ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
PESSOAL AUXILIAR
HONORÁRIOS E DESPESAS
Sumário

Sumário:
1- Cabe ao administrador da insolvência exercer pessoalmente as competências do seu cargo, carecendo de obter, para que possa ser coadjuvado por terceiros, da prévia concordância da comissão de credores, ou do juiz, na falta desta.
2- Limitando-se o administrador da insolvência a informar nos autos que contratou os serviços de uma leiloeira, não fica cumprido o exigido pelo art.º 55.º, n.º 3, do CIRE, não configurando a não reação dos intervenientes processuais qualquer concordância tácita que possa ser valorada.
3- Por ser assim, não pode ser imputado à massa insolvente qualquer pagamento a título de honorários e despesas reclamados pela aludida leiloeira, não tendo aplicação ao caso, para sustentar legalmente o pretendido pagamento, o estatuído no art.º 17.º do RCP, em face do regime próprio do processo insolvencial.

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I-/ Relatório:
1. AA… apresentou-se à insolvência e formulou pedido de exoneração do passivo restante, tendo, por sentença de 26-11-2017, transitada em julgado, sido declarada a sua insolvência.
2. Foi nomeado administrador da insolvência, na sentença proferida.
3. Em 31-10-2018, foi proferido despacho determinando o prosseguimento dos autos para liquidação do ativo.
4. O AI nomeado veio a falecer na pendência dos autos, sendo então nomeado novo administrador, em sua substituição, por despacho proferido em 14-05-2019.
5. Por despacho proferido em 26-10-2021, no apenso C, foi julgado findo o incidente de liquidação do ativo.
6. Por email junto aos autos em 09-08-2024, e pela fundamentação aí expressa, foi requerido o pagamento de remuneração (5.504,25 euros, com iva incluído, correspondente a 5% do valor de venda do imóvel, à luz do art.º 17.º n.º 6 do RCP) e despesas (num total de 382,07 euros, com juros incluídos), num total, com juros, de 8.496,69 euros, pela sociedade Leiloport, S.A, invocando, para o efeito, a sua qualidade de encarregada da venda e o incumprimento contratual por parte do atual AI, do contrato celebrado em 07-12-2018, resolvido em 04-11-2019. Termina pedindo que pelo requerido pagamento seja responsabilizado o Administrador de Insolvência, Dr. …., e a própria Massa Insolvente.
7. O Sr. Administrador da Insolvência, notificado, respondeu em 15-01-2025, rejeitando o pagamento peticionado, alegando ter denunciando, em 05-09-2019, o contrato de prestação de serviços que a Massa Insolvente, representada pelo seu anterior administrador, havia celebrado com a Leiloport S.A., fazendo-o assim com a antecedência de 3 (três) meses relativamente ao términus do referido contrato (07-12-2019). Posteriormente àquela denúncia, a Leiloport veio resolver o contrato, alegando que o AI adotou “condutas que impediram e continuam a impedir que a Leiloport S.A. possa exercer as suas funções”, o que não corresponde à verdade, pretendendo criar um ardil para posteriormente vir reclamar o pagamento de honorários, a que sabe não ter qualquer direito, o que fez decorridos mais de 4 anos após aquela denúncia.
8. Por decisão proferida em 05/02/2025, foi então decidido que:
«Ref.ª 15538967
Mediante requerimento em ref.ª, junto aos autos através de email e subscrito “digitalmente” por representante legal da Leiloport, S.A.- embora esta qualidade não se encontre comprovada -, requer esta o pagamento de remuneração e despesas, na qualidade de encarregada da venda, na quantia total de € 8.496,69, nos termos e com os fundamentos que do mesmo constam, imputando a responsabilidade de tal pagamento ao Sr. Administrador da Insolvência e à Massa Insolvente.
A pretensão da requerente redunda num pedido de indemnização por diligências que efetuou e despesas que realizou após ter sido contratada como encarregada da venda pelo anterior Sr. Administrador da Insolvência, entretanto falecido, não tendo ultimado a venda contratada por virtude de conduta de falta de colaboração que imputa ao Sr. Administrador da Insolvência nomeado em substituição, concluindo tratar-se de incumprimento contratual por parte da Massa Insolvente.
