HABEAS CORPUS
EXTRADIÇÃO
CIDADÃO ESTRANGEIRO
PRISÃO ILEGAL
MANDADO DE DETENÇÃO INTERNACIONAL
PRORROGAÇÃO DO PRAZO
DOCUMENTOS PASSADOS EM PAÍS ESTRANGEIRO
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Sumário


É de indeferir, por falta de fundamento bastante, o pedido de habeas corpus formulado por requerente em processo subsequente à sua detenção provisória em procedimento prévio à extradição, por não ter decorrido, desde a sua detenção, o prazo (de 60 dias) a que alude o art 63.º, n.º 3, da Lei n.º 144/99, de 31-08, tendo o Ministério Público já adiantado poder apresentar em juízo o pedido de extradição dentro de tal prazo.

Texto Integral


Acordam em audiência na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

I.1. Em requerimento apresentado pela sua advogada, veio o peticionário, cidadão turco, AA, melhor identificado nos autos, em 18-05-2025 (Ref.ª ......07), apresentar petição de Habeas Corpus, nos seguintes termos:

«1. O requerido foi detido no dia 09-04-25.

2. No dia 11-04-25, foi realizada a audição de extraditando, tendo sido decidido

que o requerido aguardaria a formalização do pedido formal de extradição privado da sua liberdade.

3. Ora, conforme admite o Tribunal da Relação de Lisboa, deveriam as autoridades turcas ter apresentado o referido pedido até dia 16-05-25.

4. Sucede que, no dia anterior ao término deste prazo, ou seja, no dia 15-05-25, veio o Ministério Público juntar aos autos o expediente recebido da PGR (DA 12891/25) em que é possível ler o seguinte:

“Tenho a honra de informar a V. Exa. que foi recebido o pedido de extradição de AA, por via policial. No entanto e face a dúvidas relativamente à interrupção do prazo de prescrição solicitou-se informação adicional às autoridades da Turquia, a prestar até dia 19 de maio.

Solicita-se ainda a V. Exa. se digne a prestar informação sobre se o DIAP de Lisboa decretou a medida de coação de prisão preventiva do extraditando à ordem do processo 75/24.7....”

5. Entendeu o Ministério Público que “(...) o pedido foi formulado no prazo legal,

aguardando agora pelos esclarecimentos pretendidos, pelo que promovo se

aguarde pela data de 19 de maio de 2025.”

6. Por sua vez, decidiu a Exma. Juiz Desembargadora, por despacho datado de

16-05-25, o seguinte:

“De acordo com o expediente que acompanha o requerimento do Ministério

Público de 15.05.2025, terá sido recebido o pedido de extradição, no prazo a

que alude o arto 64º, no 3, da Lei no 144/99, de 31 de agosto. Aguarde-se,

assim, como requerido, até 19 de maio.”

7. Ora, nem o Ministério Público, nem a Exma. Juiz Desembargadora tiveram acesso ao pedido formal de extradição, mas tão somente a um ofício que dá conta de que o mesmo “terá sido entregue”.

8. Deveria o pedido formal de extradição ter dado entrada nos autos até dia 16-06-25 com vista a que a Exma. Juiz Desembargadora pudesse averiguar da sua idoneidade e da manutenção (ou não) da privação de liberdade do requerido.

9. Com efeito, estabelece o artigo 38ºnº5 da LCJIMP que a detenção provisória cessa se o pedido de extradição não for recebido no prazo de 18 dias a contar da mesma, podendo, no entanto, prolongar-se até 40diasse razões atendíveis, invocadas pelo Estado requerente, o justificarem, no entanto, nos termos do nº8 do artigo 28º da LCJIMP, o pedido de detenção provisória só pode ser atendido quando não se suscitarem dúvidas sobre a competência da autoridade requerente e contiver os elementos referidos no n.º 3.

10. Por sua vez, estabelece o nº3 desse artigo que “O pedido indica a existência do mandado de detenção ou decisão condenatória contra a pessoa reclamada, contém um resumo dos factos constitutivos da infração, com indicação do momento e do lugar da sua prática, e refere os preceitos legais aplicáveis e os dados disponíveis acerca da identidade, nacionalidade e localização daquela pessoa.”

