AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
PRESTAÇÃO FORÇADA DE CONTAS
PROVA PERICIAL
Sumário

I - Em acção especial de prestação de contas, na modalidade de prestação forçada de contas, o apuramento das receitas e das despesas deve fazer-se pelo juiz com recurso ao seu prudente arbítrio e às regras da experiência, conforme dispõe o n.º 5 do art.º 945º do C. P. Civil, em termos mais flexíveis do que numa mera análise estrita da prova, segundo os critérios de certeza judicial.
II - Na concretização do seu raciocínio crítico de valoração da prova, há-de o juiz atender à verosimilhança do facto em apreciação, sendo verosímil o que corresponde ao funcionamento normal das coisas, às regras da experiência e ao senso comum, numa apreciação sensata e prudente.
III - A “prova-rainha” para aferir da existência das despesas que carecem de suporte em documento contabilisticamente aceite (facturas, venda a dinheiro, recibos verdes e pagamentos directamente às entidades) é a prova pericial.
IV - A divisão dos valores do certificado de aforro do de cujus resgatados pelo obrigado a prestar contas não tem as características de necessidade e de normalidade das habituais despesas não documentadas.
V - O princípio, ou máxima de valoração da prova, iis quae dificcillioris sunt probationis, levioris probationes admittuntur, no sentido de que, quando um facto é difícil de provar, os tribunais podem aceitar provas menos rigorosas do que seriam necessárias para factos mais fáceis de demonstrar, não pode aceitar-se em situações em que os juízos de verosimilhança se equivalem.

Texto Integral

Processo: 2736/19.3T8VFR.P2

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Sumário:
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AA propôs contra BB, ambos com os sinais dos autos, acção com processo especial de prestação de contas, pedindo se ordene a citação do R. para, no prazo de 30 dias, prestar as contas da sua administração dos bens do falecido CC, desde 01 de Janeiro de 2000 a 23 de Outubro de 2017, ou contestar a presente acção. Alega para tanto, no essencial, que autor e réu são irmãos e únicos herdeiros do seu pai, CC, falecido em 23 de Outubro de 2017, encontrando-se a correr termos processo de inventário no qual o autor exerce as funções de cabeça-de-casal. Pelo menos o ano 2000 que o Réu administrava os bens do pai, nunca prestando contas ao mesmo nem ao autor, que se vê impossibilitado de apresentar relação de bens, por desconhecer a gestão do réu e o património do inventariado.
Citado, o réu contestou, no essencial dizendo não ter que prestar quaisquer contas, porquanto não procedeu à administração dos bens do falecido. Mais alega que o autor não mantinha contacto com o progenitor, e que, a pedido deste, figurava como co-titular de diversas contas bancárias e efectuava actos de gestão patrimonial, a pedido e por ordens deste. Conclui pela improcedência da acção.
O Autor respondeu, concluindo como na petição inicial.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente procedente e, consequentemente, condenou o réu a prestar contas relativamente à administração dos bens do falecido CC no período entre 1 de Janeiro de 2000 e 23 de Outubro de 2017. Para tanto, deverá ser noticiado, após trânsito em julgado da decisão, para, no prazo de 20 dias, apresentar as contas assim determinadas, com a cominação de que, não o fazendo, não lhe será permitido contestar as que o autor apresente.
Mediante recurso de apelação do R., foi por esta Relação do Porto alterada a sentença quanto ao período aí fixado da administração dos bens do falecido CC, fixando-se agora entre 3 de Agosto de 2010 e 23 de Outubro de 2017, mantendo-se, no mais, o decidido.
O réu prestou contas por requerimento apresentado no dia 20-06-2022, que o autor contestou, dizendo que o R. juntou uma quantidade imensa de documentos, sem qualquer numeração ou identificação, sendo praticamente impossível determinar a sua correspondência.
