I – Não tendo determinada factualidade sido impugnada na oposição, ainda que a questão tenha sido apreciada em sede de audiência, não pode ser apreciada em sede de recurso, encontrando-se precludido o direito de oposição por tal motivo.
II – A aplicação do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) da União Europeia (UE) (Regulamento(UE) n.º 679/2016, de 27 de Abril) não pode afastar o direito à prova, constitucionalmente protegido – artº 20º, da Constituição da República Portuguesa –, uma vez que não há acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva sem acesso à prova necessária ao esclarecimento dos factos.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Recorrente A..., Lda.
Recorrida B..., Lda.
Juiz Desembargador Relator: Anabela Marques Ferreira
Juízes Desembargadores Adjuntos: Maria João Areias
Chandra Gracias
Sumário (da responsabilidade do Relator – artº 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
(…).
Acordam os juízes que nestes autos integram o coletivo da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
Nos autos de ação de processo comum, que correram termos no Juízo Local Cível de Coimbra - Juiz 3, a Autora B..., Lda. demandou a Ré A..., Lda., pedindo que se determine a apresentação pela Requerida dos documentos que atestem a totalidade da respectiva faturação no período compreendido entre os meses de abril a dezembro de 2020 e janeiro e fevereiro de 2021, com a realização de testes PCR à doença por coronavírus (COVID-19) causada pelo vírus SARS-CoV-2, designadamente todas as respetivas faturas-recibo e recibos emitidos a particulares e respetivas listagens remetidas à Administração Regional de Saúde do Centro, I.P., no dia, hora e local designados por V. Exa..
Para tanto, alegou, em síntese, que, em 19 de abril de 2020, Requerente e Requerida celebraram um contrato de prestação de serviços, de acordo com o qual, a Requerente teria de prestar serviços de apoio técnico laboratorial na execução de testes PCR à doença por coronavírus (COVID-19) causada pelo vírus SARS-CoV-2, num espaço pertencente à Requerida, sito na morada da sua sede.
Em contrapartida da execução do aludido contrato de prestação de serviços, as partes acordaram que a Requerente teria direito a uma quantia correspondente a 35% da faturação obtida pela Requerida com a execução dos referidos testes.
Sucede que, no tocante ao período compreendido entre os meses de abril a dezembro de 2020 e janeiro e fevereiro de 2021, a Requerida não diligenciou no sentido de apresentar a totalidade dos dados contabilísticos, devidamente documentados, necessários ao apuramento dos valores devidos e, consequentemente, necessários à emissão das respetivas faturas.
A Réu contestou, invocando as exceções de ilegitimidade da requerida e de erro na forma de processo, impugnando parcialmente os factos e alegando que, se a Requerente pretende fazer prova de direitos de que se arroga, devia tê-lo feito no processo de injunção que instaurou contra a Requerida e que se encontra a correr termos no Balcão Nacional de Injunções, e a que foi atribuído o n.º 384/22.....
Ainda que o que foi acordado com o Dr. AA, para prestação do apoio técnico laboratorial, foi o pagamento da respetiva remuneração de 35% sobre o resultado líquido da faturação do A..., Lda., sendo que, para apurar a remuneração pela prestação de serviços o que basta e é necessário são os documentos de prestação de contas, as quais são públicas e podem ser obtidas junto da Conservatória do Registo Comercial, ou requeridas à Autoridade Tributária (não obstante, juntando aos autos o IES de 2020).
Ao que acresce que a Requerente ia faturando quantias por conta desse montante remuneratório e, assim, apresentou à Requerida, que esta pagou, as seguintes facturas: de 01/1 de 29 de Setembro de 2020 do montante de 11.506,81€; de 01/2 de 03 de Dezembro de 2020 do montante de 10.651,20€ e a factura 01/3 de 21 de Janeiro de 2021 do montante de 127.831,21 €, da qual foram feitos pagamentos parcelares no montante de € 72.860,21.
Nada sendo devido à Requerente, pois tudo lhe foi já pago, sendo aliás o A..., Lda, credor de montantes que a mais lhe entregou como na referida ação de injunção se reclamou.
Consequentemente, pediu a sua absolvição da instância ou a improcedência da ação.