11. In casu, nem tampouco foi possível averiguar se o pedido contém estes elementos.

12. Bastou ao Tribunal saber que “terá dado entrada o referido pedido de

extradição” para manter o requerido privado da sua liberdade.

13. Por outro lado, o supratranscrito ofício da PGR e o despacho datado de

16.05.25 suscitam dúvidas ao requerido.

14. Parece não estar verificada a regularidade formal do pedido de extradição,

daí que tenha sido a própria PGR a pedir informação adicional com tanta

urgência.

15. O Requerido continua detido para além dos 40 dias, no entanto, ainda nem

tampouco se percebeu se o crime pelo qual as autoridades turcas requerem a sua detenção está (ou não) prescrito.

16. Com o devido respeito, o requerido está a aguardar até ao 19-05-25 com que finalidade? Para se aferir da idoneidade do pedido?

17. Tal deveria ser feito até dia 16-06-25!

18. As autoridades Turcas beneficiaram da prorrogação (40 dias) para apresentação do pedido formal de extradição.

19. A lei não admite mais prorrogações para além da já deferida.

20. A Procuradoria-Geral da República nem tampouco se pronuncia quanto à admissibilidade do pedido, como deveria!

21. Aliás a PGR não parece ter informação suficiente para o fazer.

22. Pelo que, naturalmente, não pode ser mantida a prisão do requerido.

23. Com o devido respeito por melhor entendimento, está-se a “prorrogar” um prazo à margem da lei e em clara violação do disposto no artigo 64º nº3 e 38º nº5 da LCJIMP.

24. Face ao exposto, a manutenção da prisão do requerido configura uma situação de prisão ilegal, nos termos do artigo 222.º, n.º 2, alínea c), do CPP, por se manter para além dos prazos fixados pela lei.

Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, requer-se a V. Exa. que, ao abrigo do disposto nos artigos 31.º da CRP, 222.º, n.º 1 e n.º 2, alínea c), e 223.º do CPP, seja ordenada a imediata libertação do Requerente, por se encontrar em situação de detenção ilegal, com as demais consequências legais.»

I.2. A Senhora juíza Desembargadora no Tribunal da Relação de Lisboa (doravante, também “TRL”), exarou a seguinte informação a que alude o artigo 223.º, n.º 1, do CPP, com data de 19-05-2025 (Ref.ª Citius ......27):

«O requerido AA veio deduzir petição de habeas corpus alegando estar em prisão ilegal.

Admite-se a petição de habeas corpus e determina-se a sua imediata remessa ao Supremo Tribunal de Justiça e respetiva tramitação nos termos do artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

***

Informa-se o Exmo. Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que:

- Em 09.04.2025, o requerido foi detido pela Polícia Judiciária – vide referência citius ....33 de 10.04.2025.

- Em 11.04.2025, foi ouvido neste Tribunal da Relação, tendo sido determinado, além do mais:

a) que aguardasse os ulteriores termos do processo sob detenção;

b) que se solicitasse às autoridades da Turquia, a quem interessa a extradição, que informassem se irá ser formulado o pedido de extradição;

c) que os autos aguardasem o decurso do prazo de 18 dias a que se refere o artigo 64.°, n.° 2, da Lei 144/99, de 31/08, com a advertência de que o requerido seria restituído à liberdade se essa informação não chegasse nesse prazo ou em 40 dias se, tendo havido informação positiva, o pedido formal de extradição não fosse recebido nesse prazo (artigo 64.°, n.° 3, da Lei n.° 144/99, de 31/08) – cfr. ata de 11.04.2025

- Em 14.04.2025, as autoridades judiciárias da Turquia, através da Interpol, confirmaram que iriam apresentar o pedido formal de extradição, para o que estavam a preparar a documentação necessária, e que, para esse efeito, careciam do alargamento do prazo para 40 dias – referência citius ....60, de 14.04.2025.

