DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
TRÂNSITO EM JULGADO
NOVO PEDIDO DE DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
Sumário

I – O trânsito em julgado da decisão que conheceu do pedido de declaração de insolvência não é, por si só, impeditivo de um novo pedido de declaração de insolvência da mesma pessoa. Mas sê-lo-á se à identidade de sujeitos e de pedidos acrescer a identidade de causas de pedir.
II – A causa de pedir da acção especial de insolvência há-se corresponder aos factos que revelam a concreta impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas; mesmo quando a declaração de insolvência é pedida por pessoa diversa do devedor e, por isso, se baseie nos factos índices previstos no artigo 20.º do CIRE, a causa de pedir não deixa de ser a referida impossibilidade, que estes factos indiciam ou fazem presumir.
III – Para que se possa concluir pela existência de uma nova e diferente situação de insolvência e, por conseguinte, de uma distinta causa de pedir, é necessário que a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas que fundamenta no novo pedido configure uma realidade diferente da que fundamentou o pedido anterior, por se reportar a um passivo e a um activo que, embora possam ser parcialmente coincidentes, apresentam alterações com relevância suficiente para concluir que não estamos perante um mero prolongamento ou agravamento da situação de insolvência anteriormente apreciada.

Texto Integral

Processo: 3862/24.2T8AVR.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
A..., Lda. veio requerer a declaração da insolvência de B... Unipessoal, Lda.
Alegou, em síntese, o seguinte: no âmbito da sua atividade forneceu à requerida, a pedido desta, o material informático e os eletrodomésticos referidos nas 7 facturas que discrimina; até 06.08.2024 a requerida procedeu a pagamentos parciais, tendo permanecido em dívida 21.614,85 €; entretanto, por conta do anterior processo de insolvência n.º 2890/24.2T8AVR, do Juízo de Comércio de Aveiro – Juiz 3, a requerida pagou em diferentes momentos o montante de 11.200,00 €, pelo que o valor atualmente em dívida é de 10.414,85 €; no dia 12.09.2024, a requerente desistiu da instância no referido processo de insolvência, devido à promessa do gerente da requerida de que liquidaria o valor remanescente no prazo máximo de 15 dias; passados quase dois meses é manifesto que a requerida não tem capacidade económica e financeira para liquidar o actual saldo devedor, pois não tem património que lhe permita o pagamento da sua dívida e as dos demais eventuais credores.
A requerida contestou, alegando, para além do mais, que a requerente já havia pedido a declaração da sua insolvência com fundamento na dívida decorrente dos fornecimentos acima aludidos, mas desistiu do pedido, e não da instância, o que acarretou a extinção do direito que pretendia fazer valer.
A requerida renovou esta argumentação em articulado anómalo posterior, ao qual a requerente respondeu, reiterando o que já havia dito na petição inicial, mas referindo-se expressamente à desistência do pedido.
Notificada para o efeito, a requerente juntou aos autos certidão do requerimento de desistência que apresentou no anterior processo de insolvência e da sentença que a homologou, com nota do respectivo trânsito em julgado.
Foi proferido despacho saneador, onde se julgou verificada a excepção do caso julgado e, consequentemente, se absolveu a requerida da instância.

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Inconformada, a requerente apelou dessa decisão, concluindo assim a sua alegação:
«1. Entende a Recorrente que a sentença recorrida é nula, pois não conheceu de uma questão alegada por si no processo.
2. Na verdade e n seu requerimento de resposta à contestação (apresentado em 6 de Janeiro de 2025) a aqui Requerente alegou que “expôs de forma clara no artigo oitavo da sua petição inicial que “Sendo certo que a Requerente desistiu da instância, no dia 12 de Setembro de 2024, no referido processo de insolvência devido à promessa do gerente de facto e de direito da Requerida. Sr. AA, de que liquidaria o valor remanescente no prazo máximo de 15 dias, mas passados quase dois meses é manifesto que a Requerida não tem capacidade económica e financeira para liquidar o atual saldo devedor de € 10. 414, 85 que não liquidou até à presente data”.