Por despacho de 22-09-2022 foi o R. convidado a apresentar as contas, conforme dispõe o art. 944.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, devendo nessa conta-corrente aludir-se ao documento em causa e devendo os documentos estar numerados.
Em 19-10-2022 veio o R. juntar as contas aperfeiçoadas, para tal juntando uma tabela onde se encontram discriminadas as receitas e despesas, associando cada uma delas a um documento, procedendo à entrega, no dia seguinte, dos documentos numerados que acompanham a referida tabela.
Seguidamente, veio o A. contestar as contas apresentadas, pugnando pela sua rejeição.
Foi proferido despacho saneador, além do mais ordenando a realização de uma perícia por TOC, no sentido de habilitar o tribunal com uma análise técnica das contas apresentadas.
Realizada a perícia, teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, julgando procedente, por provada, a acção e, em consequência, decidindo:
1. Aprovar e julgar prestadas as contas apresentadas pelo réu no período em causa de 03.08.2010 a 23.10.2017, fixando o valor das receitas total em € 211.347,99 - onde se incluiu o saldo inicial - e de despesas no total de € 153.403.98, donde resulta um saldo positivo de € 57.944.01;
2. Na sequência da administração efectuada e atentas as receitas e despesas referidas, condenou o réu no pagamento à Herança de CC da quantia de € 57.944,01 crédito esse que, não sendo pago, deverá ser relacionado como direito de crédito no inventário que corre já termos entre Autor e Réu, herdeiros na referida herança.
Inconformado com a sentença, dela interpõe o réu recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
(…)

***
O autor apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
Delimitando-se o âmbito do recurso pelas conclusões da alegação do recorrente, abrangendo apenas as questões aí contidas (artºs 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil), são as seguintes as questões a decidir:
- Reapreciação da prova quanto à questionada divisão dos valores dos certificados de aforro resgatados pelo recorrente, e, em função dela,
- Se é de altar o saldo devedor apurado pela 1.ª insância.
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A 1.ª instância fixou nos seguintes termos os factos considerados provados e não provados:
A) Os factos provados
i. - Da obrigação de prestar contas
1. Autor e Réu são os únicos filhos de CC.
2. CC faleceu em 23 de Outubro de 2017, no estado de viúvo.
3. O Réu intentou inventário por óbito dos seus pais, que se encontra a correr os seus termos no Cartório Notarial de DD, com o n.º de processo ....
4. O Autor foi designado cabeça de casal da herança dos inventariados CC e EE, tendo já prestado compromisso de honra e declarações e incumbindo-lhe nesse âmbito apresentar a relação de bens.
5. Alterada pelas razões infra para Desde pelo menos de 3 de Agosto de 2010 que o Réu geria as contas bancárias do pai, efectuava pagamentos de despesas, realizava movimentos a crédito e débito e fazia transferências bancárias, (versão original "Desde pelo menos o ano 2000 que o Réu geria as contas bancárias do pai, efectuava pagamentos de despesas, realizava movimentos a crédito e débito e fazia transferências bancárias").
6. O falecido CC tinha conhecimento dessa actividade e autorizava-a.
7. Alterada pelas razões infra para Antes da data aludida em 5 o falecido pediu por diversas vezes ao Réu para efectuar levantamentos de dinheiro e efectuar o pagamento de despesas. (versão original "O falecido pedia ao Réu para efectuar levantamentos de dinheiro e efectuar o pagamento de despesas").
8. O Réu foi contitular de várias contas bancárias juntamente com o seu falecido pai designadamente, nomeadamente junto do Banco 1... e do Banco 2..., juntamente com outro titular e na Banco 3..., juntamente com o Autor.
9. CC foi titular de uma conta aforro, na Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública, saldada desde 9 de Maio de 2013.
10. Nessa conta existiram dois certificados de aforro, resgatados pelo Réu em 3 de Agosto de 2010 no valor de 28.471,70 e em 9 de Maio de 2013 no valor de 7.590,92 €.