A Requerente pugnou pela improcedência das excepções invocadas e pediu a condenação da Requerida como litigante de mé fé, em multa e indemnização.
A Requerida pugnou pela improcedência do pedido de condenação como litigante de má fé.
No início da audiência final, a Requerida declarou aceitar a legitimidade da Requerente para a presente acção.
Foi produzida prova e proferida sentença, onde se decidiu julgar improcedentes as exceções invocadas, bem como o pedido de condenação por litigância de má fé e, julgando a ação procedente:
Pelo exposto, designo o dia 26 de Setembro de 2024, pelas 14.00 horas para que a Requerida apresente neste Tribunal os seguintes documentos: as faturas-recibo e recibos emitidos a particulares e respetivas listagens remetidas à Administração Regional de Saúde do Centro, I.P. com a realização de testes PCR à doença por coronavírus (COVID-19) causada pelo vírus SARS-CoV-2, entre os meses de abril a dezembro de 2020 e janeiro e fevereiro de 2021, nos termos e com os fundamentos do disposto nos arts. 1045º e 1046º n.º 2 do C.P.C. e com a cominação constante do art. 1047º do mesmo Código.
A Recorrente A..., Lda. interpôs recurso da sentença, concluindo, nas suas alegações, que:
(…).
A Recorrida B..., Lda. respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
Da conjugação do disposto nos artºs 635º, nºs 3 e 4, 637º, nº 1 e 639º, todos do Código de Processo Civil, resulta que são as conclusões do recurso que delimitam os termos do recurso (sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - artº 608º, nº 2, ex vi artº 663º, nº2, ambos do mesmo diploma legal), não vinculando, porém, o Tribunal ad quem às soluções jurídicas preconizadas pelas partes (artº 5º, º 3, do Código de Processo Civil). Assim:
Questões a decidir:
1) Da nulidade da sentença
2) Da alteração da decisão relativa à matéria de facto (termos e fim do contrato)
3) Da apresentação dos documentos (necessidade, violação de direitos pessoais e complexidade)
Factos julgados provados na sentença recorrida:
1- Em 19 de Abril de 2020, Requerente e Requerida celebraram um contrato de prestação de serviços, nos termos do qual aquela prestaria a esta serviços de apoio técnico laboratorial na execução de testes PCR à doença por coronavírus (COVID-19) causada pelo vírus SARS-CoV-2, num espaço pertencente à Requerida sito na morada da sua sede (art. 1º e 2º da p.i.).
2- Em contrapartida da execução do aludido contrato de prestação de serviços, as partes acordaram que a Requerente seria remunerada com uma percentagem calculada sobre os proventos obtidos pela Requerida com a execução dos referidos testes (art. 3º e 15º da p.i. e 37º da contestação).
3- A Requerida enviou à Requerente listagens resumidas e verificadas e as respetivas comissões de testes COVID-19 efetuados (art. 6º da p.i.).
4- Com base nos elementos referidos em 3), a Requerente apresentou à Requerida três facturas;
- a factura 01/1 de 29 de Setembro de 2020, no montante de € 11.506,81, relativo a “Apoio técnico em análise clinicas laboratoriais”
- a factura 01/2 de 03 de Dezembro de 2020, no montante de € 10.651,20, relativo a “Apoio técnico em análise clinicas laboratoriais” e
- a factura 01/3 de 21 de Janeiro de 2021, no montante de € 127.831,21, relativo a “Apoio técnico laboratorial até 31 de Dezembro de 2020” (art. 46º da contestação).
5- A Requerida pagou as duas primeiras facturas referida em 4), respectivamente em 30 de Setembro e 31 de Outubro de 2020 (art. 46º da contestação).
6- Da terceira factura referida em 4), a Requerida pagou os seguintes valores:
- em 25 de Janeiro de 2021, € 16.739,29,
- em 11 de Março de 2021, € 11.120,92,
- em 01 de Abril de 2021, € 15.000,00,
- em 05 de Maio de 2021, € 15.000,00 e
- em 08 de Julho de 2021, € 15.000,00 (art. 48º da contestação).