- Sob promoção do Ministério Público, o prazo foi prorrogado para 40 dias – vide promoção e despacho de 14.04.2025.

- Em 13.05.2025, foi junto aos autos expediente dando conta de que as autoridades judiciárias da Turquia já tinham emitido o pedido formal de extradição, traduzido inclusivamente – referência citius ....36, de 13.05.2025.

- Em 15.05.2025, o Ministério Público apresentou requerimento, acompanhado de expediente onde consta ter sido recebido o pedido de extradição e pedida informação adicional quanto à interrupção da prescrição, a prestar até ao dia 19 de maio de 2025. Requereu que os autos aguardassem até hoje, 19 de maio.

- Em 16 de maio, proferiu-se o seguinte despacho:

De acordo com o expediente que acompanha o requerimento do Ministério Público de 15.05.2025, já terá sido recebido o pedido de extradição, no prazo a que alude o artº 64º, nº 3, da Lei nº 144/99, de 31 de agosto.

Aguarde-se, assim, como requerido, até 19 de maio.

Tendo o extraditando sido detido em 09.04.2025, a apresentação do pedido em juízo deve ocorrer nos 60 dias posteriores a essa data – artº 63º, nº 3, da referida Lei”.

- O inquérito 75/24.7..., que corre termos na 1ª secção do DIAP de Lisboa informou, em 16.5.2025, que interessa a sujeição de AA a interrogatório judicial no âmbito desses autos para aplicação de medida de coação.

- No dia de hoje – 19.05.2025 –, o Ministério Público deu entrada a requerimento, juntando mais expediente, com vista a informar que está a decorrer o processo administrativo (artigos 48º, nº 1, e 63º, nº 1, da Lei 144/99, de 31 de agosto, no seio do qual se solicitaram informações às autoridades turcas – vide referência citius ....12, de 19.05.2025.

***

Instrua o apenso de HABEAS CORPUS com certidão dos elementos dos processo acima referidos (referência citius ....33 de 10.04.2025; ata de 11.04.2025; referência citius ....60, de 14.04.2025; promoção e despacho de 14.04.2025; referência citius ....36, de 13.05.2025; requerimento de 15.05.2025 do Ministério Público, e expediente com ele junto; despacho de 16.05.2025; informação de 16.05.2025 do DIAP; promoção e requerimento do Ministério Público de 19.05.2025, bem como o expediente que acompanha o requerimento – referências ......82 e ....12); petição de habeas corpus).»

I.3. Os autos foram instruídos com cópias em suporte digital dos elementos referidos na aludida informação da Senhora juíza Desembargadora no TRL, os quais se mostram suficientes para a decisão da presente providência.

***

Convocada a Secção Criminal e notificado o Ministério Público e o/a Defensor/a, teve lugar a audiência – no decurso da qual o Ministério Público pugnou pela improcedência da providência enquanto o Senhor Defensor do arguido sustentou a posição exarada no seu requerimento –, após o que a Secção reuniu para deliberação.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

II.1. Da análise dos documentos da plataforma digital de suporte à gestão processual e da informação prestada nos termos do art. 223.º do CPP, os elementos factuais relevantes para a apreciação da questão a decidir são os seguintes:

- Em 09-04-2025, pelas 18H30, o requerido-peticionário AA foi detido pela Polícia Judiciária (cfr. referência citius ....33 de 10-04-2025);

- A detenção do peticionário decorre do cumprimento de um mandado de detenção internacional, inserido no sistema Interpol (Red Notice), sob o n.º A 491/3 – 2025, mediante solicitação das Autoridades da Turquia, tendo a detenção sido solicitada a título provisório pelo 14.º Tribunal Penal Superior de Bakirköy, como ato prévio ao pedido formal de extradição (mandado de detenção 2015/62, de 16-01-2025);

