HABEAS CORPUS
MEDIDAS DE COAÇÃO
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
VIGILÂNCIA ELETRÓNICA
RECURSO ORDINÁRIO
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I - A providência de habeas corpus, ao que pacificamente se tem entendido, veste a ideia de remédio excecional, expedito e urgente em sede de proteção e salvaguarda da liberdade individual, destinando-se a superar/ultrapassar, de pronto, situações de prisão arbitrária ou ilegal ou de privação ilegítima da liberdade de um cidadão.
II - Este mecanismo providencial visa apenas e só, apreciar e decidir se em determinado retrato, se verifica algum dos fundamentos expressos na lei, não se apreciando ou decidindo sobre o mérito da decisão que determina a prisão ou a privação da liberdade, nem tão pouco os eventuais erros processuais que possam ter operado, pois, esses devem ser apreciados por outras vias, mormente o recurso ordinário.
III - A excecionalidade deste instrumento, a par da sua consagração na lei fundamental, quadro que lhe confere dignidade de magnitude inquestionável, implica que o mesmo, não pode, nem deve ser utilizado de forma banalizada nem flagrantemente atentatória das regras básicas que o orientam.
IV - Defendendo a requerente que está privada da sua liberdade por forma ilegal desde 05-01-2025, a verdade é que desde esse marco até à propositura desta providência, foi apresentando sucessivos requerimentos - alteração da medida de coação, pedidos de cópias de peças processuais, prorrogação de prazo para requerer a abertura da instrução, invocação de nulidades -, e jamais lhe ocorreu questionar a bondade da sua situação de privação da liberdade.
V - Todo este quadro, revelador de que não desponta a menor indicação/linha/traço que ilustre estar a requerente em situação de privação da liberdade ilegal, inexistindo o menor suporte para o que anseia, igualmente ilustra todo um estar processual em completo afrontamento às regras vigentes e em total desrespeito pelo princípio norteador do ordenamento processual penal português, o princípio da lealdade processual.
VI - Por outro lado, o habeas corpus não se apresenta como o meio próprio e adequado para pôr em causa os factos que se imputam na acusação, a existência de prova indiciária que os sustente e, bem assim, a presença dos perigos consignados no art. 204.º do CPP.
VII - Emergindo que a requerente mais não fez do que tentar obter a sua libertação por uma via ínvia, descabida, claramente utilizando abusivamente um instrumento especial e excecional, sem o menor suporte legal que o acalente, está patente quadro de pedido manifestamente infundado.

Texto Integral


Acordam em Audiência na 3ª Secção (criminal) do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. AA (adiante Requerente), atualmente sujeita à medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, à ordem do processo nº 1018/24.3..., do Juízo de Instrução Criminal de ... – Juiz ..., vem por si requerer ao Exmo. Senhor Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a providência de habeas corpus, referindo em suporte os artigos 220º, nº 1 e alínea c) do nº 2 do artigo 222º, invocando para tanto, o seguinte:

1.° - A requerente foi constituída arguida em 05.09.2024 no âmbito do inquérito levado a efeito pelo Ministério Público.

2.° - Naquela data (05.09.2024) a Digmª Sr.ª Magistrada do Ministério Público, ordenou a detenção da arguida para ser presente a interrogatório judicial.

3.° - Quanto aos factos que constam no mandado de detenção, a arguida somente deles teve conhecimento naquele dia e hora.

4.° - E que, na sequência da detenção foi presente ao Mm.º Juiz de Instrução Criminal, para aplicação de medida de coação cautelar prevista no 204.° do C.P.P., tendo decretado a obrigação de permanência na habitação sob vigilância electrónica, ao abrigo do artigo 201.° do C.P.P.

5.° - Porquanto, a arguida está detida desde 05.09.2024, medida renovada por Despacho do Mm.° Juiz de Instrução Criminal de 06.12.2024.

6.° - O Mm.º Juiz reexaminou os pressupostos sem indicação de factos concretos que permitiam renovação da medida de coação, porém, fê-lo por Despacho de 03.03.2025, (ref: .......58) decidindo manter prisão domiciliária, pelos menos por mais três meses, ou seja até 05.06. 2025.

7.° - A arguida entende que os prazos de prisão domiciliária, foram excedidos, em virtude de haver prisão ilegal por violação da alínea c) do n.° 2 do artigo 222.° do C.P.P. e n.°s 1 e 2 do artigo 31.° da C.R.P.

Ademais,

8.° - Resulta da acusação que está pejada de indícios que envolvem a arguida nos crimes praticados.

9.° - A arguida não praticou qualquer crime, não esteve presente nem envolvida na prática dos crimes de que está acusada.

10.° - Nem de co-autoria poderá ser acusada, AA não participou como mandante, organizadora, ou influenciadora, não cometeu, nem exerceu qualquer violência sobre a vítima, nem se apropriou de qualquer valor, porquanto, desconhece como o produto do furto foi distribuído, a acusação nada aborda quanto ao quantum proveniente dos roubos, por existir de uma relação e participação da arguida.

11.° - Resulta da acusação BB e CC não entraram nas residências das ofendidas, sem recurso a chaves, ainda que tivessem sido furtadas nada serviram, ademais só uma das três vítimas era cliente do salão da arguida, a este efeito, a jurisprudência, estabelece, que em caso análogo, o roubo de chaves, não integra o crime de roubo:

(…)

12.° - Entende a arguida que não pode lhe ser imputado os crimes de roubo, por neles não ter participado, porquanto, não exerceu violência ou agressões sobre as vítimas.

13.° - Inexiste imputabilidade da arguida da prática de ofensas à integridade física.

Porquanto,

14.° - A prisão preventiva decreta por Despacho do Mm.° Juiz do JIC, é manifestamente ilegal, devendo ser libertada de imediato, a este efeito existem os pressupostos de direito que determinam a revogação das medidas cautelares, por prisão ilegal.

15.° - Prescreve o artigo 215.°, n.° 1, al. a) do Código de Processo Penal, que os pressupostos da prisão preventiva aplicam-se por analogia à obrigação de permanência na habitação.

16.° - Acontece que, prescreve o artigo 276.°, n.° 1 do C.P.P.,

O Ministério Público encerra o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação, nos prazos máximos de seis meses, se houver arguidos presos ou sob obrigação de permanência na habitação, ou de oito meses, se os não houver.

17.° - O inquérito encerrou com o Despacho de Arquivamento e Acusação do Ministério Público datado de 07.03.2035 (Ref; ........15), tendo ultrapassado os seis meses tendo em conta que foi detida em 05.09.2024.

