IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DO RECORRENTE
DECLARAÇÕES DE PARTE
FACTO RELEVANTE
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário

1. A consideração do direito estrangeiro, antes de ser uma questão de direito, é uma questão de facto (art. 348.º do Cód. Civil).
2. Quando a impugnação da decisão respeitante à matéria de facto se funda na ofensa de uma disposição legal que exige certa espécie de prova para a demonstração do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, o apelante não está onerado com as indicações previstas no art. 640.º, n.os 1, al. b), e 2, al. a), do Cód. Proc. Civil.
3. O raciocínio probatório assente nas declarações de parte deve ser reforçado (relativamente ao raciocínio desenvolvido sobre depoimentos de pessoas não interessadas na causa).
4. Independentemente da natureza do facto relevante (não notório) e da via pela qual foi adquirido processualmente, tem sempre ele de constar do leque dos factos provados (fundamentação de facto), se vier a ser, e para que possa ser, invocado na fundamentação de direito.
5. Quando o tribunal toma em consideração no julgamento (fundamentação) de direito factos sobre os quais não se pronunciou no julgamento (fundamentação) de facto, é a pronúncia sobre a matéria de facto deficiente.
6. Neste caso, se constarem do processo todos os elementos necessários à segura prolação de uma decisão sobre essa factualidade pelo tribunal de recurso, a este cabe proferir tal decisão (art. 662.º, n.os 1 e 2, al. c) (a contrario), do Cód. Civil).

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

A. Relatório
A.A. Identificação das partes e indicação do objeto do litígio
Monte do Pasto, L.da, instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra Portocargo – Transitários, S.A., (e outra) pedindo a condenação das rés “a pagar à autora, solidariamente, a quantia de € 274.273,52 (…), acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor, desde a data de incumprimento de cada um dos contratos e até efetivo e integral pagamento, os quais, até à presente data, ascendem a € 28 556,71”.
Para tanto, alegou que, como expedidora, celebrou com a ré Portocargo, esta como transitária, dois contratos de trânsito, com vista à organização do transporte de carne ultracongelada para consumo humano. Os contratos foram defeituosamente cumpridos, devido a oscilações da temperatura nos contentores frigoríficos disponibilizados pela ré. Sofreu um prejuízo de € 274.273,52, valor ao qual acrescem juros de mora no montante de € 28.556,71.
Citada a ré Portocargo, ofereceu esta a sua contestação, alegando que: na preparação dos contentores, não se encontravam os mesmos à temperatura adequada, o que a autora não cuidou; é a transportadora, terceira, a única responsável pela alegada inobservância das temperaturas internas dos contentores; desconhece em que estado chegou a mercadoria ao destino; a autora não comunicou prontamente a avaria, o que impossibilitou a peritagem aos contentores e à mercadoria.
Após realização da audiência final, o tribunal a quo julgou a ação “procedente”, decidindo:
a) Condenar a ré Portocargo – Transitários, S.A., a pagar à autora o montante de € 274.273,52 (…), acrescida dos juros legais à taxa legal comercial desde a data da citação (31/08/2022) até integral pagamento.
b) (…)”.
Inconformada, a ré Portocargo apelou desta decisão, concluindo, no essencial:
“11ª – (…) [Como] acontece em todos os sinalagmas, (…) no caso concreto, se a autora não fiscalizou que assim não garantiu, antes do carregamento, a temperatura do contentor a 18 °C negativos, nem demonstrou que colocou no interior dos contentores carne ultracongelada a 18 °C negativos para ser transportada, a ré/apelante também ficará desobrigada de assegurar durante o transporte a manutenção da temperatura de 18 °C negativos, em que a temperatura da carne congelada (já não ultracongelada) irá condicionar a temperatura do contentor (…).
15ª – No que concerne à modificação da matéria de facto considerada provada, há a considerar a alteração da mesma, (…) eliminando do elenco dos factos “provados” os identificados sob os pontos 33., 43. e 45. (…).
16ª – (…) [E]m relação ao facto provado 33. deverá o mesmo ser eliminado, por constituir uma transcrição parcial do relatório aí mencionado, em que o perito autor do mesmo utiliza a expressão vertida no facto provado, porém, fazendo-o em termos probabilísticos, hipotéticos, sem qualquer referência ao que de facto sucedeu com a carne transportada (…);
17ª – Os factos provados 43. e 45. (…) carecem de demonstração, não se podendo presumir nem a destruição da carne, nem a apontada recusa, nem tal facticidade resulta, de modo automático, da mera existência das variações de temperatura, registadas nos dataloggers;
18ª – Os (…) pontos [43. e 45] da matéria de facto, foram considerados provados com recurso a declarações de parte da representante legal da autora, porém, sem junção de qualquer prova documental que possa corroborar tais declarações; por outro lado, trata-se de factualidade que para a sua verificação obriga ao cumprimento e à observância de formalidades, quaisquer uma delas com redução a escrito (…).
26ª – (…) [T]ratando-se de factualidade que por disposição da lei, ou dos regulamentos inerentes aos procedimentos relativos à destruição da carne/géneros alimentares, obriga à observância de formalidades, necessariamente, reduzidas a escrito, a sua demonstração nunca poderá ser feita através de prova testemunhal (…);
28ª – A ré/apelante pretende sujeitar à apreciação deste Venerando tribunal as seguintes questões de direito:
. a) A idoneidade das declarações de parte da representante legal da autora, para, por si só, demonstrar a destruição da carne e a recusa da sua aceitação pelo cliente, sem necessidade de suporte documental que corrobore tal factualidade;
. b) A idoneidade das declarações de parte da representante legal, para considerar-se que foi dado cumprimento ao ónus da prova que onera a autora com a demonstração dos factos constitutivos do direito à indemnização reclamada;
. c) As implicações no cumprimento da obrigação por parte da ré/apelante da verificação de omissões por parte da autora, designadamente, as de fiscalização da temperatura do contentor previamente ao carregamento da carne e a obrigação de fiscalização/verificação da temperatura da própria carne no momento em que foi acondicionada no contentor (não se provando tratar-se de carne ultracongelada),
. d) A verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil, designadamente, o pressuposto do dano/prejuízo;
29ª – E esclarecidas as questões de direito supra identificadas, restarão duas questões fulcrais cuja apreciação se sujeita a este venerando tribunal, a saber:
. a) A manutenção da obrigação por parte da ré/apelante de cumprir a obrigação contratualizada de manter a temperatura de 18°C negativos durante toda a viagem, quando a autora, no início da execução do contrato de transporte não cumpriu com a obrigação de verificar a temperatura dos contentores, previamente ao seu carregamento, nem com a obrigação de o fazer transportar no interior dos contentores carne ultracongelada, logo, à temperatura de 18 °C negativos;
. b) A falta de verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, que justifiquem o direito da autora a ser indemnizada, designadamente, a não demonstração da existência de prejuízo, como elemento constitutivo da obrigação de indemnizar”. (…)
32ª – O tribunal (…) onerou a ré/apelante com uma contraprova impossível (demonstrar que a destruição da carne não ocorreu e demonstrar que não houve recusa na sua aceitação por parte do destinatário) pelo que, houve violação do princípio ínsito no artigo 4.º do CPC – igualdade das partes – não tendo o tribunal a quo garantido um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no uso de meios de defesa, como obriga o citado preceito. (…)
36ª – De igual modo o tribunal a quo não retirou quaisquer ilações do comportamento da autora, na medida em que obstaculizou e, assim, impediu a realização de exames e de análises à carne transportada (…).
37ª – A (…) autora recusou essas análises e impôs a sua vontade à ré/apelante, não lhe tendo dado qualquer alternativa, nem sequer o acesso ao “produto salvado”, para com ele fazer o que entendesse por conveniente, nem nunca existiu nenhuma interpelação admonitória por parte da ré nesse sentido.
A apelada contra-alegou, defendendo que não deve ser admitida a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida e ampliando o âmbito do recurso, rematando nos seguintes termos:
Mais deverá a ampliação do recurso com impugnação da matéria de facto ser julgada procedente, por provada, e, em consequência:
. c) Ser eliminado o facto provado 42;
. d) Ser acrescentado um novo facto com a seguinte redação:
“no momento dos carregamentos a carne estava ultracongelada”
. e) Ser acrescentado um novo facto com a seguinte redação: “A Monte do Pasto interpelou a Portocargo, por notificação judicial avulsa realizada no dia 28 de janeiro de 2022, através da qual reclamou a indemnização pelo incumprimento dos contratos de transporte objeto do presente processo”.
e, em consequência,
. f) Ser a Portocargo condenada em juros desde 28/01/2022, data da NJA,
A.B. Questões que ao tribunal cumpre solucionar
As questões de facto a enfrentar prendem-se com a decisão dos pontos 33.º, 43.º e 45.º dos factos provados.
As questões de direito a tratar serão mais desenvolvidamente enunciadas no início do capítulo dedicado à análise dos factos e à aplicação da lei.
As questões suscitadas com a ampliação do âmbito do recurso apenas serão conhecidas se a apelação, sem a sua apreciação, dever proceder, total ou parcialmente (art. 636.º, n.os 1 e 2, do Cód. Proc. Civil).
*
B. Fundamentação
B.A. Factos provados (conforme decidido pelo tribunal ‘a quo’)
1. Celebração do contrato de trânsito
1 – A autora Monte do Pasto é uma sociedade comercial que tem por objeto a exploração agropecuária, o comércio, exportação, importação e distribuição de produtos alimentares, o processamento e embalamento de produtos de origem animal e a investigação, desenvolvimento tecnológico e inovação.
2 – A Portocargo é uma sociedade que se dedica à atividade transitária.
3 – A Chubb European Group é uma seguradora que anteriormente se denominava ACE European Group Limited.
4 – A Monte do Pasto celebrou, em 2021, com a Portocargo dois contratos que tinham por objeto o planeamento, coordenação e transporte de mercadorias de Lisboa para Macau.
5 – Os transportes tiveram origem no porto de Lisboa e tinham por destino final o porto de Macau, tendo sido a transportadora a OOCL.
6 – As mercadorias a transportar eram carne ultracongelada para consumo humano.
7 – Ambos os contratos foram segurados pela Chubb.
2. Execução do contrato de trânsito
8 – A carne congelada a que respeita o contrato titulado pela proposta de 29/01/2021, foi carregada no contentor OOLU6280267 e saiu do porto de Lisboa, no navio Calisto em 17/02/2021, tendo chegado a Macau em 01/04/2021.
9 – O contentor levava 2047 embalagens de carne congelada, com peso de 8.618.865 Kg. E destinava-se à Focus Agricultura, Limited.
10 – A carne referida em 9 foi vendida pelo valor de € 134.907,70.
11 – A carne congelada a que respeita o contrato titulado pela proposta de 10/03/2021, foi carregada no contentor OTPU6191250 e saiu do porto de Lisboa, no navio Essence em 30/03/2021, tendo chegado a Macau em 28/05/2021.
12 – O contentor levava 1968 embalagens de carne congelada, com peso de 8.859.426 Kg. e destinava-se à Focus Agricultura, Limited.
13 – A carne referida em 12 foi vendida pelo valor de €139.365,82.
14 – A autora solicitou à 1ª ré Portocargo que os contentores fossem regulados a uma temperatura de -18ºC.
15 – Em ambos os contentores foram colocados dataloggers que registaram a sua temperatura durante o transporte.
3. Execução do contrato de trânsito (continuação)
16 – No primeiro transporte que se iniciou a 17/02/2021 e terminou a 01/04/2021, e registado pelo datalogger 1, a temperatura variou entre -13º,2C e -15,3ºC no mês de Fevereiro, sendo que no dia 17/02, no mês de Março a temperatura registada andou sempre perto dos -14ºC, uns dias subindo a -15ºC, tendo no dia 11 de Março variado entre os -10ºC e -13º, e a partir de 14 de Março andou sempre variando nos -13ºC e poucos e -12ºC, e a partir de 31 de Março a temperatura sofreu oscilações entre os -13,2ºC e -04ºC, atingindo de novo a 1 de Abril os -13,2ºC pelas 00:09h atingindo às 06:29 os +2,1ºC.
17 – No primeiro transporte que se iniciou a 17/02/2021 e terminou a 01/04/2021, e registado pelo datalogger 2:
a) a temperatura variou entre -16,5ºC e -17º,4C no mês de fevereiro;
b) no mês de março a temperatura registada andou sempre perto dos -17ºC, uns dias subindo a -17.6ºC e outros descido a -16,7ºC sendo que houve um dia a -12,6ºC (5 de Março, mas num período de apenas 30mnt);
c) a partir de 15 de março a temperatura varia entre -15,7ºC e 16,3ºC, havendo um dia a -11,1ºC (17 março mas num período de apenas 30mnt);
d) a 30 de março a temperatura desce pelas 11:23 aos -14º,1, atingindo pelas 15:23 os -2,1 e voltando a subir aos -15º pelas 16:13h. mantendo-se entre esse valor e -16,5 nos dias 30 e 31 de março,
e) havendo uma quebra de cerca de 30mnt a 31 de março às 6:03h. e outra pelas 16:13 h, tendo atingido os -2,2º pelas 20:33 h, iniciando a recuperação de temperatura pelas 20:43h., sendo que às 21:23h atingiu os -15ºC;
f) no dia 1 de abril a temperatura inicia a sua subida, atingindo os +4,8ºC às 06:43h, iniciando de novo a temperatura negativa pelas 06:53 h e só voltando a atingir temperatura positiva às 12:13 horas e iniciando a temperatura negativa pelas 17:43 h.
18 – No segundo transporte que se iniciou a 30/03/2021 e terminou a 28/05/2021, e registado pelo datalogger 1, entre o dia 30 de Março e 30 de Abril a temperatura andou sempre entre os -17ºC e os -19º,2ºC, e em maio a temperatura registada andou numa média de -18ºC, tendo atingido, no dia:

DiaPeríodotemp. /interv.
30 de março30 mnts. (pelas 20:35h)-4,1º e -14,1º
03 de abril30 mnts.-3,2º e -14,6º;
06 de abril30 mnts.-2,4º e -9,7º;
09 de abril45 mnts.-0,5º e -9,7º;
11 de abril30 mnts.-0,2º e -9,7º;
01 de abril30 mnts.-0,1º e 8,8º;
16 de abril30 mnts. 1,1º e -8,4º;
18 de abril30 mnts.-2,4º e -9,8º;
20 de abril30 mnts.-0,6º e -10,7º;
22 de abril30 mnts.-0,8º e -10,3º;
24 de abril4 horas e 45 mnt (entre 01:15 e 05:55h).-9º e -10,8º;
25 de abril20 mnts.-5,6º e -10,8º;
27 de abril10 mnts.-5,9º e -7,6º;
29 de abril20 mnts.-3,8º e -10º;
01 de maio10 mnts.-6,4º e -9,2º;
02 de maio15 mnts.-5º e -9,4º;
04 de maio10 mnts.-6,6º e -8,5º;
05 de maio10 mnts.-8,5º e -9,7º;
06 de maio10 mnts.-6,2º e -8,2º;
08 de maio10 mnts.-6,6º e -10,8º;
09 de maio10 mnts. 9º e -9,7º;
10 de maio10 mnts.-7,1º e -7,8º;
12 de maio10 mnts.-7,7º e -10º;
13 de maio10 mnts.-6,4º e -9,6º;
15 de maio5 mnts.-7,6º;
16 de maio5 mnts.-8,1º;
17 de maio10 mnts.-9,2º e -9,5º;
19 de maio5 mnts.-7,6º;
20 de maio10 mnts-6,2º e 10º
20 de maioentre as 17:35 e 17:45h. e entre as 18:55h e 22:15h-2,7º e -9,7º.;
21 de maiopartir das 13:45h até dia 22 de maio pelas 00:25horas 0º e -10,7º;
22 de maio10 mnts.-7,1º e -9,6º;
23 de maio10 mnts.-7,6º e -10,1º;
25 de maio10 mnts.-9º e -10º;
25 de maio entre as 19:25h e as 21:55h-4º e -10,3º.