- Tal detenção foi solicitada para efeitos de procedimento criminal, por factos que podem integrar crime ou crimes de tráfico de estupefacientes, praticados entre fevereiro e maio de 2007, bem como de adesão a associação criminosa, pp. pp. nos artigos 188/3, 4 e 5 e 202/2, do Cód. Penal turco, também puníveis no ordenamento jurídico penal português, nos termos dos artigos 21.º, n.ºs 1 e 2, eventualmente agravado nos termos do art. 24.º, alíneas b) e f), e 28.º, n.º 1, todos do Dec-Lei n.º 15/93, de 22-01;

- Em 11-04-2025, procedeu-se à sua audição no TRL, tendo o mesmo declarado opor-se à extradição e não renunciar ao princípio da especialidade;

- No termo de tal audição, e mediante promoção do Ministério Público e contraditório da defensora do arguido, foi determinado, além do mais, o seguinte:

a) que aguardasse os ulteriores termos do processo sob detenção;

b) que se solicitasse às autoridades da Turquia, a quem interessa a extradição, que informassem se irá ser formulado o pedido de extradição;

c) que os autos aguardassem o decurso do prazo de 18 dias a que se refere o artigo 64.°, n.° 2, da Lei 144/99, de 31/08, com a advertência de que o requerido seria restituído à liberdade se essa informação não chegasse nesse prazo ou em 40 dias se, tendo havido informação positiva, o pedido formal de extradição não fosse recebido nesse prazo (artigo 64.º, n.º 3, da Lei n.° 144/99, de 31-08) – (cfr. ata de 11-04-2025 – ref.ª ......39);

- Em 14-04-2025, o Ministério Público junto do TRL informou nos autos que as autoridades judiciárias da Turquia, através da Interpol, confirmaram que iriam apresentar o pedido formal de extradição, para o que estavam a preparar a documentação necessária, e que, para esse efeito, careciam do alargamento do prazo para 40 dias – ref.ª Citius ......05, tendo tal promoção sido deferida por despacho de 14-04-2025 (ref.ª Citius ......29);

- O pedido de prorrogação foi reiterado pelas autoridades turcas, o que foi anotado na promoção do Ministério Público de 29-04-2025 (ref.ª Citius ......05), o que foi deferido por despacho da Senhora Desembargadora relatora no TRL;

- Em 13-05-2025, pelo Ministério Público no TRL foi informado de que, de acordo com expediente junto aos autos, as autoridades judiciárias da Turquia já tinham emitido o pedido formal de extradição, traduzido inclusivamente, e que seria enviado por via diplomática – referência Citius ......34;

- Em 15-05-2025, o Ministério Público no TRL apresentou requerimento (ref.ª Citius ......96), acompanhado de expediente onde consta ter sido recebido o pedido de extradição e pedida informação adicional quanto à interrupção da prescrição, a prestar até ao dia 19 de maio de 2025, requerendo que os autos aguardassem até 19 de maio, a fim de serem solicitados esclarecimentos;

- Em 16-05-2025 (ref.ª Citius ......99), pela Senhora Desembargadora relatora no TRL, foi proferido o seguinte despacho:

De acordo com o expediente que acompanha o requerimento do Ministério Público de 15.05.2025, terá sido recebido o pedido de extradição, no prazo a que alude o artº 64º, 3, da Lei 144/99, de 31 de agosto.

Aguarde-se, assim, como requerido, até 19 de maio.

Tendo o extraditando sido detido em 09.04.2025, a apresentação do pedido em juízo deve ocorrer nos 60 dias posteriores a essa data artº 63º, 3, da referida Lei”.

- Em 18-05-2025 foi apresentada a petição de habeas corpus;

- Em 19-05-2025 (ref.ª Citius ....12), o Ministério Público junto do TRL deu entrada a requerimento, juntando mais expediente, requerendo que os autos aguardassem o decurso da fase administrativa do processo de extradição, já iniciado;

- Em 19-05-2025 (ref.ª Citius ......27), a Senhora Desembargadora relatora no TRL deferiu o pedido do Ministério Público e prestou a informação a que alude o art. 223.º, n.º 1, do CPP, que supra se transcreveu;

- Nesse dia, o requerido mantinha-se na situação de detenção.