O Sr. Administrador da Insolvência, notificado, respondeu nos termos que constam sob Refª 16157087, rejeitando o pagamento peticionado.
Sendo a pretensão controvertida, a sua apreciação e decisão não podem ter lugar em mero incidente enxertado em processo de insolvência, como é o caso.
Ademais, não obstante a constituição posterior de Mandatário nos autos – Refª 15616531 - , o requerimento não se encontra subscrito por advogado, o que se apresenta obrigatório, face ao valor do pedido formulado, que excede a alçada da 1.ª instância, e ao disposto no art.º 40.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do CPCivil.
Não obstante, sempre se dirá o seguinte.
A Massa Insolvente apenas responde pelas dívidas previstas no art.º 51.º do CIRE, sendo as respeitantes às dívidas emergentes de atos de liquidação, onde se insere a remuneração devida a encarregada da venda nomeada, previstas na al. c) do n.º 1 do referido preceito legal.
Para a remuneração da encarregada da venda constituir dívida da massa insolvente, a prestação de serviços deve ter prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta dessa comissão – art.º 55.º, n.º 3, do CIRE.
Neste processo, não foi constituída comissão de credores, pelo que tal órgão da insolvência não podia ter dado autorização ou concordância à prestação de serviços, ao contrário do que, erradamente, vem alegado pela requerente (veja-se a parte final do ponto 4 do seu requerimento).
Por outro lado, não existe despacho judicial a conceder autorização à contratação, nem tal foi requerido.
Por fim, informou o anterior Sr. Administrador da Insolvência nos autos, por requerimento que apresentou em 07-12-2018, Refª 7728368, no Apenso C – Liquidação, que “o ora signatário nomeou como encarregada da venda a Leiloport, S.A..” E que: “Mais se informa, que a encarregada da venda não cobrará qualquer comissão de venda à massa de insolvente, mas sim ao comprador”.
Decorre do exposto que a contratação da Leiloport, S.A. se apresenta absolutamente alheia à Massa Insolvente, não podendo ser responsabilizada pelo pagamento de quaisquer quantias nesse âmbito.
O que se decide.
Notifique».
9. Inconformada, a Leiloport, S.A veio interpor recurso, que finalizou com as seguintes conclusões:
«A. No douto despacho de que se recorre, proferido pela MMª Juiz do Tribunal a quo e datado de 05.02.2025 [Refª. 163823687], é indeferido o pedido de fixação de honorários e despesas apresentado pela Recorrente, mediante Requerimento Para Liquidação de Honorários e Despesas junto aos autos em 09.08.2024 [Refª 15616531], na qualidade de Encarregada de Venda, por considerar que «Para a remuneração da encarregada da venda constituir dívida da massa insolvente, a prestação de serviços deve ter prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta dessa comissão – art.º 55º, nº 3, do CIRE.», pelo que «a contratação da Leiloport, S.A. se apresenta absolutamente alheia à Massa Insolvente, não podendo ser responsabilizada pelo pagamento de quaisquer quantias nesse âmbito».
B. Com o devido respeito, a atividade de liquidação da Massa Insolvente não se enquadra no âmbito da previsão do Art.º 161º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas [CIRE], pelo que não compete ao Juiz do processo de insolvência consentir / autorizar / ordenar os concretos atos ou termos do cumprimento de liquidação da massa insolvente cuja iniciativa / decisão são, por inerência de funções, da responsabilidade do Administrador da Insolvência, em articulação consoante o caso, com a Comissão de Credores ou aqueles que beneficiam de uma garantia real [cfr. Arts.º 55º, nº 1, al. a), 161º e 164º, nº 2, do CIRE].
C. Por sua vez, é amplamente consensual que o Administrador de Insolvência se configura como o único órgão com competência para a representação externa da Massa Insolvente, ficando esta vinculada pelos atos que aquele pratica em seu nome.
D. Nestes atos inclui-se a celebração de contratos, como aquele que a Recorrente outorgou com a Massa Insolvente em 07.12.2018, e na sequência do qual passou a desenvolver diligências no processo enquanto e sob a veste de Encarregada de Venda.
E. Ao celebrar com a Recorrente o supra referido contrato, não procurou o Exmº. Sr. Artur Bruno Vicente, na sua qualidade de Administrador de Insolvência, agir em nome próprio, mas sim em representação e no interesse da Massa Insolvente.