11. Em 7 de Agosto de 2015, o Réu expediu uma mensagem de correio electrónico ao Autor, escrevendo, além do mais que aqui se dá por integralmente reproduzido, que «(...) o que acontece é que os € 100.000,00 que há mais de 15 anos o nosso Pai tinha no Banco no passado dia passado 3 de Agosto de 2015 já só sobravam € 3063,60 (...). Na verdade, se tivermos em linha de conta que o nosso Pai recebe de pensão de reforma a quantia mensal de € 762,78 mas por outro lado tem em média cerca de € 2.460,00 de despesas mensais (...) Para teres uma noção das despesas que estou a falar refiro-me aos custos com a empregada (€ 900,00/mês), com fraldas, artigos de higiene e medicamentos (€ 400,00/mês em média), luz (aproximadamente € 150,00 de dois em dois meses), gás (51,80/mês), água (€11,34), Lar de Dia (€402,00/mês), Fisioterapia (aproximadamente €70,00/mês ...), Jardineiro (€100,00A/alor médio mensal), Cabovisão (€ 66,99/mês), Securitas (€40,31/mês), Telefone (€18.69) e diversos que inclui despesa do pequeno-almoço, água, roupa na lavandaria, arranjos de equipamentos electrónicos e costura, custos tidos com o FF, comida para pássaros, cigarros, cemitério, gasolina, entre outros (€ 250/mês) .... É de salientar ainda que não fiz referência a todas as despesas anuais fixas como IMI (€173,60), taxa de cartão multibanco (€14) e lenha (€200).» 12. Do extracto da conta depósitos à ordem n.º ..., no período de 1 de Março a 1 de Julho de 2015, constam os seguintes movimentos:

MovimentoDataDescritivoValor
Débito3.3.Trf Interna P/BB650,00 €
Débito5.3Trf Interna P/BB462,82 €
Débito11.Trf P/ A...402,00 €
Débito11.Traf P/ Fisioterapeuta GG65,00 €
Débito13.Trf Interna P/BB5.000,00 €
Débito1.4Trf Interna P/BB900,00 €
Débito1.4Trf P/ A...402,00 €
Débito7.4Trf Interna P/BB43,10€
Débito13.Trf Interna P/BB75,50 €
Crédito4.6Trf Interna de BB5.281,54 €
Débito4.6Trf Interna P/BB100,00 €
Débito4.6Trf P/ GG55,00 €
Débito5.6Trf P/ HH441,43 €
Crédito5.6Trf Interna de BB441,43 €
Débito6.6Trf Interna P/BB327,40 €
Débito6.6Trf P/ A...402,00 €
Débito12.Trf P/ B...40,31 €
Débito16.Trf Interna P/II5.000,00 €
Crédito16.Trf Interna de BB5.000,00 €
Crédito17.Trf Interna de BB65,99 €
Débito17.Trf Interna P/BB131,98€
ii. - Da prestação de contas
13. A conta do "Banco 2..., S.A.", n.° ..., apresentava em 16-07-2009 um saldo nulo, apesar de ter sido efetuado um depósito de € 2.000,00, logo após foi levantado esse valor, mantendo-se o saldo nulo.
14. Entre 2010 a 2014, a conta do Banco 3..., S.A.", n.° ..., servia para proceder aos pagamentos da empresa de segurança "B...".
15. O saldo inicial da conta do "Banco 1..., S.A.", n.° ..., a 09-08-2010, era de €113.543,99.
16. Pelo menos até finais de 2012, o falecido CC levantava a sua reforma nos CTTs, gerindo esse montante de forma autónoma e independente, excepto quanto ao mês de Setembro de 2012 que veio a ser depositado na conta do Banco 1... a quantia de € 733,16.
17. Até Abril de 2015, A, R. e o filho do A, JJ, eram sócios da sociedade "C...", data em que o R. foi destituído de sócio da empresa.