18.° - A pisão preventiva extingue-se desde o seu início, se tiverem decorridos quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação.

19.° - Podendo aquela medida ser elevada para seis meses, quando o crime punível com pena de prisão for superior a oito anos.

20.° - Os crimes imputados à arguida, não se enquadram na tipificação da al. a) do n.° 2 do artigo 215.° do C.P.P., excluem-se as als. b), c), d), e), f) e g), do mesmo normativo, e quanto ao n.° 3 do referido preceito que estipula o prazo máximo de prisão preventiva, inexiste especial complexidade, devido nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou carácter altamente organizado do crime.

21.° - Inexistindo qualquer aplicação de acréscimo do prazo de prisão domiciliária previsto no artigo 215.° do C.P.P., está o Mm.° Juiz impedido de renovar a prisão preventiva além dos seis meses, e ao fazê-lo viola os preceitos legais incluindo, os constitucionais.

22.° - A privação de liberdade da arguida por tempo superior ao enunciado no artigo 215.° do C.P.P., violará o direito à liberdade, proclamado na Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 3.°), na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (artigo 5.°), e Constituição da República Portuguesa (artigo 27. °).

23.° - Os prazos de prisão preventiva previstos no artigo 215.° do C.P.P., são considerados peremptórios

(…)

24.° - A renovação da obrigação de permanência na habitação da arguida em prazo superior ao legalmente estabelecido no artigo 215.° do C.P.P., (após 06.03.2025) está enfermada de invalidade, por violar dos princípios básicos consignados no direito português e nas convenções internacionais. E ainda,

25.° - Nesta data quanto às prorrogativas enunciadas no 204.° do C.P.P., pode-se aferir quanto aos pressupostos da permanência na habitação e dos actos praticados pela arguida:

a) Inexiste qualquer perigo de fuga;

b) Quanto à possibilidade de perturbação do inquérito, a mera hipótese da arguida manipular as ofendidas/vitimas, quando iniciar a actividade profissional no cabeleireiro, poderão ser impostas algumas das medidas previstas no artigo 200.° do C.P.P., nomeadamente a prevista no n.° 1 alínea d) que impede a aproximação das ofendidas, e;

c) Também não se verifica que a arguida continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas, atendendo que, os arguidos que perpetraram os crimes se encontram presos preventivamente, e a arguida pretende seguir o seu curso de vida de forma pacifica.

26.° - A aplicação da medida de coação além de 05.03.2025, configura uma violação dos direitos e garantias em processo criminal reconhecido a arguido preso, por violação da sua liberdade individual.

Nestes termos,

tendo em conta o prazo da acusação do Ministério Público ter ultrapassado os seis meses de detenção, e que inexistem factos concretos na acusação que pendem contra a acusada para continuar em prisão domiciliária, por conseguinte, a arguida vem requerer a V. Exas. se dignem revogar o Despacho do Mm.° J.I.C. de 03.03.205 que determina a continuidade da arguida em prisão preventiva (domiciliária) por ilegal, e em consequência deve ser ordenada a sua libertação imediata.

2. Da informação prestada, em respeito ao que se consigna no artigo 223º, nº 1 – parte final – do CPPenal, notando sobre as condições em que foi efetuada e se mantém a situação de privação da liberdade da Requerente, consta: (transcrição)

A Arguida foi detida em 05/09/2024 (fls. 139v) e presente a primeiro interrogatório judicial no dia 06/09/2024 – artigos 141º e 254º, nº 1, a) do Código de Processo Penal.

Nessa sede, foi considerada fortemente indiciada factualidade suscetível de consubstanciar a prática, pela Arguida, de dois crimes de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210º, nºs 1 e 2, al. b), por referência ao disposto no artigo 204º, nº 1, al. d) e nº 2, al. e) e f) do Código Penal. À Arguida foi aplicada a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, sendo que até confirmação da viabilidade da medida, aguardou em prisão preventiva (fls. 174 a 184) – artigo 201º do Código de Processo Penal.

Quanto ao reexame dos pressupostos da medida de coação previsto no artigo 213º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal, a mesma foi revista e mantida em 03/12/2024 (fls. 333) e em 03/03/2025 (fls. 469).

Foi deduzida acusação contra a Arguida em 03/03/2025 (fls. 433 a 457), tendo-lhe sido imputada a prática, em coautoria material e na forma consumada, de três crimes de roubo agravado p. e p. nos termos do artigo 210º, nº s 1 e 2, al. b), por referência ao disposto no artigo 204º, nº 1, al. d) e nº 2, al. e) do Código Penal.

No que tange ao prazo de duração máxima da medida de coação em apreço, prevê o artigo 215º, nºs 1 e 8 do Código de Processo Penal que a medida se extingue quando, desde o seu início, tiverem decorrido “a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação; b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória; c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância; d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.”

Contudo, o nº 2 do citado preceito prescreve que os prazos referidos no número anterior são elevados, respetivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por algum dos crimes ali previstos.

Ora, o ilícito imputado à Arguida é punido com pena de 3 a 15 anos de prisão, integrando o conceito de “criminalidade especialmente violenta”, tal como previsto no artigo 1º, al. l) do Código de Processo Penal, aplicando-se assim esta elevação de prazos máximos de duração da medida de coação.

Deste modo e salvo melhor apreciação, quando em 03/03/2025 foi deduzida Acusação, o prazo máximo de 6 meses de duração da medida de coação, ainda não se encontrava esgotado, assim se justificando a manutenção da medida por revisão operada nesse mesmo dia – artigo 215º, nº 1, al. a) e nº 2 do Código de Processo Penal. Acresce que até à presente data, ainda se não esgotaram os prazos referidos no artigo 215º, nº 1, als. b), c) e d) e nº 2 do Código de Processo Penal.

3. O processo encontra-se instruído com a documentação pertinente1.

4. Convocada a secção criminal, notificado o Digno Mº Pº e o Ilustre Mandatário da Requerente, teve lugar a audiência, após o que o tribunal reuniu e deliberou, no respeito pelo consignado no artigo 223º, nºs 2 e 3 do CPPenal, o que fez nos termos que se seguem.

