilático não é - apesar da coincidência entre a administração do antibiótico e o início dos sintomas;
- o diagnóstico diferencial de choque anafilático foi estabelecido porque foi transmitido ao médico na sala de emergência que o paciente era alérgico;
- não se pode afirmar com o grau de certeza que se exige que o comportamento dos arguidos tenha sido causador de um choque anafilático.
Ora,
Se a vítima é alérgica à penincilina;
A amoxicilina com ácido clavulânico é um antibiótico e pertence ao grupo das penicilinas;
Pelas 21.48 horas foi observada pelo arguido AA, que lhe prescreveu, além de outra medicação, injeção intravenosa de 2.20g de amoxicilina + ácido clavulânico IV, a administrar de 8 em 8 horas;
O arguido BB pelas 22 horas efectuou injeção intravenosa de 2.20g de amoxicilina + ácido clavulânico IV, nos termos prescritos;
Pelas 22.10 horas a vítima manifestou dificuldade respiratória, taquicardia, saturação de O2 < 90%, quadro compatível, entre outros diagnósticos diferenciais, com o diagnóstico de reação anafilática aguda;
De imediato, foi admitido na sala de emergência e iniciou manobras terapêuticas com administração de hidrocortisona, adrenalina subcutânea e intubação orotraqueal com tubo 7.5;
O médico arguido AA e o enfermeiro arguido BB sabiam que a prescrição e administração de amoxicilina com ácido clavulânico a um paciente alérgico a penicilina lhe poderia provocar um choque anafilático;
Pelas 22:04:53, após a administração da dita medicação, o arguido BB acedeu ao mencionado registo de enfermagem, fazendo dele constar:
“AREA CIRURGICA – NOITE
Transferido do hospital de vila real – acidente de trabalho
Internado com diagnostico de #radio distal esq com env articular + #diafise ossos da perna drt (exposto grau III já com encavilhamento no hospital de admissão + #diafise peroneo esq e bimaleolar à esq (já operado com placa 1/3 cano no hospital de admissão)”;
Logo após a administração da amoxicilina + ácido clavulânico 2.20 via endovenosa a vítima começou a sentir alterações solicitando ajuda de auxiliar e referindo que era alérgico à penicilina;
Como se pode colocar em causa, como faz a decisão recorrida, a ocorrência do choque anafilático? Pelo contrário, da factualidade provada, resulta que o mesmo foi certo e seguro, para utilizar a terminologia da decisão recorrida relativamente ao EAM.
E, quanto à causa do dito choque, não se pode afirmar - como se faz na decisão recorrida – que há coincidência (temporal de cerca de 10 minutos, entre a administração do antibiótico e o início dos sintomas), o que nos remeteria para o domínio, senão do sobrenatural, pelo menos, para o domínio do acaso.
Há choque anafilático e há uma relação de causa e efeito – o que nos situa como é suposto, no domínio da ciência médica.
E, não se diga que o diagnóstico de choque anafilático, foi estabelecido porque foi transmitido ao médico na sala de emergência que a vítima era alérgica (e mesmo que fosse, não desvirtuava a sua ocorrência como, depois, se veio a constatar aquando da realização da autópsia).
Cremos bem que nenhum dos arguidos, mesmo sem tal informação, teria, por si próprio, chegado a tal diagnóstico, em face da intervenção pessoal que cada um teve, anteriormente.
Assim, perante o quadro de administração de uma penincilina, a que a vítima é alérgica, o surgimento, ao fim de 10 minutos de sintomas do que se vem a revelar ser um choque anafilático, não pode deixar de ser tido como provocado por aquela substância.
Prescrita por um do arguido e administrada por outro. E, aqui está patenteado o grau de certeza exigido, que pela ciência médica, quer pela ciência jurídica – mormente no âmbito de um processo de natureza criminal.
c) Não é minimamente certo que a vítima tenha falecido em virtude do choque anafilático.
Vem provado e, não impugnado, que,
25. a autópsia demonstrou que DD, à hora da morte, apresentava enfarto agudo de miocárdio (EAM) com 4 (quatro) a 12 (doze) horas de evolução;
26. uma reação anafilática pode determinar alterações cardíacas, vasculares e respiratórias que acentuem as consequências de EAM;
27. os compromissos funcionais de um EAM podem comprometer os mecanismos fisiológicos de compensação das alterações produzidas por um quadro de anafilaxia;
28. a ocorrência simultânea de ambos os processos pode agravar o prognóstico isolado de cada um;
29. o EAM detetado em DD era assintomático, designando-se por EAM silencioso;
30. existem achados autópticos objetivos de EAM no sentido de que este pode, exclusivamente, ter determinado a morte de DD;
31. o EAM silencioso pode ter como única manifestação colapso e morte súbita;
32. a hipótese de EAM, em vida de DD, foi afirmada no eletrocardiograma realizado na sala de emergência no dia 06-01-2015, constando no diário médico “Degradação progressiva, com PCR com ritmo inicial de EAM, às 22:20”;
Como já, supra, referimos, curiosamente, não se faz aqui qualquer alusão ao que consta da prova pericial matricial, ao relatório de autópsia – completa e absolutamente, mais que desvalorizado, esquecido, mesmo, como se não se tivesse apontado a causa provável de morte – afinal, o objectivo que presidiu à sua realização, como se tivesse sido inconclusiva, mas não constasse essa referência e que, como referimos, constitui o ponto de partida, para o conhecimento da questão da causa da morte.
Quando afinal na fundamentação da convicção quanto ao aludido ponto 25. se faz referência a que assenta em prova pericial – cujo juízo está subtraído à livre apreciação do julgador, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do CPP, não tendo este tribunal razões para divergir (n.º 2, do citado artigo) - concatenada e integrada pelos registos clínicos a que se vem fazendo referência, bem como pelo pelos esclarecimentos dos Senhores Peritos ouvidos em julgamento - concretamente, foram considerados o relatório de autópsia, a fls. 4 a 10, e os sucessivos pareceres do conselho médico-legal de fls. 159 a 161 e 236 a 240, fls. 922 a 937, fls. 1055 a 1062, 1064 e 1065 e ss.
E, aqui, poder-se ia colocar a questão de a vítima estar a fazer um EAM, iniciado entre 4 e 12 horas antes de ter sido diagnosticado, quando ainda não tinha ocorrido o choque anafilático e, não obstante poder ter morrido por causa do choque anafilático. Assim como pode ter morrido por causa do EAM., ou por concorrência de ambas as causas.
Não nos poderemos quedar pela validade da afirmação de que é impossível saber o que levou à morte da vítima. Muito menos que era impossível aos arguidos prever que o seu comportamento pudesse levar ao resultado morte.
É certo que este vício da decisão não tem repercussão, directa e imediata no essencial da questão aqui em discussão – a causa da morte, referida nas alíneas a) e b).
Tão pouco, no facto constante da alínea c) na redacção tida como não provada.
Com efeito, aqui consta como não provado que - ao assim agirem, os arguidos representaram como possível que o paciente DD, em virtude da administração de amoxicilina com ácido clavulânico, viesse a falecer em virtude de choque anafilático.
É claro que os arguidos não representaram, pela simples razão de que não sabiam da alergia à penincilina. Que foi a causa da ocorrência do choque anafilático. E, no facto – não de não saberem – mas de não terem procurado indagar, cada um por si, reside, a patente violação das legis artis, das boas práticas, a que estavam obrigados e de que eram capazes.
Da mesma forma nenhuma repercussão tem no facto constante da alínea d) - com a sua atuação os arguidos representaram como possível que o paciente DD viesse a falecer em virtude de enfarte agudo do miocárdio.
Aqui, decisivamente, porque ao contrário da consequência referida em c) não consta que a administração de uma penincilina a quem a ela é alérgico, seja apta, adequada a, por si só, provocar um EAM. Muito menos fatal.
Por outro lado, resulta óbvio que nenhuma repercussão assumem os aludidos erros, nos factos constantes das alíneas e) - sabiam os arguidos que, com as condutas descritas, praticavam atos proibidos e punidos pela lei penal e f) - foi feita colheita Triptase na sala de emergência.
Apesar de os apontados erros notórios na apreciação da prova não assumirem consequências práticas, não podem deixar de ser aqui assinalados.
(…)
Erros de julgamento.
E, assim, encerrada a questão da verificação do vício do erro notório na apreciação da prova, somos remetidos para a dos erros de julgamento – apenas suscitada pelo MP.
Como, não obstante, refere o assistente, o único dissídio que baliza o presente recurso prende-se com a causa da morte.
Vejamos, mais uma vez e, desde já os factos julgados como não provados, impugnados pelo MP:
a) A prescrição e a administração da amoxicilina com ácido clavulânico foram a causa direta e necessária da morte por choque anafilático de DD.
b) Ao omitirem os deveres referidos em 14., 15. e 17. a 19., os arguidos criaram grave perigo para a vida, corpo ou saúde de DD, sendo muito provável o resultado que se verificou à luz daquela conduta adotada, tendo-se tal perigo concretizado na morte do mesmo.
c) Ao assim agirem, os arguidos representaram como possível que o paciente DD, em virtude da administração de amoxicilina com ácido clavulânico, viesse a falecer em virtude de choque anafilático.
d) Com a sua atuação os arguidos representaram como possível que o paciente DD viesse a falecer em virtude de enfarte agudo do miocárdio.
e) Mais sabiam os arguidos que, com as condutas descritas, praticavam atos proibidos e punidos pela lei penal.
f) Foi feita colheita Triptase na sala de emergência.
Estamos, essencialmente, perante prova pericial, ainda que complementada pela prestação de esclarecimentos pelos Srs. Peritos.
Começando, pelo princípio, como é suposto, do relatório de autópsia consta o seguinte:
“causa provável de morte – choque anafilático.
Diagnóstico – lesão de isquemia aguda com cerca de 4 a 12 horas de tempo de evolução estimado em miocárdio com lesões de cardiopatia hipertrófica. Edema muito acentuado da laringe (espaço de Reinke?). Subfusões hemorrágicas petequiais gástricas. Fibrose pulmonar com padrão de tipo pneumonia intersticial não específica (NSIP) fibrosante com abundantes macrófagos. Esteatose hepática de tipo misto.
Nota – Os achados descritos deverão ser valorizados em função dos antecedentes, circunstâncias da morte, outros achados necrópsicos e outros exames laboratoriais/toxicológicos”.
