VENDA DE BUNGALOW
UTILIZAÇÃO DO ESPAÇO DE INSTALAÇÃO
COLIGAÇÃO DE CONTRATOS
SUBLOCAÇÃO SEM CONSENTIMENTO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
EFEITOS DA RESOLUÇÃO
Sumário

I – O negócio pelo qual a autora pretendeu adquirir um bungalow para a sua localização em determinado empreendimento turístico, mediante a celebração de um contrato de “venda” de um bungalow, com a 1ª Ré e de “arrendamento de parcela para residências móveis”, com a 2ª Ré, sem pagamento de qualquer contrapartida durante um ano pela ocupação de tal parcela, envolve uma coligação de contratos.
II – A utilização do bungalow adquirido pela autora, mediante a sua sublocação a terceiros, sem o consentimento e contra a vontade expressa desta, constituiu uma violação grave dos deveres da 2ª ré, suscetíveis de abalar a confiança estabelecida entre as partes, constituindo justa causa de resolução do contrato.
III – Perante o negócio acordado entre as partes, pelo qual a autora adquiriu um bungalow com localização no Land’s House Bungalows – de tal modo que o contrato de compra do bungalow não teria sido celebrado sem o contrato de “arrendamento de parcela para residência móvel” – a resolução deste atribui o direito à autora de resolver igualmente o contrato de compra do bungalow.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Relator: Maria João Areias
1º Adjunto: José Avelino Gonçalves
2º Adjunto: Paulo Correia

                                                                                               

Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

AA intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra;

1. A..., Lda., e

2. B..., Lda.,

Pedindo que:

a) seja reconhecido e declarado resolvido o contrato de compra e venda celebrado entre a Autora e a 1.ª Ré;

b) consequentemente, a condenação da 1ª Ré a proceder à devolução à Autora dos 24.075,00€ (vinte e quatro mil euros e setenta e cinco cêntimos) já pagos pela Autora, considerando a restituição do bungalow;

c) seja declarado resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre a Autora e a 2.ª Ré, considerando a restituição da parcela de terreno e do bungalow, sem quaisquer montantes a pagar pela Autora.

Alegando, em síntese:

Com vista à aquisição de um bungalow e o seu arrendamento em parcela de terreno para a sua localização em ..., a 27 de setembro de 2022, a autora adquiriu à 1.ª Ré um Bungalow, pelo preço de 24.075 € e, nesse mesmo dia, com vista à instalação do bungalow adquirido, celebrou um “contrato de arrendamento de parcelas para residências móveis”, tendo sido acordado o pagamento de uma renda anual no valor de € 1696,00, com início em 31.10.2023 e fim em 31.10.2024;

ou seja, um contrato plural constituído pelo contrato de compra e venda e pelo contrato de arrendamento de terreno para a sua colocação naquela localização;

no dia 04 de agosto de 2023, contra sua vontade, constatou que tinha pessoas no seu Bungalow, imputando tal acontecimento às Rés;

nessa sequência, por carta datada de 04 de setembro de 2023, procedeu à resolução do contrato de compra e venda de tal coisa, bem como, do contrato de arrendamento supra referido, por incumprimento e não verificação da conformidade do bem com as condições e efeitos pretendidos e fixados, o que não foi aceite pelas Rés.

Conclui, afirmando ter perdido toda a confiança que depositava nas Rés, confiança essa, essencial para a decisão de contratar.

Citadas as rés, não foi por nenhuma delas deduzida oposição.

Em face da revelia das Rés, ao abrigo do artigo 567.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, foi proferido despacho a considerar confessados os factos articulados pela Autora suscetíveis de confissão.


*

Após apresentação de alegações escritas por parte da autora, foi proferida Sentença, que culmina na seguinte:

VI – Decisão

Face a todo o exposto, decide-se julgar a ação totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolver as Rés A..., LDA., e B... LDA., dos pedidos deduzidos pela Autora AA.

 


*

Não se conformando com tal sentença, a autora dela interpõe recurso de Apelação, cujas alegações resume nas seguintes conclusões:

(…).


*

Não foram apresentadas contra-alegações ao recurso.

Dispensados os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº4, in fine, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.


