LIQUIDAÇÃO DO ACTIVO
ANULAÇÃO DA VENDA
DESPACHO DE ENCERRAMENTO
TRÂNSITO EM JULGADO
Sumário

Sumário:
1- A decisão de encerramento do processo de insolvência, a que alude o art.º 230.º do CIRE, que não seja impugnada, à luz da al a) do n.º 6 do art.º 14.º do CIRE, transita em julgado, desencadeando depois os efeitos previstos no art.º 233.º do mesmo diploma legal.
2- Por ser assim, com tal decisão, o poder jurisdicional do juiz, quanto à matéria da causa, fica imediatamente esgotado, tal como se infere do art.º 613.º, n.º 1 do CPC.
3- Razão pela qual, não regulando o CIRE qualquer hipótese de renovação da instância insolvencial após o encerramento do respetivo processo, excecionada a situação da liquidação superveniente prevista no art.º 241.º A do CIRE, que não está em causa nos autos, qualquer pedido de anulação de venda operada em incidente de liquidação daquele processo de insolvência, não poderá já ali ser apreciado.
4- E neste enquadramento, tendo transitado em julgado a decisão que declarou encerrado o processo de insolvência, a tutela de quaisquer direitos dos alegados pela recorrente não se poderão alcançar, após aquela decisão, por um pedido de anulação da venda realizada nos autos, que não se afigura assim a via legal correta para a recorrente obter qualquer reparação dos danos que a conduta da insolvente porventura lhe pudesse ter causado.

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I-/ Relatório:
1. Nos presentes autos de insolvência de AA…, declarada por decisão proferida em 08/11/2012, foi determinado, por despacho de 17/11/2015, o encerramento do processo, nos termos do artigo 230.º n.º 1 al. a) do CIRE.
2. Por requerimento dirigido aos autos em 17/03/2020, a Sociedade TPM - Transportes … & …, Lda., veio arguir a nulidade da sua falta de citação para os presentes autos, alegando que apenas em 28/03/2019, na qualidade de exequente no âmbito dos autos de Processo de Execução nº 1812/11.5TBAMT (instaurados em 28/10/2011), teve conhecimento, através de um requerimento que a insolvente, na qualidade de executada, ali apresentou, que a mesma estava insolvente nos presentes autos. Alega que só naquela data teve conhecimento destes autos e de que neles não havia sido relacionada como credora, apesar do elevado valor do seu crédito, vendo-se assim impedida de o reclamar, quer à luz do art.º 128.º do CIRE, quer do 146.º do mesmo código. Dada a sua posição de (maior) credora da aqui insolvente, tal implicava que tivesse que ser citada (pessoalmente), nos presentes autos, da sentença de declaração de insolvência (com cópia da petição inicial), nos termos do artigo 37.º, nº 3 do CIRE, citação essa que, porém, nunca aconteceu, tendo sido completamente omitida. Nulidade que, nos termos daquele artigo 187.º do CPC, leva, no caso, à anulação de tudo o que se processou depois da petição inicial de declaração de insolvência ou, pelo menos, após o pedido de exoneração do passivo restante, uma vez que, como já se viu, o respetivo período da cessão ainda está a decorrer, pedido que deve ser recusado.
3. Cumprido o contraditório, por decisão datada de 25/05/2020, não impugnada, foi a falta de citação pessoal da requerente considerada sanada, por força das publicações legais que tiveram lugar no processo, assim se indeferindo a nulidade invocada.
4. Em requerimento de 15/02/2021, a sociedade TPM - Transportes … & …, Lda., veio requerer que a exoneração do passivo restante da insolvente/devedora fosse recusada, pelo menos quanto ao crédito da requerente, com as legais consequências.
5. Por despacho de 23/04/2021, antevendo-se a possibilidade de se recusar a exoneração do passivo restante, por abuso de direito, foi ordenada a notificação da insolvente, fiduciário e credores para, querendo, no prazo de 10 dias, se pronunciarem.
6. Após o que, por decisão de 31/05/2021, não impugnada, foi recusada a exoneração do passivo restante à insolvente, ali se consignando ser manifesto que a insolvente omitiu, neste processo de insolvência, a existência do seu maior credor, a sociedade TPM – Transportes … & …, Lda., de forma deliberada e consciente, prosseguindo os autos apenas com o requerente do pedido de insolvência e os familiares da insolvente, aos quais vieram a ser efetuados os pagamentos no âmbito da liquidação, tendo sido arredado do mesmo o maior credor da insolvente. Apelando ao estatuído no art.º 334.º do Código Civil, por considerar que a insolvente pretendeu, apenas e tão só, através do processo de insolvência e procedimento de exoneração, obter a exoneração da sua dívida para com a sociedade TPM e a extinção do processo de execução que corria contra si, sem o conhecimento e intervenção daquela credora, impedindo-a de tomar conhecimento do processo de insolvência e de nele intervir, exercendo os seus direitos, concluiu que a insolvente excedeu manifestamente os limites impostos pela boa-fé, fazendo uma utilização abusiva do presente processo de insolvência, omitindo factos relevantes e violando o disposto no art.º 30.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, de forma a obter a concessão da exoneração do passivo restante, libertando-se automaticamente da sua maior dívida, razão pela qual se decidiu não conceder a exoneração do passivo restante à insolvente.
7. Em 18 de janeiro de 2022, foi assinado o visto em correição.
8. No apenso de Liquidação relativa aos presentes autos (apenso D), foi vendido em 13/12/2013 - Ata de Adjudicação definitiva de 17/12/2013 - na modalidade de Carta Fechada, a AA… o «DIREITO ou quinhão hereditário que a insolvente detém na herança aberta por óbito de BB… e de CC…, onde se encontram inseridos os IMÓVEIS abaixo indicados apreendido(s) e registado(s) a favor da Massa Insolvente acima identificada para cuja descrição predial e inscrição matricial me remeto e constante das fichas prediais e matrizes abaixo identificadas, e que aqui dou por reproduzidas para todos os legais efeitos, consignando que: - Valor do preço: total de 6.400€, tendo pago a totalidade para a conta da massa insolvente.».