Mas a propósito do valor intrínseco da prova pericial, cumpre realçar o que foi dito pela perita Professora VV - que elaborou e assinou o relatório de 25.8.2020:
“Advogada – (…) Quando vão fazer uma autópsia em geral como é que obtêm a informação relativamente à história prévia?
Perita – Ora bem, isso é uma das coisas que está muito mal. Porque a maior parte das vezes a gente não tem informação nenhuma. Os cadáveres são despejados no Instituto com a decisão do Ministério Público de serem os autopsiados cadáveres. E a lei prevê que os hospitais são obrigados a mandar os registos clínicos. E não é só isso, a própria Polícia de Segurança Publica naqueles casos em que não há hospital também deve mandar o máximo possível informação. Este aqui nem está nada mal para aquilo que a gente costuma ter, porque tem muitos registos clínicos que foram enviados. Não sei se foram enviados na altura do exame, o que é natural que não tenha sido na auto porque muitas vezes fazemos as autópsias às escuras, às apalpadelas, porque não temos informação que nos possa direcionar. Mas este, quando se entra, o cadáver entra pergunta-se muitas vezes a quem o trás e as pessoas dizem é um acidente de viação é anafilaxia, é isto, é aquilo, e fica apontado.
Advogada - Neste caso quando o exame foi feito já tinha disponibilizado alguma informação clínica.
Perita - Sim, alguma informação sim.
(….)
Advogada - Neste caso concreto e agora entrando no relatório propriamente dito havia a hipótese que orientava no sentido de choque anafilático?
Perita – Sim.
Advogada - Foi nessa linha que quando foi feito, posso dizer, o exame do cadáver foi feito…
Perita – Sim, foi nessa linha que foi feito o exame.
Advogada – Feito o exame, correto?
Perita – Sim, foi.
Advogada – E sem pôr em causa naturalmente as conclusões do exame, pergunto se isso de alguma forma não condiciona a averiguação e a investigação que é feita?
Perita – Condiciona um pouco. A gente já vai mais ou menos direcionada para aquela situação.
(….)
Advogada – Quando a Senhora Doutora SS foi ouvida ela informou-nos que não sabia há quanto tempo o medicamento foi ministrado.
Perita – Não, não sabíamos.
Advogada – E percebi, o que a Senhora Professora está a corroborar, que tinha alguma relevância ter dado essa informação.
Perita – Tinha. Tinha, mas não sabíamos.
Advogada – Pergunto também se foram informadas como é que foi administrado o medicamento e a respetiva quantidade? O que foi prescrito e o que é que foi injetado?
Perita – Não, eu pelo menos não me lembro de nada disso. Isso é raríssimo alguém nos ditar essas informações.
Advogada – O que lhe vou dizer agora está no processo, portanto é um dado assente. Foi prescrito o medicamento amoxicilina 10 ml diluído em 100 ml… Isto é assente. Está escrito.
Advogada – …E de acordo com as declarações que aqui foram prestadas por alguém que lá estava no hospital nesse dia, isto terá entrado nem cerca de 10% do conteúdo… 100 ml estamos a falar de 10 ml. Eu pergunto se de alguma forma estes dados que estou a dar agora e que não os tinha na altura podem ou não alterar a análise dos factos que foi feita?
Perita – Se a quantidade é menor é provável que o desencadeamento da reação anafilática não seja tão exuberante, mas isso depois também vai depender da pessoa, há uns que reagem a pequenas quantidades de uma forma muito exacerbada e outros não.
Advogada – E se disser que ato contínuo o doente é levado para a sala de emergência médica e é-lhe administrada 300 mg de hidrocortisona… ainda mal manifesta os primeiros sintomas é administrada hidrocortisona e ato contínuo elevado para a sala de emergência onde é entubado?
Perita – É o normal.
Advogada – É o normal.
Perita – Se ele estava a entrar em paragem ou falência os meus colegas deram-lhe a medicação adequada.
Advogada – Medicação… Agora a dose que foi administrada neste caso já percebemos que não estamos a falar de penicilina mas de um fármaco que tem uma parte de penicilina.
Perita – Parece-me uma quantidade pequena em face do que a Senhora Doutora está a dizer.
(…)
Advogada – Há pouco colocaram-lhe uma questão e eu penso que a Senhora Professora não percebeu. Penso que não percebeu. Diz respeito à instalação de um enfarte agudo do miocárdio, que o que referiu inicialmente e penso em tese geral, será assim, é que poderá instalar-se um enfarte agudo do miocárdio que se instala em segundo plano, certo?
Perita – Sim, é o chamado enfarte sem … (impercetível)
Advogada – Neste caso concreto na anatomia, foi feito o exame de anatomia patológica e temos instalado um período temporal que é este de 4 a 12 horas. Se nós sabemos que este período se conta para lá da hora da morte e sabemos que este faleceu…
Perita – para lá não, para trás.
Advogada – Sim, tem de ser para trás da hora da morte. Se nós sabemos que este Senhor faleceu cerca das 23 horas aquilo que está a ser apontado é que às 7 horas da tarde teria havido início, num período mais curtinho, teria havido início ao enfarte agudo do miocárdio.
Perita – Provavelmente. Mas como eu disse, não é certo.
Advogada – Claro.
Perita – Mais ou menos estimativas… cerca de.. atendendo ao perfil do …(impercetível)… nos tecidos… no microscópio.
Advogada – quando se diz 4 a 12 horas pode ser 3 a 15.
Perita – Sim, pode.
Advogada – Pergunto eu se pode ser 50 minutos antes, isto é se o achado microscópio que foi observado era passível…
Perita – Não, em princípio não.
Advogada – Em princípio não.
Perita – Em princípio não…. Cinquenta minutos antes não, era muito rápido.
Advogada – Neste caso poderemos pôr de parte essa possibilidade de termos um enfarte que se desenvolve em segundo plano como consequência de…
Perita – Se aquilo que me está a dizer, sendo assim, cinquenta minutos…mas pode haver outra coisa qualquer anterior que possa… que também tenha despoletado isso, eu não sei… foi administrado…
Advogada – O que eu lhe posso dizer é que este Senhor aparentemente estaria bem às dez da noite e a partir das dez da noite está mal. Acho que é consensual, podemos fazer essa afirmação. Portanto, assumindo isso e assumindo que está escrito no relatório de anatomia patológica podemos considerar isto não ser um enfarte em segundo plano, uma consequência do choque anafilático.
Perita – Sim. Pode ser qualquer coisa arrítmica também. Não sei.
Advogada – Pode ser tudo. Aquilo que nos interessa, certezas não podemos ter neste processo.
Perita – Olhe…
Advogada – Diga, diga.
Perita – Trombótico, trombótico não foi porque as coronárias estavam limpas.”
Daqui resulta, por um lado, o contexto ou a falta dele, em que são normalmente efectuadas as autópsias e, por outro, que a própria perita elaborou o relatório de 2020, desconhecendo, da mesma forma, um conjunto de factos, que agora lhe foram transmitidos, em vista do enquadramento e contextualização das respostas que dera anteriormente.
Isto é, temos o relatório da autópsia, temos 4 relatórios, temos os esclarecimentos de peritos e ainda depoimentos de testemunhas, em vista mesma da mesma finalidade, de descoberta da verdade material, acerca da causa de morte.
E, a propósito dos quatro relatórios do INMLCF, de 7.6.2018, de 25-08-2020, de 18-04-2023 e de 02-10-2023, importa aqui referir que, nos termos do artigo 1.º do Decreto Lei 166/2012, de 31 de julho, que aprovou a sua orgânica, se trata de “1. (…) um instituto público de regime especial, nos termos da lei, integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira e de património próprio.
2. O INMLCF, I. P., prossegue atribuições do Ministério da Justiça, sob superintendência e tutela do membro do governo responsável pela área da justiça.
3. No âmbito da sua missão e atribuições, o INMLCF, I. P., tem a natureza de laboratório do Estado e é considerado instituição nacional de referência”.
E, nos termos do disposto no artigo 3.º/1 do mesmo diploma, aquele Instituto tem por missão “…assegurar a prestação de serviços periciais médico-legais e forenses, a coordenação científica da 4 atividade no âmbito da medicina legal e de outras ciências forenses, bem como a promoção da formação e da investigação neste domínio, superintendendo e orientando a atividade dos serviços médico-legais e dos profissionais contratados para o exercício de funções periciais”.
Deste modo, as referidas consultas técnicas, porque foram ordenadas pelo Tribunal a uma instituição oficial reconhecida por lei para realização de perícias, tendo os juízos técnicos sido recolhidos de acordo com o previsto nos artigos 151.º e ss. do CPP, consubstanciam prova pericial, subtraída à apreciação do julgador, sem prejuízo dos esclarecimentos que os próprios Peritos prestaram em audiência de julgamento, a 3.2, 22.2 e 8.4.2022.
E, como diz o arguido BB, a subtração do juízo pericial à livre apreciação da prova tem como fundamento a imparcialidade dos peritos em relação ao objeto do processo e a credibilidade científica dos mesmos, o que conduz à credibilidade da própria perícia.
Tal credibilidade científica resulta, ainda, de a perícia ter como fundamento uma base factual que é condição essencial para, por aplicação dos conhecimentos científicos ou da metodologia que lhe é própria, alcançar a um juízo científico, uma conclusão.
E, mais concretamente, ainda, a propósito, no caso, da aludida falta de base factual certa e segura, na resposta dada no quarto relatório, à pergunta 21, respondeu-se que, “são raras as situações clínicas em que os diagnósticos clínicos não são de base probabilística (às vezes muito próximos dos 100%, o que não lhes retira esse caráter)”.
Destes quatro relatórios, permitimo-nos extrair os seguintes segmentos, por mais directamente relacionados com a questão, complexa e abrangente, que aqui nos prende, reveladores da dificuldade de obtenção de uma resposta cabal, definitiva e inequívoca:
- no primeiro:
• à pergunta: os sintomas e sinais clínicos apresentados por DD são compatíveis com as consequências da administração intravenosa da amoxicilina, a paciente alérgico a penicilina? A resposta é “sim”;
- no segundo:
• à pergunta 1. Quais os elementos que permitem fundamentar a conclusão que a doente em causa faleceu na sequência da administração de penicilina? A resposta é “o raciocínio clínico não está expresso no processo clínico; o diagnóstico de anafilaxia deve sempre ser colocado quando um doente desenvolve um quadro clínico compatível com este, muito em particular quando ele surge com intervalo muito curto após contacto com o agente a que se sabe o doente ser alérgico.