*
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Qualificação dos contratos celebrados pela autora com cada uma das rés e se os mesmos se encontram em coligação.
2. Verificação dos pressupostos de resolução de cada um dos contratos.
3. Em caso afirmativo, quais os efeitos da resolução dos contratos.
*
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O tribunal a quo proferiu a seguinte decisão em sede matéria de facto:

A – Factos Provados

1) A 1.ª Ré A... é uma sociedade comercial por quotas que tem por escopo, nomeadamente, a compra, venda e intermediação de bens de imóveis; viagens e turismo e outras atividades auxiliares de serviços financeiros incluindo a intermediação de crédito;

2) BB é gerente da 1.ª Ré A...;

3) A 2ª Ré B... é uma sociedade comercial por quotas que tem como objeto a compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, promoção de empreendimentos imobiliários;

4) CC e BB são gerentes da 2ª Ré B...;

5) A Autora entrou em contacto em setembro de 2022 com BB e CC, com quem pediu informações, para a aquisição de um bungalow e o seu arrendamento em parcela de terreno para a sua localização prevista em ..., Rua ..., ..., ...;

6) Os contactos que a Autora teve foram sempre com BB e CC, a quem pediu informações, apresentando-se como sendo os únicos e exclusivos representantes das referidas sociedades comerciais 1ª Ré e 2ª Ré;

7) Com tais contactos, a Autora pretendia a aquisição de um bungalow e o seu arrendamento em parcela de terreno para a sua localização prevista em ...;

8) No dia 27 de Setembro de 2022, a Autora declarou comprar e a 1.ª Ré declarou vender um Bungalow, da marca IRM, modelo Super Titania, tipologia T2, do ano de 2012, mediante o pagamento de € 24.075,00;

9) No âmbito do acordo identificado em 8), a Autora no dia 27 de Setembro procedeu a uma primeira transferência para a conta indicada pela 1.ª Ré no valor de € 5.575,00;

10) No âmbito do acordo identificado em 8), a Autora, no dia 28 de Setembro de 2022, procedeu ao pagamento de € 18.500,00;

11) Na sequência dos pagamentos identificados em 9) e em 10), a 1.ª Ré emitiu uma fatura no valor de € 6.150,00;

12) O Bungalow adquirido pela Autora destinava-se em exclusivo à utilização e uso pessoal da Autora, dos seus familiares e amigos e das pessoas por si convidadas;

13) No mesmo dia 27 de Setembro de 2022, e unicamente com vista à instalação do Bungalow adquirido, a Autora firmou contrato escrito com a 2.ª Ré intitulado “contrato de arrendamento de parcelas para residências móveis”, conforme documento junto com a petição inicial sob o n.º 9 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido;

14) A Autora apenas teve interesse no acordo referido em 13) em virtude da compra do Bungalow referido em 8), tendo apenas interesse na compra de tal Bungalow mediante a possibilidade do acordo referido em 13);

15) Consta do acordo referido em 13), entre o mais, que:

a. O mesmo se destinava à instalação da residência móvel com as seguintes características: “Marca: IRM; Modelo: Super Titania; Ano aproximado: 2012; Comprimento: 8.00m; Largura: 4.00m”;

b. Que o preço anual devido é de € 1696,00;

c. Que tem início em 31.10.2023 e fim em 31.10.2024;

d. Que o preço inclui o arrendamento anual da parcela e o acesso ao equipamento do terreno, sendo devido pela Autora o pagamento pelo consumo de luz e gás;

16) A data de início do acordo referido em 13) foi estabelecida para o dia 31.10.2023, uma vez que o gerente da 2.ª Ré comunicou à Autora que no primeiro ano após a compra do Bungalow não teria que pagar nada;

17) Os acordos identificados em 8) e em 13) corresponderam à vontade das partes;

18) Nos acordos identificados em 8) e em 13), BB e CC agiram em representação das Rés;

19) No dia 30 de Julho do ano de 2023, a Autora foi contactada por DD, por e-mail, questionando sobre a disponibilidade desta para dispensar o seu Bungalow entre os dias 3 a 8 de Agosto, uma vez que receberiam um grupo muito grande e estariam com falta de camas;

20) No referido e-mail, DD referiu ainda que se comprometeriam a fazer a limpeza do bungalow antes e depois e a colocar apenas “choferes ou padres, pelo que seriam apenas 2 a 3 pessoas no máximo”;

21) Tendo ainda admitido que sabiam que a Autora não pretendia disponibilizar o seu Bungalow, mas dizendo que seria apenas aquele período e que pagariam 65 € por noite;