19 – No segundo transporte que se iniciou a 30/03/2021 e terminou a 28/05/2021, e registado pelo datalogger 2, entre o dia 30 de março e 30 de abril a temperatura andou sempre entre os -11,8ºC e os -15ºC, nunca tendo atingido os -18ºC e com quebras de alguns minutos em determinados períodos de tempo em que a temperatura atingiu os -8ºC e -05ºC no dia 25 de Maio.
20 – No dia de carregamento do 1º contentor, 11/02/2021, a temperatura do mesmo às 11:09 horas era de +22,4ºC e às 13:29h era de -13,5ºC (datalogger 1, a fls. 44), tendo o datalogger 2 registado às 10:03H a temperatura de +20,2ºC e às 13:33horas a temperatura de -16,3ºC.
21 – No dia de carregamento do 2º contentor. 25/03/2021 a temperatura do mesmo às 09:35 horas era de +12,1ºC e às 11:05h era de -13,57C (datalogger 1, a fls. 199v) tendo o datalogger 2 registado às 10:20h a temperatura de +15,8ºC e às 11:40horas a temperatura de -10,1ºC.
22 – A autora interpelou, por carta datada de 23/08/2021, a Portocargo para que esta procedesse à reparação do prejuízo causado no montante de € 274.273,52 devido às oscilações de temperatura ocorridas no interior dos dois contentores transportados de Portugal para Macau.
23 – Em resposta à interpelação referida em 20 [será 22], por carta datada de 13/09/2021, a Portocargo refere que aguarda o resultado da peritagem efetuada.
24 – A Chubb celebrou com a Portocargo um contrato de seguro de transporte de mercadorias, titulado pela apólice n.º PTCGN101754, celebrado em 11/04/2026 e renovável anualmente e estando em vigor à data de 28/09/2022.
25 – A apólice referida em 22 [será 24] visa garantir o transporte de diversas mercadorias pela Portocargo, entre as quais artigos de alimentação refrigerados, congelados e perecíveis.
26 – Está em causa uma apólice flutuante que abrange 1500 viagens/movimentos anuais.
27 – A segurada Portocargo dispõe de um conjunto de certificados de seguro que preenche e emite em função dos transportes a realizar.
28 – A apólice cobre os danos à mercadoria avariada derivada de oscilações de temperatura de carne congelada, caso o sistema de refrigeração avarie por um período superior a 24 horas.
29 – Ao abrigo da apólice de seguro referida em 22 [será 24] foram emitidos 2 certificados de seguro para o transporte de carne congelada a -18ºC – certificado n.º PT002119 e certificado n.º PT002165
30 – O sistema de refrigeração dos dois contentores nunca parou e os picos de variação de temperatura devem-se a transbordos e verificação nas alfandegas.
31 – A carne congelada transportada nos dois contentores, em termos de aparência, chegou ao destino sem qualquer vestígio de descongelamento, sangue nas peças humidade ou mau odor.
32 – O relatório pericial realizado pela Abaco ao 1.º contentor refere que os testes laboratoriais à carne não foram efetuados pelo facto de a autora ter dito que os resultados seriam irrelevantes, pois as variações de temperatura ocorridas comprometeriam sempre a qualidade da carne.
33 – Do relatório pericial elaborado pela Abaco resulta que no dia 1 de abril entre as 05:00h e as 17:00 h (12 horas) a temperatura no interior do contentor chegou perto dos 0ºC, muito perto do descongelamento, o que promove mudanças organoléticas da carne congelada, comprometendo assim a sua qualidade e propensão para consumo de acordo com os padrões internacionais de segurança alimentar.
34 – As variações de temperatura mais significativas decorreram de operações de manuseamento em cargas e descargas e (…) houve variações pontuais e normais e outras significativas e que a última variação significativa ocorreu a 26 de maio entre o porto de Macau e o destino final e que tal deverá ter ocorrido por o contentor ter estado desligado da corrente elétrica e que por motivos relacionados com a temperatura ambiente exterior e/ou falta de isolamento térmico do contentor, fez com que a temperatura interior aumentasse rapidamente e significativamente.
35 – O capital seguro por viagem é de € 3.000.000,00 e por contentor é de € 100.000,00.
36 – A ré Chubb aceitou segurar os dois transportes pelo valor de € 148,398,47 e de € 153.302,40.
37 – A Mapfre celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil com a Portocargo em 02/11/2012, renovável anualmente e que vigorou até 02/11/2021 e cujo capital seguro é de € 500.000,00.
38 – A carne ultracongelada tem de ser conservada a uma temperatura entre -15ºC e -18ºC.
39 – A variação da temperatura em mais de 3º graus podem não avariar a carne, mas perdem algumas das qualidades das suas características, em termos de cor, textura e encurtam o seu prazo de validade.
40 – Uma variação de temperatura ambiente de 2 horas não afeta a segurança e qualidade da carne, pois não atinge a temperatura do próprio produto, sendo essencial que o produto não atinja temperaturas superiores a -15ºC.
41 – Após decorridos 14 dias da descarga do 1.º contentor é que a autora reporta à Portocargo as oscilações ocorridas com a temperatura.
42 – Os contentores não foram pré-arrefecidos antes de serem carregados.
43 – A carne dos dois contentores foi destruída.
44 – As condições de seguro não foram comunicadas à autora.
45 – A cliente da autora recusou a carne transportada nos dois contentores e não a pagou.

B.B. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
A apelada contra-alegou, defendendo que não deve ser admitida a impugnação da decisão relativa à matéria de facto. Em causa está a alegada insatisfação dos ónus a cargo do recorrente que impugna esta decisão. É por aqui que começaremos.

1. Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto

Dispõe o art. 640.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil que, “[q]uando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: // a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; // b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; // c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
A indicação dos meios probatórios que impunham decisão diferente (al. b)) deve, por um lado, ser consequente, isto é, deve compreender a explicação dessa imposição – por exemplo, uma testemunha ter afirmado aquilo que se pretende que seja dado por provado ou tenha negado aquilo que se pretende que seja dado por não provado. Por outro lado, quando a impugnação seja fundada em prova gravada, deve o apelante, conforme resulta do disposto no art. 640.º, n.º 2, al. a), do Cód. Proc. Civil, “indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Sobre cada uma das proposições de facto que integram o objeto do processo, o tribunal formula um “julgamento” ou “decisão”. Embora o termo assuma diferentes sentidos no âmbito processual-civil, o “julgamento”, na sua essência, é o juízo de adesão, ou não, de uma proposição posta à realidade – a sua conformidade ao mundo dos factos. O regime acabado de descrever tem por objeto o juízo apresentado pelo julgador sobre uma concreta proposição de facto.
Porque sobre o litígio já se pronunciou um órgão jurisdicional independente, e considerando que inexiste para o Processo Civil qualquer exigência constitucional da garantia de um duplo grau de jurisdição, este regime é marcado por três características principais: (i) o elevado nível (standard) de rigor imposto ao impugnante; (ii) a recondução da impugnação a cada concreta proposição de facto julgada (vedando-se a impugnação indiscriminada da decisão respeitante à matéria de facto); (iii) a inexistência da previsão de um convite ao cumprimento dos ónus impostos – ainda que se possa configurar o aperfeiçoamento da sua satisfação.
O elevado nível (standard) de rigor imposto ao impugnante é revelado pelos ónus previstos neste artigo. A alegação imprecisa (na concretização dos pontos impugnados e dos meios de prova pertinentes, ou na indicação da decisão alternativa apropriada) é, não raramente, um fenómeno intencional. A parte tende a ser menos precisa quando se vê forçada a justificar a sua tese contrária à realidade processualmente adquirida, quando a posição sustentada assenta num silogismo falhado ou falacioso. Assim se justifica, sem dificuldade, a proibição de uma impugnação vaga ou ambígua, não sendo claro o seu sentido, prestando-se (propositadamente) a diversas interpretações.
Importa, no entanto, ter presente que o elevado nível de rigor não equivale a elevado nível de dificuldade. Pelo contrário, seguro do acerto do seu juízo dissidente sobre determinado ponto da decisão respeitante à matéria de facto, o apelante não terá a menor dificuldade em identificar este concreto ponto nem o concreto meio de prova em que assenta o seu juízo; menos ainda em enunciar a decisão alternativa que entende dever ser proferida. São estes requisitos ónus que, na generalidade dos casos, qualquer observador atento à produção de prova, ainda que leigo, poderá facilmente satisfazer (apenas se exigindo rigor, labor e eupatia).

A recondução da impugnação a cada concreta proposição de facto julgada impõe que sobre cada específico e individualizado juízo contestado o recorrente apresente uma fundamentação dedicada. Tendo a impugnação por objeto cada concreto juízo formulado pelo tribunal a quo – isto é, cada ponto da decisão de facto, objeto de um concreto juízo sobre uma proposição de facto processualmente adquirida –, sobre este deve ser desenvolvido um específico silogismo demonstrativo, de modo a poder ser o tribunal superior persuadido da bondade da posição do impugnante. Assim, cada impugnação constitui-se como uma célula autossuficiente, contendo a indicação do ponto impugnado, o juízo alternativo a formular e o concreto meio de prova que diz respeito a esta impugnação, isto é, apenas o segmento da prova produzida pertinente ao concreto silogismo demonstrativo apresentado, devidamente iluminado, destacado da restante prova.
Não pode o apelante despejar num enunciado (ou num bloco de enunciados) todos os pontos da matéria de facto que entende terem sido erradamente julgados, apresentando depois, de um só fôlego, a transcrição de todos os depoimentos prestados que entende serem pertinentes, sem identificar os concretos enunciados – contidos em documentos, relatórios periciais ou transcrição de depoimentos gravados, por exemplo – que contradizem cada um dos concretos juízos de facto do tribunal a quo, e adjudicar ao tribunal ad quem a tarefa de distribuir pertinentemente os meios de prova por cada uma das proposições, putativamente, mal julgadas – cfr. o Ac. do STJ de 16-01-2024 (818/18.8T8STB.E1.S1).

Finalmente, devemos notar que a falta de especificação, na motivação da alegação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados, incluindo a falta de indicação das passagens da gravação em que o recorrente funda a sua impugnação, determina a “imediata rejeição do recurso na respetiva parte” (art. 640.º, n.º 2, al. a), do Cód. Proc. Civil). O mesmo é dizer que a lei não consente aqui a prolação de um despacho de convite ao aperfeiçoamento da alegação que mais não seja, na verdade, do que um convite ao cumprimento, isto é, à satisfação de ónus essencialmente incumpridos, contrariamente ao que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil.
Assim é por decorrência das características do regime descrito, designadamente, como referido, por serem os ónus impostos de muito simples satisfação, não exigindo mais do que um grau mínimo de diligência na atuação da parte. Recorde-se, a propósito, que, na fase de recurso, todos os recorrentes devem estar patrocinados por advogado (art. 40.º, n.º 1, al. c), do Cód. Proc. Civil).