Relativamente a este caso em concreto:
a) Foi administrada amoxicilina + ac. clavulânico 2,2g IV, fármaco suscetível de alergia cruzada com penicilina
b) A amoxicilina terá sido administrada a 06-01-2015 pelas 22:00H (pág 69)
c) O intervalo de tempo entre administração do fármaco e sintomas terá, pois, sido inferior a 10 minutos. (Segundo registo do Dr. II, às 23:16h, o doente “desenvolve quadro de recção anafilática aguda”, sendo “admitido de imediato na Sala de Emergência, por volta das 22:10H”). (pag 55)
d) O quadro clinico está descrito globalmente, de forma não sequencial, o que dificulta a sua interpretação, como:
i. Dificuldade respiratória, com MV presente, roncos abundantes, estridor laríngeo e Sat<90%. Dada a dificuldade respiratória, efectuada EOT coM tubo 7.5
ii. Pele marmoreada e sudação
iii. Hipotensão, sinais de má perfusão periférica, taquicardia, TA- 129/93. Com exclusão de hipovolémia por Eco FAST
iv. PCR com ritmo inicial de EAM, à 22:20h
e) identificação de edema muito acentuado da laringe na autópsia (componente frequente e de grande gravidade de anafilaxia)
Estão assim reunidos critérios suficientes para o diagnóstico de anafilaxia fosse considerado como o primeiro diagnóstico a colocar, de muito alta probabilidade.
A expressão “na sequência da administração de...” é, no entanto, passível de várias interpretações, entre eles a de casualidade directa. Ora, neste caso, embora insuspeitado em vida, a autópsia veio a demonstrar a existência de um enfarto do miocárdio, de início seguramente anterior a reação alérgica. Nestas condições e com os escassos dados constantes do processo, não é possível excluir que o enfarto de miocárdio possa ter contribuído para a evolução fatal da reação anafilática.
- à pergunta 5. Um doente a sofrer um enfarte do miocárdio pode apresentar pele marmoreada/palidez, sudação? Sensação de dificuldade respiratória (dispneia)?” Respondeu “Sim”.
a) No caso de insuficiência aguda por enfarte de miocárdio a palidez cutânea depende da vasoconstrição, a sudação da ativação do sistema nervoso adrenérgico e a dispneia da estase pulmonar, por insuficiência ventricular esquerda.
b) A constatação de dificuldade respiratória não é suficiente para a caraterização do quadro clínico da dispneia e a inferência da sua fisiopatologia; é sempre necessário ter em atenção outras características como a existência de bradi ou taquipneia, a relação temporal inspiração versus expiração, a existência, ou não, de murmúrio vesicular, sibilos, roncos, fervores e suas variações topográficas, estridor e também manobras e posições moduladoras das queixas; é também essencial a avaliação de sinais oriundos de outros aparelhos e sistemas, muito em particular do aparelho cardiovascular.
c) Deve-se, no entanto, referir, neste caso particular:
- que havia menção a estridor, que é um sinal muito específico de obstrução laríngea e não está presente na insuficiência cardíaca;
- a referência a murmúrio vesicular presente e não a fervores de estase, estes últimos muito característicos da estase pulmonar por insuficiência cardíaca”;
- à pergunta 6. É possível/provável que um coração com patologia prévia com uma isquemia aguda do miocárdio, desenvolva um quadro de choque cardiogénico, de paragem respiratória e morte? Respondeu “Sim. É uma as complicações bem conhecidas do enfarto do miocárdio”;
- à pergunta 7. O enfarte agudo do miocárdio só por si é causa possível e provável de colapso cardiovascular e morte súbita? Respondeu “ver resposta ao quesito anterior”;
- à pergunta 8. O resultado de anatomia patológica forense mostra uma “isquemia aguda do miocárdio”, dito enfarte agudo do miocárdio datado num intervalo bem estabelecido, com 4 a 12 horas de evolução? Portanto já a decorrer antes de lhe ter sido administrado qualquer antibiótico ou antes mesmo do doente ter sido admitido no hospital? Seria possível que este caso tivesse o mesmo desfecho apenas e só de um enfarte agudo do miocárdio? Respondeu:
a) Sim, a autópsia identificou um enfarte do miocárdio com uma evolução de 4 a 12 horas;
b) Não consta do registo da assistência no Hospital de Matosinhos a hora de admissão;
c) Seria possível o enfarte agudo do miocárdio ter como desfecho um quadro de insuficiência cardíaca aguda com expressão de dispneia e hipotensão e também seria possível ter o desfecho de paragem cardiorrespiratória. Como acima expusemos, não seria de esperar, contudo, a existência de estridor laríngeo e a não deteção de fervores na auscultação pulmonar”;
- à pergunta 10. Recorde-se que na sala de emergência há um registo objectivo/mensurável de tensões arteriais de 120/90mmHg e não existe sinais de envolvimento da pele e/ou mucosas (urticária, eritema ou prurido generalizado, edema dos lábios, língua e úvula), antes pelo contrário a pele estava marmoreada e pálida, nem sintomas gastrintestinais. Pela leitura e interpretação da norma nº 014/2012 da DGS, actualizada a 18/12/2014 no quadro I do anexo I estão os critérios clínicos de diagnóstico de anafilaxia, que são basicamente 3.
No primeiro critério implica um “início súbito com sinais de envolvimento da pele e/ou mucosas (urticária, eritema ou prurido generalizado, edema dos lábios, língua e úvula)”, ou seja, não corresponde a nenhuma das situações do caso.
No segundo critério implica 2 ou mais sinais de entre: “envolvimento da pele e/ou mucosas (urticária, eritema ou prurido generalizado, edema dos lábios, língua e úvula): “compromisso respiratório”, “hipotensão”; “sintomas gastrintestinais”. Neste caso verifica-se apenas dificuldade respiratória concluindo-se que este critério também não é satisfeito no caso concreto, por este exigir 2 ou mais pontos.
O terceiro critério é hipotensão após exposição… adultos: com PA sistólica<90 mmHg que também não foi satisfeito quando se tem um doente com uma determinação objectiva 120mmHg de PA sistólica. Posto isto, com base nesta norma é possível afirmar com certeza que houve choque anafilático? Respondeu:
“a. Expusemos acima as dificuldades de avaliação em detalhe do quadro clínico deste doente, dado que o quadro clínico está descrito globalmente, de forma não sequencial, o que dificulta a sua interpretação. Compreendia este os seguintes aspectos registados:
i. Dificuldade respiratória, com MV presente, roncos abundantes, estridor laríngeo e Sat<90%. Dada a dificuldade respiratória, foi efectuada EOT com tubo 7.5
ii. Pele marmoreada e sudação
iii. Hipotensão, sinais de má perfusão periférica, TA- 129/93, com “exclusão de hemorragia por EcoFAST”
iv. PCR com ritmo inicial de EAM, às 22:20h
b. O FAST é uma modalidade de ecografia comummente utilizada para identificação de colecções líquidas. Conforme expresso no registo médico, a sua utilização foi feita neste caso para exclusão de hipovolémia (menor volume de sangue). Esta utilização só tem sentido, no caso deste doente, como tentativa de identificação de hemorragia interna associada ao traumatismo, que pudesse explicar a hipotensão identificada (embora não quantificada);
c. Estava-se, assim, em presença de doente com início súbito de dispneia, com estridor (obstrução laríngea) e hipotensão arterial de rápida instalação sem evidência de hemorragia interna nem exteriorizada
d. Poucas são, infelizmente, as “guidelines”, “normas” ou “critérios de diagnóstico” com sensibilidade e especificidade de 100%, pelo que devem ser utilizadas não como regras absolutas mas como normas orientadoras, a adaptar a cada caso clínico concreto.