9. Por despacho proferido em 23/02/2015, foi encerrada a liquidação, sendo assinado o visto em correição em 14/03/2017.
10. Por requerimento de 19/08/2024, dirigido a estes autos de insolvência, a Sociedade TPM - Transportes … & …, Lda., veio requerer que fosse proferido despacho de anulação da venda referida em 8., com o cancelamento dos respetivos registos, e anulação das eventuais vendas, partilhas ou outros atos subsequentes e o cancelamento dos respetivos registos, com a restituição, ao património da insolvente AA, do seu quinhão nos dois prédios ali identificados, bem como com a manutenção da penhora deste quinhão, com efeitos desde a data em que já se encontrava registada.
Para tanto, alegou, em síntese, que quando se iniciou a presente insolvência, aquele direito/quinhão, já estava penhorado no âmbito do processo executivo n.º 1812/11.5TBAMT, que corria termos na Comarca de Amarante, local de residência da insolvente e onde a mesma nunca deixara de residir, reiterando que a interposição do processo de insolvência no Tribunal do Funchal não passou de uma manobra, que, em conluio com o Sr.º Administrador da Insolvência, tinha como objetivo esconder o processo do requerente, que, caso tivesse tido conhecimento do mesmo, teria sido o maior credor a reclamar créditos. A extinção daquela execução veio a ser determinada em resultado do encerramento da presente insolvência, despacho que, por força do recurso então interposto, veio a ser revogado e alterado por outro que determinou a suspensão daquela execução, que veio depois a prosseguir por ter sido indeferida a exoneração do passivo restante nos presentes autos. A conduta manifestamente ilícita da insolvente, com um fim notoriamente contrário à lei (cf. artigo 281º do Código Civil), configura um manifesto abuso do direito (cf. artigo 334º do Código Civil) e pode até configurar um uso anormal do processo, previsto no artigo 612º do Código de Processo Civil (CPC).
11. E em 10/10/2024, em novo requerimento, reiterou aquele pedido de anulação, que afirma poder também ser sustentado na invalidade da venda prevista no artigo 839.º, n.º 1, al. b) - com referência aos artigos 851.º, n.º 1 e 696.º, als. e) - e c) - com referência ao artigo 195.º - tudo preceitos do CPC, aplicáveis, com as devidas adaptações, ex vi artigo 17.º, n.º 1 do CIRE.
12. Notificados para se pronunciarem, o AI nada disse e o MP pronunciou-se, no sentido de entender que a questão assim suscitada não poderá ser resolvida por via deste processo de insolvência, já findo, tendo igualmente o apenso da liquidação sido encerrado, por despacho proferido em 23/02/2015, sendo que a sociedade requerente não é, nem nunca foi, parte neste processo de insolvência e que, como potencial credora, à luz dos ditames legais, sempre teria de se considerar como citada para reclamar créditos, ao abrigo da citação edital efetuada, nos termos do artigo 37.º do CIRE, não olvidando que, à própria sentença de declaração insolvência é dada a necessária publicidade e registo, conforme obriga o artigo n.º 38.º do CIRE, nomeadamente nas Conservatórias do Registo Civil, Comercial e Predial. Tendo o processo de insolvência e seus apensos (onde se inclui o da liquidação), já transitado em julgado, não podem os interesses da requerente ser tutelados no âmbito destes autos, por manifesta falta de fundamento legal, não restando à mesma outra alternativa que não seja a de tentar obter a condenação da insolvente no âmbito de uma ação de processo comum, por via da qual tente responsabilizar a mesma pelos danos causados em virtude da sua atuação, razão pela qual promoveu o indeferimento do pedido da requerente.
13. Após, foi proferido despacho, em 28/03/2025, que, por considerar não estarem preenchidos os pressupostos elencados no artigo 838.º do Código de Processo Civil, e bem assim os pressupostos enunciados no artigo 839.º do mesmo código, ambos aplicáveis ex vi do artigo 17.º, n.º 1, do CIRE, indeferiu a pretensão da Requerente, por julgar não ter a mesmo fundamento legal para o formulado pedido de anulação.
14. Não se conformando com tal decisão, dela apelou a Requerente, formulando, a final, as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
«1. Vem o presente recurso interposto contra o despacho com a Refª 56908727, proferido em 28-03-2025, que decidiu, no que se refere ao quinhão hereditário da aqui insolvente, AA… - na herança indivisa aberta por óbito dos seus pais, BB e CC - que foi vendido no âmbito dos presentes autos, que a venda do mesmo não é anulável, por ser convicção da recorrente, salvo o devido respeito, que aquele despacho, para além de ser nulo, incorre numa errada decisão de direito.
2. Com efeito, o despacho recorrido padece, desde logo, de nulidade, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, al. d) do CPC - aplicável aos despachos ex vi do artigo 613º, nº 3 do mesmo Código - por omissão de pronúncia.
3. Isto porque, no requerimento que apresentou em 19/08/2024 (Refª 5900021) - sobre o qual incidiu o despacho recorrido - a ora recorrente alegou uma vasta factualidade que conduz a uma conduta da aqui insolvente que, para além de se considerar manifestamente ilícita, com um fim notoriamente contrário à lei (cf. artigo 281º do Código Civil), pode até configurar um uso anormal do processo, previsto no artigo 612º do CPC, por poder entender-se que foi aqui criada uma aparência de insolvência, com o único intuito de obter efeitos prejudiciais relativamente à requerente, objetivo anormal e proibido a que sempre se deverá obstar.
4. Mas configurando, sobretudo, tal conduta um manifesto abuso do direito, à luz do disposto no artigo 334º do Código Civil, sendo, além disso, evidente que o ordenamento jurídico - à luz, pelo menos, dos princípios do contraditório e da igualdade das partes (cf. artigos 3º e 4º do CPC), e até do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20º da Constituição, nomeadamente quanto ao direito à decisão da causa mediante processo equitativo - não pode impor à recorrente os custos de uma insolvência (e de uma venda de um quinhão realizada no âmbito da mesma), em que ela, por culpa da insolvente, não pôde intervir, oportunamente e desde o início, em defesa do seu crédito, nomeadamente, no caso, para garantir a manutenção e/ou defesa da penhora daquele quinhão.