2. Casos de inexistência dos ónus específicos

A norma enunciada na al. b) do n.º 1 do art. 640.º do Cód. Proc. Civil dirige-se aos casos em que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto se funda na existência de meios probatórios “que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”. Se não for este o fundamento da impugnação, inexiste o ónus previsto nesta alínea, assim como inexiste o ónus previsto na al. a) do número seguinte – podendo dizer-se ser de acolher uma interpretação restritiva do texto legal.
Inexistem tais ónus, desde logo, no caso (1) de falsa impugnação da decisão sobre a matéria de facto – ou, sob diferente perspetiva, impugnação de uma falsa decisão de facto. Referimo-nos aos casos em que o apelante se insurge contra proposições que não encerram um conteúdo de facto, mas que constam do leque dos factos provados – máxime, quando a proposição “julgada provada” (assim é afirmado) é uma conclusão de direito.
Também entendemos que inexistem tais ónus – isto é, os previstos no art. 640.º, n.os 1, al. b), e 2, al. a), do Cód. Proc. Civil –, quando o impugnante funda a sua impugnação na inexistência de prova. Assim sucede, quer quando (2.1) alega que nenhuma prova foi produzida sobre o facto dela carecido – nem mesmo uma prova fraca –, quer quando (2.2) defende que não foi produzido o meio necessário à prova do facto – ou, dito de outro modo, o meio de prova produzido não é idóneo, em abstrato, para a prova do facto. Claro está que, neste caso (ou seja, de inexistência de prova), o apelado mantém, agora reforçadamente, o ónus previsto na al. b) do n.º 2 do art. 640.º do Cód. Proc. Civil.
Nesta última hipótese (2.2), o erro apontado ao tribunal é um erro de direito probatório. É o caso contemplado no art. 674.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil. Como é evidente, a apreciação desta impugnação não envolve a reapreciação da prova produzida, resolvendo-se, sim, num julgamento de direito sobre o mérito da tese defendida pelo recorrente.
Resta acrescentar que, quando o apelante reconhece que foi produzida prova sobre o facto, mas defende que a mesma não sustenta (racionalmente) uma convicção segura sobre a ocorrência deste – e ainda que não tenha sido produzida contraprova –, não existe motivo para que os ónus previstos no art. 640.º, n.os 1, al. b), e 2, al. a), do Cód. Proc. Civil não subsistam – sendo que a sua satisfação permitirá uma impugnação mais concreta e objetiva. Aqui, os meios probatórios que não consentem a decisão proferida existem sempre – mesmo que não tenha sido produzida contraprova, repisa-se –, pois, paradoxalmente, também o são aqueles que foram erradamente (dada a sua fragilidade) sobrevalorizados pelo tribunal a quo.

No caso dos autos, a apelante, assumidamente, não satisfez o ónus previsto na al. a) do n.º 2 do art. 640.º do Cód. Proc. Civil. Na 14.ª conclusão diz: “pretende-se a audição integral dos depoimentos, razão pela qual não se identifica os concretos momentos da gravação, opção que esteve subjacente à sua transcrição integral”. O mesmo é dizer que se impõe a “imediata rejeição do recurso” da decisão sobre a matéria de facto, exceto na medida em que concretize um dos casos acima referidos em que inexiste o ónus de indicação com exatidão das passagens da gravação que fundam a impugnação.
Nas conclusões da alegação, a decisão sobre a matéria de facto é posta em crise nas seguintes conclusões:
16ª – (…) [E]m relação ao facto provado 33. deverá o mesmo ser eliminado, por constituir uma transcrição parcial do relatório aí mencionado, em que o perito autor do mesmo utiliza a expressão vertida no facto provado, porém, fazendo-o em termos probabilísticos, hipotéticos, sem qualquer referência ao que de facto sucedeu com a carne transportada (…);
17ª – Os factos provados 43. e 45. (…) carecem de demonstração, não se podendo presumir nem a destruição da carne, nem a apontada recusa, nem tal facticidade resulta, de modo automático, da mera existência das variações de temperatura, registadas nos dataloggers;
18ª – Os (…) pontos [43. e 45] da matéria de facto, foram considerados provados com recurso a declarações de parte da representante legal da autora, porém, sem junção de qualquer prova documental que possa corroborar tais declarações; por outro lado, trata-se de factualidade que para a sua verificação obriga ao cumprimento e à observância de formalidades, quaisquer uma delas com redução a escrito (…).
28ª – A ré/apelante pretende sujeitar à apreciação deste Venerando tribunal as seguintes questões de direito:
. a) A idoneidade das declarações de parte da representante legal da autora, para, por si só, demonstrar a destruição da carne e a recusa da sua aceitação pelo cliente, sem necessidade de suporte documental que corrobore tal factualidade;
. b) A idoneidade das declarações de parte da representante legal, para considerar-se que foi dado cumprimento ao ónus da prova que onera a autora com a demonstração dos factos constitutivos do direito à indemnização reclamada;

Estamos perante três fundamentos que se furtam aos ónus previstos no art. 640.º, n.os 1, al. b), e 2, al. a), do Cód. Proc. Civil:
a) o ponto 33 – factos provados – não tem por objeto a realidade histórica, mas sim o teor de um relatório: o tribunal a quo não dá por provado o que ocorreu; dá por provado que no relatório é produzida uma afirmação – e nem mesmo esta afirmação se refere imediatamente aos factos controvertidos, referindo-se sim à normalidade dos factos.
b) a destruição da mercadoria só pode ser provada por documento (não produzido), estando, pois, a sua prova subtraída à livre convicção do tribunal (art. 607.º, n.º 4, segunda parte, do Cód. Proc. Civil);
c) as declarações de parte não podem, por si só, sustentar a prova da destruição da mercadoria e do não pagamento do seu preço.
Por todo o exposto, rejeita-se o recurso sobre a decisão da matéria de facto, salvo quanto à impugnação fundada nestas três razões de direito.

3. Impugnação sobre o ponto 33 – factos provados

O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto:
33 – Do relatório pericial elaborado pela Abaco resulta que no dia 1 de abril entre as 05:00h e as 17:00 h (12 horas) a temperatura no interior do contentor chegou perto dos 0ºC, muito perto do descongelamento, o que promove mudanças organoléticas da carne congelada, comprometendo assim a sua qualidade e propensão para consumo de acordo com os padrões internacionais de segurança alimentar.
A decisão sobre este ponto foi motivada nos seguintes termos:
“O facto 33 resultou provado atento o teor do relatório da Abaco junto a fls. 429 e da testemunha …, o qual tendo sido o supervisor daquele relatório explicou com objetividade e credibilidade (…) as oscilações ocorridas e as consequências daí decorrentes”.
Defende a apelante que o ponto 33 – factos provados – deve “ser eliminado, por constituir uma transcrição parcial do relatório aí mencionado, em que o perito autor do mesmo utiliza a expressão vertida no facto provado, porém, fazendo-o em termos probabilísticos, hipotéticos, sem qualquer referência ao que de facto sucedeu com a carne transportada”. O inconformismo da apelante não é desprovido de razoabilidade.
Não é claro se, no referido ponto, o tribunal desenvolve um raciocínio probatório ou, diferentemente, julga provado um facto – nem que facto é este. Por um lado, ao afirmar que de um documento resulta um facto, parece estar o tribunal a motivar o julgamento de facto (isto é, a expor o seu raciocínio probatório), e não a declarar o resultado desse julgamento. Por outro lado, a admitir-se que estamos perante a declaração do resultado do julgamento de facto, não é claro se o tribunal a quo dá por provado o que ocorreu (a realidade histórica) ou, diferentemente, dá por provado o que consta do relatório – isto é, que no relatório é produzida uma determinada afirmação.
Dito isto, entendemos que a questão suscitada pela apelante é irrelevante, face ao teor dos restantes factos provados. Com efeito, a sorte da demanda não assenta forçosamente neste facto, considerando o teor bastante dos seguintes factos provados:
38 – A carne ultracongelada tem de ser conservada a uma temperatura entre -15ºC e -18ºC.
39 – A variação da temperatura em mais de 3º graus podem não avariar a carne, mas perdem algumas das qualidades das suas características, em termos de cor, textura e encurtam o seu prazo de validade.
40 – Uma variação de temperatura ambiente de 2 horas não afeta a segurança e qualidade da carne, pois não atinge a temperatura do próprio produto, sendo essencial que o produto não atinja temperaturas superiores a -15ºC.