F. De resto, com a declaração de insolvência, os poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da Massa Insolvente passam a competir ao Exmº. Sr. Administrador da Insolvência, que assume a representação daquela para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, conforme nº 1 e 4 do Art.º 81º do CIRE.
G. Pelo que resulta claro, salvo melhor entendimento, que as obrigações advenientes do contrato celebrado entre Recorrente e Massa Insolvente, e do quanto a serviços levados e a levar a cabo pela prestadora deverão ser imputados à Massa Insolvente, vinculada aos termos celebrados, e não ao Administrador de Insolvência enquanto seu mero representante.
H. Logo, a falta de autorização por parte do Tribunal ou da Comissão de Credores, para que o Administrador de Insolvência contratasse ou recorresse a Encarregada de Venda no processo, não deverá eximir a Massa Insolvente da responsabilidade pela remuneração da atividade ou por despesas em que a Recorrente incorreu.
I. Nem tal facto impede a Massa Insolvente de, enquanto responsável pelo pagamento daquelas despesas e remuneração, vir a reagir posteriormente contra o Administrador de Insolvência, no âmbito da responsabilidade pessoal e funcional deste.
J. Assim, não deve ser a Recorrente prejudicada pela ineficácia de um contrato de prestação de serviços celebrado com o Exmº. Sr. Administrador de Insolvência, o qual se apresentou idóneo para o celebrar, porquanto não concorreu em momento algum para essa mesma ineficácia.
K. Nem tão pouco é exigível à Recorrente que, em face dos elementos e informações de que efetivamente dispunha ou poderia dispor à altura, verificasse se o Administrador de Insolvência havia promovido comunicações prévias junto do Tribunal a quo, Comissão de Credores ou dos individualizados credores, no sentido de deter autorização para a celebração daquele contrato de prestação de serviços.
L. Limitou-se, pois, a Recorrente a seguir as indicações do Exmº. Sr. Administrador de Insolvência, o qual sinalizou a necessidade da prestação daqueles serviços, sem mais explicações quanto à sua relação com os credores atinente à celebração daquele contrato.
M. Pelo que resulta manifestamente irrazoável e injusto que, uma vez prestado aqueles serviços, se veja a Recorrente confrontada com uma qualquer postergação, a título de alegada ineficácia do contrato celebrado com o então Administrador de Insolvência, e em que a dita eficácia se deve em exclusivo à atuação daquele.
N. Por designação daquele Administrador de Insolvência, a Recorrente desenvolveu atividade no presente processo, realizando diligências em prol do mesmo, tendo por objeto o bem imóvel apreendido em favor da Massa Insolvente, as quais geraram despesas com deslocação ao local.
O. Tal atividade e despesas encontram-se detalhadamente espelhadas em Relatório de Atividade, Notas de Honorários e de Despesas e demais documentos remetidos ao Exmº. Sr. Administrador de Insolvência e posteriormente juntos aos autos em anexo a Requerimento Para Liquidação de Honorários e Despesas junto aos autos em 09.08.2024 [Refª 15616531].
P. Ou seja, emana deste conjunto de factos e elementos que a Recorrente, durante o período em que desempenhou as funções de Encarregada de Venda no processo, foi assim percecionada pelas partes intervenientes, que a isso não se opuseram.
Q. Fê-lo de forma profissional e digna, mediante a promoção de atos indispensáveis aos interesses do processo, não tendo por ação ou omissão adotado qualquer comportamento que visasse comprometer os bens em causa.
R. O regime essencial da remuneração de intervenientes em processo civil, nos quais se inclui para os presentes efeitos a Recorrente, consta do Art.º 17º do RCP, decorrendo do mesmo a fixação de um direito geral à remuneração.
S. O douto despacho recorrido decide erroneamente que a Recorrente não tem direito a receber a respetiva remuneração e a ser ressarcida das despesas tidas com o processo, por considerar que para efeitos da designação da Recorrente enquanto Encarregada de Venda, cristalizada no contrato de prestação de serviços celebrado, seria indispensável a «prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta dessa comissão», o que não se verificou, não tendo o referido contrato eficácia.