5. Aquelas questões são aqui extremamente relevantes, porquanto, desde logo, foi com base nas mesmas que se recusou a exoneração do passivo restante nestes autos, por se ter considerado e concluído, respetivamente, o seguinte:
a) Que “os elementos carreados permitem concluir que a conduta adotada pela insolvente nestes autos traduz um excesso manifesto dos limites impostos pela boa-fé e pelo fim social ou económico que rege o instituto da exoneração do passivo restante, o que torna ilegítimo o seu exercício, por abusivo, nos termos do art.º 334.º do Código Civil” - cf. despacho proferido em 23-04-2021 (Refª 49857373);
b) Que “a insolvente, com a conduta adotada excedeu manifestamente os limites impostos pela boa-fé, fazendo uma utilização abusiva do presente processo de insolvência, omitindo factos relevantes e violando o disposto no art.º 30.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, de forma a obter a concessão da exoneração do passivo restante, libertando-se automaticamente da sua maior dívida. Existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem. [cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo n.º 2889/2008-6, de 24/04/2008, disponível em www.dgsi.pt] É o que sucede no presente caso” - cf. despacho proferido em 31-05-2021 (Refª 50064012).
6. Mas as questões enunciadas são também muito relevantes porque foi com base nas mesmas que a recorrente, no referido requerimento que apresentou em 19/08/2024 (sobre o qual incidiu o despacho recorrido), pediu a anulação da venda do quinhão hereditário da insolvente aqui em apreço, servindo, pois, tais questões de fundamento e sustentação àquele pedido de anulação e, consequentemente, de causa extintiva do direito àquela venda, pelo que não podiam deixar de ser relevantes para uma boa e justa decisão do caso em apreço, merecendo, por isso, indubitavelmente, a apreciação do Tribunal a quo.
7. Porém, o certo é que o despacho recorrido esqueceu totalmente as referidas questões, não se tendo pronunciado sobre as mesmas, tendo, na verdade, o Tribunal a quo apreciado apenas a invalidade da venda do quinhão em causa à luz dos artigos 838º e 839º do CPC (aplicáveis ex vi do artigo 17º, nº 1 do CIRE), quando tal invalidade (quanto àquele artigo 839º) apenas foi alegada pela ora recorrente no requerimento que apresentou em 10/10/2024 (Refª 5970091), sobre o qual, porém, o despacho recorrido - pelo menos em face do que decorre logo do início do mesmo (onde se indica apenas o referido requerimento datado de 19 de agosto de 2024) - parece nem sequer ter incidido.
8. Destarte, sem necessidade de mais amplas considerações, é manifesto que, no caso, a Meritíssima Juiz a quo deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, o que implica que o despacho recorrido seja nulo, a luz do disposto no citado artigo 615º, nº 1, al. d) do CPC e em resultado da violação do estabelecido pelo nº 2, do artigo 608º do mesmo Código.
9. Sem prescindir, o certo é que o despacho recorrido, ao decidir como decidiu, incorreu ainda numa errada decisão de direito, porquanto a venda do quinhão hereditário da insolvente aqui em apreço devia ter sido anulada e dada sem qualquer efeito, até para se pôr cobro a uma situação tremenda e notoriamente injusta - senão, vejamos:
10. Como decorre dos autos, só em 05-08-2024 - através de notificação com esta data, enviada, via Citius, pela Agente de Execução designada no Processo de Execução nº 1812/11.5TBAMT (que corre termos pelo Juízo de Execução de Lousada - Juiz 1, em que a ora recorrente é exequente e a aqui insolvente é executada) - é que a recorrente teve conhecimento de que o quinhão hereditário daquela insolvente havia sido vendido, no âmbito dos presentes autos, com data de registo de 18/12/2013, por “Arrematação por propostas em carta fechada”, a MM…, incidindo sobre os seguintes prédios:
a) Prédio rústico denominado “Q…”, sito em Carvalhal, freguesia de Vila Caiz, concelho de Amarante, descrito na Conservatória do Registo Predial de Amarante sob o nº … e inscrito na matriz sob o artigo …;
b) Prédio urbano sito em Carvalhal, freguesia de Vila Caiz, concelho e Amarante, descrito na Conservatória do Registo Predial de Amarante sob o nº … e inscrito na matriz sob o artigo … - cf. Docs. 1 a 3 juntos com o já referido requerimento que a recorrente apresentou nestes autos em 19/08/2024 (Refª 5900021).
11. Após ter conhecimento daquela venda, a recorrente veio logo (no prazo de 10 dias), através do seu já referido requerimento de 19/08/2024, requerer a anulação da mesma, com as legais consequências, vindo ainda posteriormente, após ter conhecimento e confirmação, por parte do Tribunal a quo, de que o quinhão em causa havia sido efetivamente vendido no âmbito dos presentes autos, reiterar o teor daquele requerimento e arguir a invalidade (nulidade) da venda - cf. o já referido requerimento que a recorrente apresentou em 10/10/2024 (Refª 5970091).
12. Ora, sucede, desde logo - como decorre daqueles dois requerimentos (e seus documentos), bem como dos outros requerimentos (e seus documentos) que a recorrente foi apresentando nestes autos, e ainda de alguns despachos proferidos nos mesmos (nomeadamente daquilo que ficou provado no despacho de recusa da exoneração do passivo restante proferido em 31-05-2021) - que, na data da referida venda do quinhão hereditário da insolvente (18/12/2013), já existia uma penhora sobre este quinhão, com data de registo de 21/12/2011, que havia sido realizada na citada Execução nº 1812/11.5TBAMT - cf.: requerimentos (e seus documentos) que a recorrente apresentou em 17/03/2020 (Refª 3661042), em 30/10/2020 (Refª 3915438) e em 15/02/2021 (Refª 4059600); e os já referidos despachos proferidos em 23-04-2021 (Refª 49857373) e em 31-05-2021 (Refª 50064012), respeitantes à matéria da exoneração do passivo restante (que veio a ser recusada por este último despacho), mas que têm também relevância para a questão aqui em apreço.