II.2. Mérito da providência

A providência de habeas corpus constitui uma garantia constitucional do direito à liberdade individual, prevista no artigo 31.º da Constituição da República Portuguesa, que estabelece:

1 – Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

2 – A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

3 – O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.

O texto do n.º 1 foi alterado e revisto pela Lei Constitucional n.º 1/97, que introduziu a Quarta revisão constitucional (DR I-A Série, n.º 218/97, de 20 de setembro de 1997) e que, pelo artigo 14.º, alterou a redação do n.º 1 do artigo 31.º da Constituição, de modo a que nesse preceito a expressão “a interpor perante o tribunal judicial ou militar consoante os casos” fosse substituída pela expressão “a requerer perante o tribunal competente”, assim afastando a referência a tribunais militares. Mas, como assinala Faria Costa, a revisão constitucional de 1997 não veio, nem de longe nem de perto, restringir o âmbito de aplicação da norma («Habeas Corpus: ou a análise de um longo e ininterrupto “diálogo” entre o poder e a liberdade», BFDUC, volume 75, Coimbra: Coimbra Ed., 1999, p. 549).

Como referem, por outro lado, Gomes Canotilho e Vital Moreira, o n.º 2 do artigo 31.º da CRP reconhece uma espécie de ação popular de habeas corpus (cfr. art. 52.º, n.º 1), pois, além do interessado, qualquer cidadão no gozo de seus direitos políticos tem o direito de recorrer à providência em favor do detido ou preso. Além de materializar o objetivo de dar sentido útil ao habeas corpus, quando o detido não possa pessoalmente desencadeá-lo, essa ação popular sublinha o valor constitucional objetivo do direito à liberdade (Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra: Coimbra Ed., 4.ª edição revista, 2007, p. 509).

A providência em causa é, assim, uma garantia fundamental privilegiada, no sentido em que se trata de um direito subjetivo, «direito-garantia» reconhecido para a tutela do direito à liberdade pessoal (neste sentido, cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Lisboa: Verbo Ed., 2011, p. 296).

O instituto processual penal de habeas corpus traduz, pois, uma das mais emblemáticas concretizações do chamado direito constitucional aplicado.

O instituto de habeas corpus é historicamente uma instituição de origem britânica, remontando ao direito anglo-saxónico, mais propriamente ao Habeas Corpus Amendment Act, promulgado em 1679, passando o instituto do direito inglês para a Declaração de Direitos do Congresso de Filadélfia, de 1774, consagrado pouco depois na Declaração de Direitos proclamada pela Assembleia Legislativa Francesa em 1789, sendo acolhido pela generalidade das Constituições posteriores e introduzido entre nós pela Constituição de 1911 (artigo 3.º- 31), tendo como fonte a Constituição Republicana Brasileira de 1891, muito influenciada pelo direito constitucional norte-americano.

A Constituição de 1933 (artigo 8.º, § 4.º) consagrou igualmente o instituto, que só veio a ser regulamentado pelo Dec.-Lei n.º 35.043, de 20 de outubro de 1945, cujas disposições vieram a ser integradas no Código de Processo Penal de 1929 pelo Decreto-Lei n.º 185/72, de 31 de maio, sendo que no pós 25 de Abril de 1974 teve a regulamentação constante do Decreto-Lei n.º 744/74, de 27 de dezembro de 1974 e do Decreto-Lei n.º 320/76, de 4 de maio de 1976.

A Lei n.º 43/86, de 26-09 – lei de autorização legislativa em matéria de processo penal, ao abrigo da qual foi elaborado o Código de Processo Penal vigente – estabeleceu no artigo 2.º, n.º 2, alínea 39, a «(…) garantia do habeas corpus, a requerer ao Supremo Tribunal de Justiça em petição apresentada perante a autoridade à ordem da qual o interessado se mantenha preso, enviando-se a petição, de imediato, com a informação que no caso couber, ao Supremo Tribunal de Justiça, que deliberará no prazo de oito dias».

Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o habeas corpus traduz a relevância constitucional do direito à liberdade.