T. Adicionalmente, é referido no mesmo despacho que, ainda assim, naquele contrato havia sido acordado que não seria cobrada pela Encarregada de Venda qualquer comissão de venda à Massa Insolvente, mas sim ao comprador.
U. A este propósito, reitere-se que conforme posições jurisprudenciais maioritárias (cfr. douto Ac. do Trib. Rel. de Lisboa, de 24.01.2023, referente ao Proc. 902/14.7TBCSC-BL1-7; e douto Ac. do Trib. da Rel. de Évora, de 24.02.2022, respetivo ao Proc. 4815/10.3T BSTB-F.E1, ambos consultáveis em www.dgsi.pt), não obstante pré-conformação de condições genéricas ou contratuais entre Administrador de Insolvência, em representação da Massa Insolvente, e a Encarregada de Venda, não deve a mesma sobrepor-se ao imperativo legal decorrente do nº 6 do Art.º 17º do RCP.
V. Logo, face à atividade incumbida, efetivamente desenvolvida e prestada pela Recorrente, por conta e em nome dos intervenientes, de acordo com a designação havida, deverá aquela, na respetiva qualidade de Encarregada de Venda, ser devidamente ressarcida, em justiça e respeito pelas funções que com inegável profissionalismo e dignidade exerceu, nos exatos termos em que o veio requerer.
W. São devidos à Recorrente honorários nos termos legais, concernentes à atividade que a mesma efetivamente prestou em prol do processo, durante aquele período, bem como despesas tidas com o mesmo, devidamente quantificadas.
X. Nem se mostraria lógico que a Recorrente exercesse atividade profissional gratuitamente, em prol do quanto tido por necessário no processo, adiantando inclusivamente despesas por forma a exercer tal atividade de forma indefinida no tempo, despesas estas que, eventualmente, poderia nem sequer ver devidamente tidas como verificadas e aceites nos autos.
Y. Ao indeferir o pedido de fixação remuneratória e de despesas apresentado pela Recorrente, foi pelo Tribunal a quo violado o quanto previsto no nº 6 do art.º 17º do RCP e Tabela IV anexa ao mesmo diploma.
Z. Em conclusão, é legalmente exigível e devida pelo Tribunal a quo e sob alçada de competência exclusiva, a fixação de remuneração fixa a título de honorários e atribuição de valor relativo a despesas tidas no âmbito do processo, respeitante ao período durante o qual a Recorrente desempenhou em prol do processo a atividade de Encarregada de Venda, nos termos dos nº 1 e 6 do art.º 17º do RCP e Tabela IV, em acordo com o supra expresso e apresentado a juízo e ora em retificação decisão que compete suprir.
Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis, sempre com o mui douto suprimento de V/Exas., deverá ser dado provimento ao recurso e revogada a decisão recorrida, e, em consequência, a final, ser apreciado e determinado o quanto a fixação conforme o previsto no CPC e nº 6 do art.º 17º do RCP.».
10. Não foram apresentadas contra-alegações.
11. Admitido o recurso e remetidos os autos a este Tribunal da Relação, colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
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II-/ Questões a decidir:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente, tal como decorre dos arts.º 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam assim à apreciação deste Tribunal consistem em apreciar se é devido o pagamento de remuneração e despesas peticionado nos autos pela Recorrente, na qualidade de encarregada de venda, a suportar pela Massa Insolvente e se para tal apreciação deve ter-se em conta o consagrado no art.º 17.º do RCP.
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III-/ Fundamentação de facto:
Atentos os elementos que constam dos autos encontram-se provados, com interesse para a decisão a proferir, os factos que constam do relatório que antecede e cujo teor se dá por reproduzido.
Resulta ainda dos autos que:
- O anterior Sr. Administrador da Insolvência, por requerimento que apresentou em 07-12-2018, no Apenso C – Liquidação, informou os autos que “nomeou como encarregada da venda a Leiloport, S.A..” e que “a encarregada da venda não cobrará qualquer comissão de venda à massa de insolvente, mas sim ao comprador”.
- Por contrato celebrado em 31/11/2018, o anterior AI contratou a recorrente para proceder à venda da fração autónoma C (…) ficando estipulado, na cláusula sexta do referido contrato, que a remuneração devida à leiloeira é da responsabilidade do adquirente/comprador dos bens vendidos, ficando a Massa Insolvente isenta de qualquer pagamento.