13. Mais sucede, como resulta também dos citados requerimentos/documentos/despachos, que só em 28-03-2019 é que a recorrente, na qualidade de exequente, teve conhecimento, pela primeira vez – através de um requerimento que a aqui insolvente, na qualidade de executada, apresentou no referido Processo de Execução nº 1812/11.5TBAMT - que esta estava (novamente) insolvente nos presentes autos - cf. Doc. 1 junto com o seu referido requerimento de 17/03/2020.
14. E ainda que este segundo processo de insolvência correu termos no Funchal, porque a insolvente indicou um endereço em Caniço, Santa Cruz, Madeira, quando a insolvente nunca deixou de residir no Continente (concretamente em Vila Caiz, Amarante), continuando, no decurso da insolvência, a ter aqui o seu domicílio fiscal e a ser para aqui notificada no âmbito daquela execução - cf.: Ofício do Serviço de Finanças de Santa Cruz para o Serviço de Finanças de Amarante de fls., datado de 16-11-2012, junto com o seu referido requerimento de 15/02/2021; Doc. 5 junto com o seu referido requerimento de 17/03/2020; Email da Conservatória dos Registos Centrais (Cartão de Cidadão - Apoio) e respetivos anexos, com data de 29-01-2021 e Refª 4038482, juntos com o seu referido requerimento de 15/02/2021.
15. Além disso, no que aqui importa, decorre também dos citados requerimentos/documentos designadamente o seguinte:
a) Que a presente insolvência foi proposta em 18/07/2012 (cf. petição da insolvência de fls.), portanto, após a data da instauração da referida Execução nº 1812/11.5TBAMT (instaurada em 28/10/2011, com o valor de 220.784,24 € - cf. Doc. 2 junto com o seu requerimento de 17/03/2020), ou seja, numa altura em que a aqui insolvente, ali executada, estava bem ciente da dívida que mantinha para com a recorrente;
b) Que, naquela data da propositura da insolvência, a aqui insolvente, enquanto executada, já tinha conhecimento da penhora do seu quinhão hereditário realizada naquela Execução nº 1812/11.5TBAMT, a qual lhe havia sido notificada com data de 18/06/2012, mas que já tinha sido levada a auto em 15/06/2012 e registada muito antes, quanto aos prédios abrangidos, em 21/12/2011 - cf. Doc. 4 junto com o seu requerimento de 17/03/2020;
c) Que o anúncio de venda do quinhão hereditário aqui em causa foi apenas publicado no “Jornal da Madeira”, quando os prédios sobre os quais o mesmo incidia se situam no Continente, em Vila Caiz, Amarante - cf. requerimento apresentado pelo Administrador da Insolvência, no apenso de liquidação (Apenso D), em 24/10/2013 (Refª 863501);
d) Que a referida adquirente daquele quinhão hereditário (MM…) é irmã da insolvente.
16. Ora, perante o que ficou exposto e o demais circunstancialismo que decorre dos autos, verifica-se que a insolvente - para além de fazer correr o presente processo de insolvência por um Tribunal da Madeira (para o esconder da recorrente, pois sempre residiu no Continente), não relacionou, nem identificou, no mesmo, como lhe competia, quer a recorrente como a sua maior credora, quer a referida Execução nº 1812/11.5TBAMT (a qual, como se viu, já estava pendente contra a insolvente e era do seu conhecimento antes do início desta insolvência), quer, em consequência, o montante do crédito exequendo e a existência, naquela execução, de uma penhora do seu quinhão hereditário.
17. Ou seja, a insolvente omitiu e ocultou, neste processo de insolvência, a (enorme) dívida que, como bem sabia, já mantinha anteriormente para com a recorrente, a qual seria aqui a sua maior credora, posição que levava, desde logo, a que a recorrente tivesse que ser citada (pessoalmente) da sentença de declaração de insolvência (com cópia da petição inicial), nos termos do artigo 37º, nº 3, in fine, do CIRE (citação essa que, devido àquela omissão/ocultação, nunca aconteceu), pelo que a insolvente violou, desde logo, de forma consciente e deliberada, quer os deveres gerais de cooperação e de atuação com boa fé processual, quer os deveres de informação e colaboração que resultam do CIRE (cf., nomeadamente, artigo 29º, nº 2, com referência ao artigo 24º, nº 1 deste Código).
18. Com aquela sua conduta (culposa), a insolvente impediu a recorrente de tomar conhecimento, desde o início, da existência deste processo de insolvência, de se constituir como (maior) credora no mesmo e de nele intervir para exercer todos os direitos que lhe assistiam nesta qualidade de (maior) credora, desde logo, o direito de reclamar o seu crédito, que ela ficou impossibilitada de exercer, designadamente por falta de prazo (quer nos termos do artigo 128º do CIRE, quer através da ação ulterior a que aludem os artigos 146º e ss. do mesmo Código).
19. Impedindo ainda a recorrente de exercer os direitos de requerer/participar/intervir nomeadamente na assembleia de credores e no incidente de qualificação da insolvência, o direito de se pronunciar sobre o pedido de exoneração do passivo restante antes do despacho inicial e, na sequência daquilo de que, só em 05-08-2024, teve conhecimento, o direito de se pronunciar sobre a venda, de obstar à mesma ou até de requerer a adjudicação, do quinhão hereditário da insolvente aqui em apreço.
20. Com tal conduta de omissão/ocultação deliberadas, visou seguramente a insolvente obter, de forma ilegítima, a exoneração da dívida que mantinha (e mantém) para com a recorrente, a extinção da referida Execução nº 1812/11.5TBAMT- (e do respetivo crédito exequendo) - A extinção desta execução veio efetivamente a ser determinada em resultado do encerramento da presente insolvência, por despacho proferido naquela execução em 27-09-2019 - cf. Doc. 9 junto com o seu referido requerimento de 17/03/2020 - só não se tendo tornado definitiva porque a ora recorrente interpôs recurso daquele despacho (na parte em que determinou a extinção da execução quanto à aqui insolvente, recurso esse que obteve provimento - cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto junto com o seu referido requerimento de 15/02/2021 - e o consequente cancelamento da penhora do seu quinhão hereditário - penhora esta que, como ela bem sabia, já havia sido efetuada naquela execução, antes do início da presente insolvência - bem como a venda de tal quinhão (a uma irmã), a fim de o libertar da penhora.