18. As transferências agrupadas em três, realizadas para o A, o R. e o filho do A., JJ, respeitam-se a acerto de contas no âmbito das actividades da sociedade e eram realizadas com o conhecimento e consentimento de A. e R..
19. O falecido CC oferecia prendas monetárias nos aniversários e no natal a cada um dos seus cinco netos, pelo menos até 2015.
20. Após o falecimento da esposa do Sr. CC, em 1993, a Sra. KK (sua irmã), enquanto teve condições de saúde, auxiliava-o nas lides domésticas e era por aquele directamente remunerada/ gratificada.
21. Entre Setembro de 2012 e Setembro de 2015 a Sra. LL cuidava do falecido, auferindo, mensalmente, o montante de € 900,00.
22. ... No âmbito das actividades de prestação de cuidados, a Sra. LL procedia ainda ao pagamento de diversas despesas, nomeadamente do padeiro, sendo que após apresentava essas despesas ao R., para ser ressarcida.
23. ... Dentro desse período, a Sra. LL adquiria produtos no "D...", bem como em supermercados diversos, destinados a ser usufruídos/consumidos pelo Sr. CC.
24. ... De igual forma, a Sra. LL acompanhava o Sr. CC no veículo deste, tendo inclusive chegado a conduzi-lo, nas situações em que existia a necessidade de transportar o Sr. CC, atestando gasolina nesse veículo.
25. No início de 2014, o R. passou a assumir o pagamento das despesas da lotaria do falecido, que há largos anos mantinha a mesma chave, mantendo-se nessa posição até à data de óbito do Sr. CC.
26. Após o início de 2014 e até à data do óbito do Sr. CC, o R. procedeu igualmente ao pagamento de serviços de jardinagem na habitação do falecido, numa média de pelo menos três vezes por ano.
27. O R., de agosto de 2010 até ao óbito do pai, assegurava o pagamento da ração para pássaros, de farmácia ou saúde.
28. O barbeiro deslocava-se à residência e/ou fábrica outrora do falecido para lhe cortar o cabelo, sendo que esta despesa era assegurada pelo R..
29. Assim, no referido período de 03-08-2010 até 23 de Outubro de 2017, o Réu auferiu e suportou como receitas e despesas na administração de que estava incumbido pelo falecido, os montantes infra designados:

AnoReceitasDespesas
2010€28.471,70€ 3.942,32
2011€2.615,24€ 14.365,42
2012€4 240,07€ 12.845,65
2013€ 19.953,78€ 27.634,42
2014€12.120,64€31.619,56
2015€ 10.654,28€28.141,17
2016€ 10.969,98€17.571,93
2017€ 8.778,31€ 17.283,51
Total€97.804,00€ 153.403,98
30. Com a soma do valor que existia na conta Banco 1... em Agosto de 2010 acima referida em 15. às receitas aqui consideradas em 29., obtemos o valor de € 211.347,99.
31. Subtraído ao montante acima mencionado em 30. o valor total das despesas aceites e exaradas na tabela em 29., atingimos o valor de € 57.944,01, sendo que este o montante que deveria constar na conta Banco 1... à data do óbito a 23 de Outubro de 2017.
B- Factos Não Provados:
i. O Réu, enquanto o seu pai foi vivo, prestou-lhe contas da sua gestão.
ii. O Autor também era contitular das contas bancárias mencionadas em 8. junto do Banco 1... e do Banco 2....
iii. A contitularidade do Réu mencionada em 8. tinha em vista auxiliar o pai na gestão do seu quotidiano.
iv. O resgate mencionado em 10. foi ideia do Autor, tendo o mesmo conhecimento do destino dado aos montantes ali mencionados.
v) Que as três transferências realizadas da conta bancária do Réu com destino à conta bancária do Autor e do filho do Autor, JJ, no dia 4 e 5 de agosto de 2010, serviram o propósito de dividir o montante levantado associado ao certificado de aforro, de valor € 28.471,70.