22) Aquela terminou o e-mail solicitando “apenas” uma resposta à Autora, pois sabia que sem a autorização da Autora não poderia, de modo algum, ceder a terceiros ainda que temporariamente o Bungalow;

23) Assim, a Autora, imediatamente, ainda no mesmo dia respondeu ao referido e-mail informando que não tinha qualquer interesse em disponibilizar o seu Bungalow e que, provavelmente, nas referidas datas, até estaria ela própria ou a sua família de férias no seu Bungalow;

24) Acontece que, sem que nada o fizesse prever, no dia 4 de Agosto de 2023, a Autora recebeu um alerta da câmara de vigilância que tem instalada dentro do seu Bungalow, dando conta de movimentos dentro do mesmo;

25) Imediatamente, acedeu às imagens da câmara tendo verificado que a mesma se encontrava tapada;

26) No entanto, uma vez que a câmara grava as filmagens, a Autora conseguiu visualizar os momentos anteriores;

27) E, assim, constatou a Autora que às 02:06, da madrugada de 4 de Agosto de 2023, 6 pessoas entraram, contra a vontade da Autora, no seu Bungalow;

28) Tendo percebido o que se estava a passar, a Autora deslocou-se imediatamente a ..., ao ..., na Rua ..., onde está localizado o seu Bungalow;

29) Chegada ao local confrontou CC com o que se estava a passar, sendo que afirmou que se tinha tratado de um engano;

30) A intenção da 2.ª Ré foi de lucrar com aquela situação, ainda que contra a vontade da Autora;

31) Quando a Autora decidiu sair do empreendimento, o mesmo CC trancou-lhe o portão;

32) A Autora chamou ao local a GNR para apresentação de queixa, o que deu origem ao processo crime n.º 139/23...., que está a correr os seus termos no DIAP – Secção de Alcobaça, Ministério Público da Comarca de Leiria;

33) A Autora perdeu toda a confiança nas pessoas com quem lidava e que representavam quer a 1ª quer a 2ª Ré;

34) E deixou de querer ter qualquer relação com as mesmas;

35) Por carta datada de 4 de Setembro de 2023, a Autora comunicou às Rés a intenção de resolver o contrato de compra de residência móvel denominado Bungalow IRM Super Titania T2, assinado em 27 de Setembro de 2022, bem como o contrato de arrendamento de parcela para residência móvel assinado na mesma data, em virtude do incumprimento e não verificação da conformidade do bem com as condições e efeitos pretendidos e fixados;

36) Sendo que, não tendo obtido qualquer resposta à referida missiva, com data de 9 de Outubro de 2023 a Autora, através dos seus Mandatários, voltou a interpelar as Rés;

37) Na sequência, no dia 23 de Outubro de 2023, CC enviou um e-mail aos Mandatários da Autora alegando que:

Temos presente a vossa carta de 9.10.23, que mereceu a nossa melhor atenção. 1º quanto a resolução do contrato de compra do bungalow, só pode haver algum equivoco. A Sua cliente, comprou um bungalow a cerca de ano e meio, dele usufruiu, e ate emprestou a amigos, sem nunca nada pagar ao parque,aguas luz etc etc, apenas a compra. nunca nos foi reclamado, qualquer defeito ou outro.

Como existem dividas no parque, a resolução do contrato não é aceite por nós.

aconselhamos a Sra AA, a duas possibilidade de formas de solução.

1º liquidar as contas, e vender o referido bungalow.

2º levar o mesmo, mediante orçamento de remoção, com todas as contas liquidadas.

Nós não compramos bungalows a clientes.

da nossa parte, e depois do equivoco de um funcionário, da cozinha , uma vez que a receção estava fechada, as 2h da manha, e por engano, ter dado as chaves do 4x, como verificou a Sra , A GNR e até testemunhas nossas.

O Que nos parece, é que a Sra AA, não ser de boas contas, e não querer pagar o que deve. caso a Sra não queira arranjar solução, como disse uma Sra Advogada dai, temos os tribunas.

certo da vossa melhor atenção;

38) E, posteriormente, o mesmo Sr. CC, enviou um novo e-mail à Autora com data de 27.11.2023 com uma conta corrente na qual constam alegados valores devidos pela Autora, anteriores a Outubro de 2023;

39) A confiança da Autora nas Rés foi essencial para a sua decisão de firmar os acordos identificados em 8) e em 13).