21. Assim, pelo exposto, é manifesto que a insolvente agiu, nos presentes autos, com o propósito, consciente e deliberado, de se libertar, definitiva e ilegitimamente, da sua dívida para com a recorrente, em claro (e efetivo) prejuízo desta e visando frustrar totalmente a satisfação do seu crédito (Razão pela qual a requerente até apresentou uma denúncia criminal contra a insolvente (a qual deu origem ao Inquérito com o nº 1332/19.0T9FNC, que correu termos pela Procuradoria da República da Comarca da Madeira - Funchal - DIAP - 2ª Secção, não tendo, porém, obtido êxito, pois a insolvente acabou por não ser pronunciada, após a recorrente ter requerido a abertura da instrução em face do arquivamento do inquérito), conduta esta que, para além de se considerar manifestamente ilícita, com um fim notoriamente contrário à lei (cf. artigo 281º do Código Civil), configura um manifesto abuso do direito (cf. artigo 334º do Código Civil) e pode até configurar um uso anormal do processo, previsto no artigo 612º do CPC, por poder entender-se que foi aqui criada uma aparência de insolvência, com o único intuito de obter efeitos prejudiciais relativamente à recorrente, objetivo anormal e proibido a que sempre se deverá obstar.
22. Sendo, ademais, evidente que o ordenamento jurídico - à luz, pelo menos, dos princípios do contraditório e da igualdade das partes (cf. artigos 3º e 4º do CPC), e até do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20º da Constituição, nomeadamente quanto ao direito à decisão da causa mediante processo equitativo - não pode impor à recorrente os custos de uma insolvência (e de uma venda de um quinhão realizada no âmbito da mesma), em que ela, por culpa da insolvente, não pôde intervir, oportunamente e desde o início, em defesa do seu crédito.
23. De resto, como já se referiu, a descrita conduta da insolvente levou, inclusive, à recusa da exoneração do passivo restante nestes autos, por se ter considerado que, com tal conduta, a insolvente incorreu em abuso do direito (artigo 334º do Código Civil) - pelos motivos já acima expressos nos referidos despachos de 23-04-2021 e 31-05-2021 - tendo-se ainda consignado, a este propósito, noutro processo relacionado com este, o seguinte: “Da factualidade apurada resulta, ainda e não menos grave, que o ora insolvente e a sua ex-cônjuge atuaram em conluio, delineando plano em que ambos estão mancomunados no propósito de se libertarem, definitiva e ilegitimamente, da sua dívida para com o credor TPM, em claro prejuízo desta. Repare-se que nada fora dito sobre o processo de insolvência da ex-cônjuge até à penhora de conta bancaria da ex-cônjuge em 2019. Houve familiares próximos de ambos (pai e irmãos) que foram credores na referida insolvência nº 1179/12.4TBSCR” - cf. Sentença junta com o seu referido requerimento de 30/10/2020 - pela qual foi indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo ex-marido da insolvente (J…), no âmbito do seu (também segundo) processo de insolvência - a qual se considera também relevante para a apreciação desta questão, em virtude, designadamente, dos factos (dados como provados) que constam dos pontos 21 a 34 da mesma (na parte relativa ao pedido de exoneração do passivo) e das ilações deles tiradas.
24. Acresce que o Administrador de Insolvência (e também fiduciário nos presentes autos) está, desde o início, a par da existência e do montante (inicial) do crédito da ora recorrente sobre a aqui insolvente, pois foi ele, enquanto Advogado (na altura com domicílio profissional no Continente, em Marco de Canaveses), o mandatário (inicial) da recorrente na (primeira) execução que esta instaurou contra a insolvente e o seu (então) marido, para cobrança da dívida que esteve na génese daquele crédito [Processo de Execução nº 60/2002, que correu termos pelo (extinto) 3º Juízo do Tribunal Judicial de Amarante] - cf. Doc. 11 junto com o seu requerimento de 17/03/2020.
25. Assim, perante tudo o que ficou exposto, é patente, em todo este percurso e ao longo do tempo, uma conduta deliberada da aqui insolvente no sentido de eximir-se ilegitimamente às suas responsabilidades e deveres para com a ora recorrente, em prejuízo desta - designadamente, no que aqui importa, pela venda, a uma irmã da insolvente, de um quinhão hereditário (da insolvente) que estava penhorado para garantir o pagamento do crédito exequendo da recorrente - tudo levando a concluir que a presente insolvência (apresentada na Madeira, com a ocultação deliberada do crédito da recorrente, com um pedido de exoneração do passivo restante e com a venda, a uma irmã da insolvente, de um quinhão hereditário penhorado) constituiu, no mínimo, uma manifesta “esperteza”, traduzida numa tentativa habilidosa de a insolvente se libertar, definitiva e ilegitimamente, da sua (enorme) dívida para com a recorrente.
26. Tal conduta da insolvente, além do mais, contraria ainda os princípios da boa fé, da retidão de conduta e do comportamento pautado pela licitude, honestidade e transparência, no que respeita às responsabilidades e deveres associados ao processo de insolvência, os quais são imprescindíveis ao funcionamento do princípio do fresh start subjacente a este processo, pelo que, no caso, é manifesto que a insolvente não merece beneficiar da proteção e da oportunidade proporcionadas pelo regime da insolvência, pois seria desvirtuar completamente o espírito e o fim da lei conceder à insolvente a possibilidade, no que aqui importa, de vender (a uma sua irmã) um quinhão já penhorado numa execução (na qual, ademais, não foi penhorado qualquer outro bem de valor significativo), em prejuízo e com uma perda avultada para a recorrente.