vi) Que a Sra. KK auferia gratificação para cuidar do falecido CC paga pelo Réu e que tal perdurava ainda após 03.08.2010.
vii) Que foi adquirido um colchão e um móvel para o falecido CC.
viii) Que foi adquirida lenha para o falecido CC.
ix) Que a transferência realizada no dia 07 de abril 2015, no montante de € 43.102,54, serviu o propósito de salvaguardar o dinheiro do falecido para suportar futuras despesas.
x) Que além das receitas e despesas referidas em 29., houve outras como alegado pelo Réu e que foram efectivamente pelo Réu recebidas e despendidas no âmbito da administração que levou a cabo no período de 03.08.2010 até 23 de Outubro de 2017 e acima não mencionadas nos factos provados, nomeadamente ponto 29..
xi) Que o montante que deveria constar na conta Banco 1... a 23.10.2017 era de apenas € 0,72.
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Nos termos do art.º 941º do CPC, a acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.
Por decisão transitada em julgado ficou estabelecida a obrigação do réu prestar contas relativamente à dos bens do falecido CC, alterada por esta Relação apenas quanto ao respectivo período, que se fixou entre 3 de Agosto de 2010 e 23 de Outubro de 2017.
A acção especial de prestação de contas, na modalidade de prestação forçada de contas, como é o caso dos autos, tem como finalidade o apuramento do saldo resultante da receitas e da despesas, com a consequente condenação no pagamento do valor apurado. Assim, uma vez definida a obrigação do réu de prestar contas, o processo prossegue com vista a apurar o saldo devedor, se existir, que constituirá o montante da condenação do obrigado a prestá-las. E não admitindo este tipo de acção que o apuramento das receitas e das despesas em causa seja feito em incidente de liquidação de sentença (cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, in Acções Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 1ª ed., pág.178), o apuramento desse saldo deve fazer-se pelo juiz com recurso ao seu prudente arbítrio e às regras da experiência, conforme dispõe o n.º 5 do art.º 945º do C. P. Civil.
Esse prudente arbítrio inscreve-se na apreciação das provas pelo juiz, devendo este utilizar dados da experiência comum, permitindo-lhe valorar a prova trazida para os autos em termos bastante mais flexíveis do que numa mera análise estrita da prova, segundo os critérios de certeza judicial (cfr. Ob. cit, pág. 164 e Ac. da Relação de Coimbra de 16-12-2015, Processo 423/08.7TBLMG.C1, in dgsi.pt).
As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (artigo 341.º do CCivil). A prova em processo comum não pressupõe uma certeza absoluta ou ontológica, mas, por outro lado, também não se pode quedar na mera probabilidade de verificação de um facto. Assenta no alto grau de probabilidade do facto suficiente para as necessidades práticas da vida (Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, p. 191). A livre apreciação da prova, consagrada no art.º 396.º do C. Civil, é uma liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves, da «liberdade para a objectividade» (Rev. Min. Pub. 19º, 40). Em sede de acção especial de prestação de contas, no entanto, na concretização do seu raciocínio crítico de valoração da prova, há-de o juiz atender à verosimilhança do facto em apreciação, sendo verosímil o que corresponde ao funcionamento normal das coisas, às regras da experiência e ao senso comum, numa apreciação sensata e prudente. Embora não se atribua ao juiz um poder discricionário na fixação dos factos provados, atribui-se-lhe um poder latitudinário (cfr Ac. citado e Alberto dos Reis, R.L.J., Ano 77, pág. 313).