3. Tendo junto um email do legal representante da Requerida donce constava “Peço por favor para retirarem a insolvência.. vamos fazer o nosso melhor e o esforço todo dinheiro que esta entrar estamos a transferir para a A.... Em 15 dias pagaremos a totalidade.”
4. Sobre esta questão, qual seja, a de que a desistência do pedido (que por lapso foi referida como desistência da instância) apenas aconteceu devido à ssumpção e compromisso do pagamento do remanescente da divida por parte da Requerida a sentença recorrida é completamente omissa.
5. Assim, entendemos desde logo que, ao não se pronunciar sobre a questão da aqui Requerente, qual seja, a de que apenas sexistoiu a desistência do pedido devido à promessa da Requerida de que liquidaria o remanescente da divida em 15 dias, a sentença é nula atento o vertido na alínea d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC.
6. Caso assim não se entenda, consideramos igualmente que no caso pretende não existe a excepção de caso julgado.
7. Na verdade, é manifesto que não existe identidade de causa de pedir, pois nesta segunda ação, a aqui Requerente alega como causa de pedir no artigo 7º da PI: “Entretanto a aqui Requerida, por conta de anterior processo de insolvência no 2890/24.2T8AVR que correu termos no J3 do Juízo de Comércio de Aveiro, pagou em diferentes momentos o montante de € 11.200,00, pelo que o valor atualmente em dívida é de € 10.414,85.” E no artigo 8º da PI “Sendo certo que a Requerente desistiu da instância, no dia 12 de Setembro de 2024, no referido processo de insolvência devido à promessa do gerente de facto e de direito da Requerida. Sr. AA, de que liquidaria o valor remanescente no prazo máximo de 15 dias, mas passados quase dois meses é manifesto que a Requerida não tem capacidade económica e financeira para liquidar o atual saldo devedor de € 10.414,85 que não liquidou até à presente data.”
8. Ou seja, a causa de pedir deste segundo processo de insolvência deriva de factos diversos do Processo 2890/24.2T8AVR, pois a causa de pedir são créditos reconhecidos pela Requerida e que a mesma acordo pagar no prazo máximo de quinze dias, caso fosse retirada a insolvência,
9. E no caso presente a causa de pedir não é apenas (como na primeira ação) a existência de facturas em divida! Na segunda ação é o reconhecimento por parte da Requerida da existência desse crédito de faturas e que iria pagar o mesmo num prazo de 15 dias!
10. Ou seja, na segunda ação existe um facto essencial que não fazia parte da causa de pedir na primeira ação: o reconhecimento do crédito por parte da Requerida e a assumpção de iria pagar o mesmo em 15 dias.
11. Violou assim a sentença recorrida o vertido nos artigos artigos 576., nº 1 e 2, 577.º, al. i), 578º, 581º n.º 1 e 278.º, n.º 1, al. e), todos do Código de Processo Civil.
TERMOS em que deve revogar-se a sentença recorrida por tal ser de JUSTIÇA».
A recorrida apresentou resposta a esta alegação, pugnando pela total improcedência da apelação.
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Por determinação deste Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 617.º, n.º 5, do CPC, a Sra. Juíza a quo apreciou a nulidade arguida pela recorrente, concluindo que a mesma não se verifica.
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II. Fundamentação
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, são as seguintes as questões a decidir:
- A nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC;
- A não verificação da excepção de caso julgado, por inexistência de identidade de causas de pedir.
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A recorrente entende que a decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, pois embora tenha alegado na petição inicial que apenas desistiu do pedido no anterior processo de insolvência (que por lapso referiu como desistência da instância) devido à promessa do gerente da requerida de que pagaria o valor em dívida no prazo máximo de 15 dias, mas que esta não o fez nem tem capacidade económica e financeira para o efeito, a sentença recorrida é completamente omissa a respeito desta questão.
A verificar-se tal vício, sempre se imporia a este Tribunal ad quem o seu suprimento, em obediência à regra da substituição consagrada no artigo 665.º do CPC, por não haver necessidade de recolher elementos não disponíveis nos autos que impusesse a remessa dos autos à 1.ª instância.