27. Destarte, por tudo, é manifestamente de considerar que a venda do quinhão hereditário da insolvente aqui em apreço deve ser anulada e dada sem qualquer efeito, quer à luz dos artigos 281º e 334º do Código Civil - e até do artigo 612º do CPC - quer no respeito pelos princípios do contraditório e da igualdade das partes (cf. artigos 3º e 4º do CPC), pelo princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva - consagrado no artigo 20º da Constituição, nomeadamente quanto ao direito à decisão da causa mediante processo equitativo - e pelos princípios da boa fé, retidão e licitude de conduta, honestidade e transparência, e deveres de informação e colaboração, subjacentes ao processo de insolvência (cf., nomeadamente, quanto àqueles deveres, artigo 29º, nº 2, com referência ao artigo 24º, nº 1, do CIRE), pelo que o despacho recorrido, ao decidir como decidiu, violou aqueles preceitos e desrespeitou aqueles princípios/deveres.
28. Por outro lado, o certo é que, contrariamente ao que se decidiu no despacho recorrido, a venda do quinhão hereditário em causa é também anulável, devendo ficar sem efeito, com fundamento na invalidade da venda prevista no artigo 839º, nº 1, al. b) [com referência aos artigos 851º, nº 1 e 696º, al. e)] e al. c) [com referência ao artigo 195º], tudo preceitos do CPC, aqui aplicáveis, com as devidas adaptações, ex vi do artigo 17º, nº 1 do CIRE.
29. Isto porque, conforme já ficou exposto e decorre dos autos - designadamente dos requerimentos/documentos já acima referidos - aquela venda, por má fé e culpa exclusiva da aqui insolvente, ocorreu, notória e totalmente, à revelia da ora recorrente, com uma completa falta de citação desta, quando, ao invés, se impunha claramente, no caso, a intervenção e a citação da recorrente para poder defender o seu (avultado) crédito e respetiva garantia (penhora do quinhão da insolvente), com base, desde logo, no já citado artigo 37º, nº 3 do CIRE - em virtude de a recorrente ser, de longe, a maior credora da insolvente - mas à luz também dos já referidos princípios e deveres que devem presidir ao processo de insolvência.
30. Em suma, no caso, contrariamente ao que se decidiu, encontram-se preenchidos os pressupostos enunciados no citado artigo 839º, nº 1, al. b) [com referência aos artigos 851º, nº 1 e 696º, al. e)] e al. c) [com referência ao artigo 195º], todos do CPC, considerando-se, por isso, ressalvando todo o devido respeito, que o despacho recorrido, ao decidir como decidiu, violou também o estabelecido por estas normas.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser o despacho recorrido declarado nulo, com as legais consequências, ou ser revogado e substituído por outro que determine que a venda do quinhão hereditário em apreço seja anulada e fique sem efeito, também com as legais consequências, por só assim se fazer SÃ JUSTIÇA».
15. Em contra-alegações, o MP pugnou pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida, defendendo, contudo, e como questão prévia, a extemporaneidade do pedido de anulação de venda, que inutilizaria o conhecimento do mérito de tal pedido.
16. Por despacho de admissão de recurso, a Sra. Juíza a quo logo se pronunciou sobre a nulidade de sentença invocada, que considerou inexistir, motivando a sua decisão no facto de considerar que os fundamentos invocados pela Recorrente - sobre (i) o uso anormal e (ii) abusivo do processo de insolvência - não terem a virtualidade de por em causa nem a sentença transitada em julgado, nem a validade do processo de insolvência, nem a venda dos bens concretizada no processo.
17. Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, por despacho da Relatora, foi ordenada a notificação da recorrente para tomar posição sobre a alegada extemporaneidade do pedido de anulação de venda.
18. Acatando o convite, a recorrente endereçou aos autos um longo requerimento, articulado em 37 pontos, reproduzindo praticamente e novamente as suas também longas conclusões de recurso, onde, e no que respeita ao cumprimento da notificação que lhe foi feita, pugnou pela tempestividade do aludido pedido de anulação, argumentando que só em 05-08-2024 tomou conhecimento da venda cuja anulação pediu em requerimento de 19/08/2024, pelo que tal pedido jamais poderá ser julgado extemporâneo, dado que, por um lado, o mesmo assentou, no essencial, no instituto do abuso do direito, de conhecimento oficioso, e, por outro lado, que àquela data, de 19/08/2024, não estava ainda ultrapassado o prazo para requerer a “invalidade” da venda, ainda que, por hipótese, se admitisse que este prazo fosse de 10 dias.
19. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
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II-/ Questões a decidir:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente, tal como decorre dos arts.º 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam assim à apreciação deste Tribunal consistem em:
(i) Aferir da nulidade da decisão proferida por vício de omissão de pronúncia, ferindo com a consequente nulidade o despacho proferido, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC (pontos 2 a 8 das conclusões recursivas);
(ii) Aferir da errada decisão de direito, impondo-se a anulação da venda do quinhão hereditário da insolvente, quer à luz dos artigos 281º e 334º do Código Civil e 612º do CPC - quer à luz dos artigos 839º, nº 1, al. b) [com referência aos artigos 851º, nº 1 e 696º, al. e)] e al. c) [com referência ao artigo 195º], tudo preceitos do CPC, aplicáveis, com as devidas adaptações, ex vi do artigo 17º, nº 1 do CIRE (pontos 9 a 30 das conclusões recursivas).
Não obstante, e previamente à apreciação das questões em referência, cumpre apreciar a invocada extemporaneidade do pedido de anulação de venda, suscitado pelo MP em resposta às alegações da Recorrente, para que este tribunal de recurso cumpriu já o contraditório, dando possibilidade à recorrente de sobre tal questão tomar posição, pronunciando-se, o que a mesma fez.
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III-/ Fundamentação de facto:
Atentos os elementos que constam dos autos encontram-se provados, com interesse para a decisão a proferir, os factos que constam do relatório que antecede e cujo teor se dá por reproduzido.