*

II. Fundamentação

A. Dos factos

Com relevância para a decisão do pedido de habeas corpus, extraem-se dos autos os seguintes factos:

i) Por despacho proferido pelo Digno Mº Pº, em 5 de setembro de 2024, nos autos aqui em causa, foi determinada a detenção fora de flagrante delito da ora Requerente, por se mostrar fortemente indiciada a prática pela mesma de 2 (dois) crimes de roubo agravado p.p. nos termos dos artigos 14º, nº 1 e 210º, nºs 1 e 2, alínea b) por referência ao disposto no artigo 204º, nºs 1, alínea d) e 2, alíneas e) e f), todos do CPenal2;

ii) A Requerente detida, nesse mesmo dia, pelas 19H, 45m3, foi sequentemente sujeita a 1º interrogatório judicial de arguida detida, em 6 de setembro de 20244;

iii) Finda tal diligência foi a Requerente indiciada pela prática de dois crimes de roubo agravado p.p. nos termos dos artigos 14º, n º1 e 210º, nºs 1 e 2, alínea b) por referência ao disposto no artigo 204º, nºs 1, alínea d) e 2, alínea e) e f), todos do CPenal, tendo-lhe sido imposta a medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, por se ter entendido que nenhuma outra seria adequada à situação em causa;

iv) Por despacho proferido em 3 de dezembro de 2024, foi reapreciada a situação coativa da Requerente e dos seus coarguidos, tendo-se decidido que deveriam (…) aqueles arguidos continuarem a aguardar os ulteriores termos do processo sujeitos às medidas de coação atualmente em vigor (conferir art.º 213.º do Código de Processo Penal)5;

v) Desse despacho foram notificadas a Requerente6 e a sua Ilustre Defensora Oficiosa7, por via de ofícios de notificação datados de 3 de dezembro de 2024;

vi) Em 3 de março de 2025 foi proferida acusação contra a Requerente e mais três arguidos, imputando-se àquela a prática em coautoria material e na forma consumada de 3 (três) crimes de roubo agravado p. p. nos termos do artigo 210º, nº s 1 e 2, alínea b), por referência ao disposto no artigo 204º, nºs 1, alínea d) e 2, alínea e), todos do CPenal;

vii) Nesse mesmo dia veio a Requerente solicitar a alteração da medida de coação a que se encontrava sujeita, por (…) inexistirem os pressupostos enunciados no artigo 204º do CPP, e esgotado prazo máximo de prisão domiciliária previsto no 215º do CPP8;

viii) Por despacho judicial proferido, também, a 3 de março de 2025, foi decidido (…) uma vez que não se mostram excedidos os prazos máximos, deverão aqueles arguidos continuarem a aguardar os ulteriores termos do processo sujeitos às medidas de coação atualmente em vigor (conferir art.º 213.º do Código de Processo Penal)9;

ix) Deste despacho foram notificados a Requerente10 e o seu Ilustre Mandatário11 por via de ofícios de notificação datados de 3 de março de 2025;

x) Da acusação contra si deduzida foram notificados a Requerente através de ofício de notificação datado de 7 de março de 202512 - notificação por via postal simples com prova de depósito – e o seu Ilustre Mandatário mediante ofício de notificação com a mesma data13;

xi) Por despacho proferido em 11 de março de 2025, tomando-se pronunciamento sobre o pedido apresentado pela Requerente em 3 de março de 2025 e referido em vii) foi decidido (…) Na mesma data da interposição daquele requerimento foi deduzida acusação e — como se disse — determinada a manutenção daquela medida de coação por se entender nada nos autos permitir “concluir que as circunstâncias supra aludidas tenham sofrido alteração de modo a estar em causa a revogação da medida coativa ou a substituição por outra”. Tal circunstancialismo não sofreu qualquer mutação (…) dessa forma, se não pode deixar de concluir que os pressupostos de facto e de direito que sustentaram a decisão de sujeição da arguida à medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica permanecem atuais, não sendo, por isso, e sem mais, sequer equacionável — ou admissível — a alteração do regime coativo. Indefere-se, assim, o requerido14;

xii) Deste despacho foi a Requerente notificada em 12 de março de 2025, conforme prova de depósito15 e o seu Ilustre Mandatário por via de ofício de notificação datado de 13 de março de 202516;

xiii) Por requerimento de 13 de março de 2025, o Ilustre Mandatário da Requerente, junto aos autos, veio peticionar fotocópias simples de várias peças dos mesmos17;

xiv) Semelhante pedido foi feito, também pelo Ilustre Mandatário da Requerente, em 21 de março de 202518;

xv) Por requerimento apresentado em 10 de abril de 2025, a Requerente, através do seu Ilustre Mandatário veio requerer a prorrogação do prazo para requerer a abertura da instrução19;

xvi) Em 14 de abril de 2025, a Requerente, através do seu Ilustre Mandatário, veio requerer a abertura da instrução20;

xvii) Por despacho judicial proferido em 5 de maio de 2025, foi rejeitado o pedido de realização da instrução apresentado pela Requerente por (…) manifestamente extemporâneo, já que não ocorreu qualquer causa válida de suspensão ou de interrupção do dito prazo21;

xviii) A Requerente, através do seu Ilustre Mandatário, reagindo a este despacho, veio arguir a nulidade do mesmo, por via de requerimento de 8 de maio de 202522;

xix) Em 20 de maio de 2025, a Requerente em petitório por si assinado, o qual foi apresentado nos autos pelo seu Ilustre Mandatário via plataforma Citius, vem suscitar esta providência do Habeas Corpus23.

B. Questões a decidir

Versando sobre o requerimento apresentado, cumpre apurar se a Requerente se encontra em situação de prisão ilegal, por terem sido ultrapassados os prazos máximos de sujeição à medida coativa de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica.

C. O direito

Visitando o artigo 31º, nº 1, da CRP24 de imediato se pode retirar a consagração do instituto do habeas corpus como via de reação ao abuso de poder advindo de um aprisionamento ilegal / privação da liberdade sem respaldo na lei.

Este mecanismo, bebendo, ao que se pensa, do Habeas Corpus Act de 167925 aprovado pelo Rei Carlos II, destinado a acautelar / sufragar a proteção da liberdade pessoal perante detenções abusivas do rei, apelando à apreciação / ponderação da justeza / bondade da captura por um juiz, teve acolhimento claro no ordenamento jurídico português através da Constituição de 21 de agosto de 191126.

A providência de habeas corpus, ao que pacificamente se tem entendido, veste a ideia de remédio excecional, expedito e urgente27 em sede de proteção e salvaguarda da liberdade individual, destinando-se a superar / ultrapassar, de pronto, situações de prisão arbitrária ou ilegal ou de privação ilegítima da liberdade de um cidadão28.