A presente apelação tem como escopo a alteração da decisão sobre matéria de facto, no sentido de ver declarado provado que as transferências feitas pelo R. para a sua conta e do A. e para a conta do seu filho JJ correspondem a um acordo prévio entre A. e R. com a finalidade de dividir, em duas partes iguais, o montante pelo R, levantado do certificado de aforro resgatado em 3 de Agosto de 2010, no valor €28.471,70, e consequente alteração do ponto 29 dos factos provados na coluna do ano 2010 e na dos totais, passando o valor das despesas desse ano para €33.000,02 e o total das receitas de todo o período €97.804,00 e das despesas €192.759,18. E ainda o ponto 31 dos factos provados, aí se vertendo “Subtraindo ao montante acima mencionado em 30. o valor total das despesas aceites e exaradas na tabela em 29., atingimos o valor de €18.588,81, sendo este o montante que deveria constar da conta Banco 1... à data do óbito a 23 de Outubro de 2017”. Pretendendo ainda inverter para “provada” a matéria dos pontos iv e v dos factos considerados não provados. A decisão sobre matéria de facto pode ser alterada pela Relação, nos termos do art. 662º, n.º 1 CPC quando, “(…) a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. O recorrente cumpre os pressupostos de ordem formal exigidos pelo art. 640º CPC, tendo indicado os meios de prova – documental e testemunhal - em que se baseia, que tem como essenciais para a alteração do decidido. Em conformidade, a Relação reaprecia a prova, tendo-se, para tal, reexaminado os elementos que a recorrente sustenta como erradamente valorados.
Sobre a primeira das questões suscitadas pelo recorrente pronunciou-se a Mma. Juíza nos seguintes termos:
- Certificados de Aforro
Debrucemo-nos agora sobre se os montantes associados aos certificados de aforro, a saber, € 28.471,70 e € 7.590,92, devem ser considerados como receitas, e conforme já acima mencionado exarando aqui de forma autónoma os motivos para tal.
Quanto ao certificado de aforro no valor de € 7.590,92, ainda que não tenha sido esse montante na totalidade transferido para a conta do falecido, em bom rigor, esse montante trata-se de uma receita, pertencente ao falecido, pelo que aqui vai considerado como receita. Além do mais, o próprio R. não veio em momento algum negar que esse valor não deva ser contabilizado como receita, nem tão pouco que esse valor não fosse do falecido.
O certificado de aforro de montante de € 28.471,70, segundo alega o R., foi resgatado em 03-08-2010 e o de € 7.590,92, foi resgatado em 2013. Sobre este assunto, o Acórdão da Relação do Porto, nomeadamente no facto provado n.º 10 (o que aqui também se considera), inverte as datas dos resgates, o que cremos se deveu, ao próprio ofício do IGCP de 14-02-2020, junto aos autos. Todavia, deste último não se pode afirmar, que as datas apresentadas são aquelas que se interpretam à primeira vista, ou seja, que o certificado de aforro de € 28.471,70 foi resgatado pelo R. a 9 maio de 2013, e o certificado de aforro de € 7.590,92 foi resgatado pelo R. a 3 de agosto de 2010, pois que ali não consta a palavra "respectivamente". Ao que acresce que, resulta inequívoco, da demais prova documental produzida que o resgate dos € 28.471,70 foi a 03-08-2010, e o resgate dos € 7.590,92 foi a 09-05-2013, nomeadamente, atento o teor do documento doc 1-B, do Req. de 20-06-2022, e ainda, do documento identificado por "C19", junto aos autos, no volume IV.
Avançando agora quanto ao destino desses valores, alegou o R., quanto ao resgate do primeiro certificado de aforro e, subsequente, depósito do mesmo na sua conta, que tal valor foi dividido em duas partes, entre o A. e o R., únicos dois filhos e únicos herdeiros do falecido, com o objectivo de por estes ser depois dividido pelos respectivos filhos (netos do falecido).
Nessa sequência, alegou o R., ter emitido um cheque no montante de € 13.735,85, a favor do A. e tendo ainda procedido a mais três transferências, nos montantes de € 250,00, € 21,00 e € 229,00.
A este propósito, importa analisar a prova produzida quanto à matéria da alegada "acordada divisão" do valor do primeiro certificado de aforro sendo € 14 235,85 para o Réu e os restantes € 14 235,85 para o Autor, que depois distribuiriam entre os respectivos filhos (dois do Réu e três do Autor).