Recortando-se o direito à liberdade como um direito fundamental – artigo 27.º, n.º 1, da CRP – e podendo ocorrer a privação da mesma, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar» apenas nos casos elencados no n.º 3 do mesmo preceito, a providência em causa constitui um instrumento de reação e garantia dirigido ao abuso de poder em virtude de prisão ou detenção ilegal, utilizando a expressão de Faria Costa, atenta a sua natureza, trata-se de um «instituto frenador do exercício ilegítimo do poder» (apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-10-2001, in CJSTJ 2001, t. 3, p. 202).

Corresponde, assim, a uma característica essencial do instituto de habeas corpus que tal providência assume natureza de remédio excecional e urgente para proteger a liberdade individual, com a finalidade de pôr termo a situações de injustificada privação de liberdade, decorrentes de ilegalidade de detenção ou de prisão, taxativamente enunciadas na lei: um primeiro núcleo previsto nas quatro alíneas do n.º 1 do art. 220.º do CPP e um segundo elenco nos casos de abuso de poder ou erro grosseiro, patente e grave, na aplicação do direito, descritos nas três alíneas do n.º 2 do art. 222.º do CPP (cfr. Acs. STJ de de18-10-2007 e de 13-02-2008), entendimento consolidadamente reiterado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça.

Sendo a prisão efetiva e atual o pressuposto de facto da providência e a ilegalidade da prisão o seu fundamento jurídico, esta providência extraordinária com a natureza de ação autónoma com fim cautelar há de fundar-se, como decorre do artigo 222.º, n.º 2, do CPP, em ilegalidade da prisão prevista no elenco exclusivo das suas três alíneas – 1) incompetência, 2) facto que não permite a prisão e 3) excesso de prazos legais ou judiciais (assim, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II volume, Lisboa, Verbo Ed., p. 297) –, encontrando-se a competência para a respetiva apreciação atribuída ao Supremo Tribunal de Justiça (artigos 31.º da CRP, 55.º, al. d) da Lei n.º 62/2013 e 11.º, n.º 3, al. c) do CPP), em virtude de:

a. Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b. Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c. Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Não obstante o seu lugar sistemático no Código de Processo Penal, a providência de habeas corpus não constitui um verdadeiro modo de impugnação, visto que o seu objeto se prende com a situação de objetiva ilegalidade e não com a decisão que lhe deu causa (cfr., neste sentido, ac. STJ de 07-03-2019 - proc. 72/15.3GAAVZ-K.S1 – 5.ª Sec.; Maia Costa, «Habeas Corpus, passado, presente e futuro», Julgar, N.º 29, 2016, p. 240).

A providência em causa não se destina, porém, a apreciar erros, de facto ou de direito, nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade (cfr., v.g., o ac. STJ de 04-01-2017, no processo n.º 109/16.9GBMDR-B. S1, e jurisprudência nele citada, in www.dgsi.pt).

Como não se substitui, nem pode substituir-se, aos recursos ordinários, o habeas corpus não é o meio adequado a pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, porquanto está reservado para os casos de indiscutível ilegalidade, que impõem e permitem uma decisão tomada com a celeridade e com os pressupostos legalmente definidos. O habeas corpus não é, pois, meio adequado para sindicar as decisões processuais ou arguir nulidades e irregularidades processuais, que deverão de ser oportuna e tempestivamente impugnadas através dos meios próprios (cfr. ac. STJ de 16-03-2015).

O habeas corpus não colide, apesar disso, com o direito ao recurso, pois que «(…) visa, reagir, de modo imediato e urgente – com uma celeridade incompatível com a prévia exaustação dos recursos ordinários e com a sua própria tramitação contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, decorrente de abuso de poder concretizado em atentado ilegítimo à liberdade individual “grave, grosseiro e rapidamente verificável” integrando uma das hipóteses enunciadas no n.º 2 do art. 222.º do Código de Processo Penal» (cfr., entre outros, ac. STJ de 12-12-2007).