Nas circunstâncias do evento, parece a este Conselho inteiramente correcto que o diagnóstico de anafilaxia fosse considerado como o primeiro diagnóstico a colocar, de muito alta probabilidade e tomadas as medidas terapêuticas adequadas”;
- à pergunta 13. A circunstância de DD, “em menos de 10 minutos depois da administração intravenosa de penicilina ter desenvolvido um quadro de reacção anafilática aguda, com dificuldade respiratória, pele marmoreada e sudação, hipotensão e sinais de má perfusão periférica, ac – taquicardia, ap – mv presente, roncos abundantes, estridor laríngeo e de ter sido encontrado um edema muito acentuado da laringe” na autópsia que lhe foi realizada indica que o mesmo desenvolveu um quadro de reacção alérgica aguda em consequência da administração de penicilina? Respondeu: “O fármaco administrado não foi penicilina, mas amoxicilina + ác. clavulânico. Como acima expusemos mais detalhadamente esse deve ser o primeiro diagnóstico a colocar”;
- à pergunta 14. Deve a mesma ser considerada como anafilaxia grave? Respondeu “o fármaco administrado não foi penicilina, mas amoxicilina+ác. clavulânico. Sim”;
- à pergunta 15. A mortalidade associada a reacções anafiláticas ocorre habitualmente por edema da glote ou falência respiratória, principalmente em doentes com asma brônquica ou colapso cardiovascular? Respondeu “a morte surge, em regra, por falência respiratória e cardiovascular”;
- à pergunta 18. A administração de penicilina a DD foi a causa de choque anafilático naquele? Respondeu “o fármaco administrado não foi penicilina, mas amoxicilina+ác. clavulânico. O quadro de anafilaxia que se seguiu poucos minutos após essa administração obriga a essa conclusão”;
- à pergunta 19. Constitui fator de risco para a mortalidade por choque anafilático decorrente da administração de penicilina a existência de comorbilidades ou doenças crónicas nomeadamente cardiovasculares ou pulmonares? Designadamente as existentes em DD? – em miocárdio com lesões de cardiopatia hipertrófica? Ou adema de reinke? Respondeu “o fármaco administrado não foi penicilina, mas amoxicilina +ác. clavulânico. Sim”;
- à pergunta 20. Constitui factor de risco para a mortalidade por choque anafilático de corrente da administração de penicilina a precocidade dos sintomas? Respondeu “sim”;
- à pergunta 22. A administração de penicilina a DD e o consequente choque anafilático, com os sintomas descritos a fls. 55, 56, 70, 71 e 5 dos autos que o mesmo sofreu no dia 6 de Janeiro de 2015 contribuíram, potenciando as causas e condições que vieram a determinar o seu falecimento e piorando a possibilidade da sua recuperação? Respondeu “o fármaco administrado não foi penicilina, mas amoxicilina+ác. clavulânico. Sim”;
- à pergunta 23. A administração de penicilina a DD e o consequente choque anafilático foram causa, condicionando e determinando, o seu falecimento? Respondeu “o fármaco administrado não foi penicilina, mas amoxicilina+ác. clavulânico, que constitui a causa da reacção anafilática. Contudo, neste caso, embora insuspeitado em vida, a autópsia veio a demonstrar a existência de um enfarto do miocárdio, de início seguramente anterior à reacção alérgica, embora sem dados óbvios de significativa falência ventricular esquerda. Nestas condições, não é possível excluir que o enfarto de miocárdio possa ter contribuído para a evolução fatal da reacção anafilática”;
- no terceiro:
- à pergunta A) Atendendo ao facto de, pelas 21:48 horas do dia 06-01-2015, ter sido ministrada, no HPH - ULS de Matosinhos EPE, uma injecção intravenosa de2,20 gramas de amoxicilina ÷ ácido clavulânico IV de 8 em 8 horas ao DD, sendo ele alérgico a penicilina (conforme constava, nessa data, da nota de alta hospital CHTMAD de Vila Real, de onde veio transferido, e dos registos de enfermagem do HPH - ULS de Matosinhos EPE, hospital que o recebeu), quando, na altura, já estava a desenvolver também um enfarte do micocárdio silencioso há, pelo menos, mais de 4 horas (informação essa que não constava dos ditos registos médicos e de enfermagem) e, após lhe ter sido ministrada essa amoxicilina, o DD ter tido de imediato uma reação alérgica/choque anafilático que foi tratada, também de imediato, com adrenalina, o que, não obstante, não evitou a sua morte cerca de 10 minutos depois da administração da dita amoxicilina; Se a administração dessa amoxicilina, apesar do registo da nota de alta e no registo de enfermagem referidos, constar que era alérgico à penicilina, foi urna violação das “legis artis” da medicina que criou, agravou, aumentou, potenciou e/ou incrementou um perigo indevido, evitável, desnecessário e/ou proibido, o qual conjugado com o enfarte em curso e a adrenalina, contribuiu e/ou foi idóneo para a ocorrência dessa morte cerca de 10 minutos depois? Respondeu “1. Sim. A administração de amoxicilina foi urna violação das “leges artis”.
2. Sim. Uma reação anafilática pode determinar alterações cardíacas, vasculares e respiratórias que acentuem as consequências de um infarto de miocárdio.
Inversamente, os compromissos funcionais de um infarto do miocárdio podem comprometer os mecanismos fisiológicos de compensação das alterações produzidas por um quadro de anafilaxia, É, assim, de esperar, que a ocorrência simultânea de ambos os processos agrave o prognóstico isoladamente dependente de cada um”;
- à pergunta da alínea F. Face ao que consta dos registos clínicos, todos estes sintomas apareceram em DD menos de 10 minutos após a administração de amoxicilina com ácido clavulânico? Respondeu: “num período inferior a 10 minutos foram constatados no doente dificuldade respiratória, com MV presente, roncos abundantes, estridor laríngeo e Sat«90%, pele marmoreada e duração, hipotensão (pressão sistólica inferior a 90mmHg) e sinais de má perfusão periférica”;
- à pergunta H) A isquemia aguda do miocárdio, sem sintomas visíveis no paciente, pode reverter sem morte do doente, mesmo em casos de não tratamento médico? Respondeu “1. O enfarto do miocárdio consiste na necrose isquémica de uma porção do miocárdio. A necrose não é reversível; no caso de não sobrevir a morte do doente a sua evolução natural é a sua substituição por tecido conjuntivo cicatricial.
2. A sobrevivência a um infarto não sujeito a qualquer terapêutica é possível”:
- à pergunta I) A isquemia aguda do miocárdio, pode reverter, sem morte do doente, com a prática dos tratamentos médicos competentes? Respondeu “sim”;
- à pergunta J – Num doente com isquemia aguda do miocárdio iniciada em contexto intra-hospitalar com serviço de cardiologia e equipa de emergência interna, com pronta administração dos tratamentos/medicamentos competentes apresenta-se possível a sua reversão, sem morte do doente? Qual a taxa de mortalidade nas primeiras 24 horas em ambiente hospitalar? Respondeu “1. Sim. A intervenção muito precoce pode, em alguns casos, impedir o processo de necrose, com manutenção de miocárdio viável.
2. A mortalidade intra-hospitalar é variável conforme os achados eletrocardiográficos do enfarte:
7- 10% nos enfartes com elevação do segmento ST; cerca de 5% nos enfartes sem elevação do segmento ST”;
- à alínea K) O quadro de choque anafilático referido na resposta i (pág 1 da consulta técnico-científica - processo 122/2017 de 15 de Julho de 2020) nas respostas 5 e 8 (págs 4 e 5 da identificada consulta técnico-científica) e resposta 10 (pág 6 e 7 daquele documento) impunha a realização dos tratamentos médicos que efectivamente foram ministrados a DD a partir das 22h00 do dia 06-01-2015 para tentar debelar a sintomatologia por ele apresentada e as consequências dela decorrentes? Respondeu “Sim, a administração de adrenalina está bem estabelecida como o mais importante fármaco a administrar o mais precocemente possível; a administração de fluídos e de oxigénio estão também claramente indicados. A administração de outros fármacos, como os antihistamínicos, os glucocorticoides e os bloqueantes H2 são de indicação menos clara”;
- à alínea N) A anafilaxia corresponde a um processo imunopatológico em que ocorre uma ativação celular com desgranulação rápida e maciça de mastócitos e basófilos, com consequente libertação de grande quantidade de mediadores contidos nos grânulos destas células, de que se destacam as aminas vasoativas, em particular a histamina, que por si só explica a maioria dos sintomas observados na reação anafilática? Respondeu “sim. Este texto corresponde a transcrição de artigo citado”;
- à alínea O) Outros mediadores pré - formados, como a triptase, a quimase, a carboxipeptidase e a calicreína (responsável pela síntese de bradicinina) também contribuem para a sintomatologia observada? Respondeu “sim. Este texto corresponde a transcrição de artigo citado”;
- à alínea P) Adicionalmente, há libertação de fatores quimiotáticos para eosinófilos e neutrófilos. Para além de mediadores pré - formados, a ativação celular leva à geração e libertação de mediadores sintetizados de novo (neoformados), na maioria provenientes dos fosfolípidos de membrana, como as prostaglandinas, o tromboxano, os leucotrienos e o fator ativador das plaquetas (PAF)? Respondeu “sim. Este texto corresponde a transcrição de artigo citado”;
- à alínea Q) O coração é tanto uma fonte quanto um alvo de mediadores químicos liberados durante reações alérgicas? Respondeu “sim. Este texto corresponde a transcrição de artigo citado”;
- à alínea V) Eventos isquémicos agudos, incluindo angina e enfarte do miocárdio, são considerados atualmente como parte do quadro clínico da anafilaxia? Respondeu “sim. Este texto corresponde a transcrição de artigo citado”;
- à alínea W) Num doente que esteja a sofrer lesão de isquemia aguda no miocárdio a circunstância de lhe sobrevir choque anafilático que lhe origina, entre o mais, “dificuldade respiratória, como murmúrio vesicular presente, roncos abundantes, estridor laríngeo e SAT<90% (cfr. respostas 5 e 8 a págs 4 e 5 e resposta 22 a pág 13 da consulta técnico-científica) agrava o seu estado de saúde aumentando e potenciando as causas e condições que contribuem e determinam o seu falecimento? Respondeu “sim. Ver resposta ao Quesito formulado pelo Sr. Procurador da República”;
- à alínea X) Num doente que esteja a sofrer lesão de isquemia aguda no miocárdio a circunstância de lhe sobrevir choque anafilático que lhe origina, entre o mais, situação de hipotensão agrava o seu estado de saúde aumentando e potenciando as causas e condições que contribuem e determinam o seu falecimento? Respondeu “sim. Ver resposta ao Quesito formulado pelo Sr. Procurador da República”;
- à alínea Y) Num doente que esteja a sofrer lesão de isquemia aguda no miocárdio a circunstância de lhe sobrevir choque anafilático que lhe origina, entre o mais, os sintomas que vierem a ser descritos nas respostas aos pontos n) a u) supra, agrava o seu estado de saúde aumentando e potenciando as causas e condições que contribuem e determinam o seu falecimento? Respondeu “sim. Ver resposta ao Quesito formulado pelo Sr. Procurador da República”;
- à alínea Y) O tratamento que foi ministrado a DD para tentar debelar o quadro de choque anafilático que o mesmo apresentava origina efeitos iatrogénicos para um coração com lesão de isquemia aguda? Respondeu “sim. A adrenalina pode determinar aumento da frequência cardíaca, elevação da pressão arterial, hipocaliemia e arritmias;
- no quarto:
- à pergunta 21. Existe algum dado objetivo clínico, analítico ou autóptico que possa excluir objetivamente e com certeza absoluta que a morte neste doente não se deveu apenas e por si só ao evento isquémico cardíaco que estava a decorrer? Respondeu “como expusemos acima na resposta ao quesito nº 12 são raras as situações clínicas em que os diagnósticos clínicos não são de base probabilística (às vezes muito próximas dos 100% que não lhes retira esse caráter). Neste contexto conceptual não é possível negar a hipótese de o doente poder ter falecido exclusivamente em consequência do enfarte do miocárdio”.
E, agora sobre a prova produzida em audiência.