Destes factos – relacionados com aqueles que revelam as variações da temperatura verificadas – se conclui, sem dificuldade, pela ocorrência da avaria. Devemos, no entanto, ter algum cuidado na interpretação do enunciado do ponto 40 – factos provados.
Em primeiro lugar, é fácil perceber que não é exato falar-se de uma “variação de temperatura”. Apenas está em causa um aumento da temperatura. Uma variação da temperatura para, por exemplo, -23º centígrados durante 3 horas em nada afeta o estado de ultracongelação do produto.
Em segundo lugar, a asserção feita é, na sua literalidade, falsa. Como é evidente, se a variação (aumento) de temperatura fosse na ordem das centenas de graus centígrados, a carne transportada não só deixaria de estar ultracongelada, como passaria a estar cozinhada.
Em terceiro lugar, o sentido dos depoimentos e demais prova invocada pelo tribunal a quo não é o de que a temperatura da mercadoria é indiferente a uma variação de temperatura ambiente (durante um certo período), mas sim de que não é sensível à interrupção da refrigeração do contentor até duas horas – admitindo que a temperatura exterior é natural, isto é, não é artificialmente aumentada.
Note-se que a temperatura ambiente no interior do contentor é influenciada pela temperatura da própria mercadoria. O mesmo é dizer que uma variação da temperatura ambiente para valores positivos é já a consequência de a mercadoria, por também ter aquecido, não conseguir condicionar favoravelmente a temperatura ambiente, conservando-a em valores inferiores – ou seja, é já a consequência de a mercadoria, depois de ter absorvido o calor ambiente, não ter capacidade para absorver mais, caminhando os três corpos para o equilíbrio térmico: ambiente exterior, massa de ar interior e mercadoria. Esta conclusão é facilmente demonstrável.
Resulta dos documentos juntos aos autos – designadamente, dos marine insurance certificate, juntos como doc. 4, com a petição, e doc. 2, com a contestação (CHUBB) e dos Bill of Lading, juntos como docs. 6 e 10 com a petição – que a mercadoria foi carregada em dois contentores frigoríficos (reefer) de 40 pés – OOLU6280267 e OTPU6191250. Ou seja, as cargas de 8.618.865 Kg e de 8.859.426 Kg foram transportadas em cerca de 70 m3 (cada).
Como é evidente, o interior do contentor só aquece porque não estamos perante um sistema fechado, existindo contacto térmico entre as paredes externas e a massa de ar interna. E o mesmo vale para o contacto desta com a mercadoria transportada. O fluxo de calor é constante, espontâneo e sempre do corpo mais quente para o mais frio. Isto significa que, porque as leis da termodinâmica o determinam – a lei zero e a segunda lei –, não é possível que a temperatura da massa de ar interior atinja valores positivos, sem que a temperatura superficial da mercadoria atinja valores próximos.
Ou seja, no caso dos autos, as variações de temperatura registadas nos dataloggers revelam, aproximadamente, a temperatura superficial da mercadoria transportada.
Em suma, com esta precisão do sentido do ponto 40 – refere-se este à interrupção da refrigeração (sendo a temperatura exterior mais elevada), e não a qualquer variação da temperatura ambiente –, os apontados factos demonstram a afetação da ultracongelação, tornando inútil a decisão sobre o ponto 33 – factos provados.
Diga-se, para terminar, que, em rigor, o incumprimento imputado à ré é a não manutenção da temperatura no interior dos contentores – e não a não manutenção de uma qualquer temperatura da própria mercadoria –, estando tal incumprimento manifestamente provado. Também, em rigor, o dano não está na avaria da mercadoria – isto é, na sua adulteração –, mas sim na recusa do seu recebimento e pagamento pelo destinatário – fundada, justificadamente, no facto que traduz aquele incumprimento.

É jurisprudência pacífica das Relações que “não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objeto de impugnação não forem suscetíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2.º, n.º 1, 137.º e 138.º, todos do Cód. Proc. Civil)” – assim, entre muitos outros, cfr. os Acs. do TRC de 24-04-2012 (219/10.6T2VGS.C1), de 14-01-2014 (6628/10.3TBLRA.C1) e de 15-09-2015 (6871/14.6T8CBR.C1), do TRG de 15-12-2016 (86/14.0T8AMR.G1) e de 22-10-2020 (5397/18.3T8BRG.G1), e do TRL de 26-09-2019 (144/15.4T8MTJ.L1-2) e de 27-10-2022 (7241/18.2T8LRS-A.L1-2).
Por todo o exposto, rejeita-se o recurso sobre a decisão da matéria de facto, nesta parte.

4. Impugnação sobre o ponto 43 – factos provados

O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto:
43 – A carne dos dois contentores foi destruída.
A decisão sobre este ponto foi motivada nos seguintes termos:
“O facto 43 resultou provado da conjugação do depoimento de TTT e da Legal representante da autora, as quais tal afirmaram, esclarecendo que como tudo foi tratado em Macau, não possuem nenhum comprovativo de tal destruição”.
Sobre este facto, o apelante sustenta, primeiro, que a destruição da mercadoria só pode ser provada por documento e, depois, que as declarações de parte não podem, por si só, sustentar a prova do facto. Sem razão.

4.1. Prova da destruição da mercadoria

Defende a apelante, por um lado, que a destruição da mercadoria é sempre documentada, por imposição legal, e que, por outro lado, e por esta razão, só pode ser provada por documento. A segunda asserção assenta sobre a primeira.
De acordo com os factos provados, a mercadoria transportada não retornou a Portugal. Isto significa que, a existir uma imposição legal de documentação da destruição da carne transportada, tal imposição terá de resultar da lei vigente em Macau (República Popular da China). Temos, pois, em mãos um problema de demonstração da existência e de aplicação de direito estrangeiro.
Importa fazer aqui uma distinção. “Há dois momentos na aplicação do direito estrangeiro: a) – o momento do seu conhecimento e b) – o momento da sua aplicação.
“No que respeita ao primeiro momento o direito estrangeiro deve ser tratado como questão de facto. Se o direito é em regra insusceptível de prova, exigindo a lei que o direito estrangeiro deva ser provado, sem prejuízo das diligências oficiosas desenvolvidas pelo tribunal, então neste primeiro momento o direito estrangeiro é tratado como questão de facto” – Geraldo da Cruz Almeida, «O ónus da prova em Direito Internacional Privado», ROA, Ano 53, n.º 2 (Abril-Junho 1993), p. 267. É o que estabelece o art. 348.º, n.º 1, do Cód. Civil. Independentemente da existência, ou não, de um ónus da prova ou do âmbito dos poderes instrutórios do juiz, o conteúdo do direito estrangeiro deve ser provado e, como tal, ser objeto do julgamento de facto. E é sempre a parte que invoca o direito estrangeiro que suporta o risco da sua falta de prova – assim Rita Lynce de Faria, Anotação ao artigo 348.º do Código Civil, in Comentário ao Código Civil: Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, p. 822.
O mesmo é dizer que, no âmbito do referido primeiro momento, as normas de direito estrangeiro pertinentes à resolução do caso devem ser concretamente alegadas e, sendo provadas, ser enunciadas na fundamentação de facto da sentença, ainda que por remissão para um documento ou fonte externa. No entanto, ainda que não se adote esta inserção formal, é incontestável que o resultado da prova da existência de determinada lei estrangeira tem de constar da fundamentação do julgado. Ora, se assim é, a apelação assente na existência relevante de uma lei estrangeira, não considerada na decisão recorrida, tem, necessariamente, de compreender a enunciação dessa lei e a indicação dos meios de prova que impunham a sua referenciação na sentença. Só assim se cumprirão os ónus previstos no art. 640.º, n.os 1 e 2, al. a), do Cód. Proc. Civil.

No caso dos autos, a destruição da mercadoria ocorreu na República Popular da China. Obviamente, não é aplicado a este ato a lei administrativa portuguesa. Isto significa que, se a apelante entende que a lei (chinesa) estabelece que destruição da mercadoria é sempre documentada, tinha o ónus de alegar e, em certa medida, provar a existência de tal lei. E, o que é mais importante para a questão que nos ocupa, tinha o ónus de, na sua alegação, fazer as especificações previstas no art. 640.º, n.os 1 e 2, al. a), do Cód. Proc. Civil – designadamente, esclarecendo qual é a concreta norma do ordenamento jurídico da República Popular da China que impõe a documentação da destruição da mercadoria que afirma existir, bem como o meio de prova produzido que demonstra a existência de tal norma (art. 341.º do Cód. Civil).
Não se provando que, na República Popular da China, a destruição da mercadoria é sempre documentada, cai também a alegação de que tal destruição só pode ser provada por documento.
Por todo o exposto, rejeita-se o recurso da decisão sobre a matéria de facto, na parte em que assenta na existência de lei estrangeira que impõe a documentação da destruição da mercadoria avariada, por insatisfação dos ónus previstos no art. 640.º, n.os 1 e 2, al. a), do Cód. Proc. Civil. Consequentemente, por inexistência – ou não demonstração – do necessário pressuposto de facto – a vigência de tal norma legal estrangeira –, julga-se manifestamente improcedente a impugnação fundada na subtração da prova à livre convicção do juiz, por supostamente existir um meio de prova (documental) necessário à demonstração do facto.

4.2. Valor probatório das declarações de parte

Questiona a apelante a “idoneidade das declarações de parte da representante legal da autora, para, por si só, demonstrarem a destruição da carne e a recusa da sua aceitação pelo cliente”, sem outro meio de prova “que corrobore tal factualidade”. Está aqui em causa o recorrente problema do valor probatório das declarações de parte (art. 466.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil).