7- A aqui Requerente instaurou contra a ora Requerida Acção Declarativa com Processo Comum n.º 384/22.... do Juízo Central Cível de Coimbra – Juiz 3, pedindo a respectiva condenação no pagamento da quantia de € 58.801,12, sendo € 54.971,00 de capital e juros de mora no montante de € 3.637,12 acrescido da quantia de € 40,00 nos termos do art. 7º do D.L 32/2003, com alteração introduzida pelo D.L 62/2013 e € 153,00 de taxa de justiça paga (art. 20º da contestação).
8- O valor de € 54.971,00 referido em 7) corresponde ao remanescente da factura referida em 6) (art. 20º da contestação).
9- Por sentença proferida no dia 19-3-2024, pendente de recurso, a Requerida foi condenada a pagar à Requerente a quantia de € 11.550,60, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, desde a citação até integral pagamento, tendo a reconvenção sido julgada totalmente improcedente e a ali Autora absolvida do pedido reconvencional.
10- Na sentença referida em 8) escreveu-se que “Na versão da autora é-lhe devida a quantia € 127.831,24, correspondente a 35% do valor da faturação obtida com a execução dos testes RT-PCR para pesquisa de RNA do vírus SARS-Cov-2.
Na versão da ré as partes acordaram que o valor a pagar era de 35% sobre o valor líquido da faturação mensal do Laboratório pelo que tendo o resultado líquido do A..., Lda sido de 165.411,17€ no ano de 2020, apenas teria de pagar € 43.420,43 [165411,17 : 12 x 35% x 9 meses (abril a dezembro de 2020)].
Como nenhuma das partes logrou demonstrar a sua versão, temos como equitativo fixar o preço na diferença entre as posições das partes ou seja € 84410,81 (€ 127.831,24 - € 43.420,43), que nos parece ajustada tendo em vista o conteúdo da efetiva prestação por parte da ré, estando, pois, em dívida o capital no montante de € 11.550,60 (€ 84.410,81 – 72.860,21)”.
Factos julgados não provados na sentença recorrida:
Inexistem factos não provados.
Da nulidade da sentença
A Recorrente alegou:
Constitui matéria controvertida conhecer o momento da cessação da relação contratual, se no final de Dezembro de 2020 ou no final de Fevereiro de 2021, tendo sido produzida prova bastante, a sentença omitiu pronúncia, nulidade prevista no artº 615º, nº 1, al. d) do Código de Processo Civil.
Diz-se na sentença recorrida que:
No caso dos autos, resulta provado que Requerente e Requerida tiveram uma relação contratual, no âmbito da qual a Requerente prestou serviços à Requerida cuja contrapartida estava indexada aos resultados (que as partes divergem quanto a serem líquidos – ou seja, deduzidos dos custos – ou brutos) obtidos por esta com a realização de testes PCR à doença por coronavírus (COVID-19) causada pelo vírus SARS-CoV-2. As partes divergem igualmente quanto ao momento da cessação da referida relação contratual (Março de 2021, na versão da Requerente e Dezembro de 2020, na da Requerida). Daqui se extrai a existência de um interesse jurídico atendível da Requerente na apresentação dos documentos que identifica, porquanto o respectivo exame se mostra necessário para apurar a existência ou o conteúdo do seu direito.
Ainda que os critérios para a definição desse direito e o período temporal pelo qual o mesmo se deverá estender sejam contestados pela aqui Requerida. Com efeito, apenas munida da documentação que a Requerida não quer facultar é que a Requerente pode apurar o quantum do direito a que se arroga. E sendo tal direito, devidamente quantificado e exigido à Requerida poderá a mesma, aí sim, numa fase ulterior, contrapor à Requerente o critério por si sustentado para o cômputo da respectiva remuneração.
Daí que se tenha considerado que a prova da factualidade atinente ao concreto critério de apuramento da remuneração da Requerente (o qual na Acção de Processo Comum n.º 384/22...., que correu termos no Juízo Central Cível – J3, não se logrou provar) e à concreta duração da relação contratual não se revestiam de essencialidade para a decisão dos presentes autos. (sublinhado nosso)
Isto é, o Tribunal a quo não se pronunciou sobre os factos relativos à data da cessação da relação contratual que existiu entre as partes porque considerou tal matéria irrelevante para a decisão da causa.