- Ficou também estipulado naquele contrato, na sua cláusula oitava, que o mesmo era celebrado pelo período de 12 meses, renovável, e que se a Massa Insolvente o resolvesse antes daquele período ficaria obrigada a pagar todos os custos resultantes da promoção, deslocações e demais despesas inerentes.
- Por carta de 05-09-2015, o Sr. Administrador da Insolvência, denunciou o contrato de prestação de serviços que a Massa Insolvente, representada pelo seu anterior administrador, havia celebrado com a Leiloport S.A. em 31-11-2018.
- Já após aquela denúncia, a Leiloport resolveu o contrato, por carta de 12-11-2019, alegando que o AI adotou “condutas que impediram e continuam a impedir que a Leiloport S.A. possa exercer as suas funções”, que descrimina, terminando a aludida missiva e declarar que «A breve trecho seguirá discriminativo de honorários e despesas incorridas nesse âmbito e devidas pelo trabalho executado, sem prejuízo das indemnizações contratualmente prevista a que haja lugar».
- Por requerimento de 23-06-2021, no apenso C, o AI informou que foi aceite a proposta de venda da meação na fração autónoma C, no valor de 72.600,00 euros, apresentada pela sociedade URBIMIRANDA PROPRIEDADES, UNIPESSOAL LDA., rececionada no âmbito do processo executivo 26974/11.8T2SNT, aceite pelo credor hipotecário, tendo em momento posterior a filha da insolvente, D…, exercido o direito de remição, sendo pago à massa insolvente o valor de 36.300,00 euros.
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IV-/ Dos fundamentos do recurso:
Em causa nos autos está um pedido da leiloeira, aqui recorrente, a solicitar à Massa Insolvente e ao AI o pagamento do valor de 8.496,69 euros, a título de remuneração e despesas, por força da sua alegada qualidade de encarregada da venda.
O AI pugnou nos autos pelo indeferimento daquele pagamento, argumentando que denunciou aquele contrato em prazo legal e que a recorrente, volvidos 4 anos, é que veio requer o aludido pagamento, para o que não tem qualquer fundamento legal.
Para apreciar a questão dos autos, estando nós perante um processo de insolvência, que reveste a natureza de execução universal (art.º 1.º n.º 1 do CIRE) e visa dar pagamento aos diferentes credores através de todo o património do devedor, cumpre então atentar que, realizada que seja a apreensão de todos os aludidos bens, nos termos consignados nos arts.º 149.º e 150.º do CIRE, ao administrador da insolvência incumbe então proceder à sua alienação, tendo em atenção o disposto no art.º 164.º do mesmo código.
Nesta matéria, importa ter também presente que, no Estatuto do Administrador Judicial (redação da Lei nº 9/2022 de 11/01), no seu art.º 2º, é consignado que «O administrador judicial é a pessoa incumbida (…) da gestão ou liquidação da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência, sendo competente para a realização de todos os atos que lhe são cometidos pelo presente estatuto e pela lei», dispondo o art.º 22.º da mesma lei, em consonância com o art.º 60.º do CIRE, que «O administrador judicial tem direito a ser remunerado pelo exercício das funções que lhe são cometidas, bem como ao reembolso das despesas necessárias ao cumprimento das mesmas».
No âmbito da temática aqui em causa, prevê ainda o art.º 12.º daquele estatuto, no seu n.º 11 que «Ao subcontratar qualquer entidade nos processos para os quais é nomeado, designadamente para efeitos de liquidação de ativos, o administrador judicial deve celebrar com o subcontratante um contrato escrito no qual, expressamente, se definam, entre outros, o objeto contratual e os deveres e direitos que assistem a ambas as partes», regulando depois, no que ao caso agora interessa, o n.º 3 do art.º 55.º do CIRE, que «3- O administrador da insolvência, no exercício das respetivas funções, pode ser coadjuvado sob a sua responsabilidade por advogados, técnicos ou outros auxiliares, remunerados ou não, incluindo o próprio devedor, mediante prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta dessa comissão.”