*

B – Factos Não Provados

Inexistem factos não provados


*

B. Subsunção dos factos ao direito

A autora intenta a presente ação pela qual pretende ver reconhecido o direito à resolução de dois contratos alegadamente coligados, um de compra e venda de um bungalow celebrado com a 1ª Ré e outro, de arrendamento em parcela de terreno para a sua instalação em ..., celebrado com a 2ª Ré, com fundamento em que as rés permitiram a ocupação do bungalow por terceiros, contra a vontade expressa da autora, o que abalou a confiança que a autora nelas depositara.

A sentença recorrida vem a julgar a ação improcedente, com base nos seguintes fundamentos:

considerando que o contrato de compra e venda se mostra cumprido, sem que seja invocado o seu cumprimento defeituoso, não se encontram reunidos os pressupostos para a sua resolução;

quanto ao intitulado “contrato de arrendamento de parcelas para residências móveis”, não foram alegados factos essenciais que permitam enquadrar o contrato de arrendamento como urbano ou como rural, ficando vedada a aplicação das respetivas regras específicas no que tange à resolução contratual;

de qualquer modo, independentemente do seu enquadramento jurídico, não se considera a verificação dos pressupostos legais para a resolução do invocado contrato.

Nas suas alegações de recurso, a Apelante impugna cada um dos pressupostos em que assentou a decisão recorrida, sustentando ser de qualificar como de arrendamento o contrato celebrado com a 2ª Ré, que os dois contratos se encontram em coligação, bem como a verificação dos pressupostos da resolução de cada um dos contratos, questões que passamos a analisar.

1. Natureza e qualificação dos contratos celebrados com cada uma das rés, e, em especial, se nos encontramos perante uma coligação de contratos.

Segundo a apelante, o objeto da sua pretensão foi adquirir um bungalow, precisa e unicamente, para o instalar onde o instalou, no ..., nos termos do “contrato de arrendamento de parcelas para residências móveis, ou seja, através da celebração de dois contratos interligados, essenciais, subordinados e dependentes um do outro, verificando-se uma relação de dependência bilateral entre os dois contratos, com as vicissitudes de um a influenciar o outro.

Cumpre apreciar, desde já adiantando, ser de dar razão à Apelante.

Quanto à qualificação a dar ao contrato celebrado entre a autora 2ª Ré, intitulado pelas partes como “contrato de arrendamento de parcelas para residências móveis”, terá de ser efetuada face ao teor das cláusulas que o integram e que constam do documento escrito através do qual o mesmo foi formalizado.

Envolvendo elementos típicos de um contrato de locação – pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição (artigo 1022º do CC) – o contrato celebrado com a 2ª Ré prevê ainda prestações típicas de um contrato de prestação de serviços (artigo 1154º do CC) – a par da locação em si (cedência de um espaço à autora para nele manter determinado bungalow com o fim de “residência móvel”, mediante uma “renda anual”), acesso ao equipamento existente no recinto (jogos, piscinas, etc.), bem como o fornecimento de luz e água[1].

Passemos agora à apreciação da alegada existência de uma situação de coligação contratual, invocada pela autora e sobre a qual o tribunal a quo não se pronunciou.

Dispõe o artigo 405º do Código Civil:

(Liberdade contratual)

1. Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver.

2. As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei.,

Esclarecendo o conteúdo da liberdade contratual ou de autorregulação, o preceito distingue nela três valências: a) liberdade de celebração; b) liberdade de estipulação – enquanto faculdade de decidir o conteúdo contratual, designadamente “as clausulas que lhe aprouver”, conformando os efeitos negociais; c) liberdade de seleção do tipo negocial – a saber, a faculdade de (i) escolher um dos modelos contratuais previstos na lei – concluindo um contrato típico; (ii) celebrar contratos atípicos, portanto, contratos diferentes dos previstos neste código; (iii) reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei, ou seja, a faculdade de concluir contratos mistos  ou ainda, de optar por uma união de contratos[2].