- Testemunha PP:
- o aparecimento de estridor com roncos abundantes na auscultação e uma hipotensão com sinais de má perfusão periférica, por fim uma administração de um fármaco em relação ao qual havia a informação do doente ser alérgico, levanta e muito bem a hipótese de reação anafilática a este fármaco. Acontece que este senhor tem um enfarte do miocárdio que ninguém sabia que tinha até esse momento, e o enfarte do miocárdio pode determinar bruscamente uma queda tensional por diminuição da massa ventricular efetiva ou por arritmia cardíaca. E pode determinar falta de ar, ou seja, dispneia. Embora essa dispneia dependa da ocupação do espaço dos alvéolos por líquido que tranfusa de dentro dos vasos capilares do pulmão porque a pressão lá dentro aumenta porque ela não vai para a frente do coração, e portanto acumulasse a nível pulmonar passa para fora dos vasos, ocupa os alvéolos pulmonares onde se dão as trocas gasosas e, portanto, a pessoa respirar ou não respirar passa a ter menos efeito porque o sangue porque o oxigénio não chega aos alvéolos para poder passar para os (impercetível). Porque o enfarte do miocárdio não determina é espasmos (impercetível). E portanto, há um argumento clínico muito forte para admitir que este senhor teve uma reação alérgica à amoxicilina e ácido clavulânico. Quanto à hipotensão arterial a hipotensão arterial é um quadro complemento da reação alérgica mas também pode ser consequência do enfarte do miocárdio. Portanto no que se refere a hipotensão arterial as certezas são muitíssimo menores. Pode o enfarte do miocárdio ter passado para isto sem grande comparticipação, pode o enfarte do miocárdio ser a causa e o enfarte do miocárdio em conjunto em percentagens que nós não temos maneira de saber quais são, a contribuir para esse quadro de hipotensão. Não sei se me consegui fazer entender;
- o enfarte do miocárdio é uma causa plausível dos sintomas que o senhor apresentou, também pode determinar a…a paragem cardíaca. Qual a comparticipação destes dois componentes eu não tenho forma científica de apurar;
- posso dizer que este senhor teve uma reação alérgica importante. Se não tivesse lá o enfarte do miocárdio podia jurar que o quadro todo era uma reação anafilática. Estando lá o enfarte do miocárdio não podemos garantir em que percentagem, digamos assim, é que houve uma contribuição do enfarte para o choque. E é esta a atitude científica que eu lhe posso dar. Lamento não poder ser mais preciso;
- RR, médico especialista em Otorrinolaringologia:
- agora se for na laringe, o espaço onde passa o ar fica apertado, ou seja, o ar não passa e se nada se fizer o doente morre asfixiado. Portanto o que é que é necessário fazer? É necessário permeabilizar a via aérea. O que é isso de permeabilizar a via aérea? É pôr qualquer coisa que permita o doente ser ventilado. É só isto;
- e qual é a função da adrenalina? É contrariar a estamina.
Juíza – A estamina. Lá está, as alergias nós temos os anti histamínicos, pronto. A minha questão é se esta adrenalina ao ser administrada se poderia dispensar a tal entubação ou traqueotomia?
- aliás quando se dá penicilina deve ter-se ao lado, quando nós não sabemos se o doente é alérgico ou não, deve-se ter ao lado a adrenalina. É a melhor coisa;
- e se a falta de ar, cinco minutos depois de ter sido injetado o clavamox, normalmente é, foi o clavamox;
- porque há outras coisas, deve haver. A adrenalina. A adrenalina pode provocar problemas cardíacos;
Advogada – Nós também sabemos que este doente pelo exame histológico da medicina legal que foi feito ele estava neste momento a desenvolver um enfarte agudo do miocárdio, há 4 a 12 horas, com condição instalada 4 a 12 horas.
- exacto. Pois;
Advogada – Este doente nós sabemos que quando chega a autópsia para realização da autópsia, tinha sido entubado duas vezes: uma para fazer um procedimento cirúrgico e outra na sala de emergência médica. A entubação pode provocar edema, correto? Na laringe?
- pode, pode se for à bruta e lesar os tecidos moles, pode.
Advogada – Pode. Eu admito que no procedimento cirúrgico não seja à bruta, se calhar na sala de emergência é mais.
- quando eu digo à bruta é nas situações de urgência o que nós queremos é encontrar ali um espaço, não estamos com…
Advogada – Exatamente. Portanto, o procedimento em si de entubação pode provocar este edema e eu pergunto se um edema que pode ser provocado pela entubação é passível de ser distinguido de um edema que pode ser provocado pela reação à administração de um medicamento, ao choque anafilático. Porque na autópsia…
- conforme o edema for. Porque até se pode provocar um edema com lesão da mucosa, por exemplo das aritenoides que são as cartilagens da laringe, mas, mas de qualquer maneira se o doente estava ventilado não foi pelo edema que ele faleceu.
Advogada – Que ele morreu. Exatamente. Nem foi pelo choque que ele morreu porque ele está ventilado.
- não. Está ventilado. Aliás eu comecei por dizer que este doente precisava de ser ventilado ou por entubação ou por traqueotomia.
Advogada – Depois outra questão: relativamente a este edema de reinke ele não pode levar também a um estreitamento progressivo das vias respiratórias, ou seja …
- pode, pode levar e provocar estridor. Só que ele estava ventilado, não foi por aí. Se ele estava ventilado…
Advogada – De acordo com os esclarecimentos que nos prestou, penso que podemos concluir que este doente não morreu pelo facto de ter ficado asfixiado por…
- se estava ventilado é evidente que não.
Advogada – Que não. Portanto, terá sido outra causa que não esta?
- outra causa. A partir do momento em que está ventilado e como está ventilado, eu não estava a par disso, não, não. Porque o problema do angioedema é o estreitamento da laringe, portanto a pessoa morre por asfixia. Se estava ventilado, se lhe meteram lá o tubo, é evidente que não foi por causa disso.
Advogado – O que eu lhe queria perguntar é se independentemente da pessoa estar entubada acabou por ser entubada, alguns minutos esta falta de ar, se a circunstância de alguém já ter associada uma cardiopatia no passado, se estes minutos com falta de ar e posso dizer pelo menos que se entra na sala de emergência dificuldades abundantes (impercetível) hipotenso, sinais de má perfusão periférica, taquicardia, depois entra em paragem cardiorrespiratória, dez minutos depois de entrar na sala de emergência, eu perguntava-lhe se essa falta de ar momentânea que não terá sido total ou asfixiado na sala de emergência onde morreu, falta de ar não é total, mas se esta conjugação de fatores, se pode desembocar, se é causa de uma paragem cardiorrespiratória?
- é preciso tomar em consideração que o doente já tinha sido operado, todo isso antes. A história clínica tinha de ser vista ao pormenor. Não vou dizer nem sim, nem não. Agora, o doente morreu por paragem cardíaca. Se é cardiorrespiratória ou não, não sabemos. Cardíaca, é. Pára o coração. Ora, é assim.
Advogado – Mas a administração da adrenalina ajuda a um coração que está em sofrimento, que está com distemia aguda?
- não. A adrenalina até obriga o coração a trabalhar mais, de maneira que…Para já, ele tomou a adrenalina porque pensaram que ele estava alérgico ao clavamox, e sabe que em medicina isto não é propriamente os computadores, em que se mete ali a coisa e que dá ali aquele resultado, de maneira que é um bocado também difícil responder-lhe aqui, sim ou não.
Juíza – Senhor Doutor outra vez eu e não sei se muito bem, para fazer alguma pergunta que venha acrescentar, mas este processo, e sem querer obviar nada à produção da prova mostra-se até pelas intervenções aqui dos senhores doutores e da prova pericial, complexo e abrangente. Parece que vai aqui buscar a várias áreas da medicina o desfecho, digamos assim, trágico, deste senhor DD. A minha pergunta é: o senhor Doutor isso afirma parece-me com alguma certeza não é, que se o doente estava ventilado não foi de asfixia que ele morreu certo?
- exacto.
Juíza – Pronto. E agora a minha pergunta sem saber muito bem se estou a fazer alguma pergunta com alguma pertinência ou não, reconheço aqui com humildade o faço, quando nós dizemos que alguém morre por choque anafilático o que é que acontece à pessoa, não é, para morrer por choque anafilático?
- asfixia”;
- UU, que subscreveu o relatório de autópsia:
- “isquemia aguda foi o que escrevi… que é um termo mais abrangente [que enfarte] quanto à causa”;
- TT, que, igualmente participou na realização da autópsia:
- a morte pode ter sido por choque anafilático associado a enfarte agudo do miocárdio o que é causa de morte natural… é difícil afirmar, pode ter sido só choque, só enfarte ou ambas as coisas.
(…)
Ora cremos bem que, articulando, ponderando e conjugando, todo este conjunto de prova, perante o quadro de facto, objectivo, evidenciado pelo diário clínico, transmitido a todos estes médicos, das mais variadas especialidades clínicas, não se pode afirmar, com o grau de segurança exigido, no caso, em sede de processo de natureza criminal, que o choque anafilático haja sido a causa provável de morte.
Que entre o choque anafilático e a morte se possa estabelecer uma relação de causalidade adequada.
Que o choque anafilático possa ter sido a causa da morte. Muito menos, que, haja sido a única e exclusiva causa de morte.
O que daqui se pode concluir de forma segura e indubitável é que o choque anafilático provocou o agravamento do estado de saúde da vítima – que havia iniciado um enfarte agudo do miocárdio, entre 4 a 12 horas antes.
Quer o choque anafilático, quer o enfarte agudo do miocárdio, constituem, em abstracto causa de morte.
No caso concreto, a vítima não poderia ter morrido como consequência do choque anafilático, que provoca asfixia, dado que estava ventilado, estava entubado (assim se assegurando a permeabilização da via aérea) depois de lhe ter sido ministrada adrenalina, como impõem as boas práticas.
Fica por determinar em concreto que consequência pode a administração de adrenalina, num paciente iniciando um EAM pode ter no desenvolvimento do mesmo.
E, da mesma forma, não houve unanimidade quanto à questão da administração de amoxicilina ter agravado, aumentou ou sequer potenciado o enfarte do miocárdio que é detetada no exame de anatomia patológica realizado.
De tudo quanto ficou dito, não é possível extrair a convicção necessária, segura, acima de qualquer suspeita razoável, que a causa da morte foi o choque anafilático decorrente da administração de antibiótico ao qual o paciente era alérgico, nem causa única e exclusiva nem concausalidade.
E, assim, estes elementos de prova exigem impõem a alteração/modificação do julgamento, ainda que não no sentido defendido pelo MP.