Não podemos deixar de concordar com tal entendimento, salientando-se, porém, diferente fundamento.
Na verdade, compulsados os autos, verifica-se que esta questão não foi levantada na oposição, onde nunca foi posta em causa a data final da prestação de serviços, limitando-se a Requerida a alegar que tudo o que foi prestado já se encontra pago.
A questão até pode ter sido apreciada em sede de audiência, mas não foi motivo de oposição ao pedido, pelo que estava já precludido o direito de oposição por tal motivo.
Deste modo, nesta parte, o recurso é improcedente.
Da alteração da decisão relativa à matéria de facto
Veio a Recorrente requerer a alteração da matéria de facto no que toca à data em que cessou a relação contratual e ao concreto critério de apuramento da remuneração da Requerente.
Como já vimos, o Tribunal recorrido considerou desnecessário conhecer dos factos relativos a estes dois pontos, por entender que não interessam à decisão da causa.
No que concerne ao período de tempo durante o qual a Requerente prestou serviços à Requerida, já acima se concordou com o decidido pelo Tribunal a quo.
No que diz respeito ao concreto critério de apuramento da remuneração da Requerente, é também irrelevante saber, para os efeitos desta ação, se a remuneração de 35% é calculada sobre o resultado líquido da faturação ou sobre a faturação dos testes Covid, uma vez que, num ou no outro caso, a Requerente sempre necessitará de documentos em posse da Requerida, para proceder ao seu cálculo e emitir a correspondente faturação.
Assim, também nesta parte, improcede o recurso.
B) De Direito
Da apresentação dos documentos (necessidade, violação de direitos pessoais e complexidade)
Alega a Recorrente que a apresentação dos documentos é desnecessária, uma vez que a IES, que é pública (juntando aos autos a de 2020), é suficiente para apuramento dos factos necessários à emissão da faturação.
Entendemos que assim não é, porque da sua simples leitura não resulta qual a faturação relativa ao serviço prestado pela Requerente, não é possível efetuar o cálculo pretendido pela Requerente.
Invoca igualmente a Requerida que da entrega dos documentos requeridos resultaria a violação de direitos pessoais.
Aqui, concordamos inteiramente com o Tribunal recorrido quando diz:
Requerente pretende contêm dados sensíveis pelo que, ao abrigo do Regulamento Geral de Proteção de Dados, é proibida a sua utilização; que o art. 9º do referido diploma protege especialmente os dados dos utentes e dos testes COVID como categoria especial de dados pessoais, os quais só deverão ser objeto de tratamento, divulgação e transmissão a outrem, para fins unicamente relacionados com a saúde do utente, quando tal for necessário para atingir os objetivos no interesse das pessoas singulares e da sociedade no seu todo, nomeadamente no contexto da gestão dos serviços e sistemas de saúde, para efeitos de controlo da qualidade, gestão e supervisão do sistema de saúde, assegurando a continuidade dos cuidados de saúde ou para fins de segurança, monitorização e alerta em matéria de saúde, não podendo ser revelados em circunstância alguma, e muito menos para os efeitos ora pretendidos pela Requerente.
O art. 9º do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) da União Europeia (UE) (Regulamento(UE) n.º 679/2016, de 27 de Abril) invocado pela Requerida, que tem por epígrafe Tratamento de categorias especiais de dados pessoais”, dispõe que:
“1. É proibido o tratamento de dados pessoais que revelem a origem racial ou étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, ou a filiação sindical, bem como o tratamento de dados genéticos, dados biométricos para identificar uma pessoa de forma inequívoca, dados relativos à saúde ou dados relativos à vida sexual ou orientação sexual de uma pessoa.