Dentro da faculdade de livre fixação do conteúdo dos contratos e de seleção do tipo negocial permitidos por lei, a autora celebrou:

(i) com a 1ª Ré, um contrato denominado de “venda” de um bungalow (móbil-home) em 2ª mão, contrato este sujeito às Condições Gerais elaboradas por aquela e que constituem o doc. 5, junto com a p.i.,   

(ii) com a 2ª Ré, um contrato que denominado de “contrato de arrendamento de parcelas para residências móveis”, também este sujeito às cláusulas gerais nele constantes (trata-se de um contrato subscrito através de um formulário do qual consta o seu regime, deixando espaço unicamente para preenchimento da identificação do proprietário da residência móvel, identificação desta e montante da renda anual)

E, embora celebrados com pessoas coletivas distintas, a matéria dada como prova não deixa dúvidas quanto à interligação funcional de tais contratos:

em Setembro de 2022 a autora contactou com BB e CC (apresentando-se como os únicos e exclusivos representantes das sociedades comerciais 1ª Ré e 2ª Ré) a quem pediu informações, para a aquisição de um bungalow e o seu arrendamento em parcela de terreno para a sua localização prevista em ..., Rua ..., ..., ... (pontos 5 e 6)

com tais contactos, a Autora pretendia a aquisição de um bungalow e o seu arrendamento em parcela de terreno para a sua localização prevista em ... (ponto 7)

no dia 27 de Setembro de 2022, a Autora declarou comprar e a 1.ª Ré declarou vender um Bungalow, da marca IRM, modelo Super Titania, tipologia T2, do ano de 2012, mediante o pagamento de € 24.075,00 (ponto 8);

no mesmo dia 27 de Setembro de 2022, e unicamente com vista à instalação do Bungalow adquirido, a Autora firmou contrato escrito com a 2.ª Ré intitulado “contrato de arrendamento de parcelas para residências móveis”, conforme documento junto com a petição inicial sob o n.º 9 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido (ponto 13);

a Autora apenas teve interesse no acordo referido em 13) em virtude da compra do Bungalow referido em 8), tendo apenas interesse na compra de tal Bungalow mediante a possibilidade do acordo referido em 13) (ponto 14)

consta do acordo referido em 13), entre o mais, que:

a. O mesmo se destinava à instalação da residência móvel com as seguintes características: “Marca: IRM; Modelo: Super Titania; Ano aproximado: 2012; Comprimento: 8.00m; Largura: 4.00m”;

b. Que o preço anual devido é de € 1696,00;

c. Que tem início em 31.10.2023 e fim em 31.10.2024;

d. Que o preço inclui o arrendamento anual da parcela e o acesso ao equipamento do terreno, sendo devido pela Autora o pagamento pelo consumo de luz e gás; (ponto 15)

a data de início do acordo referido em 13) foi estabelecida para o dia 31.10.2023, uma vez que o gerente da 2.ª Ré comunicou à Autora que no primeiro ano após a compra do Bungalow não teria que pagar nada (ponto 16).

De tal matéria, retiramos a existência de um negócio único, um acordo global, pelo qual a autora pretendeu adquirir um bungalow com localização no ..., negociado com os gerentes de ambas as rés, negócio concretizado mediante a celebração de dois contratos: (i) um, pelo qual a autora adquiriu um bungalow (ii), outro, pelo qual lhe foi concedido o direito de o manter em determinada parcela desse empreendimento[3].

Verifica-se coligação de contratos, segundo Antunes Varela, quando estes, “mantendo embora a sua individualidade, estão ligados entre si, segundo a intenção dos contraentes, por um nexo funcional que influi na respetiva disciplina. Já não se trata de um nexo exterior, mas de um vínculo substancial que pode alterar o regime normal de um dos contratos ou de ambos eles, por virtude da relação de interdependência que eventualmente se crie entre eles. A relação de dependência (bilateral ou unilateral) assim criada entre dois ou mais contratos pode revestir as mais variadas formas. Pode um dos contratos funcionar como condição, contraprestação ou motivo do outro; pode a opção por um ou outro estar dependente da verificação ou não verificação da mesma condição; muitas vezes constituirá um deles a base negocial do outro[4]”.

No caso em apreço, se dúvidas restassem dessa relação umbilical entre os dois contratos – manifestada no facto de as negociações terem ocorrido entre a autora e BB e CC (ambos gerentes das sociedades rés), com um único objetivo – aquisição de um bungalow (fornecido pela 1ª Ré) para instalação no ... (explorada pela 2ª ré) –, o facto de as partes terem acordado a data de início do “contrato de arrendamento” apenas para o dia 31.10.2024 (um ano após a assinatura de ambos os contratos), porquanto no 1º ano após a compra do bungalow não teria de pagar nada” pela ocupação da parcela onde o bungalow foi instalado, demonstra claramente a existência de um único negócio em que as clausulas de ambos os contratos são acordadas em simultâneo, influenciando o regime do outro.