Com efeito, apenas permitem a seguinte alteração:
- a) naturalmente que o nexo de causalidade constante da alínea a) não pode ser afirmado, apenas que “a prescrição e a administração da amoxicilina com ácido clavulânico foram a causa direta e necessária do choque anafilático de DD”;
- b) Ao omitirem os deveres referidos em 14., 15. e 17. a 19., os arguidos criaram grave perigo para a vida, corpo ou saúde de DD;
- c) ao assim agirem, os arguidos representaram como possível que o paciente DD, em virtude da administração de amoxicilina com ácido clavulânico, viesse a sofrer um choque anafilático – sem o falecer;
e) mais sabiam os arguidos que, com as condutas descritas, praticavam atos proibidos e punidos pela lei penal;
- alíneas d) - com a sua atuação os arguidos representaram como possível que o paciente DD viesse a falecer em virtude de enfarte agudo do miocárdio e,
f) - foi feita colheita Triptase na sala de emergência,
que se manterão, ambas, no elenco dos factos não provados, dado que da prova supra analisada não resulta a possibilidade da sua afirmação.
E, assim, em resumo, altera-se o julgamento da matéria de facto, passando para o elenco dos factos provados, de entre os não provados, os seguintes:
a) A prescrição e a administração da amoxicilina com ácido clavulânico foram a causa direta e necessária do choque anafilático de DD.
b) Ao omitirem os deveres referidos em 14., 15. e 17. a 19., os arguidos criaram grave perigo para a vida, corpo ou saúde de DD.
c) Ao assim agirem, os arguidos representaram como possível que o paciente DD, em virtude da administração de amoxicilina com ácido clavulânico, viesse a sofrer um choque anafilático.
e) Mais sabiam os arguidos que, com as condutas descritas, praticavam atos proibidos e punidos pela lei penal.
Mantendo-se no elenco dos não provados - dado que da prova supra analisada não resulta a possibilidade da sua afirmação - que,
a) A prescrição e a administração da amoxicilina com ácido clavulânico foram a causa direta e necessária da morte por choque anafilático de DD.
b) Sendo muito provável o resultado que se verificou à luz daquela conduta adotada, tendo-se tal perigo concretizado na morte do mesmo.
c) Ao assim agirem, os arguidos representaram como possível que o paciente DD, em virtude da administração de amoxicilina com ácido clavulânico, viesse a falecer em virtude de choque anafilático.
d) Com a sua atuação os arguidos representaram como possível que o paciente DD viesse a falecer em virtude de enfarte agudo do miocárdio.
f) Foi feita colheita Triptase na sala de emergência.
2.3. Das questões a decidir
Exulta, como primeiro mote a ponderar, desde logo por se entender que configura aspeto com possibilidades preclusivas relativamente aos restantes, a suscitada questão da violação do princípio ne bis in dem, no que tange ao crime pelo qual o arguido recorrente, inovatoriamente, foi agora condenado pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto10.
Esta máxima orientadora do ordenamento penal vigente, embora não sistemática e expressamente regulada no atual CPPenal, contrariamente ao que sucedia no domínio do CPPenal de 192911 –, afirma-se, à luz dos artigos 14º, nº 7, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 196612, 4º do Protocolo n° 7 da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais13, datado de 22 de Novembro de 1984, 50º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia14 e dos preceitos constitucionais conjugados dos artigos 29º, nº 5 e 18º, nº 1, da CRP15.
Parece incontornável que de acordo com os preceitos adiantados, ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime, albergando, esta ideia, o concreto sentido de que é necessário acatar a proibição da existência de um duplo processo sobre o mesmo facto, o que se harmoniza inteiramente, crê-se, com o processo penal que, por força da sua especificidade e características, reclama a imposição de efetivar a certeza do direito e a prevenção do risco da decisão inútil, impedindo que se reproduza ou contradiga uma decisão já tornada definitiva e, por essa via, garantir também o prestígio dos tribunais, valores que colhem o seu fundamento nos princípios da confiança, da certeza e da segurança jurídicas, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito.
E, nessa senda, ao que se vem defendendo, o aludido princípio comporta duas dimensões: (a) como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); (b) como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto16.
Para lá destas premissas, importa, também, avaliar como e o que considerar como o mesmo crime, a mesma realidade criminosa.
Nesse desiderato, apela-se à ideia de que, nesta sede, crime é todo o comportamento de alguém, espácio-temporalmente delimitado, que foi objeto de uma sentença ou decisão que se lhe equipare, entendendo-se como uma certa conduta / comportamento / acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um ilícito tipificado. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar pois, o que o nº 5 do artigo 29º da CRP proíbe é que um mesmo concreto objeto processual possa suportar um outro processo penal17.
Por seu turno, o objeto do processo penal não é mais do que o pedaço de vida / marco histórico / assunto transposto na acusação e apontado como sendo um crime praticado por determinado sujeito, e que durante a prossecução processual se pretende reconstituir o mais fielmente possível.
Acresce que para se saber / apurar da identidade do facto – avaliar se é ou não o mesmo e se nessa medida está a haver um duplo julgamento – nota intimamente ligada ao brocardo que aqui se pondera -, há que recorrer à métrica material e não puramente processual, sendo entendimento que aqui funciona um conceito normativo e não um conceito naturalístico.
Ou seja, (…) não é o processo que determina se o facto é ou não o mesmo, mas sim as características materiais do facto que podem infirmar ou confirmar a identidade do mesmo.
A identidade do facto é, por seu turno, um conceito normativamente modelado para o qual concorrem não só aspectos naturalísticos do objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado, acontecimento em causa, como também as conexões normativas que lhe conferem as qualidades que justificarão a sua integração no objecto dum processo18.
Para tanto, há que indagar sobre os vetores, identidade do agente, identidade do facto legalmente descrito e a identidade do bem jurídico afetado, configurando estes os três crivos de elucidação da identidade do acontecimento que se pretende submeter a um processo, sendo perante tais segmentos que se pode concluir, ou não, se determinada realidade histórica relativa a um certo processo é a mesma ou distinta de outra, anterior ou concomitante, existente noutro processo que se pretende levar a julgamento.
E, assim, há dupla valoração sobre o mesmo facto quando o juízo de valor jurídico formulado incida sobre o mesmo agente e o mesmo facto em função da tutela do mesmo bem jurídico.
Por último, diga-se, neste conspecto, que o que importa / releva são os factos concretos a que a lei atribui determinados efeitos jurídicos e que sejam invocados como fundamento da pretensão punitiva formulada em relação ao arguido, sendo que não se mostra pacífico se aqui, estão em causa apenas e só os factos que foram conhecidos e objeto de decisão no primeiro processo ou se, também, aqueles que, podendo e devendo ter sido aí conhecidos, não o foram.
Faceando todos estes traços, olhe-se então ao caso concreto e ao percurso recursivo utilizado para se poder afirmar estar patente caso de fazer funcionar o princípio ne bis in idem.
No entendimento do arguido recorrente BB, não tendo (…) sido condenado pelo tipo legal prevalecente – o crime de homicídio negligente –, não pode o acórdão recorrido vir apelar ao tipo legal derrogado, para condenar aquele, pois essa decisão representa o sancionamento do mesmo desvalor criminal pelo qual o Recorrente foi não condenado, ofendendo-se o princípio-garantia ne bis in idem (…) a interpretação que consta do acórdão recorrido ofende valores jurídicos fundamentais, em particular o princípio-garantia ne bis in idem, decorrência do n.º 5 do artigo 29.º da CRP.
Ao que se pensa, e sem necessidade de grandes considerações, elabora-se em raciocínio que não tem o menor arrimo na máxima que se adianta.
O arguido não foi julgado e absolvido num processo e depois condenado num outro, completamente distinto, a respeito da mesma realidade histórica / dos mesmos factos daquele outro primeiro.
Mostra-se pacificamente cristalino que o que aqui se passa é que houve uma decisão proferida em primeira instância, a qual foi objeto de recurso onde, nesta sede, o Tribunal ad quem, entendendo de modo diferente, e pelas razões que expôs, decidiu converter uma absolvição em condenação, e nada mais do que isso.
Tudo se passou no domínio do mesmo processado, acobertado pelo regime processual ordenador da matéria de recursos e no âmbito das competências do Tribunal de recurso.
Seguir a linha pugnada pelo arguido recorrente, no fundo, e para não se ofender o princípio a que apela, existindo uma absolvição em primeira instância, ainda que admissível recurso para o tribunal superior, e no mesmo processado, estaria este impedido de condenar, convertendo em letra morta, e completamente inútil, a previsão legal inserta no artigo 400º, nº 1, alínea e) do CPPenal, lida conjugadamente com ao artigo 399º do mesmo complexo legal.
Ora, parece não ser esta a concretização / dimensão da máxima em questionamento.
E, nesse conspecto, subscrevendo inteiramente o posicionamento do Digno Mº Pº junto deste Alto Tribunal, tal rumo de defesa trata-se de (…) mero exercício da ilogicidade (…) o arguido, ora recorrente, não foi condenado ou absolvido, com trânsito em julgado, do crime de “homicídio por negligência”, mais grave, nem os crimes em causa lhe foram imputados nos autos simultaneamente (…) a condenação pelo crime de “ofensa à integridade física por negligência”, menos grave – apoiada nos mesmos factos –, assentou apenas na demonstração de um evento do real-social que se constitui numa relação de mera gradação (por diminuição, um estádio prévio) com o bem-jurídico-penal que constitui o objecto da acção protegido do crime de “homicídio por negligência” – a vida humana.
Ante todo este expendido, falece o analisado vetor recursório.
*
Prosseguindo, enfrente-se o alegado matiz da violação do disposto no artigo 412º do CPPenal que, no dizer do arguido recorrente assenta na circunstância de nos recursos, quer do Digno Mº Pº, quer do Assistente se denotar que (…) os ali Recorrentes – aqui Recorridos – tenham tido a pretensão de ver alterada a matéria de facto no sentido que consta a fls. 66-67 do acórdão recorrido (alíneas a), b), c) e) (…) o acórdão proferido ofende os limites que decorrem, para o tribunal de recurso, do artigo 412.º n.º 3 do CPP e que delimita os poderes de cognição do Tribunal ad quem.
Importa assim sopesar sobre este aspeto e avaliar se o arguido recorrente tem razão.
Num primeiro momento colhe referir que por força do que plasma o artigo 424º, nº 3 do CPPenal, nada obsta a que em sede de recurso e estando em causa quadro de impugnação ampla da matéria de facto, não possa haver alteração não substancial dos factos constantes da decisão recorrida19.