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IV-/ Enquadramento jurídico:
(i) Questão prévia:
Da invocada extemporaneidade do pedido de anulação de venda:
Como vimos, em causa nos autos está um pedido de anulação da venda operada em sede de incidente de liquidação, processado por apenso ao processo de insolvência de AA…
Em apelação, sustenta a recorrente que a decisão proferida nos autos, que indeferiu a anulação requerida, é nula, por vício de omissão pronúncia, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, enfermado ainda a mesma decisão de uma errada apreciação de direito.
Não obstante, em contra-alegações, ainda que tomando posição sobre os argumentos aduzidos em recurso, pugnando pela sua falta de fundamento legal, invocou o MP a extemporaneidade daquele pedido de anulação, alegando que, previamente ao conhecimento dos fundamentos invocados pela recorrente na sua peça recursiva, deverá atentar-se que o pedido formulado nos autos de insolvência, a coberto dos requerimentos de 19/08 e 10/10 de 2024, pugnando pela anulação da venda efetuada no apenso de liquidação, é completamente extemporâneo, e tão só motivado pelo insucesso do processo crime movido contra a insolvente AA…. Extemporaneidade que sustenta no facto de a recorrente ter dirigido um pedido de consulta ao processo em 18.09.2019, e requerimento em 17.03.2020, onde arguiu a nulidade por falta de citação para os autos, ali logo fazendo referência ao facto de terem sido efetuados pagamentos, em 2015, a cinco credores, sendo depois notificada para exercer o seu contraditório relativamente ao pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente e bem assim notificada da decisão final ali proferida. Os autos findaram, com visto em correição em 17.01.2022, e a recorrente só voltou a intervir nos autos em 19.08.2024, data em que, por ser assim, estava já precludido o seu direito de requerer a anulação da venda, pois que se conformou com os despachos proferidos nos autos após requerer a nulidade por falta de citação e por terem decorrido já mais de 10 dias sobre a data que tomou conhecimento da venda realizada (pois, tendo consultado os autos em 18.09.2019, não podia deixar de ter conhecimento da mesma, conforme se infere do seu requerimento de 17.03.2020), assim acompanhando a decisão ínsita no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07.03.2023, (relatado por Amélia Sofia Rebelo, no proc. 1591/19.8T8VFX-F.L1-1, disponível em www.dgsi.pt, onde as aqui relatora e 1ª adjunta, ali foram adjuntas).
Cumprido o contraditório sobre a extemporaneidade invocada, a recorrente pugnou pela tempestividade do aludido pedido de anulação, argumentando que só em 05-08-2024 tomou conhecimento da venda cuja anulação pediu em requerimento de 19/08/2024, pelo que tal pedido jamais poderá ser julgado extemporâneo, dado que, por um lado, o mesmo assentou, no essencial, no instituto do abuso do direito, de conhecimento oficioso, e, por outro lado, que àquela data de 19/08/2024, ainda não estava ultrapassado o prazo para requerer a “invalidade” da venda, ainda que, por hipótese, se admitisse que este prazo fosse de 10 dias.
Vejamos então.
Estando nós perante um processo de insolvência, que reveste a natureza de um processo de execução universal (art.º 1.º n.º 1 do CIRE), que visa dar pagamento aos diferentes credores, através de todo o património do devedor, ao mesmo tem então aplicação, por determinação do art.º 17.º daquele diploma legal, as regras que lhe são próprias (CIRE) e, subsidiariamente, as previstas no CPC, em tudo o que não o contrarie.
Neste enquadramento, estando em causa no presente recurso o pedido de anulação de uma venda efetuada pelo AI, importa ter em consideração o que o CIRE prescreve quanto à fase de liquidação, prevista nos arts.º 156.º e ss e bem assim o que prescreve o CPC relativamente à venda executiva, mormente os respeitantes à invalidade da mesma (838.º e 839.º do CPC).
E foi nesse entendimento que surgiu o despacho recorrido, que considerou que a factualidade alegada pela agora recorrente não integrava os pressupostos elencados nos aludidos preceitos legais - 838.º e 839.º do CPC - razão pela qual indeferiu a pretensão da Requerente, por julgar não ter a mesmo fundamento legal para a pretendida anulação.
Ora, independentemente da bondade, ou falta dela, da decisão recorrida, e da apreciação por este tribunal sobre as invocadas nulidade da mesma e sua desacertada decisão de direito, nos termos alegados pela recorrente, certo é que, dúvidas nos autos não há, aquando daquele pedido de anulação, que motivou a decisão em crise, o processo de insolvência e respetivos apensos encontravam-se já, todos eles, encerrados, o que nos remete assim para a apreciação, como questão prévia, da alegada extemporaneidade daquele formulado pedido, invocada em sede de contra-alegações, e de que, de resto, o MP já havia alertado em contraditório daquele mesmo pedido.
Com efeito, e como resulta do relatório supra, o processo de insolvência foi encerrado, por despacho proferido em 17/11/2015, nos termos previstos pela al. a) do n.º 1 do artigo 230.º do CIRE, que determina que «Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento: (…) Após a realização do rateio final, sem prejuízo do disposto no n.º 6 do artigo 239.º», podendo também ler-se no n.º 2 do mesmo preceito legal que «a decisão de encerramento do processo é notificada aos credores e objeto da publicidade e do registo previstos nos artigos 37.º e 38.º, com indicação da razão determinante»; resultando depois expressamente da al a) do n.º 6 do art.º 14.º do CIRE, que esta decisão de encerramento do processo de insolvência é recorrível nos termos gerais.
Decisão que acarreta depois consigo os efeitos previstos no artigo 233.º, n.º 1, do CIRE («1 - Encerrado o processo, e sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 217.º quanto aos concretos efeitos imediatos da decisão de homologação do plano de insolvência: a) Cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando designadamente o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, sem prejuízo dos efeitos da qualificação da insolvência como culposa e do disposto no artigo seguinte; b) Cessam as atribuições da comissão de credores e do administrador da insolvência, com exceção das referentes à apresentação de contas e das conferidas, se for o caso, pelo plano de insolvência; c) Os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do n.º 1 do artigo 242.º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em ação de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência; d) Os credores da massa podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos.«)..