Ou seja, este mecanismo providencial visa apenas e só, apreciar e decidir se em determinado retrato, se verifica algum dos fundamentos expressos na lei, não se apreciando ou decidindo sobre o mérito da decisão que determina a prisão ou a privação da liberdade, nem tão pouco os eventuais erros processuais que possam ter operado, pois, esses devem ser apreciados por outras vias, mormente o recurso ordinário29.

Urge sublinhar que a excecionalidade deste instrumento, a par da sua consagração na Lei Fundamental, quadro que lhe confere dignidade de magnitude inquestionável, não pode nem deve, ao que se pensa, ser utilizado de forma banalizada nem flagrantemente atentatória das regras básicas que o orientam.

Diga-se, ainda, que para fazer funcionar este instituto, imperioso se torna que a ilegalidade da prisão se exiba como manifesta, grosseira, inequívoca, inquestionável e seja diretamente verificável a partir dos documentos e informações constantes dos autos30.

Cabe, também, reter que este mecanismo se encontra tratado, em termos infraconstitucionais, pela normação inserta nos artigos 220º e 221º do CPPenal, quando em causa recorte de detenção ilegal, e nos artigos 222º e 223º do mesmo compêndio legal, nos casos de prisão ilegal.

Na situação em apreço, e apesar da escancarada ausência de fundamento para a utilização deste expediente processual, e da evidente confusão relativa aos preceitos a que a Requerente se socorre31, tanto quanto se crê, desponta o apelo ao regime relativo à prisão ilegal que, como é consabido e pacificamente sufragado, demanda a verificação de algum dos fundamentos expressos no elenco taxativo das alíneas do nº 2 do artigo 222º do CPPenal, ou seja, estar-se na presença de prisão efetuada ou ordenada por entidade incompetente, motivada por facto pelo qual a lei a não permite ou, finalmente, manter-se para além dos prazos estipulados pela lei ou por decisão judicial32.

Atentando a todo o narrado, exulta que a Requerente pretende fazer operar a condição expressa na alínea c) do nº 2 do artigo 222º do CPPenal – prisão ilegal por se manter para além dos prazos fixados pela lei -, ou seja, fazer ponderar sobre o período temporal que o legislador entendeu como razoável que, funcionando como uma causa de certeza para quem está aprisionado, igualmente se apresenta como um corolário do princípio da proporcionalidade, pois reflete / sufraga os limites temporais de restrição admissível do valor liberdade constitucionalmente albergado33.

Nesse desiderato, ancora-se a pretensão apresentada, em aspetos atinentes com o estar ou não envolvida nos factos que se lhe imputam, com a existência de indícios que o ilustrem, com a verificação dos perigos que se enunciam no artigo 204º do CPPenal e, bem assim, com a circunstância de, no seu entender, se mostrarem ultrapassados os prazos consignados no artigo 215º do mesmo complexo legal.

Cotejando todos estes considerandos, e visitando a factualidade concreta supra enunciada e que deslumbra de todo o acervo processual, ao que se entende, fácil, pronta e imediatamente se deteta que não desponta a menor indicação / linha / traço que ilustre estar a Requerente em situação de privação da liberdade ilegal, inexistindo o menor suporte para o que aqui se anseia, surgindo todo este estar processual em completo afrontamento às regras vigentes e, ao que se pensa, em total desrespeito pelo princípio norteador do ordenamento processual penal português, o princípio da lealdade processual.

Na realidade, e primeiramente, diga-se que a Requerente, defendendo que está privada da sua liberdade por forma ilegal desde 5 de janeiro de 2025 - (…) A pisão preventiva extingue-se desde o seu início, se tiverem decorridos quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação (…) – a verdade é que desde esse marco a até à propositura desta providência, foi apresentando sucessivos requerimentos – alteração da medida de coação, pedidos de cópias de peças processuais, prorrogação de prazo para requerer a abertura da instrução, invocação de nulidades -, e jamais lhe ocorreu questionar a bondade da sua situação de privação da liberdade.

Por seu turno, afirmando que a acusação contra si deduzida o foi em 7 de março de 2025, claramente para fazer intuir que o prazo máximo de 6 meses fixado nas normações conjugadas dos artigos 213º e 215º, nºs 1, alínea a) e 2, foi desrespeitado, desde então e até este momento foi-se deixando, sem o menor questionamento, em situação que no seu entender seria ilegal.

Com efeito, em vez de contra tal reagir, foi apresentando sucessivos requerimentos, incluindo requerer a abertura da instrução – 14 de abril de 2025 - e arguir a nulidade do despacho que o rejeitou - 8 de maio de 2025 – paulatinamente se resignando à tal dita ilegalidade da sua situação de privação da liberdade.

Acresce que para sustentar a pretensa inconformidade da sua situação vem a Requerente pôr em causa os factos que se lhe imputam na acusação, a existência de prova indiciária que os sustente e, bem assim, a existência dos perigos consignados no artigo 204º do CPPenal.

Ora, como de forma exuberantemente límpida se retira dos autos, a Requerente está acusada da prática em coautoria material de 3 (três) crimes de roubo agravado p. p. nos termos do artigo 210º, nº s 1 e 2, alínea b), por referência ao disposto no artigo 204º, nºs 1, alínea d) e 2, alínea e), todos do CPenal, quadro criminal este que integra o conceito de criminalidade especialmente violenta, atentando ao que estipula o artigo 1º, alínea l) do CPPenal, conjugado a penalidade cabível para cada um dos ditos ilícitos – 3 a 15 anos de prisão.

Nessa senda, o prazo máximo, in casu, para ser deduzida a acusação é de 6 meses – artigos 213º e 215º, nºs 1, alínea a) e 2 do CPPenal.

Mais desponta, com absoluta clareza, que a acusação foi deduzida em 3 de março de 2025 e não em 7 de março de 2025 como a Requerente pretende fazer valer, pelo que tendo sido aquela sujeita à medida de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica em 6 de setembro de 2024, mostra-se notadamente respeitado o prazo ali prescrito.

Ainda que se reportasse esta contagem à data da detenção da Requerente - 5 de setembro de 2024 – nenhuma falha operaria34.

Sendo certo que a Requerente terá sido notificada da acusação contra si deduzida em 7 de março de 2025, tem sido jurisprudência solidamente aceite por este deste STJ35, ideia também suportada pelo Tribunal Constitucional36 que, para a verificação do cumprimento dos prazos máximos de prisão preventiva, reportados ao momento da acusação, previstos no artigo 215º do CPPenal, é relevante a data da sua dedução, e não a data da notificação desta ao arguido.