Ao nível da doutrina, e a propósito da mesma matéria, Carvalho Fernandes e João Labareda (CIRE anotado, 3ª edição, pág.331), dizem que «… o código leva a ideia da pessoalidade do cargo ao ponto de rejeitar o recurso ao auxílio de terceiros e do insolvente, com ou sem remuneração, quando não haja prévia autorização da comissão de credores», podendo ler-se, a título de mero exemplo, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05-11-2020, relatado por Joaquim Correia Gomes, no proc. 268/12.0T2AVR-J.P1, disponível na dgsi, que «I- O exercício das funções de A.I. tem uma natureza estritamente pessoal, não podendo a mesma ser delegada, mas apenas auxiliada e nestes casos mediante autorização prévia, da comissão de credores ou do tribunal, não existindo uma “carta-branca” para a requisição de serviços de auxiliares para a administração de insolvência (…)».
Em conclusão, nada obsta então a que o AI se socorra do auxilio de terceiros, para o coadjuvar nas suas funções, desde que, como resulta de forma expressa do n.º 3 do citado art.º 55º do CIRE, obtenha a prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta dessa comissão.
No caso dos autos, e antes de mais, cumpre anotar, em primeiro lugar, que a pretensão da requerente (agora recorrente) foi deduzida em 09-08-2024, por mero email não subscrito por mandatário, inserido nos autos de insolvência, onde o pedido é formulado, de forma indistinta, contra o AI e contra a massa insolvente (pedido: pelo requerido pagamento seja responsabilizado o Administrador de Insolvência, Dr. …., e a própria Massa Insolvente), o que, na verdade, não faz sentido, como se pode ler na decisão singular, proferida no proc. 32270/15.4T8LSB-F.L1-1, relatado por Amélia Sofia Ribeiro, em 14-05-2025, disponível na dgsi, que acompanhamos «…. ainda que no âmbito do objeto do processo de insolvência a massa insolvente seja representada pelo AI e atue através da atuação deste no exercício dos poderes-deveres que lhe são legalmente reconhecidos e impostos pela sua nomeação para o cargo, essa ‘confusão’ subjetiva cessa perante pedidos de responsabilização de um e/ou de outro por dívidas geradas pelos atos do primeiro praticados naquela qualidade, de AI. A lei não prevê a possibilidade da responsabilização solidária de ambos pelos atos praticados pelo AI nessa qualidade (cfr. art.º 513º do CC) pelo que, por princípio, o apuramento da responsabilidade (civil ou contratual) de um exclui a responsabilidade do outro».
Não obstante o pedido assim formulado, certo é, anota-se agora em segundo lugar, que a decisão recorrida, ainda que consignando que a pretensão formulada, sendo controvertida, não podia ter lugar em mero incidente enxertado em processo de insolvência, acabou por apreciar parte do requerimento feito, ali concluindo que a contratação da Leiloport, S.A. se apresenta absolutamente alheia à Massa Insolvente, não podendo ser responsabilizada pelo pagamento de quaisquer quantias nesse âmbito. O que se decide.
Donde, e na verdade, ainda que o pedido formulado devesse ter sido objeto de ação declarativa comum por apenso ao processo de insolvência, em face do pedido de condenação do AI e da massa insolvente com fundamento na atuação do AI nomeado nos autos (art.º 89.º, n.º 2 do CIRE), certo é que a decisão recorrida, não se pronunciando sobre o pedido formulado contra o AI, apreciou, contudo, o formulado contra a Massa Insolvente, que indeferiu.
Anota-se também, agora em terceiro e último lugar, que o recurso interposto versa apenas sobre essa concreta e única decisão, que, em conclusões recursivas, a Recorrente alega padecer de erro de julgamento, por alegadamente ser claro que o pagamento realizado deve ser imputado à massa insolvente e não ao seu administrador, enquanto mero representante, sendo devida aquela remuneração à luz do art.º 17.º do RCP (conclusões G e R).
Em conclusão, esqueceu-se a Recorrente que também havia dirigido tal pedido ao AI, invertendo agora tal posição em recurso, onde afirma apenas que o pagamento reclamado nos autos deve ser suportado pela massa insolvente.
E nesse enquadramento, desde já diremos, não tem qualquer razão.
Com efeito, pronunciando-se sobre o mérito do pedido de pagamento de honorários e despesas formulado contra a Massa Insolvente, a decisão recorrida concluiu que o mesmo não tem cobertura legal, em face do estatuído no acima convocado art.º 55.º n.º 3 do CIRE.