2. O disposto no n.º 1 não se aplica se se verificar um dos seguintes casos:
a) Se o titular dos dados tiver dado o seu consentimento explícito para o tratamento desses dados pessoais para uma ou mais finalidades específicas, exceto se o direito da União ou de um Estado-Membro previr que a proibição a que se refere o n.º 1 não pode ser anulada pelo titular dos dados;
b) Se o tratamento for necessário para efeitos do cumprimento de obrigações e do exercício de direitos específicos do responsável pelo tratamento ou do titular dos dados em matéria de legislação laboral, de segurança social e de proteção social, na medida em que esse tratamento seja permitido pelo direito da União ou dos Estados- Membros ou ainda por uma convenção coletiva nos termos do direito dos Estados-Membros que preveja garantias adequadas dos direitos fundamentais e dos interesses do titular dos dados;
c) Se o tratamento for necessário para proteger os interesses vitais do titular dos dados ou de outra pessoa singular, no caso de o titular dos dados estar física ou legalmente incapacitado de dar o seu consentimento;
d) Se o tratamento for efetuado, no âmbito das suas atividades legítimas e mediante garantias adequadas, por uma fundação, associação ou qualquer outro organismo sem fins lucrativos e que prossiga fins políticos, filosóficos, religiosos ou sindicais, e desde que esse tratamento se refira exclusivamente aos membros ou antigos membros desse organismo ou a pessoas que com ele tenham mantido contactos regulares relacionados com os seus objetivos, e que os dados pessoais não sejam divulgados a terceiros sem o consentimento dos seus titulares;
e) Se o tratamento se referir a dados pessoais que tenham sido manifestamente tornados públicos pelo seu titular;
f) Se o tratamento for necessário à declaração, ao exercício ou à defesa de um direito num processo judicial ou sempre que os tribunais atuem no exercício da suas função jurisdicional;
g) Se o tratamento for necessário por motivos de interesse público importante, com base no direito da União ou de um Estado-Membro, que deve ser proporcional ao objetivo visado, respeitar a essência do direito à proteção dos dados pessoais e prever medidas adequadas e específicas que salvaguardem os direitos fundamentais e os interesses do titular dos dados;
h) Se o tratamento for necessário para efeitos de medicina preventiva ou do trabalho, para a avaliação da capacidade de trabalho do empregado, o diagnóstico médico, a prestação de cuidados ou tratamentos de saúde ou de ação social ou a gestão de sistemas e serviços de saúde ou de ação social com base no direito da União ou dos Estados-Membros ou por força de um contrato com um profissional de saúde, sob reserva das condições e garantias previstas no n.º 3;
i) Se o tratamento for necessário por motivos de interesse público no domínio da saúde pública, tais como a proteção contra ameaças transfronteiriças graves para a saúde ou para assegurar um elevado nível de qualidade e de segurança dos cuidados de saúde e dos medicamentos ou dispositivos médicos, com base no direito da União ou dos Estados-Membros que preveja medidas adequadas e específicas que salvaguardem os direitos e liberdades do titular dos dados, em particular o sigilo profissional;
j) Se o tratamento for necessário para fins de arquivo de interesse público, para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, em conformidade com o artigo 89.º, n.º 1, com base no direito da União ou de um Estado-Membro, que deve ser proporcional ao objetivo visado, respeitar a essência do direito à proteção dos dados pessoais e prever medidas adequadas e específicas para a defesa dos direitos fundamentais e dos interesses do titular dos dados.
3. Os dados pessoais referidos no n.º 1 podem ser tratados para os fins referidos no n.º 2, alínea h), se os dados forem tratados por ou sob a responsabilidade de um profissional sujeito à obrigação de sigilo profissional, nos termos do direito da União ou dos Estados-Membros ou de regulamentação estabelecida pelas autoridades nacionais competentes, ou por outra pessoa igualmente sujeita a uma obrigação de confidencialidade ao abrigo do direito da União ou dos Estados-Membros ou de regulamentação estabelecida pelas autoridades nacionais competentes.
4. Os Estados-Membros podem manter ou impor novas condições, incluindo limitações, no que respeita ao tratamento de dados genéticos, dados biométricos ou dados relativos à saúde”.