A celebração do contrato de “compra e venda” do bungalow influenciou diretamente, uma das cláusulas do contrato de “arrendamento”: o facto de a autora ter “comprado” o bungalow, deu-lhe direito a um ano de ocupação do parque sem pagamento da renda anual.

Concluindo, não só visaram atingir um objetivo unico, como os dois contratos constituíram objetivamente uma unidade económica, integrando contratos em coligação.


*

2. Verificação dos pressupostos da resolução contratual relativamente a cada um dos contratos coligados

Insurge-se a Apelante contra a decisão que lhe negou o direito à resolução dos contratos – o de “compra e venda” por se mostrar integralmente cumprido e o de “arrendamento de parcela”, por inexistência e circunstâncias ocorridas após a celebração do contrato que afetem gravemente os principio da boa fé e que não estejam cobertos pelos riscos próprios do contrato –, com os seguintes fundamentos:

- ao entrarem no bungalow e na parcela de terreno onde o mesmo se localiza, expressamente contra a vontade da autora, violaram as rés o disposto nos artigos 1031º (assegurar o gozo do locado) e 1037º (atos que impeçam ou diminuam o gozo da coisa) do Código Civil, quebrando, por completo, de forma irremediável, a confiança expectativa e interesses existentes aquando da assinatura do contrato de compra da residência móvel e do arrendamento da parcela de terreno;

- as circunstâncias em que a recorrente fundou a sua decisão de contratar sofreram uma alteração anormal e substancial, comportamento que não estava coberto pelos riscos próprios do contrato e que afetou gravemente os princípios da boa-fé, violando o artigo 762º do CC;

- verificando-se uma coligação de contratos, resolvido um dos contratos, também terá de ser o outro contrato, por se encontrarem verdadeiramente dependentes um do outro.

Também, nesta parte, a razão está do lado da Apelante.

Em conformidade com o já exposto, o circunstancialismo de facto dado como provado e o teor dos documentos que formalizam cada um dos contratos, aponta para a existência de um negócio unitário:

A autora contactou com BB e CC especificamente para a aquisição de um bungalow e o seu arrendamento em parcela de terreno para a sua localização prevista em ..., sendo que, a autora apenas teve interesse no arrendamento da parcela em virtude da compra do bungalow, tendo apenas interesse no bungalow mediante a possibilidade do arrendamento para a sua localização naquele empreendimento.

Encontramo-nos perante um acordo unitário, embora desdobrado em dois contratos: “No plano funcional, há um único acordo – há um único acto de auto-regulamentação de interesses – no plano estrutural, há dois contratos[5]”.

A subordinação entre os contratos implica que as vicissitudes de um negócio se repercutam no outro, subordinação que podendo ser recíproca ou unilateral, no caso em apreço, se assume como recíproca – ambos os contratos só tinham interesse para a autora se celebrados em conjunto – a autora queria ser proprietária de um bungalow naquele empreendimento, sendo que os contratos que lhe foram propostos pelas rés, cujas clausulas gerais a autora se limitou a aceitar (são nítidos contratos de adesão), visaram, tão só, a concretização e formalização dessa vontade da autora.

Entre os corolários de uma conceção unitária dos contratos com uma relação de dependência bilateral, Nuno Pinto de Oliveira[6] aponta, entre outros, as seguintes:

- se um dos contratos coligados não for cumprido, deve atender-se ao conjunto para determinar se o credor tem ou não interesses no cumprimento ou se a subsistência da relação é exigível;

- a conceção unitária do conjunto exige que a modificação ou a extinção – por ex., através da resolução por não cumprimento (arts. 801, nº2, e 802º, em interligação com o art. 808º) – de um dos contratos implique a modificação ou extinção de todos – p. ex., através da atribuição ao credor do contrato não cumprido do direito potestativo de resolução do contrato coligado.

Voltemos à situação em apreço.

Conforme o já exposto, o contrato celebrado com a segunda Ré integra um contrato misto de locação e prestação de serviços.