A apreciação de habeas corpus pelo STJ coloca-se, assim, em patamar supra processual e a apreciação de indícios, ou sua insuficiência, para aplicar ou manter, por exemplo, uma medida de coação não lhe pode servir de fundamento (ibidem, Comentário …, cit., § 26; também assim, ac. STJ de 09-06-2020: rel. Cons. Helena Moniz), bem assim como não será de apurar se a prova foi ou não válida, se houve nulidades processuais (v.g. do auto de interrogatório ou outras, erro de valoração de prova ou outras - cfr. acs. STJ de 31-01-2018: rel. Cons. M. Matos, e de 03-01-2018: rel. Cons. Raúl Borges).

Assim, enquanto o Dec.-Lei n.º 35.043, de 20-10-1945, concebia o habeas corpus como «(…) um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não houvesse qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade», após as alterações de 2007, com o aditamento do n.º 2 ao art. 219.º do CPP, o instituto não deixou de ser um remédio, mas coexiste com os meios judiciais comuns, nomeadamente com o recurso (cfr. ac. STJ de 19-11-2020: rel. Cons. A. Gama), não existindo relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso previsto no n.º 1 do preceito e a providência de habeas corpus, independentemente dos respetivos fundamentos. Além do mais, os fundamentos do habeas corpus são, apenas, aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos suscetíveis de colocarem em causa a regularidade ou a legalidade da prisão (cfr. Ac. STJ de 19-05-2010, CJ - ACSTJ, 2010, t. 2, p.196).

Sendo este, em traços esquemáticos, o enquadramento jurídico-normativo do instituto de habeas corpus, cumpre aplicá-lo ao caso vertente.

A petição da presente providência encerra uma fundamentação que, na sua essência, e de acordo com o seu pedido, pretende sinalizar a existência de uma situação de ilegalidade da detenção (pré-extradicional) do requerido-peticionário, por excesso do respetivo limite do prazo, de acordo com o entendimento de que deveria ter sido formalizado em juízo o pedido de extradição até ao dia 16-05-2025 (cfr. pontos 8. e 9. da petição).

Além disso, o requerido manifesta dúvidas acerca da «regularidade formal do pedido de extradição» (ponto 14. da petição), bem como sobre a prescrição do(s) crime(s) pelo(s) qual(ais) é pedida a extradição (ponto 15.).

No seu entendimento, o requerido não podia estar detido para além do 40.º dia após a sua detenção, nos termos dos artigos 64.º, n.º 3 e 38.º, n.º 5, da Lei n.º 144/99, de 31-08.

Nessa medida, o requerente enquadra a causa de habeas corpus na previsão da alínea c) do n.º 2 do art. 222.º do CPP: a prisão ser ilegal por se manter para além dos prazos fixados pela lei [ou por decisão judicial]. Nem o motivo da alínea a) nem o da alínea b) do n.º 2 do art. 222.º do CPP são colocados em causa pelo requerido, nem resulta, analisada que foi a situação, que o pudessem ser, dado que a detenção foi ordenada por juiz Desembargador (territorialmente) competente e dado ter sido motivada por facto que, abstratamente, a lei permite.

Apreciando.

Importa, preambularmente, sublinhar que não caberá na fisionomia do procedimento extraordinário de habeas corpus indagar da eventual ocorrência de uma causa, como a prescrição, de improcedência do pedido de extradição a formalizar nos autos, o que constituiria autêntica antecipação (ilegal) da competência decisória do tribunal da Relação para apreciar tal eventual causa de recusa do pedido de cooperação judiciária em que a extradição se materializa.

Estará, unicamente, em causa – como aliás, é assumido pelo próprio peticionário –, no caso em apreço, apreciar se o mesmo se encontra numa situação equiparável a prisão ilegal (detenção ilegal).

A detenção de pessoa «contra a qual esteja em curso processo de extradição» é uma das limitações ao direito à liberdade consagradas na Constituição (art. 27.º, n.º 3, al. c), da CRP) e na lei (artigos 38.º, n.ºs 1, 2 e 5 e 39.º, da Lei n.º 144/99, de 31-08 e 202.º, n.º 1, al. f), do CPP).