Ante todo este explicativo, reforça-se, não faz o menor sentido todo o posicionamento aqui trazido.

Por seu turno, toda a panóplia de questões completamente laterais invocadas pela Requerente – (…) não praticou qualquer crime, não esteve presente nem envolvida na prática dos crimes de que está acusada (…) Nem de co-autoria poderá ser acusada (…) não participou como mandante, organizadora, ou influenciadora, não cometeu, nem exerceu qualquer violência sobre a vítima, nem se apropriou de qualquer valor, porquanto, desconhece como o produto do furto foi distribuído, a acusação nada aborda quanto ao quantum proveniente dos roubos, por existir de uma relação e participação da arguida (…) Inexiste qualquer perigo de fuga (…) a possibilidade de perturbação do inquérito, a mera hipótese da arguida manipular as ofendidas/vitimas, quando iniciar a actividade profissional no cabeleireiro, poderão ser impostas algumas das medidas previstas no artigo 200.° do C.P.P. (…) também não se verifica que a arguida continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas – não é para ser discutida / ponderada / avaliada em sede da providência do Habeas Corpus que não serve, nem é o meio próprio para sindicar despachos judiciais dos quais se discorda, como já atrás se referiu.

Por isso, e sem necessidade de outros considerandos, quanto ao presente pedido, não se consideram verificados quaisquer dos fundamentos exigidos nos termos do artigo 222º, do CPPenal, concluindo-se que a Requerente se encontra sob a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, imposta por força de uma decisão judicial exequível, proferida pelo juiz competente, motivada por quadro factual que a lei permite, mostrando-se respeitados os respetivos limites de tempo fixados por lei.

E, assim sendo, inexistindo o fundamento bastante de habeas corpus invocado pela Requerente, e nenhum outro despontando, há que indeferir a peticionada providência.

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Importa ainda avaliar se o retrato em exame, e perante todo o existente, aponta para situação enquadrável na ideia de pedido manifestamente infundado, reclamando que para além da sanção tributária – custas e taxa de justiça - a impor, se deva fixar a sanção processual, devida pelo mau e indevido uso deste instrumento reativo.

Aqui, ao que se pensa, não basta que o peticionante se tenha excedido ao utilizar este mecanismo; necessário se torna que o pedido formulado seja claramente / evidentemente / imediatamente e sem sombra de quaisquer dúvidas, incapaz de vingar37; quando através de uma mera e sumária avaliação dos fundamentos do pedido formulado, é possível concluir, sem margem para interrogações, que o mesmo está votado ao insucesso.

Em presença de todo o acima exposto, emergindo que a Requerente mais não fez do que tentar obter a sua libertação por uma via ínvia, descabida, claramente utilizando abusivamente um instrumento especial e excecional, sem o menor suporte legal que o acalente, entende-se que está patente quadro de pedido manifestamente infundado.

III. Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 3ª Secção Criminal, em:

a) Indeferir o pedido de habeas corpus peticionado pela Requerente AA a coberto do disposto no artigo 223º, nº 4, alínea a), do CPPenal, por manifesta falta de fundamento;

b) Condenar a Requerente nas Custas do processo, fixando em 4 (quatro) UC a Taxa de Justiça (artigo 8º, nº 9, do Regulamento Custas Processuais e Tabela III, anexa);

c) Condenar a Requerente no pagamento da quantia de 10 (dez) UC, nos termos do disposto no artigo 223º, nº 6 do CPPenal.

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Comunique de IMEDIATO, enviando cópia.

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O Acórdão foi processado em computador e elaborado e revisto integralmente pelo Relator (artigo 94º, nº 2, do CPPenal), sendo assinado pelo próprio, pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos e pelo Senhor Juiz Conselheiro Presidente da Secção.

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Supremo Tribunal de Justiça, 28 de maio de 2025

Carlos de Campos Lobo (Relator)

António Augusto Manso (1º adjunto)

Maria Margarida Ramos de Almeida (2ª Adjunta), com Declaração de Voto, infra

Nuno António Gonçalves (Presidente da secção)

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Declaração de Voto

Voto a decisão, com a qual estou integralmente de acordo, discordando apenas do facto de a mesma ser proferida após audiência, por entender que deveria ter sido rejeitada, por manifestamente infundada, por despacho do relator, atentas as razões que de seguida exponho:

1. O artº 31.º da Constituição da República Portuguesa instituiu, no nosso ordenamento jurídico, a providência de habeas corpus, determinando que:

1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.

2. Trata-se de um instituto jurídico próprio e único, que abrange, no seu seio, dois tipos específicos de protecção, contra prisão ou detenção ilegal.

Como afirma o Acórdão do STJ de 16-03-2015, processo nº 122/13.TELSB-L.S1, 3ª secção, consultável in www.dgsi.pt, A petição de habeas corpus contra detenção ou prisão ilegal, inscrita no art. 31.º da CRP, tem tratamento processual nos arts. 220.º e 222.º do CPP, que concretizam a injunção e a garantia constitucional.

Estamos, pois, perante um instrumento reactivo dirigido ao abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 08P435, Nº Convencional: JSTJ000, de 13-02-2008, consultável em www.dgsi.pt).

3. Coube ao legislador ordinário proceder à determinação do tratamento processual de tal instituto, o que fez nos artºs 220 a 224 do C.P.Penal, atribuindo a competência para o processamento dessa providência, no que toca a casos de detenção ilegal, aos tribunais de 1ª instância e, nos casos de prisão ilegal, ao STJ, especificando os requisitos próprios do que constitui detenção e prisão ilegal, nos artºs 220 e 222 do C.P.Penal, respectivamente.

Assim, a competência para a decisão cabe à secção criminal do STJ, quando se reporte a prisão ilegal e, no caso de detenção ilegal, recai sobre o juiz de instrução da área em que se encontrar o detido.

4. Da conjugação dos requisitos legais acima mencionados (artº 31 da CRP, artºs 220 a 224 do C.P.Penal), que se mostram necessários para a averiguação do procedimento geral a observar neste tipo de providência (para além dos dispositivos complementares necessários e de aplicação geral, constantes no C.P.Penal), resulta que a lei estipula a possibilidade de serem realizadas averiguações complementares, bem como que a apreciação será realizada em audiência contraditória e a decisão deverá ser alcançada no prazo de 8 dias.