Desde logo, sobre este assunto, tivemos o depoimento da testemunha II (neto do falecido e filho do Réu) o qual se limitou a reproduzir a versão do Réu e a asseverar que certamente o pai creditou metade para si (€ 7.117,92) e metade para a irmã MM (€ 7.117,92) em contas que têm já desde há muitos anos.
Depois um outro dado a ter em conta, tem que ver com o facto de tal testemunha, economista de profissão, assegurou ainda que a grelha apresentada pelo R. com o requerimento de 19-10-2022, após convite por parte do tribunal para que procedesse em conformidade à apresentação das contas devidas, foi afinal elaborada pelo depoente. Tendo, para tal, atenta inclusive a sua formação, procedido à recolha e análise dos elementos documentais que veio a numerar como A - facturas, B -Extractos, C - Comprovativos de transferência e, por fim, D - extracto de conta corrente associado aos serviços prestados pelo "A...", os quais concatenou, quer com a conta bancária do Avô (Sr. CC), quer com as contas bancárias do pai (Réu) a que acedeu.
Denotou-se a preocupação pela testemunha quanto a tal matéria, em fazer-se munir para o seu depoimento com os documentos que, atenta a versão do pai, poderiam comprovar a divisão a meias com o irmão (autor) do valor relativo aos certificados de aforro de € 28.471,70, quando aliás, diga-se, tais elementos documentais já tinham sido juntos ao processo, sob documentos 1-A e 1-B, com o primeiro requerimento de 20-06-2022. Todavia, olvidou, na sua preparação para a presente diligência, de proceder à consulta da sua própria conta, para a qual assegurou ter o R., seu pai, procedido ao depósito/transferência/crédito do valor que a si lhe caberia a meias com a irmã (MM), metade do montante de € 14.235,85, o que diga-se, considerando o trabalho exaustivo que havia procedido para a elaboração das contas juntas a 19-06-2022, e bem como, atenta a sua formação e profissão de economista, logo o levaria inclusive a de forma intuitiva percorrer as suas contas de molde a comprovar nas mesmas precisamente o crédito do tal valor de € 7.117,92 a seu favor pelo seu pai.
No mesmo caminho, veja-se que o fundamento para a fixação do início da prestação de contas pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, corresponde precisamente ao dia do levantamento do certificado de aforro do montante de € 28.471,70, ou seja, o dia 3 de agosto de 2010, do que sempre se impunha ao R. que quanto a tal certificado, trouxesse todos os elementos documentais que comprovassem a matéria alegada sobre este assunto, nomeadamente sobre a efectiva divisão.
Por fim, uma nota, importa ainda atentar quanto à própria postura corporal que o depoente II exibiu quando confrontado com os temas, quer dos certificados de aforro quer do valor atinente à transferência de € 43.102,54, de 7 de Abril de 2015, ante o visível nervosismo ao remexer-se na cadeira onde se encontrava sentado, acompanhada de tensão na parte superior do tronco, que instintivamente retesou, e que se dúvidas houvesse quanto à parcialidade do seu depoimento as mesmas ficaram bem patentes, sendo ainda para mais evidente que se limitou a reproduzir a versão do pai, sem que todavia afinal tenha logrado demonstra a sua razão de ciência directa quanto a tal.