De outra banda, e visitando os instrumentos recursivos apresentado pelo Digno Mº Pº e pelo Assistente como reação à decisão de 1ª Instância, contrariamente ao propugnado pelo arguido recorrente, tanto quanto se pensa, o que transparece é que, em ambos, se impugna amplamente a matéria de facto, sendo que o primeiro claramente refere (…) ) deve ser dado como provado que o DD era alérgico à penicilina20 e o segundo (…) Deve ser considerado e julgado provado o seguinte facto: “Ao omitirem os deveres referidos em 14, 15 e 17 a 19, os arguidos criaram grave perigo para a vida, corpo ou saúde de DD, sendo muito provável o resultado que se verificou à luz daquela conduta adotada, tendo-se tal perigo concretizado na morte do mesmo21 (…) Mesmo que não prevaleça o entendimento acima pugnado quanto à causalidade do choque anafilático de que padeceu DD no seu falecimento, hipótese que não se concede e que apenas por dialética forense se equaciona, sempre seria certo que a prescrição e administração de amoxicilina a DD havia sido causa de ofensa ao corpo e saúde do mesmo22, nos termos que decorrem da matéria de facto provada e dos sintomas e consequências manifestados por DD, conforme provado e relatado pelo CML nos vários relatórios apresentados nos autos23.
Atente-se, também, que por força destes articulados recursórios, pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto foi proferido despacho, referindo (…) Compulsados os autos constata-se que os factos descritos na acusação poderão ser susceptíveis de integrar prática, pelos arguidos, não um crime de crime de homicídio por negligência, previsto e punido, pelos artigos 15.º e 137.º/1 e 2 do Código Penal, mas sim de um de um crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo artigo 148.º/1 do mesmo diploma (…) na sequência de deliberação tomada hoje em conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art.º 424.º do CPP, comunica-se a dita alteração da qualificação jurídica dos factos constantes na acusação. Notifique, sendo os arguidos para, querendo, em 10 dias tomarem posição24 (…) que notificado a ambos os arguidos foi objeto de reação quer por parte do arguido Recorrente BB25, quer por banda do arguido AA26.
Do que se vislumbra, é absolutamente claro, pelo menos, que o instrumento recursivo trazido pelo Assistente ao Venerando Tribunal da Relação do Porto, assumindo a hipótese de integração da factualidade no crime pelo qual foram agora os arguidos condenados – ofensa à integridade física por negligência -, igualmente respeitou, nesse sentido, todas as exigências expressas no artigo 412º, nº 3 do CPPenal, sendo disso elucidativo todo o elenco de detalhe que consta das conclusões 2) a 5) do dito articulado.
Por seu turno, visitando o instrumento recursório do Digno Mº Pº junto do Tribunal de 1ª Instância e dirigido ao Venerando Tribunal da Relação do Porto, igualmente se constata o cumprimento das exigência mínimas para que este pudesse alterar a matéria de facto no sentido em que o fez.
Faça-se notar, e olhando a todo a atrás transcrito – ponto 2.2 Motivação da Decisão -, que o Venerando Tribunal da Relação do Porto, em pronunciamento sobre a impugnação da matéria de facto, advinda do Digno Mº Pº e do Assistente, escalpeliza todos os dados probatórios considerados como suporte dos recursos apresentados e retira as consequências de tal, considerando provada parte da matéria constante da decisão proferida em 1ª Instância como não provada, fazendo a correspondente integração jurídica da mesma.
Nessa medida, ao que se cogita, não se foi além daquilo que foi suscitado nos recursos dirigidos ao Venerando Tribunal da Relação do Porto, sendo cristalino que inexistiu qualquer modificação estrutural dos factos em questão, de modo que a matéria de facto que em sede de recurso foi considerada provada foi diversa, contendo elementos essenciais de divergência agravando a posição processual do arguido recorrente e do arguido AA, tornando o seu posicionamento processual não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição factual levada a julgamento, constituindo uma surpresa com a qual aqueles não poderiam contar, e relativamente às quais não foi possível preparar a sua defesa27.
Aliás, todo o aspeto relativo à administração da penicilina ao falecido - pai do Assistente -, medicamento a que era alérgico, sempre esteve presente na discussão e ponderação.
Em face de todo este explicativo, seguindo, também, a linha traçada pelo Digno Mº Pº junto deste STJ, que se subscreve, sucumbe o pretendido pelo arguido Recorrente.
*
Seguidamente, um debruce sobre a invocada questão da degradação do crime público em crime semipúblico.
O arguido recorrente BB, nesta sede, vem opinar que os (…) factos suscetíveis de gerarem responsabilidade penal ocorreram no dia 06 de janeiro de 2015, tendo o presente processo sido instaurado em 24 de novembro de 2016 com base em certidão extraída de um primeiro processo crime (…) Na data da instauração do presente processo há muito que os 6meses para apresentação de queixa por parte do Assistente se tinham esgotado, tendo decorrido 01 ano e 10 meses sobre a data da prática (…).
No que tange a esta matéria, o aresto em sindicância, socorrendo-se de abundante doutrina e jurisprudência, reza (…) entendendo-se que dos autos resultariam indícios da prática de um crime de homicídio negligente que teria sido praticado no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, determinando-se a extracção de certidão de várias das peças processuais e a sua remessa ao DIAP de Vila Real, a fim de aí ser registada, distribuída e autuada, como inquérito (…) a 24.11.2016 foi a certidão registada e autuada como inquérito na Procuradoria de Vila Real (…) em 3.2.2017 o filho do falecido veio requerer a sua constituição como assistente, pretensão que foi deferida por despacho de 20.2.2017 (…) requerimento de 17.3.2017 o assistente veio dizer e requerer o seguinte: - tendo em atenção a aparente causa da morte do falecido pai, como se mostra na autópsia, também corroborada no diário médico e a contradição entre o que o falecido pai deu a conhecer quanto a reacções alérgicas e o que se mostra exarado às 23.16 horas do dia do seu falecimento, já depois da sua ocorrência, verificando.se que as unidades de saúde em causa, embora notificadas, não procederam à junção de todos os elementos clínicos referentes ao internamento investigado nos autos, manifesta o entendimento de que deve ser reiterada a necessidade da junção de todos os documentos referentes aos cuidados prestados ao falecido pai entre 4 e 6.1.2015 e de que posteriormente e na sua posse, lhe parecer que se deverá apurar qual foi a concreta informação transmitida pelo Hospital de Vila Real ao Hospital Pedro Hispano, aquando da transferência do doente, e, que já na posse desses elementos se deveria solicitar auxilio de perícia médico-legal a fim de se apurar a conduta de todos os envolvidos e a sua adequação, ou falta dela, com as práticas que se mostravam concretamente devidas ao caso. O assistente veio entretanto a prestar declarações a 31.10.2017 (…) Voltou a prestar declarações a 9.2.208 referindo que entende que a morte do pai se ficou a dever à administração no Hospital Pedro Hispano de um derivado de penicilina, à qual o pai era alérgico (…) A 11.2.2019 foi deduzida acusação contra os ora arguidos pelo crime de homicídio negligente (…) no decurso do inquérito e depois de ter sido admitido a intervir como assistente, este foi apresentando requerimentos onde renovava a sua pretensão de que se oficiasse para a junção dos vários documentos de natureza clínica e, que juntos, deles lhe fosse dado conhecimento (…) o filho da vítima em momento algum do processo até ao presente manifestou pretender, desejar procedimento criminal contra os aqui arguidos - médico que prescreveu e enfermeiro que ministrou o fármaco, derivado da penicilina – pelos factos a que o processo agora, afinal, se vê reconduzido (…) remente, através do AUJ 6/200428, de 29.5.2024, o STJ fixou jurisprudência no sentido de que, “o Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da ação penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento, por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no artigo 181º, nº 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público” (…) A questão no caso é a de saber (…) se, mesmo sem queixa, por, ao tempo, desnecessária, se mantem a legitimidade do MP para prosseguir a acusação e a pronúncia, agora, reconvertidas num crime de natureza semi-pública (…) isento de dúvidas que, tendo o crime de homicídio negligente natureza pública, o processo nasceu e prosseguiu com plena legitimidade do MP para o exercício da acção penal, sem qualquer entorse ou desvio processual até ao presente (…) depara-se este Tribunal com a questão de saber se estão reunidos ou se se mantêm todos os pressupostos processuais para levar a cabo a condenação dos arguidos pelo minus, pelo crime de ofensa à integridade física, concretamente a condição de procedibilidade de que depende a legitimidade do MP (…) saber se para condenação pela prática do dito crime se impõe a verificação do pressuposto processual positivo ou condição de procedibilidade da apresentação de queixa, devemos então começar por perguntar se, nesta fase final da degradação, podemos dar por assente a verificação da dita condição ou a sua dispensa, para o efeito de condenação (…) não faltou legitimidade ao MP para iniciar e promover o processo, porque quando o processo se iniciou até à fase de degradação, no julgamento, para crime semipúblico o início e promoção do processo não dependia da satisfação de qualquer condição de procedibilidade. A promoção do processo decorreu de forma válida e eficaz, perante as circunstâncias do caso e à luz dos elementos que então se conheciam (…) não se pode exigir (…) que antecipassem a configuração de uma condição de procedibilidade que ao tempo em que podia ser exigida não o era. Nem é possível fazer repercutir uma conjuntura futura sobre a legalidade dos actos assegurada no tempo próprio (passado). No fundo, se o processo se iniciou com plena legitimidade, é abusivo surpreender agora as assistentes com uma exigência que nunca se prefigurou; e fazê-lo sem lhes dar sequer a oportunidade de se manifestarem sobre o que é decisivo e medular: saber se querem perseguir criminalmente o autor dos factos (…) no nosso caso não se pode agora, a destempo, exigir ao assistente uma condição seja de procedibilidade, a queixa, que no andamento normal e correto do processo nunca lhe podia ter sido exigida. Nem pode ser penalizado pela sua falta (…) Tribunal Constitucional no acórdão 523/99, registou também o absurdo a que a exigência de uma regularidade formal a destempo pode conduzir. “Seria absurdo, além de praticamente impossível, obrigar o ofendido a retroceder no tempo e a apresentar uma queixa num prazo que a lei estabelecia para crimes de outra natureza, a fim de impedir a extinção do procedimento criminal (…) O princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, proclamado pelo artigo 2.º da Lei Fundamental, acolitado pelo espírito da lei, também não acolhe que o ofendido seja negativamente surpreendido a final do processo criminal, apesar do julgamento efectuado, factos provados e juízo de culpabilidade definido (…) Estar a exigir agora e a final uma condição de prosseguibilidade que antes era inexigível seria estar a driblar a pretensão do ofendido e a, deslealmente, desarmá-lo (…) Esta solução é a única compaginável com os fins do processo penal que o Código de Processo Penal encimou em “8.” do seu preâmbulo: “realização da justiça, tutela de bens jurídicos, estabilização das normas, paz jurídica dos cidadãos” (…) também nós, concluímos que iniciado o procedimento por um crime de natureza pública, a constatação, ainda que em sede de recurso, que os factos apurados em julgamento, são susceptíveis, tão só, de integrar a previsão de um crime de natureza semi-pública, não produz qualquer efeito – de inviabilização da sua prossecução - sobre o procedimento, então, validamente, iniciado - como se referiu no citado acórdão de 24.10.2007 (…).