Inexistindo comissão de credores nomeada nos autos e inexistindo despacho judicial a consentir e autorizar a contratação da recorrente para a venda a que o AI estava obrigado, concluiu a decisão recorrida, e bem, diga-se, que não pode ser imputada à massa insolvente o pagamento das pretendidas quantias.
E não se diga que nos autos existiu uma espécie de consentimento tácito para aquela contratação - como parece pretender a recorrente, ao alegar, em sede de conclusões recursivas, que a sua atuação foi percecionada pelas partes intervenientes, que a isso não se opuseram (conclusão “P”) - pois que, tal como resulta do art.º 218.º do CC, o silêncio apenas vale como declaração negocial quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção, o que não é caso dos autos, fazendo o n.º 3 do convocado preceito legal expressa referência àquele consentimento (neste sentido, acórdão do STJ, proferido no proc. 690/13.4TYLSB-H.L1.S3, em 12-01-2022, relatado por Maria Olinda Garcia, assim sumariado «I- O n.º 3 do art.º 55.º do CIRE exige expressamente a prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta dessa comissão, para que o administrador da insolvência possa ser coadjuvado por técnicos ou outros auxiliares no exercício das suas funções. II- Se o administrador da insolvência contrata serviços de terceiros para promover a venda de um imóvel da massa insolvente (ou seja, para realizar uma tarefa que cabe tipicamente nas funções do administrador e por cujo exercício ele é remunerado), integrando os custos desses serviços nas contas a aprovar, verificar-se-á uma potencial duplicação de custos para a massa, o que justifica a exigência legal de obter o prévio consentimento da comissão de credores ou do juiz, para que seja aferida a necessidade ou conveniência da contratação desses terceiros, com a consequente concordância quanto ao pagamento dos respetivos custos. III - Se o administrador da insolvência se limita a informar nos autos que contratou os serviços de uma leiloeira e de uma imobiliária, esse comportamento não pode ser considerado como equivalente ao pedido de prévio consentimento, exigido pelo art.º 55.º, n.º 3, do CIRE. O facto de não ter existido uma imediata reação de qualquer interessado face a essa informação não pode ser valorado como uma concordância tácita com a prática de tais atos e com o consequente assumir dos respetivos custos pela massa insolvente»).
Donde, e a ser assim, não tendo sido colhido aquele consentimento prévio, não pode a Massa Insolvente ser responsabilizada pelo pagamento das pretendidas quantias, tanto mais que, nos autos, o AI que contratou a Recorrente, entretanto falecido, com ela acordou que qualquer pagamento seria por conta da compradora (como resulta do contrato escrito então celebrado), tendo o posterior AI nomeado expressamente denunciado, em prazo legal, aquele contrato, sem que dos autos resultasse até então qualquer diligência ou custo que a agora recorrente tivesse incorrido. Não deixando igualmente de se estranhar que, aquando da resolução do aludido contrato, não tivesse logo formalizado o pedido de honorários e despesas, que agora dirigiu aos autos, mais de 4 anos volvidos sobre aquela denúncia do AI.
Acresce que, do contrato outorgado, resultava apenas que se a Massa Insolvente o resolvesse antes do período nele fixado, ficaria obrigada a pagar todos os custos resultantes da promoção, deslocações e demais despesas inerentes. Não obstante, após aquela denúncia, a Recorrente optou por resolver o contrato, pretendendo agora, em simples requerimento dirigido aos autos da insolvência, obter o pagamento de a) Custos suportados com viatura em deslocações ao local dos bens apreendidos para venda, a 11.07.2019, no valor de €259,16 com IVA à taxa legal em vigor; b) Honorários da Encarregada de Venda, pela remuneração que é devida pela venda do bem os bens administrados ou vendidos, dando assim, cumprimento ao Artigo 17º /6 do RCP, pelos serviços prestados para o efeito, calculados sobre o valor anunciado para a venda, ou seja, € 89.500,00, ainda que, este valor pudesse ser superado pela venda caso o administrador de insolvência tivesse colaborado com a Encarregada de Venda e assim permitido a esta a boa conclusão do processo de venda como seria perspetivado, que se cifra a remuneração em €5.504,25 com IVA à taxa legal em vigor.