Com efeito, o teor ou conteúdo das faturas-recibo e recibos emitidos a particulares e respetivas listagens remetidas à Administração Regional de Saúde do Centro, I.P., com a realização de testes PCR à doença por coronavírus (COVID-19) causada pelo vírus SARS-CoV-2, é enquadrável na definição de dados pessoais constante do nº 1 do art. 4º do Regulamento por conterem “informações relativas a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»)…” e que o seu tratamento (nº 2 do art. 4º do Regulamento) só é lícito se, no que ao caso interessa, “for necessário para efeito dos interesses legítimos prosseguidos pelo responsável pelo tratamento ou por terceiros, excepto se prevalecerem os interesses ou direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a protecção dos dados pessoais, em especial se o titular for uma criança”.
Por outro lado, é proibido o tratamento de dados pessoais que revelem a origem racial ou étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, ou a filiação sindical, bem como o tratamento de dados genéticos, dados biométricos para identificar uma pessoa de forma inequívoca, dados relativos à saúde ou dados relativos à vida sexual ou orientação sexual de uma pessoa, sendo que esta proibição não se aplica “se o tratamento for necessário à declaração, ao exercício ou à defesa de um direito num processo judicial ou sempre que os tribunais atuem no exercício das suas função jurisdicional” – nºs 1 e 2 alínea f) do art. 9º do Regulamento.
A Requerente, como terceiro (na definição constante do art. 4º, ponto 10) do referido Regulamento), pretende que através do tribunal se proceda ao tratamento “na definição constante do art. 4º, ponto 2) do Regulamento) de dados pessoais com vista a alcançar um interesse legítimo qual seja o de, através desses dados, apurar o conteúdo do direito a que se arroga, nos termos supra explanados.
E se os utentes do Laboratório da Requerida não são partes no processo, a verdade é que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para descoberta da verdade, designadamente, facultando o que for requisitado – nº 1 do artº 417º do C.P.C. sendo que, no caso, não se verificam as causas de recusa a que alude o nº 3 do citado preceito – neste sentido, vd. o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 26-06-2020, Proc. 4354/19.7T8CBR-A.C2, publicado em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/18aeffd15973832f8025859d004d0763?OpenDocument&Highlight=0,protec%C3%A7%C3%A3o,dados.
Por todo o exposto, considero que o direito da Requerente à apresentação dos documentos prevalece sobre as causas de oposição invocadas pela Requerida.
Está aqui em causa o direito à prova, constitucionalmente protegido – artº 20º, da Constituição da República Portuguesa -, uma vez que não há acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva sem acesso à prova necessária para esclarecimento dos factos[1].
Como de diz no acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 14 de Julho de 2010, proferido no processo nº 102/10.5TBSRE.C1, disponível em www.dgsi.pt: 3. O direito à prova pode ser definido como o direito da parte de utilizar todas as provas de que dispõe, de forma a demonstrar a verdade dos factos em que a sua pretensão se funda. Do seu conteúdo essencial constam, portanto, os seguintes aspectos: o direito de alegar factos no processo; o direito de provar a exactidão ou inexactidão desses factos, através de qualquer meio de prova; o direito de participação na produção das provas.
Porém, não se trata de direito ilimitado ou com caráter absoluto, havendo que demonstrar que é necessária e adequada à prova dos factos alegados, o que, in casu, resulta evidente do supra exposto.
Alega ainda que a tarefa requerida revela grande complexidade; porém, tal não pode ser motivo justificativo de negar o direito de acesso da Requerente aos documentos da Requerida.
Para mais, foi a própria Requerida quem também deu azo a tal necessidade, ao acordar num modo de cálculo da remuneração – seja ele qual for, o alegado por si ou o pela parte contrária - que depende do conhecimento da sua faturação, o que reforça também a proporcionalidade do pedido.
Tendo em conta o supra decidido, improcede o recurso.
IV - Decisão
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1ª Secção deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela Apelante – artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do Código de Processo Civil.
Coimbra, 27 de Maio de 2025
Com assinatura digital:
Anabela Marques Ferreira
Maria João Areias
Chandra Gracias
[1] Como nos diz Nuno Lemos Jorge, “Direito à prova: brevíssimo roteiro jurisprudencial”, in Revista “Julgar” nº 6, 2008, págs. 99 e 100: Que a garantia do direito à prova é outra face da garantia do direito subjetivo é por demais evidente. Sem a possibilidade de provar os factos constitutivos de um direito, a previsão deste não passará de uma boa intenção do legislador.