Por outro lado, quanto ao contrato celebrado com a 1ª ré, também não integra um típico contrato de “compra e venda” do bungalow. Como resulta da Nota de Encomenda e das respetivas Condições Gerais – pelo qual a autora adquiriu um bungalow em segunda mão, a pronto pagamento, pelo preço de 24.075,00 € –, aí se prevê a possibilidade de anulação da venda por decisão unilateral do adquirente e a retoma do material (não se sabe se pela 1ª Ré, se pela 2ª), elementos estes, não presentes no regime do típico contrato de compra e venda (artigo 874º do CC):

(…)

3) Anulação de venda: salvo em caso de venda a prazo, o cancelamento de uma venda, decidida unilateralmente pelo adquirente, resultará, segundo as disposições legais, na aquisição do sinal pago ao benefício do vendedor;

4) Retoma: o material retomado será alvo de uma ficha descritiva, e é retomado sobre reserva de defeitos ocultos e irregularidades administrativas;

(…).

Atentar-se-á, ainda, que o 1º pagamento parcelar respeitante à aquisição do bungalow, no montante de 5.575,00 €, foi feito a “C...” (nome pelo qual é gerido o espaço onde se encontra a parcela onde está instalado o bungalow).

Face ao negócio que presidiu à celebração dos contratos com cada uma das rés – de aquisição do bungalow e permanência do mesmo no espaço onde se encontra instalado –, a 2ª Ré não podia praticar atos que impedissem ou diminuíssem o uso do bungalow pela autora (artigo 1037º do CC) e, muito menos, usar o bungalow cuja propriedade a 1ª Ré transmitira para a autora, contra a expressa vontade desta.

Uma das causas possíveis de resolução do contrato reside no incumprimento definitivo do contrato, nos termos gerais do artigo 801º do CC.

O incumprimento é definitivo quando é gerador de perda da confiança na contraparte de tal maneira, pela sua gravidade e carater sintomático, de tal maneira que se torna desrazoável manter o credor adstrito à sua obrigação, existindo, neste caso “justa causa” de resolução[7].

Baseando-se a resolução por justa causa no princípio da boa fé, saber se o incumprimento é suficientemente grave para permitir a desvinculação da contraparte fiel, configura um problema de interpretação do contrato em concreto[8].

“A gravidade deverá ser ponderada tendo em conta um princípio de proporcionalidade entre a prestação incumprida e a cessão do vínculo; a infração terá de ser suficientemente grave para impedir a normal prossecução do contrato[9]”.

No caso em apreço, o comportamento a 2ª Ré vai para além de um mero incumprimento da obrigação do locador de não praticar atos que diminuam o gozo da coisa (artigo 1037º).

O arrendamento do bungalow a terceiros, não só, sem a autorização da autora, mas contra a sua expressa vontade, sobretudo, tendo em consideração que se trata de permitir a permanência de terceiros num espaço considerado uma “segunda residência da autora –para além de envolver uma violação do direito de propriedade desta, mas ainda, ao permitir a introdução e permanência na habitação de outra pessoa contra a vontade expressa do seu proprietário, um comportamento suscetível de constituir um crime de introdução em casa alheia, nos termos do artigo 176º, nº1, do CPenal –  constitui uma violação grave dos deveres que impendiam sobre a 2ª ré.

Encontrando-nos perante um contrato de execução continuada, podemos afirmar que tal comportamento é suscetível de acarretar uma perda na relação da confiança estabelecida entre as partes, tornando para a autora inexigível a manutenção do contrato, constituindo justa causa de resolução do contrato celebrado com a 2ª Ré.

Tal resolução atribuirá também à autora o direito à resolução do contrato de “venda” do bungalow celebrado entre a 1ª e a 2ª Ré.

Com efeito, se as Condições Gerais do “contrato de arrendamento de residência móvel”, celebrado com a 2ª Ré, permitem ao “aceitante”, cancelar tal contrato e “deslocar o material interposto no local como lhe convir” – o que indiciaria a possibilidade de subsistência do contrato de “compra e venda” celebrado com a autora, apesar da resolução do segundo – tais condições (gerais) não podem ser vistas isoladamente, mas sim, à luz do negócio global que esteve na base de ambos os contratos. Ora, o próprio contrato de “venda” do bungalow prevê expressamente a possibilidade de anulação da venda e retoma do veículo pela primeira ré.

Como já vimos, ficou provado que, para autora, nenhum dos contratos que celebrou tinha interesse para si sem a simultânea celebração do outro, sendo que, a utilização do bungalow sem o seu consentimento viola também o direito de propriedade sobre o bungalow que esta adquiriu mediante contrato celebrado com a 1ª Ré.