Acresce ainda um outro dado, é que se mostra absolutamente incompreensível que sendo acordada a divisão a meias tal não tenha ocorrido apenas mediante a entrega de cheque de metade desse valor, ou seja cheque de € 14.235,85. Ora, pretender que a soma dos valores, do cheque de € 13.735,85 (emitido a 03.08.2010 e pago a 04.08.2010 a AA), da transferência de € 229,00 (a 04.08.2010 para JJ), da transferência de € 21,00 (a 04.08.2010 para AA) e da transferência de € 250,00 (a 05.08.2010 para AA), serviram para tal desiderato afigura-se apenas uma coincidência, tanto mais quando se percebe que valores há que foram afinal destinados a JJ e bem assim incompreensivelmente duas transferências para o AA em dias diferentes. Acresce ainda um outro dado inequívoco, é que afinal da análise do referido documento 1-B, junto com o primeiro requerimento de 20-06-2022, se percebe que igualmente na mesma data de 04.08.2010 a sociedade C... creditou na conta do Autor valores e foi aí igualmente depositado um cheque e ainda em 05.08.2010 há também um crédito de valores de uma outra sociedade, sendo que pelas testemunhas foi referido que afinal nessa altura entre o A., o R. e o filho do A. (o JJ) era habitual procederem a transferências entre si relacionadas com assuntos da empresa. Face a tal cenário não logrou pois o Réu de forma inequívoca convencer quanto à alegada divisão dos valores do certificado em causa.
Ora, efectivamente o recorrente não dispõe de qualquer elemento de prova, quer do acordo prévio que invoca, quer do recebimento a esse título pelo autor. Das datas de resgate dos certificado de aforro e seus montantes não cabe qualquer dúvida, nem o recorrente as questiona. A consideração dos invocados pagamentos ao A. e ao filho deste JJ no sentido pretendido pelo recorrente traduzir-se-ia na prova da existência de despesas não documentadas. A “prova-rainha” para aferir da existência dessas despesas, que carecem de suporte em documento contabilisticamente aceite (facturas, venda a dinheiro, recibos verdes e pagamentos directamente às entidades) é a prova pericial. E a única despesa sem documento contabilístico aceite no relatório pericial de 31 de Março de 2023 como uma despesa não documentada foi a despesa mensal com a cuidadora D. LL. E bem se entende que a Sra. Perita a tenha aceite, já que o contexto das necessidades do de cujus e normalidade da remuneração de uma cuidadora.
Já a suposta divisão dos valores do certificado de aforro não tem as características de necessidade e de normalidade das habituais despesas não documentadas, tornando expectável que ocorram, e com regularidade, no decurso do período da prestação de contas. Mesmo aceitando que o juiz deve atender à verosimilhança do facto, tendo verosímil o que corresponde ao funcionamento normal das coisas, às regras da experiência e ao senso comum, equivalem-se a possibilidade de aquela divisão ter ocorrido e a de ter ocorrido uma situação diferente, designadamente terem-se tratado de transferências relacionadas com assuntos da sociedade C..., como era habitual naquela altura o A., o R. e os filhos a tal procederem.
A prova testemunhal tão pouco é esclarecedora, mostrando contradições entre os depoimentos das testemunhas JJ – filho do A. - e II filho do R. – cuja relação com o objecto da causa oferece poucas garantias de neutralidade e distanciamento. O próprio nervosismo notado pela Mma. Juíza na testemunha II não é um bom sinal. Podendo todavia outras ter causas, com muita frequência é resultado de quem sabe estar a fazer afirmações inverdadeiras e receia ser desmascarado. O princípio, ou máxima de valoração da prova, iis quae dificcillioris sunt probationis, levioris probationes admittuntur, usada para indicar que, quando um facto é difícil de provar, os tribunais podem aceitar provas menos rigorosas do que seriam necessárias para factos mais fáceis de demonstrar, de que o recorrente lança mão em apoio da sua tese, tão pouco pode aceitar-se por redundar em argumento reversível – tão difícil de provar é a versão do recorrente como a do recorrido, e com base apenas em tal critério de valoração não é possível chegar a qualquer conclusão segura.
Vai, pelo exposto, confirmada a formulação dos pontos 29 a 31 dos factos provados, bem como a não prova da matéria dos pontos com a consequente não aceitação como despesas das transferências aludidas.
Terá, assim, a apelação que improceder.

Decisão.
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, em função do que confirmam a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.

Porto, 27/05/2025
João Proença
Lina Baptista
Rodrigues Pires