Ante todo este justificativo, ao qual se adere, forçoso é que se conclua não assistir razão ao arguido recorrente.
Uma nota parece ser clara, o filho do falecido, ao requerer a sua constituição como Assistente, nestes autos, em 3 de fevereiro de 2017, sendo que os mesmos se iniciaram com a configuração que se apresentavam então, em 24 de novembro de 2016, mostrou clara intenção na prossecução dos mesmos, no desejo de que houvesse procedimento criminal, o que manifestamente operou antes do decurso do prazo de 6 meses – entre 24/11/2016 e 03/02/2017, medeiam cerca de 3 meses.
E, nesse desiderato, ignorar esta manifestação de vontade, seria denegar o princípio da confiança, frustraria as legítimas expetativas do Assistente e representaria uma incompreensível injustiça e uma inaceitável (embora não propositada) “deslealdade processual”, redundando pura e simplesmente na redução de todo o processo criminal a meras questões de forma.
Naturalmente que o Assistente ao posicionar-se da forma, e no momento em que o fez, quis e agiu no sentido de que fossem punidos os eventuais responsáveis do acontecido.
Faceando, também aqui baqueia o posicionamento do arguido Recorrente.
Na tese do arguido recorrente (…) Soçobrando a condenação pela prática de qualquer crime (…) naturalmente que o pagamento de uma indemnização por quaisquer danos que se pretendam imputar ao aqui Recorrente caem por terra, incluindo os danos não patrimoniais sofridos pelo Sr. DD no valor de €25.000,00, acrescido de juros de mora (…) sendo que esta (…) condenação (…) teve por fundamento a Lei 67/2007 de 31 de dezembro, que consagra o regime da responsabilidade extracontratual do Estado (…), não estando verificados in casu os pressupostos expressos nos artigos 7º, nº 1 e 10º, nº 1 do citado complexo normativo.
Considerando todo o espetro decisório neste matiz, ao que se pensa, incorre o arguido recorrente em lapso manifesto.
Na verdade, tanto quanto transparece da decisão prolatada a condenação em indemnização cível assentou no cometimento de um crime, sendo o seu justificativo legal no plasmado nos artigos 129º do CPenal e 71º do CPPenal.
Decorre do aresto proferido tendo em consideração (…) as circunstâncias acima delineadas a propósito da operação de determinação da espécie e medida das penas e, em face da natureza dos danos não patrimoniais provados, graves e merecedores da tutela do direito, e atenta a culpa exclusiva dos demandantes29, as respectivas situações económicas e, tendo presente os critérios de avaliação, resultantes da lei e da prática judiciária, cremos ser de fixar no valor de € 25.000,00, o valor da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima.
Acresce que o Acórdão em dissídio, em nenhum momento, quanto a este vetor e para justificar o decidido, se socorre do regime ínsito no diploma legal supracitado. Na verdade, a menção a tal que ali consta, é apenas e só a transcrição de decisão de primeira instância, que o refere, e que em sede recursiva não teve qualquer acolhimento.
De outro lado, ao que se pensa, este pedido do arguido recorrente parte do pressuposto de que o mesmo entende que deveria ser absolvido da vertente criminal em que foi condenado.
Mantendo-se toda a condenação crime e nada se alegando, demonstrando e vislumbrando que o decidido neste conspecto – parte cível - padeça de alguma deficiência, nenhuma intervenção há a fazer nesta sede, sendo tal de improceder.
Nestes termos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido BB e, consequentemente, decidem manter a decisão recorrida.
Carlos de Campos Lobo (Relator)
José Vaz Carreto (1º Adjunto)
António Augusto Manso (2º Adjunto)
___________
1. Adiante CC
2. Doravante BB
3. Consigna-se que apenas se transcrevem as partes do texto que não constituem a reprodução dos diversos articulados existentes e já referidos no Relatório e, bem assim, excertos do Acórdão em sindicância que, em momento oportuno, e se necessário, se referirão.
4. Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
5. SILVA, Germano Marques da, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, Universidade Católica Editora, p.335; SIMAS SANTOS, Manuel e LEAL-HENRIQUES, Manuel, Recursos Penais, 8ª edição, 2011, Rei dos Livros, p.113.
6. Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do STJ, de 12/09/2007, proferido no Processo nº 07P2583, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria, disponível em www.dgsi.pt.
7. Consigna-se que o Venerando Tribunal da Relação do Porto para além de manter intacta toda a materialidade vinda da 1ª Instância, procedeu a uma alteração dos factos.
Acresce que, não se mostrando necessário para as questões que aqui se discutem, não se transcreve toda a matéria respeitante ao enquadramento socioeconómico dos arguidos e, bem assim, o que respeita a eventuais antecedentes criminais.
8. Matéria factual introduzida pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto – pp 66 e 67 do Acórdão.
9. Reproduzem-se as considerações advindas da 1ª Instância e todo o justificativo elaborado pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto relativo à factualidade nova por este introduzida.
10. Também o arguido AA
11. Cf. artigos 148º a 153º.
12. ARTIGO 14.º
1 – (…)
2 – (…)
3 – (…)
4 – (…)
5 – (…)
6 – (…)
7 - Ninguém pode ser julgado ou punido novamente por motivo de uma infracção da qual já foi absolvido ou pela qual já foi condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal de cada país.
13. Artigo 4.º
(Direito a não ser julgado ou punido mais de uma vez)
1. Ninguém pode ser penalmente julgado ou punido pelas jurisdições do mesmo Estado por motivo de uma infracção pela qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal desse Estado.
2. (…)
3. (…)
14. Artigo 50º
Direito a não ser julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito
Ninguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei.
15. Este princípio não é mais do que a manifestação substantiva da noção do caso julgado que tem proteção constitucional alicerçada, quer no disposto no n.º 3 do artigo 282.º, quer nos princípios da confiança e da segurança jurídica, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito.
Nesse sentido, o acórdão do STJ, de 22/11/2017, proferido no Processo nº 1764/13.7TACBR.S1 - A circunstância de a lei adjectiva penal vigente não regular o caso julgado não significa que o processo penal prescinde daquele instituto, consabido que nesta concreta área do Direito se sente com muito maior intensidade e acuidade a necessidade de protecção do cidadão contra situações decorrentes da violação do caso julgado. Aliás, a CRP consagra de forma irrefutável o caso julgado penal, no seu art. 29.º, n.º 5 (…).
16. CANOTILHO, J. J. Gomes, e MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª edição, Coimbra Editora, pp. 497 e 498.
Na mesma linha de pensamento, DAMIÃO DA CUNHA, José, Caso Julgado Parcial, Questão da Culpabilidade e questão da sanção num processo de estrutura acusatória, Porto 2002, Publicações Universidade Católica, pp. 484 – o princípio ne bis in idem deve ser entendido como (…) garantia subjectiva para o arguido não ser submetido duas vezes a um julgamento pelos mesmos “factos” e, consequentemente, e de acordo com um processo regido pelo princípio de acusação, não ser “acusado” duas vezes pelos mesmos factos.
17. Neste sentido, ISASCA, Frederico, Alteração Substancial dos Factos e Sua Relevância no Processo Penal Português, 2003, Almedina, pp. 220 e 221.
18. BELEZA, Tereza Pizarro e PINTO, Frederico Lacerda da Costa, Direito Processual Penal I, Objecto do Processo, Liberdade de Qualificação Jurídica e Caso Julgado, 2001, acessível no endereço https://docentes.fd.unl.pt, pp. 25 e 26.
19. Neste sentido, GAMA, António, LATAS, António, CORREIA, João Conde, LOPES, José Mouraz, TRIUNFANTE, Luís Lemos, SILVA DIAS; Maria do Carmo, MESQUITA, Paulo Dá, ALBERGARIA, Pedro Soares de e MILHEIRO, Tiago Caiado, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V – artigos 399º a 524º, 2024, Almedina, p. 285 – (…) sendo mais ou menos evidente que a alteração pode ocorrer por ocasião da renovação da prova em sede de recurso (…9também não parece que ela não possa ocorrer no caso de recurso em matéria de facto mediante impugnação ampla (artigo 412º/3/a)/b).
Igualmente, ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Volume II, 5ª edição atualizada, 2023, Universidade Católica Editora, p. 705 – (…) se a alteração resulta da posição do MP expressa nas conclusões do recurso (…) ou da posição do assistente expressa nas conclusões do seu recurso, a alteração já é conhecida do arguido, pois ele foi oportunamente notificado para responder ao recurso (…).
20. Conclusão 19.
21. Conclusão 4.
22. Sublinhado nosso.
23. Conclusão 8.
24. Referência Citius …34.
25. Referência Citius …28.
26. Referência Citius …41.
27. Neste sentido, o Acórdão do STJ, de 21/03/2007, proferido no Processo nº 24/2007, citado por GASPAR, António Henriques, SANTOS CABRAL, José António Henriques dois Santos, COSTA, Eduardo Maia, OLIVEIRA MENDES, António Jorge de, MADEIRA, António Pereira, GRAÇA, António Pires Henriques da, Código de Processo Penal, Comentado, 2016, 2ª edição revista. Almedina, p.p. 1086 e 1087.
28. Crê-se ser lapso, pretendendo ante referir AUJ 9/2024 de 29 de maio.
29. Trata-se de claro lapso, pretendendo-se antes dizer demandados,