5. Resulta ainda que compete ao juiz, ao receber o requerimento, apreciar se o mesmo se mostra ou não manifestamente infundado. Se tal for o caso, deve tal requerimento ser rejeitado (artº 221 nº1 e nº4 e artº 223 nº6, ambos do C.P.Penal).

6. Essa decisão singular é passível de ser revisitada, no caso das decisões proferidas em sede de 1ª instância, pela via de recurso e no caso de decisão singular do relator, no STJ, por reclamação que deverá ser apreciada em audiência.

7. Efectivamente, o disposto no artº 417 do C.P.Penal é uma norma de carácter geral, aplicável a todos os processos, dirigida ao momento em que os relatores, nos tribunais superiores, procedem ao exame preliminar dos autos, não se cingindo a mesma apenas aos casos de recurso, como aliás resulta claro do teor do seu nº 6, 1ª parte da al. c) e al. d) e nº8, em que não é feita qualquer restrição a tal apreciação, apenas no caso de se estar perante um processo de recurso.

8. No caso, por aplicação directa de tal normativo, a decisão singular, em sede de exame preliminar, poderá ser alvo de apreciação colectiva, por via da reclamação prevista no nº8 desse artigo, sendo certo que, neste específico caso, a mesma deverá ocorrer em sede de audiência, uma vez que o artº 31 da CRP impõe a mesma, nas providências de habeas corpus – o que bem se entende, atenta a celeridade, também constitucionalmente imposta, que determina a decisão da providência em 8 dias, o que se mostraria incompatível com a realização de conferência, que pressupõe o prévio funcionamento do princípio do contraditório – sendo assim norma de carácter especial que, neste preciso ponto, derroga a geral, que refere conferência.

9. Os aspectos de processamento acima mencionados são comuns a qualquer um dos tribunais competentes para o conhecimento da providência de habeas corpus, isto é, aplicam-se quer aos casos em que o fundamento é a detenção ilegal (que compete à 1ª instância apreciar), quer àqueles que se baseiam na alegação de prisão ilegal (que cabe ao STJ decidir), divergindo apenas na parte que se reporta ao estrito diverso modo de funcionamento de um tribunal de 1ª instância e de um tribunal superior.

10. Daqui decorre que se mostra aplicável a este STJ a apreciação consignada no citado artº 221 nº1 e nº4, em conjugação com o disposto no artº 223 nº6, ambos do C.P.Penal, considerando-se, aliás, que tal entendimento se mostra consubstanciado ainda pelas seguintes razões:

Determina o artº 223.º nºs 1 e 2 do C.P.Penal, que a petição de habeas corpus é enviada imediatamente ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, com informação sobre as condições em que foi efectuada ou se mantém a prisão e que, se da informação constar que a prisão se mantém, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça convoca a secção criminal, que delibera nos oito dias subsequentes, notificando o Ministério Público e o defensor e nomeando este, se não estiver já constituído. São correspondentemente aplicáveis os artigos 424.º e 435.º

Por seu turno, determina o artigo 56.º nº1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto que, fora dos casos previstos na lei de processo e nas alíneas g) e h) do artigo anterior, o julgamento nas secções é efectuado por três juízes, cabendo a um juiz as funções de relator e aos outros juízes as funções de adjuntos.

Ora, a apreciação prévia em sede de providência de habeas corpus, mostra-se prevista na lei do processo, como acima se expôs.

11. Do que se deixa dito decorre que, por regra, os pedidos de habeas corpus serão decididos em audiência, seja ela singular (1ª instância), seja colectiva (STJ).

Todavia, tal regra (como quase todas), apresenta excepções, designadamente quando ocorram circunstâncias que se mostrem previstas na lei de processo e que imponham, por parte do juiz, seja ele o juiz singular da 1ª instância, seja o juiz relator, no STJ – a quem compete apresentar o projecto de acórdão que será discutido, após audiência – uma tomada de posição e de decisão prévia à realização da audiência; isto é, quando se verifiquem circunstâncias que, no âmbito do exame preliminar do processo que é imposto ao relator, obstaculizem o prosseguimento dos autos para tal fim ou o seu destino se mostre irremediavelmente votado ao insucesso, determinando irrevogavelmente a manifesta improcedência do peticionado.

12. Temos, pois, da conjugação dos artigos acima mencionados que, em sede de providência de habeas corpus, o relator (à semelhança do juiz de 1ª instância) deve realizar um exame preliminar, para averiguação da existência de algumas das circunstâncias que o legislador impôs como devendo ser conhecidas por decisão sumária, o que se mostra igualmente enquadrável na própria determinação da Lei Orgânica, de que o processo só deve avançar para audiência, se se não verificarem questões cujo conhecimento a lei do processo impõe e que a não obstaculizem.

13. E bem se entende que assim seja, pois o legislador tem a preocupação de assegurar a eficiência do processamento processual, através da prevenção de actos inúteis, que não só acarretam um maior dispêndio temporal do que o necessário, como envolvem igualmente que os contribuintes portugueses acabem por suportar um custo acrescido, com a realização de um acto que envolve quatro magistrados judiciais, um magistrado do MºP., um advogado e um funcionário, pelo menos, para a realização de uma audiência, num processo que deveria ter sido já decidido, por uma única pessoa.

Seria um contra-senso legal entender-se que a expressa referência, constante no nº1 do artº 221 do C.P.Penal, que estipula que a primeira indagação que cabe ao juiz que recebe o requerimento, é a de decidir se este deve ou não ser considerado como manifestamente infundado, apenas se refere ao juiz de 1ª instância, ainda para mais quando o próprio nº6 do artº 223 do C.P.Penal refere expressamente tal possibilidade de rejeição. Especialmente se tivermos em atenção que o instituto de habeas corpus é único, constitucionalmente estabelecido de forma una, enquanto modo de reacção contra abusos de poder, que determinam a perda indevida da liberdade de um qualquer cidadão, inexistindo, nesta sede, qualquer hierarquia ou graduação entre detenção ou prisão.

Na verdade, se um juiz que exerce a sua função num tribunal hierarquicamente inferior aos tribunais de recurso, tem o poder/dever de averiguar, assim que recebe o requerimento, da eventual manifesta falta de fundamento de uma providência de habeas corpus – sendo certo que essa decisão é singularmente tomada, sendo posteriormente passível de ser apreciada por um tribunal colectivo, em sede de recurso – não se vislumbra como tal faculdade se mostraria vedada a um juiz de um tribunal hierarquicamente superior – no caso, exercendo funções no mais alto tribunal deste país – sendo certo que, de igual modo, essa sua decisão poderá vir a ser reanalisada por um colectivo de juízes, caso haja reclamação.