Não estando aqui em causa uma ação para apreciação de pedido de condenação da massa insolvente no pagamento de quantia monetária por força da invocada resolução do contrato celebrado, com alegada justa causa por força de incumprimento contratual (arts.º 432.º, 798.º e sgs., e 1154.º e sgs do CC), sempre dependente de instrução e prova, mas sim um simples requerimento de fixação de honorários e despesas à luz do art.º 17.º do RCP, o pedido da Recorrente sempre estaria votado ao fracasso.
Com efeito, estando nós perante um processo insolvencial, com normas próprias no que concerne a pagamentos e contratações, desde logo o aludido n.º 3 do art.º 55.º do CIRE, não tem aqui aplicação o normativo invocado pela Recorrente (art.º 17.º do RCP). Regula tal preceito legal, na parte que aos autos interessa, que «1- As entidades que intervenham nos processos ou que coadjuvem em quaisquer diligências, salvo os técnicos que assistam os advogados, têm direito às renumerações previstas no presente regulamento. (…) 2- A remuneração de peritos, tradutores, intérpretes, consultores técnicos e liquidatários, administradores e entidades encarregadas da venda extrajudicial em qualquer processo é efetuada nos termos do disposto no presente artigo e na tabela iv, que faz parte integrante do presente Regulamento (…) 6 - Os liquidatários, os administradores e as entidades encarregadas da venda extrajudicial recebem a quantia fixada pelo tribunal, até 5 % do valor da causa ou dos bens vendidos ou administrados, se este for inferior, e o estabelecido na tabela iv pelas deslocações que tenham de efetuar, se não lhes for disponibilizado transporte pelas partes ou pelo tribunal. (…)».
Acontece, porém, que, como vimos, a coadjuvação do administrador da insolvência por terceiros e a eventual aprovação das despesas que dela resulte como dívida da massa insolvente (art.º 51.º n.º 1 als. b) e c) do CIRE) exige, por princípio, a prévia concordância da comissão de credores ou, não existindo, do juiz da insolvência, dívidas que compete então ao AI pagar, à luz do art.º 172.º, também do CIRE. Não sendo cumprida a tramitação própria estabelecida no CIRE, pois como resulta dos autos, não há comissão de credores e não foi obtida a prévia concordância do juiz do processo, naturalmente que não compete depois ao tribunal pagar diretamente quaisquer quantias, sejam elas de honorários sejam elas de despesas, à luz daquele art.º 17.º, do RCP, como pretende a Recorrente (sobre toda esta temática e sentido, ver a fundamentação do recente Acórdão do TRL, de 27-05-2025, relatado por Elisabete Assunção, no proc. 501/21.7T8VFX-F.L1-1, que assim foi sumariado «1- Cabe ao administrador da insolvência exercer pessoalmente as competências do seu cargo carecendo de obter, para que possa ser coadjuvado por técnicos ou auxiliares no exercício dessas competências, remunerados ou não, a prévia concordância da comissão de credores, ou do juiz, na falta desta. 2- Essa autorização tem de ser expressa e não tácita. 3-Não tendo o administrador da insolvência obtido essa autorização nos autos, os custos decorrentes da prestação de tais serviços prestados por auxiliares só ao mesmo podem ser imputados. 4- Não está em causa a ineficácia dos autos praticados pelo administrador da insolvência, mas sim a responsabilização do mesmo»).
Nos autos, para além da particularidade de o administrador contratante ter falecido, certo é que a pretensão da Recorrente é unicamente dirigida contra a Massa Insolvente, como reitera em recurso, pelo que jamais o mesmo poderia vingar.
No que respeita a custas, mostrando-se paga a taxa de justiça devida pelo impulso processual do recurso, que não envolveu diligências geradoras de despesas, e não havendo lugar a custas de parte por não ter sido apresentada resposta às alegações de recurso, não são devidas custas na presente instância recursiva (arts.º 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do CPC).
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IV-/ Decisão:
Pelo exposto, acordam as juízas desta Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso de apelação mantendo, consequentemente, a decisão proferida.
Sem custas.
Registe e Notifique

Lisboa, 16/09/2025
Paula Cardoso
Renata Linhares de Castro
Elisabete Assunção