4.2.1. Valor legal das declarações de parte

Participando nesta discussão, começamos por aceitar que nela é essencial não desmerecer a idiossincrasia das declarações de parte (que distingue este meio de prova dos demais): o invariável interesse (dir-se-ia, o interesse identitário) do depoente na sorte da causa. É esta uma asserção apodítica. Este reconhecimento em nada briga com a regra segundo a qual o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão (art. 466.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil).
Com a ressalva prevista na lei – e removendo o dispensável advérbio de modo (livremente) –, o juiz aprecia as declarações de parte segundo a sua (prudente) convicção (arts. 466.º, n.º 3, e 607.º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil). Afigura-se-nos ser claro o sentido deste aparente truísmo.
Colocada a questão em termos simples, e no que para o caso interessa, podemos dizer que prova livre se contrapõe a prova tabelada. Na primeira, é o julgador quem formula um juízo de suficiência da prova produzida para a demonstração do facto alegado. É a sua convicção que permite alcançar esta conclusão.
Já na prova tabelada, não é a convicção do julgador que permite a afirmação da verdade do facto probando. É, sim, a lei que formula um juízo de suficiência da prova produzida para a sua demonstração. Poder-se-á dizer que, estando em causa prova com valor tabelado, mais do que a julgar, o juiz limita-se a declarar o julgamento de facto feito pela lei.
Inexiste disposição legal que subtraia a apreciação das declarações de parte à livre convicção do juiz, existindo, sim, norma que a reitera (art. 466.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil). Vai, pois, sem discussão a asserção de que o juiz aprecia as declarações de parte segundo a sua convicção, não sendo esta uma prova tabelada.

4.2.2. Valor epistemológico das declarações de parte

Importa, no entanto, ter presente que o chamado valor (legal) de um meio de prova – de prova livre ou de prova tabelada – não se confunde com a sua valia epistemológica. E é (apenas) neste plano – epistemológico – que, justificadamente, a jurisprudência revela grande cautela na valoração das declarações de parte. Ou seja, é num contexto em que tal cautela não briga com a norma enunciada no n.º 3 do art. 466.º do Cód. Proc. Civil.
No julgamento de suficiência da prova produzida sobre o facto essencial, aceitando-se que a frequência (ocorrência) da mentira – e mesmo do involuntário enviesamento cognitivo – tende a variar em função do interesse que o declarante tem na sorte da causa, é diferente o crivo (mais exigente) pelo qual devem passar as declarações de parte, daquele pelo qual deve passar, por exemplo, o depoimento testemunhal. Por esta razão, compreende-se que a referida jurisprudência recuse ao depoimento não confessório força para, desacompanhado de qualquer outra prova, permitir a demonstração do facto favorável ao depoente. Já integrado num acervo probatório mais vasto, poderá mesmo ser decisivo na prova desse facto, pois proporciona um material probatório necessário à prova do facto.
Afigura-se-nos, aliás, que a adoção de um diferente crivo é imposta pela lei. É esta a conclusão a retirar do disposto no art. 513.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil – sob pena de se ter de considerar que o interrogatório preliminar é um proibido ato inútil (art. 130.º do Cód. Proc. Civil). Sendo o desinteresse na sorte da causa um dos fatores que favorece a valia epistemológica do depoimento, a sua falta (isto é, a presença do interesse) pode ser suficiente para impedir a obtenção do grau de segurança que permite julgar o facto como provado, apenas com base neste meio de prova.
O legislador reconhece, ainda, esta realidade ao consagrar o segundo fundamento do incidente de contradita (art. 521.º do Cód. Proc. Civil). O interesse pessoal na causa – ou a existência de um litígio com a contraparte – afeta a credibilidade do depoimento. Resultando este da prestação de declarações de parte, a confiança na sua exata adesão à realidade está invariavelmente afetada – razão pela qual, por desnecessidade, este incidente é inaplicável às declarações de parte: cfr. os Acs. do TRE de 27-04-2017 (161709/12.2YIPRT-B.E1) e do TRP de 23-09-2024 (317/20.8T8PVZ-B.P1).
Não acompanhamos, pois, sem reservas, a ideia de que “o julgador tem de valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só depois, a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer no viés confirmatório” – cfr. o Ac. do TRL de 26-04-2017 (18591/15.0T8SNT.L1-7). Quanto a nós, entendemos que as duas realidades são incindíveis. Se assim não fosse, o interrogatório preliminar (art. 513.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil) seria dispensável, bastando-se o julgador com a indicação das razões de ciência do depoente (art. 516.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), ou, pelo menos, teria lugar no fim do depoimento, de modo a não contaminar a primeira apreciação da declaração, separando-a da pessoa do declarante.
Com isto não se afirma que a lei impõe que as declarações de parte sejam acompanhadas de outros meios de prova para terem préstimo no julgamento do facto; apenas se afirma que, na formação da convicção segura do julgador, a prática muito dificilmente dispensará a existência de outro meio de prova confirmatório na prova do facto – já assim não será na contraprova (que apenas visa criar a dúvida).

4.2.3. Desenvolvimento de um raciocínio probatório mais exigente

O conhecimento pelo tribunal da factualidade que integra o thema decidendum da instrução não prescinde do contacto direto do tribunal com dados de facto (art. 605.º do Cód. Proc. Civil). A primeira atividade do juiz na demanda da verdade do facto é, pois, a atividade preceptiva. O mero material probatório resultante da produção dos meios de prova – por exemplo, a declaração da testemunha, em si mesma, e não o facto sobre o qual ela depôs – constitui o acervo dos factos diretamente percecionados pelo juiz.
Salvo nos casos de prova direta – obtida por meio de inspeção –, o contacto com o material probatório não permite ao juiz percecionar diretamente a realidade que, alegadamente, funda o pedido do demandante (ou a defesa do réu). Ilustrando esta afirmação, tomando como exemplo a prova testemunhal, os factos de que o tribunal toma diretamente conhecimento são apenas as afirmações da testemunha – porque de um facto se trata, ter a testemunha afirmado algo – e o modo como foram produzidas – pois, por exemplo, também de um facto se trata ter a testemunha hesitado ou ter debitado repetidamente o mesmo discurso monocórdico, qualquer que fosse a pergunta feita sobre os acontecimentos (aparentando ter ensaiado o depoimento). Este material, da maior relevância para o julgamento do facto, é totalmente irrelevante para a fundamentação de facto e de direito da causa, não devendo integrar estes capítulos da sentença (art. 607.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil) – apenas constando da motivação da convicção formada (art. 607.º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil). Ele não preenche a norma que permitirá ao autor obter a condenação do réu (nem a procedência da exceção), pelo que não integra o objeto da pronúncia na decisão sobre a matéria de facto – o tribunal não decide “provado que a testemunha disse que sim” ou “provado que o perito entende que não”.

4.2.4. Conclusão

Na prova indireta, o processo heurístico é complexo, sustentando-se na perceção direta dos factos que integram o material probatório e desenvolvendo-se nos chamados argumentos ou motivos probatórios. E é a este nível que se deve aceitar que, para que possam permitir, por si só, a prova do facto favorável, as declarações de parte devem ser acompanhadas de um material probatório concordante (confirmatório) mais abundante. A mera declaração do depoente, considerada apenas no seu conteúdo ou sentido, não é suficiente para ultrapassar incerteza sobre a verdade do facto. Não é aceitável que a prova do facto alegado se possa bastar com a mera repetição da alegação em julgamento, pela parte, sob juramento.
Se se aceitar que o argumento “é verdade porque eu digo que é verdade” é uma falácia, não pode ele valer como raciocínio probatório. Não se está com isto a fazer um “apelo à falácia” – em si mesmo uma falácia: uma conclusão não é necessariamente falsa apenas por assentar num raciocínio falacioso. Apenas se está a chamar a atenção para o sofisma inicial, imanente a todas as declarações de parte, a exigir o reforço do raciocínio probatório.
Assim, simplificando o problema, não custa aceitar que se julgue o facto provado com base neste raciocínio: a testemunha acidental (desinteressada) afirmou-o, não havendo razões para duvidar dela. Diferentemente, nas declarações de parte, não se afigura válido um raciocínio probatório assente (apenas) numa petição de princípio: é verdade porque o alegante diz que é verdade, não havendo razões para duvidar dele. Já será racional uma motivação assente na existência (positiva) de razões para acreditar que o declarante não está a faltar à verdade.
A hipótese de inexistência de material probatório, para além do conteúdo das declarações de parte, é praticamente académica – seria o caso, hoje não configurável, de o juiz apenas dispor, como meio de prova, de declarações de parte de um ou mais autores reduzidas a escrito, recolhidas por meio de carta precatória. Mas é perante um cenário de inexistência de material probatório (para além do conteúdo da declaração) que temos de responder à questão da suficiência das declarações de parte, sendo que a resposta não pode deixar de ser negativa. A mera declaração da parte não diminui, racionalmente, “o risco de erro do tribunal numa situação de incerteza sobre a verdade do facto” – sobre a eliminação da incerteza como função da prova, cfr. Miguel Teixeira de Sousa, A Prova em Processo Civil: Ensaio sobre o raciocínio probatório, São Paulo, Thomson Reuters, 2020, p. 32 e segs..
Em suma, o raciocínio probatório assente nas declarações de parte deve ser reforçado (relativamente ao raciocínio desenvolvido sobre depoimentos de pessoas não interessadas na causa). O reforço normal do raciocínio probatório é conseguido mediante a convocação de outros meios de prova concordantes – embora não seja de afastar a possibilidade de este reforço ser conseguido apenas com recurso ao material meramente probatório (isto é, às características especiais do depoimento e circunstâncias em que é prestado). Aliás, da inexistência de outros meios de prova, quando seja normal existirem, ou do insucesso na sua produção também se poderão retirar ilações que dificultam a dissipação da dúvida inicial.