14. O que daqui decorre é que, sendo o instituto de habeas corpus um único, que tem como propósito a apreciação célere de um grave atentado à liberdade individual que alguém tenha sofrido, por virtude de abuso de poder, o procedimento processual mostra-se estabelecido através da leitura conjugada do disposto nos artºs 221 e 223 do C.P.Penal, no que concerne a tudo o que se não prenda directamente com a diversidade de razões que podem fundar a detenção ou a prisão ilegal ou o modo de funcionamento específico do tribunal de 1ª instância, no que toca à forma como a distribuição processual é realizada, inexistindo qualquer razão lógica que determine que se tenha de entender, por exemplo, que apenas o juiz de 1ª instância deverá averiguar, assim que recebe o requerimento, se este é ou não manifestamente infundado e, por outro, que o prazo de 8 dias apenas se aplica aos processos que correm seus termos no STJ.

15. No caso, mostrando-se o requerimento apresentado manifestamente infundado, entendo que deveria ter havido lugar a despacho de rejeição e não a designação de audiência, como acima expus.

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1. Regista-se que além dos elementos constantes destes autos, foram consultados outros relevantes através da plataforma Citius.↩︎

2. Cf. Referência Citius .......07 dos autos principais.↩︎

3. Cf. Referência Citius ......76 dos autos principais.↩︎

4. Cf. Referência Citius .......43 dos autos principais.↩︎

5. Cf. Referência Citius .......48 dos autos principais.↩︎

6. Cf. Referência Citius .......56 dos autos principais.↩︎

7. Cf. Referência Citius .......56 dos autos principais.↩︎

8. Cf. Referência Citius .....38 dos autos principais.↩︎

9. Cf. Referência Citius .......58 dos autos principais.↩︎

10. Cf. Referência Citius .......11 dos autos principais.↩︎

11. Cf. Referência Citius .......69 dos autos principais.↩︎

12. Cf. Referência Citius .......64 dos autos principais.↩︎

13. Cf. Referência Citius .......14 dos autos principais.↩︎

14. Cf. Referência Citius .......43 dos autos principais.↩︎

15. Cf. Referência Citius .....41 dos autos principais.↩︎

16. Cf. Referência Citius .......94 dos autos principais.↩︎

17. Cf. Referência Citius .....48 dos autos principais.↩︎

18. Cf. Referência Citius .....97 dos autos principais.↩︎

19. Cf. Referência Citius ......95 dos autos principais.↩︎

20. Cf. Referência Citius .....81 dos autos principais.↩︎

21. Cf. Referência Citius .......71 dos autos principais.↩︎

22. Cf. Referência Citius .....25 dos autos principais.↩︎

23. Cf. Referência Citius ......93 dos autos principais.↩︎

24. Artigo 31.º

  (Habeas corpus)

  1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

  2. (…)

  3. (…)↩︎

25. An Act for the better secureing the Liberty of the Subject and for Prevention of Imprisonments beyond the Seas.↩︎

26. Artigo 3º, ponto 31º - Dar-se-á o habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se encontrar em iminente perigo de sofrer violência, ou coacção, por ilegalidade, ou abuso de poder.

  A garantia do habeas corpus só se suspende nos casos de estado de sítio por sedição, conspiração, rebelião ou invasão estrangeira.

  Uma lei especial regulará a extensão desta garantia e o seu processo.↩︎

27. Neste sentido GOMES CANOTILHO, José Joaquim e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2007, Coimbra Editora, p. 508 - O habeas corpus consiste numa providência expedita e urgente de garantia do direito à liberdade (…) em caso de detenção ou prisão «contrários aos princípios da constitucionalidade e da legalidade das medidas restritivas da liberdade», «em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ao direito à liberdade», sendo, por isso, uma garantia privilegiada deste direito (…).↩︎

28. Neste sentido, LEAL-HENRIQUES, Manuel, Anotação e Comentário ao Código de Processo Penal de Macau, Volume II (Artigos 176º a 361º), 2014, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, p.150.

  Na mesma linha de pensamento, entre outros, os Acórdãos do STJ de 13/08/2024, proferido no Processo nº 268/24.7T8TVD-B.S1- 5ª secção - O habeas corpus é uma providência extraordinária e expedita, independente do sistema de recursos penais, que se destina exclusivamente a salvaguardar o direito à liberdade; e de 11/06/2024, proferido no Processo nº 1958/23.7T8EVR-B.S1-3ª secção O habeas corpus é uma providência com assento constitucional, destinada a reagir contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal (…) tem os fundamentos previstos taxativamente no art. 222.º, n.º 2. do CPP, que consubstanciam “situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade ambulatória (…), a reposição da legalidade tem um carácter urgente”. O “carácter quase escandaloso” da situação de privação de liberdade “legitima a criação de um instituto com os contornos do habeas corpus” (…), disponíveis em www.dgsi.pt.↩︎

29. Neste sentido os Acórdãos do STJ, de 16/11/2023, proferido no Processo nº 347/18.0TXCBR-R.S1 – (…) A providência de habeas corpus não se pode confundir com um procedimento de recurso, pois, como se vem dizendo trata-se de um procedimento urgente, de resolução rápida sobre a ilegalidade da prisão (…) – de 27/10/2022, proferido no Processo nº 1491/17.6TXLSB-R.S1 – (…) A providência excecional de habeas corpus não serve, nem é o meio próprio para sindicar despachos dos Juízes do TEP (…) – e de 07/04/2021, proferido no Processo nº 1558/11.4TXPRT-U - (…) Não constitui um recurso contra atos de um processo através dos quais foi ordenada ou é mantida a privação da liberdade do arguido, não sendo um sucedâneo dos recursos admissíveis - disponíveis em www.dgsi.pt.↩︎

30. Neste sentido, GASPAR, António Henriques, SANTOS CABRAL, José António Henriques dois Santos, COSTA, Eduardo Maia, OLIVEIRA MENDES, António Jorge de, MADEIRA, António Pereira, GRAÇA, António Pires Henriques da, Código de Processo Penal, Comentado, 2016, 2ª edição revista. Almedina, p. 855.↩︎