O requerido está em situação de detenção pré-extradicional, ou seja, com base em mandado de detenção internacional, desde 09-04-2025, judicialmente confirmada em 11-04-2025.

O processo de formalização da apresentação em juízo do pedido de extradição, encontra-se, como se disse, em fase político-administrativa, conforme já esclareceu nos autos a Autoridade Central – Procuradoria-Geral da República.

De resto, o Ministério Público junto do TRL informou nos autos, em 14-04-2025, que as autoridades judiciárias da Turquia, através da Interpol, confirmaram que iriam apresentar o pedido formal de extradição, para o que estavam a preparar a documentação necessária, e que, para esse efeito, careciam do alargamento do prazo inicial (de 18 dias, do qual tiveram conhecimento) para 40 dias.

O pedido de prorrogação foi ainda reiterado pelas autoridades turcas, o que foi anotado na promoção do Ministério Público de 29-04-2025 (ref.ª Citius ......05), e foi deferido por despacho da Senhora Desembargadora relatora no TRL

A este respeito, regem as disposições dos artigos 38.º, n.º 5, 63.º, n.º 3 e 64.º, n.º 3, da Lei n.º 144/99, de 31-08. Mais convém advertir para a circunstância de se estar perante procedimento de cooperação judiciária internacional convencional, designadamente de extradição.

O que, definitivamente, a lei não consentiria, era que o requerido se mantivesse detido, para além de 40 dias após a sua detenção, se o Estado requerente não tivesse justificado a necessidade de prorrogar o prazo de 18 dias, a que se refere o art. 38.º, n.º 5, da Lei n.º 144/99, para apresentar o pedido de extradição, o que fez tempestivamente, i.e, nos primeiros 18 dias após a sua detenção. Mas já não será inadmissível que o requerido se mantenha em tal situação, face ao anúncio, em tal prazo, de que o Estado requerente irá efetivamente apresentar em juízo o pedido de extradição formal.

Ora, tal anúncio, como se disse, foi feito tempestivamente.

Assim, não sendo necessário que o Estado requerente, através da Autoridade Central-PGR, formalize o pedido de extradição nesse prazo, prorrogado, de 40 dias, rege o disposto no n.º 3 do artigo 63.º, da Lei n.º 144/99.

Nos termos desta disposição, «(…) a detenção do extraditando deve cessar e ser substituída por outra medida de coacção processual se a apresentação do pedido em juízo não ocorrer dentro dos 60 dias posteriores à data em que foi efectivada.»

Portanto, na situação vertente nos autos, apenas será ilegal a manutenção da situação de detenção do requerido, se o pedido (de extradição) não for efetivado até ao 60.º dia após a data da sua detenção, o que, nesta data ainda não ocorreu (cfr., neste sentido, Ac STJ de 09-11-2017, proc. n.º 1331/17.6YRLSB-B.S1; rel. Cons. Nuno Gomes da Silva).

Ora, confirmando-se que se acha em curso a fase político-administrativa do pedido de extradição, facilmente se demonstra que, não tendo ainda decorrido 60 dias sobre a data da detenção, a manutenção do requerido em tal situação não configura ilegalidade a que se imponha pôr cobro.

Nessa conformidade, cabe julgar improcedente, por falta de fundamento bastante, o pedido de habeas corpus formulado pelo requerido AA.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em indeferir, por falta de fundamento bastante, a providência de habeas corpus requerida por AA.

Fixa-se a taxa de justiça em quatro (4) UC, a cargo do requerente, nos termos do art. 8.º, n.º 9 e da Tabela III do RCP.

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Lisboa, STJ, 28-05-2025

[Texto elaborado e informaticamente editado, integralmente revisto pelo Relator (art. 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos e pela Senhora Juíza Conselheira Presidente da Secção conforme supra certificado]

Os juízes Conselheiros

Jorge dos Reis Bravo (relator)

Jorge Gonçalves (1.º adjunto)

Vasques Osório (2.º adjunto)

Helena Moniz (Presidente)