No caso dos autos, as declarações de parte inscrevem-se num acervo probatório concordante mais vasto – integrado, designadamente, pelos registos dos dataloggers e pelo testemunho de TTT –, pelo que nada há opor, à partida, à afirmação da sua relevância determinante no julgamento da questão de facto. Improcede, neste ponto, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
A decisão sobre este facto merece ser revisitada, mas não com o fundamento invocado pela apelante – e que caucionou o incumprimento dos ónus previstos no art. 640.º, n.os 1, al. b), e 2, al. a), do Cód. Proc. Civil. A ela voltaremos aquando da alteração oficiosa da decisão respeitante à matéria de facto – veja-se, adiante, o parágrafo 6, intitulado “Alteração oficiosa da decisão respeitante à matéria de facto”.

5. Impugnação sobre o ponto 45 – factos provados

O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto:
45 – A cliente da autora recusou a carne transportada nos dois contentores e não a pagou.
A decisão sobre este ponto foi motivada nos seguintes termos:
“O facto 45 resultou apurado da conjugação de toda a prova produzida com as declarações prestadas pela legal representante da autora, Maria Clara Moura Cruz Abecassis, a qual não obstante o interesse patente nesta ação, depôs com total objetividade, isenção e clareza, tendo merecido a total credibilidade por parte do Tribunal”.
Também sobre este facto, o apelante sustenta, primeiro, que a recursa do pagamento da mercadoria (por avaria) deve ser provada por documento e, depois, que as declarações de parte não podem, por si só, sustentar a prova do facto. Valem, pois, aqui, na íntegra, as considerações desenvolvidas no ponto anterior, bem como a conclusão a que chegámos, agora referindo-se à prova do não pagamento do preço da mercadoria transportada.
Em matéria probatória, alegou a apelante que “o tribunal (…) onerou a ré/apelante com uma contraprova impossível (demonstrar que a destruição da carne não ocorreu e demonstrar que não houve recusa na sua aceitação por parte do destinatário) pelo que, houve violação do princípio ínsito no artigo 4.º do CPC – igualdade das partes – não tendo o tribunal a quo garantido um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no uso de meios de defesa (…)”.
Como é evidente, o tribunal a quo não onerou a apelante com a contraprova. A contraprova é uma faculdade que assiste à parte não onerada com a prova (art. 346.º do Cód. Civil). A apelante manteve intactos todos os “meios de defesa” predispostos pela lei – designadamente, os mecanismos de cooperação judiciária internacional para a obtenção de prova no estrangeiro. Se os utilizou, ou não, é outra questão.
Improcede, também neste ponto, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, com o que se mantém inalterada a factualidade fixada em 1.ª instância.

6. Alteração oficiosa da decisão respeitante à matéria de facto

Não obstante improceder a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, resulta manifesto, quer do teor da sentença – quanto à motivação do cliente destinatário para não pagar o preço –, quer do teor da prova indicada pela apelada e pelo tribunal a quo – quanto à destruição da mercadoria –, que a decisão apelada tem de ser revisitada, no que respeita a dois pontos do julgamento da matéria de facto – sobre a admissibilidade da alteração oficiosa, cfr. o Ac. do STJ de 17-10-2019 (3901/15.8T8AVR.P1.S1), bem como António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2022, pp. 357 e 358.
Sobre a primeira destas intervenções oficiosas do tribunal ad quem – em torno do conteúdo dos arts. 41.º e 44.º da petição inicial –, foi proporcionado às partes o devido contraditório prévio. Cautelarmente, a apelada já se pronunciou sobre o julgamento do segundo facto – descrito no ponto 43 –, pelo que é desnecessário oferecer novo contraditório.

6.1. Decisão sobre os factos constantes dos arts. 41.º e 44.º da petição inicial

Alegou a autora nos arts. 41.º e 44.º da petição inicial:
41.º Como consequência direta desse incumprimento, a Monte do Pasto, por razões de segurança alimentar e regulamentares, ficou impedida de comercializar a carne, a qual não foi efetivamente comercializada.
44.º Pelo que devem as rés, Portocargo e Chubb, ser condenadas a indemnizar a Monte do Pasto no valor correspondente ao prejuízo sofrido, € 274.273,52 (…) na medida em que a Monte do Pasto se viu impedida de comercializar a carne e, em consequência, receber o seu pagamento.
Foram incluídas na sentença apelada as seguintes proposições descritivas:
a) “A cliente da autora recusou a carne transportada nos dois contentores e não a pagou”.
b) “[A]s oscilações da temperatura foram o motivo pelo qual levou a que o destinatário da mercadoria (cliente da autora) recusasse a receção daquela e recusasse o seu pagamento à autora”.

Podemos aceitar que estes enunciados considerados pelo tribunal a quo não exorbitam a alegação, pelo que a sua afirmação não encerra um excesso de pronúncia, podendo servir de fundamento no julgamento do mérito da causa. No entanto, para o efeito, não podem deixar de constar do leque dos factos julgados provados pelo tribunal. Conforme já foi destacado no Ac. do TRL de 05-12-2023 (2371/22.9T8PDL.L1-7) – e reiterado nos Acs. do TRL de 08-10-2024 (39735/22.0YIPRT.L1) e de 26-05-2025 (80/18.2T8OER.L2) –, independentemente da natureza do facto relevante (não notório) e da via pela qual foi adquirido processualmente, tem sempre ele de constar do leque dos factos provados, se vier a ser, e para que possa ser, invocado na fundamentação de direito.
Ora, se o primeiro enunciado está presente no ponto 45 – fundamentação de facto –, o segundo apenas surge na fundamentação de direito da sentença apelada. O mesmo é dizer que a decisão respeitante à matéria de facto é deficiente – pois também devia conter o segundo facto. À luz deste enquadramento legal, impõe-se a intervenção oficiosa deste tribunal, emitindo pronúncia de facto sobre tal factualidade (como provado ou como não provado) – cfr. o art. 662.º, n.os 1 e 2, al. c) (este interpretado a contrario), do Cód. Proc. Civil.
Do teor do depoimento da legal representante da autora – a partir dos 19 minutos –, resulta claro o motivo invocado pelo cliente para recusar a mercadoria transportada: o registo de temperaturas dos dataloggers.
Este facto – motivação da recusa – é também sustentado pela prova indiciária produzida, dado que assenta na relação entre a existência de uma irregularidade e a existência de uma recusa, vista à luz das regras da experiência. Esta prova é sustentada pelos registos referidos (quanto à irregularidade) e pelo testemunho de TTT que versou sobre a ordem de destruição da mercadoria, só fazendo esta sentido perante uma recusa de aceitação pelo destinatário.
Pelo exposto, deve ser aditado ao leque dos factos provados o seguinte ponto:
46 – O aumento transitório da temperatura no interior dos contentores durante o seu transporte, depois de fechados e selados, foi o motivo pelo qual o destinatário das mercadorias, cliente da autora, recusou a sua receção e o pagamento do preço.

6.2. Reapreciação da decisão sobre o ponto 43 – factos provados

Conforme já foi acima sublinhado, o tribunal a quo deu por provado o seguinte facto:
43 – A carne dos dois contentores foi destruída.
A decisão foi motivada com base nos depoimentos da testemunha TTT e da legal representante da autora. Efetivamente, estes depoimentos versam (também) sobre este facto – razão pela qual, não mereceu provimento a impugnação apresentada pela apelante, assente na inexistência de meio de prova bastante (abstratamente idóneo) para a demonstração do facto.
No entanto, o concreto teor das declarações prestadas não sustenta (racionalmente) uma convicção segura sobre a ocorrência de tal facto – mesmo reconhecendo-se que não foi produzida contraprova. Sobre o facto que nos ocupa – a destruição da mercadoria –, a legal representante da autora nada percecionou. O mesmo se diga da testemunha TTT.
Apenas conhecemos a atuação da autora sobre esta questão. Isto é, da prova produzida, apenas resultou demonstrada a posição assumida pela autora. No mais, desconhecemos se o armazenista no destino satisfez a vontade da apelada, destruindo a mercadoria, ou, por exemplo, se se desviou das instruções recebidas e, em proveito próprio, dispôs da mercadoria para consumo humano ou para consumo animal.
Impõe-se, pois, também aqui, ao abrigo da norma enunciada no n.º 1 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil, alterar a decisão sobre o ponto 43 – factos provados –, passando este a ter o seguinte teor:
43 – Por terem ocorrido as referidas variações de temperatura e recusa de pagamento do preço da mercadoria, a autora ordenou a destruição da carne transportada nos dois contentores, não a tendo comercializado