A cessação do contrato celebrado com a 2ª ré, inviabiliza a finalidade pretendia com o negócio celebrado pela autora, sendo de reconhecer o direito à resolução de ambos os contratos.


*

3. Efeitos da Resolução de cada um dos contratos

Dispõe ao artigo 434º, do Código Civil, quanto aos efeitos da resolução do contrato:

1. A resolução tem efeito retroativo, salvo se a retroatividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução.

2. Nos contratos de execução continuada ou periódica, a resolução não abrange as prestações já efetuadas, exceto se entre estas e a causa de resolução e a causa de resolução existir um vínculo que legitime a resolução de todas elas.

A resolução do contrato respeitante à aquisição do bungalow, implicará a restituição das prestações correspondentes, ou seja, restituição à autora do respetivo preço e restituição à 1ª Ré do bungalow.

Já na parte respeitante à locação da parcela, tratando-se de um contrato de execução continuada, a resolução não produz efeitos retroativamente.

Tendo a aquisição do bungalow permitido à autora a ocupação da parcela sem ter de proceder ao pagamento da 1ª renda anual, e tendo ocupado a parcela durante um ano, o valor desta ocupação terá de ser descontado ao valor do preço da parcela.

Como tal, reconhece-se unicamente à autora o direito à restituição do montante de 24.075,00 € - 1.696,00 € = 22.379 €.

Quanto à peticionada declaração de que a autora nada fica a dever relativamente ao “contrato de arrendamento”, não é de deferir, porquanto, embora conste dos factos dados como provados que a 2ª Ré “comunicou à autora que no primeiro ano após a compra do bungalow não teria de pagar nada” (ponto 16), do doc. de conta corrente emitido pela Ré, consta que a autora, para além do preço de aquisição do bungalow, procedeu ainda a um pagamento de 1.250 €, a 27.06.2023, o que não é negado pela autora, daqui se deduzindo reconhecer a mesma que o beneficio que lhe foi concedido no 1º ano, se abarcava a anuidade pela locação do espaço, não abarcaria as prestações relacionadas com consumos de luz e gás, autonomizadas pelo próprio contrato.

A Apelação da autora é de julgar parcialmente procedente.


*

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a Apelação, revogando a decisão recorrida:

a) declara-se resolvido o contrato de “compra e venda” celebrado entre a Autora e a 1.ª Ré,

b) declara-se resolvido o “contrato de arrendamento” celebrado entre a Autora e a 2.ª Ré;

c) condenando a 1ª Ré a proceder à devolução à Autora da quantia de 22.379,00 €, considerando a restituição do bungalow.

As custas da ação e da Apelação serão suportadas pela autora e pelas rés, na proporção de 1/10 para a autora e 9/10 para as rés.                    

                                                   Coimbra, 27 de maio de 2025 

                                            
V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
(…).



[1] No Acórdão do TRC de 01.03.2016, relatado pela também aqui relatora, entendeu-se que  “Configura um contrato misto de locação e prestação de serviços aquele em que um campista/caravanista celebra com uma entidade exploradora de um parque de campismo, mediante o qual esta se obriga a ceder o gozo temporário de um determinado espaço conjuntamente com a prestação de determinados serviços (relacionados com o conforto, higiene e segurança), mediante o pagamento de uma retribuição pelo campista/caravanista.” – Acórdão disponível in www.dgsi.pt.
[2] Ana Filipa Morais Antunes, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral”, Universidade Católica Editora, anotação 5, ao artigo 405º, p. 54.
[3] Sendo irrelevante o facto os contratos terem sido celebrados pela autora com duas pessoas distintas, sendo imprescindível, tão só, a existência de um sujeito comum aos dois negócios jurídicos – Pedro Romano Martinez, “Da Cessação do Contrato”, 2015 – 3ª ed., Almedina, pp. 230-231.
[4] “Das Obrigações em Geral, Vol. I, 6ª ed., Almedina, p. 277.
[5] Nuno Pinto de Oliveira, “Princípios de Direito dos Contratos”, Coimbra Editora, p. 142.
[6] Obra citada, pp. 143 e 144.
[7] Ana Perestrelo de Oliveira e Madalena Perestrelo de Oliveira, “Incumprimento Resolutório: uma introdução”, Almedina, p. 69.
[8] Ana Perestrelo de Oliveira e Madalena Perestrelo de Oliveira, obra citada, p. 70.
[9] Pedro Romano Martinez, “Da Cessação do Contrato”, p. 222.