Da leitura dos aludidos preceitos resulta assim que, proferida aquela decisão de encerramento sem qualquer impugnação nos autos, a mesma forma caso julgado (como se infere do art.º 628.º, do CPC, uma decisão judicial «considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação»), passando a mesma a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele, nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º (caso julgado material), ou apenas dentro do processo, se for sentença ou despacho que haja recaído unicamente sobre a relação processual, impedindo que o mesmo tribunal, na mesma ação, possa alterar a decisão proferida (o chamado caso julgado formal).
Por ser assim, e revertendo novamente aos autos, proferida decisão de encerramento do processo, nos termos previstos pela al. a) do n.º 1 do artigo 230.º do CIRE (após ter sido concluído o rateio final), e transitando a mesma em julgado, por não ter sido impugnada, esgotado estava o poder jurisdicional do juiz, pois, tal como se infere do artigo 613.º, n.º 1 do CPC, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
Neste enquadramento, os presentes autos de processo de insolvência, com aquela decisão, deixaram de existir, tanto mais que o CIRE não regula qualquer hipótese de renovação da instância insolvencial após o encerramento do respetivo processo (não estando as hipóteses de renovação da instância processual civil – arts.º 261.º, n.º 2, 282.º, n.º 1, 358.º, n.º 2 ou 850,º todos do CPC – pensadas para o processo de insolvência, sendo-lhe assim inaplicáveis, por força da natureza deste processo), com exceção do procedimento previsto no art.º 241.º-A do CIRE (liquidação superveniente), introduzido de forma inovatória pela Lei n.º 9/2022, de 11/01, que atribui ao Fiduciário competências de liquidação, quando, depois de encerrada a insolvência, mas estando ainda em curso o procedimento de exoneração do passivo restante, ocorra uma situação de superveniência de ativo na esfera jurídica dos devedores. Excecionalidade que obedece assim a apertados requisitos legais e que, na verdade, não está, de forma alguma, em causa nestes autos.
Por ser assim, com aquela decisão de encerramento, inexiste agora massa insolvente, à qual, em termos hipotéticos, o quinhão vendido pudesse regressar (veja-se, sobre estas questões, entre outros, os acs. do TRL, de 31-10-2023, relatado por Renata Linhares de Castro, no proc. 84/19.8T8SRQ-E.L1-1, onde, apreciando um pedido de anulação de venda formulado pela adquirente do bem, concluiu que «…. Tal pretensão terá, contudo, que ser deduzida na pendência do processo de insolvência, não o podendo ser após o trânsito em julgado do despacho que declarou encerrado tal processo nos termos previstos pelo artigo 230.º, n.º 1, al. a), do CIRE» e do TRG, relatado por Maria João Matos, em 15-02-2024, no proc. 309/13.3TBVLN-P.G1, ambos disponíveis na dgsi).
Tendo transitado em julgado a decisão que declarou encerrado o processo de insolvência, mesmo que pudesse assistir qualquer razão à recorrente, a tutela de quaisquer direitos dos por si alegados, não poderá já ser feita nestes autos (que findaram) mas sim, eventualmente e quando muito, por via de uma ação indemnizatória, a tramitar em processo comum. Donde, acompanhamos a argumentação do MP, que, em resposta ao recurso interposto, alega que a anulação da venda não é a via legal correta para a recorrente obter qualquer reparação dos danos que a conduta da insolvente porventura lhe pudesse ter causado.
Por ser assim, independentemente do momento em que a recorrente teve conhecimento da aludida venda e do preenchimento do prazo dos 10 dias, certo é que a sua pretensão jamais poderia ser deduzida após o trânsito em julgado do despacho que declarou encerrado o processo de insolvência, nos termos previstos pelo artigo 230.º, n.º 1, al. a), do CIRE.
Em suma, diremos que, independentemente da razão, ou falta dela, subjacente ao requerimento de 19/08/2024 (pois que não podemos deixar de atentar que o ónus de reclamação que impede sobre os credores não foi anulado pela falta de citação pessoal da recorrente para os tramites do processo de insolvência, à luz do art.º 37.º n.º 3 do CIRE, em face do que expressamente decorre do art.º 9.º n.º 4 do mesmo diploma legal), independentemente do momento em que a recorrente teve plena consciência da venda operada no apenso de liquidação, independentemente da atuação da insolvente nos autos, descrita na decisão que indeferiu a exoneração do passivo restante, independentemente do que a recorrente podia ter feito no processo, ao nível da reclamação de créditos e da eventual reação contra as decisão tomadas, independentemente da existência de qualquer abuso de direito ou de uso anormal do processo, certo é que tudo terminou com a decisão de encerramento do processo, e seu trânsito, que não pode já ser reaberto para apreciação das questões agora colocadas, jamais podendo os pretensos direitos da recorrente aqui ser tutelados.
Tendo o tribunal considerado, por despacho transitado em julgado, à luz do art.º 9.º n.º 4 do CIRE, que a falta de citação pessoal da requerente para os presentes autos ficou sanada mediante as publicações legais que tiveram lugar no processo, assim a considerando citada, como os demais credores, a partir das publicações oficiais, e considerando também nós que a decisão de encerramento do processo, é, e foi nos presentes autos, objeto de publicidade, por editais, extinta a instância insolvencial, nada mais cumpre fazer nestes autos, assim carecendo de fundamento legal a pretensão da recorrente, que se revela, pois, extemporânea, por realizada fora do tempo oportuno para a sua avaliação.
Por conseguinte, e sem mais, impõe-se a improcedência da presente apelação, e, ainda que com diferente fundamentação, a confirmação da decisão da 1ª instância apenas na parte que inferiu a pretensão da recorrente nos autos, ficando prejudicado o conhecimento das questões colocadas pela mesma no recurso intentado.
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V-/ Decisão:
Perante o exposto, acordam as Juízas deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação totalmente improcedente, por não provada, mantendo a decisão de indeferimento da pretensão da recorrente formulada nos autos, ainda que com diversa fundamentação da decisão da 1ª instância.

Custas pela apelante.
Registe e notifique.

Lisboa, 16/09/2025
Paula Cardoso
Manuela Espadaneira Lopes
Fátima Reis Silva