B.C. Análise dos factos e aplicação da lei

São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar:
1. Conhecimento do mérito do pedido
1.1. Fundamentos da ação
1.2. Defesa apresentada pela ré
2. Ampliação do objeto do recurso
3. Responsabilidade pelas custas

1. Conhecimento do mérito do pedido

Não está controvertido que a ré Portocargo interveio nos dois contratos que a ligam à autora na qualidade de transitária, isto é, enquanto prestadora do serviço objeto dos contratos de trânsito (ou expedição) por si ajustado com o carregador (expedidor) – no caso, a autora. A atividade transitária, recorde-se, consiste na prestação de serviços de natureza logística e operacional, desenvolvendo-se, designadamente, no domínio da mediação entre expedidores e destinatários, nomeadamente através de transportadores com quem celebre os respetivos contratos de transporte, em nome próprio ou em nome do seu cliente – cfr. o n.º 2 do art. 1.º e os n.os 1 e 2 do art. 13.º do Decreto-Lei n.º 255/99, de 7 de julho (institui um novo regime jurídico aplicável ao acesso e exercício da atividade transitária). O contrato de expedição ou trânsito é, pois, um contrato que, tipicamente, encerra uma relação de mandato (arts. 1157.º do Cód. Civil e 231.º do Cód. Comercial).
Feito o enquadramento jurídico da relação material controvertida, resta-nos verificar se se verificam os pressupostos do direito exercido pela autora.

1.1. Fundamentos da ação

Estabelece o n.º 1 do art. 15.º do Decreto-Lei n.º 255/99, que “[a]s empresas transitárias respondem perante o seu cliente pelo incumprimento das suas obrigações, bem como pelas obrigações contraídas por terceiros com quem hajam contratado, sem prejuízo do direito de regresso”. Faltando culposamente ao cumprimento da obrigação – culpa de que presume (art. 799.º, n.º 1, do Cód. Civil) –, a empresa transitária é responsável pelo prejuízo causado à contraparte (art. 798.º do Cód. Civil).
No caso dos autos, tal como judiciosamente conclui o tribunal a quo, da “factualidade provada decorre que a ré Portocargo foi contratada pela autora para organizar dois transportes de carne ultracongelada com destino a Macau. (…) Assim sendo, a ré Portocargo, na qualidade de transitária, responde perante a autora pelo cumprimento defeituoso da sua obrigação – de fazer chegar às instalações da Focus Agriculture Limited, em Macau, os contentores com a carne ultracongelada a uma temperatura de -18ºC –, quer a causa para tal cumprimento defeituoso tenha advindo dela própria ou de terceiro (…)”.
Resulta dos factos provados que estas estipulações não foram satisfeitas, não tendo sido mantida a temperatura dos contentores frigoríficos, constantemente, a -18º centígrados ou em valor aproximado. O mesmo é dizer que os contrato de trânsito foram definitivamente incumpridos pela ré Portocargo (art. 406.º, n.º 1, e 762.º, n.º 1, do Cód. Civil), respondendo esta pelos prejuízos causados à autora.
Este incumprimento, isto é, o transitório aumento da temperatura no interior dos contentores, foi o motivo pelo qual o destinatário das mercadorias, cliente da autora, recusou a sua receção e o pagamento do preço. Esta contrapartida corresponde ao prejuízo sofrido pela demandante (arts. 562.º a 564.º e 566.º, n.º 2, do Cód. Civil). Está, pois, a ação em condições de proceder.

1.2. Defesa apresentada pela ré

Para melhor se compreender a irrelevância da defesa apresentada pela ré Portocargo, importa voltar a destacar que o incumprimento imputado à ré se traduz na não manutenção da temperatura no interior dos contentores – e não na não manutenção de uma qualquer temperatura da própria mercadoria –, estando tal incumprimento manifestamente provado. Também, em rigor, o dano não está na avaria da mercadoria – isto é, na sua adulteração –, mas sim na recusa do seu recebimento e pagamento pelo destinatário – fundada, justificadamente, no facto que traduz aquele incumprimento: o transitório aumento da temperatura no interior dos contentores.
A esta luz, rapidamente se conclui que a invocação de uma quebra do sinalagma entre as obrigações das partes, em razão da alegada falta de controlo da temperatura dos contentores pela autora, no momento do carregamento da mercadoria, é desprovida de sentido. Assim é por duas razões.
Por um lado, o sinalagma existe, sim, entre a prestação do serviço e o pagamento do preço, e não entre aquela prestação e uma (inexistente) omissão de colaboração por parte da autora. Não foi alegado o incumprimento do preço do serviço como causa do incumprimento da obrigação da ré.
Por outro lado, resulta dos factos provados que, aquando do carregamento, os contentores atingiram em pouco tempo uma temperatura inferior a -15º centígrados, o que bem revela que uma alegada omissão do seu pré-arrefecimento não foi impeditiva da ulterior manutenção da temperatura acordada – não assentando nela o incumprimento imputável à ré Portocargo (e que foi causa da recusa do destinatário, isto é, do dano). (Consideramos a temperatura de -15º centígrados por ser aquela a partir da qual, e até aos -18º centígrados, a prestação é, no essencial, satisfeita (art. 802.º, n.º 2, do Cód. Civil), conforme se extrai do ponto 39 – factos provados). A conduta inicial da autora não assume nenhuma relevância, pois não impediu a ré de cumprir a sua obrigação e não foi ela que motivou a recusa do destinatário; recusa esta que é legítima, conforme decorre do ponto 38 – factos provados.
Também a esta luz se percebe o equívoco da apelante em torno da prova do dano. Contrariamente ao que afirma, não é “apenas a (…) destruição [da mercadoria que] constitui prejuízo relevante”. Na verdade, esta destruição não representa o prejuízo nem é relevante. O prejuízo está, sim, na recusa do pagamento do preço pelo destinatário (e na não comercialização da mercadoria). Por assim ser, não assume especial relevância para a sorte da ação o alegado pela apelante na 36.ª conclusão – a autora “impediu a realização de exames e de análises à carne transportada”. Ainda que a carne estivesse apta para consumo, tal não afastaria o dano da autora – a recusa justificada de recebimento da mercadoria e de pagamento do preço, por não manutenção dos requisitos da ultracongelação (em violação do contrato de trânsito).
O mesmo se diga da alegação de que a autora não proporcionou à ré Portocargo “o acesso ao ‘produto salvado’, para com ele fazer o que entendesse por conveniente”. A apelante não é uma seguradora e não resulta dos factos provados que a demandante tenha retirado algum proveito do incumprimento (compensatio lucri cum damno).
Em conclusão, não procede a defesa apresentada pela apelante.

2. Ampliação do objeto do recurso

Na contra-alegação apresentada, requereu a autora, Monte do Pasto:
Mais deverá a ampliação do recurso com impugnação da matéria de facto ser julgada procedente, por provada, e, em consequência:
. c) Ser eliminado o facto provado 42;
. d) Ser acrescentado um novo facto com a seguinte redação:
“no momento dos carregamentos a carne estava ultracongelada”
. e) Ser acrescentado um novo facto com a seguinte redação: “A Monte do Pasto interpelou a Portocargo, por notificação judicial avulsa realizada no dia 28 de janeiro de 2022, através da qual reclamou a indemnização pelo incumprimento dos contratos de transporte objeto do presente processo”.
e, em consequência,
. f) Ser a Portocargo condenada em juros desde 28/01/2022, data da NJA,

Estamos, formalmente, perante um pedido de ampliação do objeto do recurso (art. 636.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), o qual só deverá ser apreciado no caso de dever ser procedente a apelação, à luz das questões suscitadas pelo apelante. Como vimos, a apelação da ré Portocargo não procede. Não há, pois, lugar à apreciação da impugnação da matéria facto apresentada no contexto da ampliação do objeto do recurso.
Diga-se que os requerimentos contidos nas als. e) e f) não encerram uma ampliação do objeto da apelação. Na matéria em questão (data a partir da qual são contados os juros moratórios), a autora ficou vencida, pelo que a questão só poderia ser reapreciada em via de recurso por esta interposto – independente ou subordinado. A ampliação do objeto do recurso visa a manutenção da decisão; o recurso subordinado visa a sua alteração. O mesmo é dizer que este objeto nunca poderia ser reapreciado por este tribunal no âmbito da presente apelação.

3. Responsabilidade pelas custas
A responsabilidade pelas custas cabe à apelante (art. 527.º do Cód. Proc. Civil), por ter ficado vencida.

C. Dispositivo
C.A. Do mérito do recurso
Em face do exposto, na improcedência da apelação, acorda-se em manter a decisão recorrida.
C.B. Das custas
Custas a cargo do apelante.
*
Notifique.

Lisboa, 17-06-2025,
Paulo Ramos de Faria
Luís Lameiras
Carlos Oliveira