31. Afirmando que privada da liberdade ilegalmente, apela ao estipulado no artigo 222º, nº 2, alínea c) – prisão ilegal por se manter para além dos prazos fixados na lei -, mas igualmente se reporta ao artigo 220º, nº 1 – detenção ilegal.↩︎

32. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 02/20/2024, proferido no Processo nº 1408/23.9PCCSC-B.S1- 3ª secção - Os motivos de «ilegalidade da prisão», para efeitos de habeas corpus, de enumeração taxativa, têm de reconduzir-se à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, pelo que o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar (a) se a prisão resulta de uma decisão judicial exequível e ordenada por entidade competente, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto pelo qual a lei a admite e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial; de 12/09/2024, proferido no Processo nº 977/19.2SGLSB-K.S1-5ª secção - Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de se reconduzir, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa; de 11/04/2024, proferido no Processo nº 116/23.5GAVVC-C.S1-5ª secção - A providência de habeas corpus visa pôr termo à privação ilegal da liberdade, decorrente de abuso de poder, sendo que os motivos fundamento dessa ilegalidade têm de se reconduzir, necessária e exclusivamente, à previsão das als. do n.º 2 do art. 222.º do CPP, cuja enumeração é taxativa e cuja indicação tem se ser expressamente indicada e fundamentada no respetivo pedido, todos disponíveis em www.dgsi.pt.↩︎

33. Neste sentido, GAMA, António, LATAS, António, CORREIA, João Conde, LOPES, José Mouraz, TRIUNFANTE, Luís Lemos, SILVA DIAS, Maria do Carmo, MESQUITA, Paulo Dá, ALBERGARIA, Pedro Soares de e MILHEIRO, Tiago Caiado, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III – artigos 191º a 310º, 2022, 2ª Edição, Almedina, p. 592.↩︎

34. Consigne-se, todavia que é entendimento pacífico, na jurisprudência deste STJ, que é a partir do momento do despacho judicial que aplica ao arguido a medida de coação de prisão preventiva que se contam os prazos máximos desta medida de coação correspondentes à fase pré-acusatória, e não do momento da detenção que o tenha precedido.

  Neste sentido, os Acórdão do STJ, de 31/10/2024, proferido no Processo nº 6/23.1PJLRS-B.S1 – (…) tem sido entendimento pacífico, na jurisprudência deste Supremo Tribunal de justiça, que é a partir do momento do despacho judicial que aplica ao arguido a medida de coação de prisão preventiva que se contam os prazos máximos desta medida de coação (…) - , de 20/11/2024, proferido no Processo nº 164/23.5JAFAR-C.S1 -(…) Como se tem afirmado em jurisprudência constante, este é um prazo contínuo e único num mesmo processo, a contar da data da aplicação da prisão preventiva (…) -, de 17/03/2022, proferido no Processo nº 544/21.0GCBRG-B.S1 – (…) É jurisprudência constante do STJ, que o prazo máximo de duração da prisão preventiva a que se reporta o art. 215.º, n.os 1, al. a), e 2, do CPP, conta-se desde a data do início daquela medida coativa (…) -, de 20/12/2021, proferido no Processo nº 543/19.2PALGS-D.S1 – (…) É jurisprudência constante do STJ, o entendimento de que o prazo máximo de duração da prisão preventiva a que se reporta o art. 215.º, n.º 1, al. a), e 2 do CPP, conta-se desde a data do início daquela medida coativa (…), todos disponíveis em www.dgsi.pt.↩︎

35. Neste sentido, entre outros, os Acórdão do STT, de 31/10/2024, referido na nota anterior – (…) Tem sido, igualmente, jurisprudência pacifica do Supremo Tribunal de Justiça, o entendimento de que, para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva previsto no artigo 215.º, n.º 1, al. a), do CPP, é relevante a data de dedução da acusação e não a notificação desta ao arguido, não sendo inconstitucional esta interpretação (…) -, de 13/08/2024, proferido no Processo nº 197/20.3JAPTM-N.S1 (…) Constitui jurisprudência constante do STJ o entendimento de que, para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva previsto no artigo 215.º, n.º 1, al. a), do CPP (alargado que seja em função dos números 2 e 3), é relevante a data de dedução da acusação e não a notificação desta ao arguido, o que não corresponde a qualquer interpretação normativa inconstitucional (…) -, de 26/06/2024, proferido no Processo nº 1529/23.8PFLRS-A.S1 - (…) Constitui jurisprudência constante do STJ o entendimento de que o prazo máximo de duração da prisão preventiva a que se reporta o artigo 215.º, n.ºs 1, al. a) e 2, do CPP, conta-se desde a aplicação daquela medida de coação, sendo a data da dedução da acusação - que não a da sua notificação ao arguido - o seu termo final, tendo tal prazo natureza substantiva (…) -, de 29/06/2023, proferido no Processo nº (…) É jurisprudência constante do STJ, o entendimento de que o prazo máximo de duração da prisão preventiva a que se reporta o art. 215.º, n.os 1, al. a) e 2 do CPP, conta-se desde a data do início daquela medida (…) que não da data em que a acusação foi notificada ao arguido ou ao respetivo mandatário (…) -, de 17/05/2023, proferido no Processo nº 3233/21.2T9VNF-J.S1 (…) Para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva, previsto no art. 215.º, do CPP, é relevante a data de prolação da acusação (ou do despacho de pronúncia, ou da condenação) e não a notificação ao arguido dessa peça processual (…), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

  Também, na mesma linha, GAMA, António, LATAS, António, CORREIA, João Conde, LOPES, José Mouraz, TRIUNFANTE, Luís Lemos, SILVA DIAS, Maria do Carmo, MESQUITA, Paulo Dá, ALBERGARIA, Pedro Soares de e MILHEIRO, Tiago Caiado, ibidem, pp 592 e 593 – (…) A data que o legislador utiliza como marco para a contagem do prazo máximo de prisão preventiva (…) é a elaboração da acusação (…) sendo indiferente o momento temporal em que se considera efetivada a notificação (…).↩︎

36. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 280/2008, de 14/05/2008, proferido no Processo nº 295/08 – (…) na interpretação de que, para efeitos de averiguar do decurso dos prazos de duração máxima da prisão preventiva, vale a data da dedução da acusação e não a da sua notificação ao arguido (…) o legislador não está impedido de tomar em conta como termo final do prazo da primeira fase da prisão preventiva a data de acusação (…).↩︎

37. Neste sentido, LEAL-HENRIQUES, Manuel, ibidem, pg. 509.↩︎