De resto, perante a alegação da recorrente e as respectivas conclusões, o objecto deste recurso consiste, precisamente, em saber se a referida alegação, bem como a alegação dos pagamentos parciais efectuados “por conta do anterior processo de insolvência”, impedem que se afirme a identidade de causas de pedir e, por conseguinte, a verificação da excepção do caso julgado.
Pelo exposto, a apreciação daquela nulidade, qua tale, redundaria, como se escreve no ac. deste TRP, de 08.04.2025 (proc. n.º 3160/22.6T8OAZ.P1, rel. João Ramos Lopes), «num mero exercício de verificação académica do cumprimento das regras próprias da elaboração e estruturação da decisão, sem efectivo relevo e impacto na sorte da apelação», pois a revogação ou alteração da decisão recorrida não depende da constatação de tal vício formal nem ele determina o sentido da decisão a proferir.
É, assim, manifesta a irrelevância da apreciação deste vício, pelo que nos abstemos de o fazer, passando de imediato ao conhecimento da questão de mérito já enunciada: a não verificação da excepção de caso julgado, por não haver identidade de causas de pedir.
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Tanto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (artigo 580.º, n.º 2, do CPC), ou seja, têm por fim evitar que o tribunal julgue duas vezes a mesma causa. Como escreve Miguel Teixeira de Sousa (O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ, p. 176), «[a] excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção de caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (Zweierlei), mas também a inviabilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (Zweimal)». Subjacente a estes institutos estão, pois, necessidades de certeza e segurança jurídica.
Ambas as excepções pressupõem a repetição da causa; mas enquanto a excepção de litispendência pressupõe que a causa se repete estando a anterior pendente, a excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira ter sido decidida por sentença que não admite recurso ordinário (artigo 580.º, n.º 1, do CPC).
A causa repete-se quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (art. 581.º, n.º 1, CPC).
De acordo com o n.º 2 deste artigo 581.º, haverá identidade de sujeitos quando as partes forem as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, isto é, quando se apresentem com as mesmas vestes jurídicas, com o mesmo interesse substancial, independentemente da sua identidade física e da posição processual que ocupam, no lado activo ou passivo da lide.
«O pedido é a enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objecto do direito a tutelar» (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 127). Assim, haverá identidade de pedidos se houver identidade na forma de tutela pretendida e no conteúdo e objecto do direito a tutelar. Na terminologia legal, quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (artigo 581.º, n.º 3, do CPC).
Por fim, ocorrerá identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico (artigo 581.º, n.º 4, do CPC), ou seja, quando for o mesmo o facto ou acto jurídico de onde deriva o direito que a parte se arroga. «Quando se diz que a causa de pedir é o acto ou facto jurídico de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer, tem-se em vista, não o facto jurídico abstracto, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico concreto, cujos contornos se enquadram na configuração legal» (José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, p. 123).
Da certidão junta a estes autos em 07.01.2025, extraída do processo de insolvência n.º 2890/24.2T8AVR, que a aqui requerente moveu contra a aqui requerida, resulta que a sentença que homologou a desistência do pedido transitou em julgado em 15.10.2024, o que, de resto, não foi questionado por nenhuma das partes deste recurso.
Desconhecemos o teor da petição inicial que deu início ao referido processo, pois não se encontra junta a estes autos qualquer cópia da mesma. Contudo, não é posto em causa por nenhum dos interessados que foi ali pedida a declaração da insolvência da sociedade B..., Unipessoal, Lda., tal como sucedeu nestes autos, o que é consentâneo com a circunstância de se tratar de um processo especial de “Insolvência pessoa colectiva (Requerida)”. É, portanto, o mesmo o efeito jurídico pretendido nas duas acções. Por conseguinte, não restam dúvidas sobre a identidade dos pedidos deduzidos em ambas.
Também não se discute a identidade dos sujeitos das duas acções, visto que ambas foram propostas pela sociedade A..., Lda., na qualidade de credora, contra a sociedade B..., Unipessoal, Lda., na qualidade de devedora. Por conseguinte, as partes são as mesmas, não apenas do ponto de vista da sua qualidade jurídica, do seu interesse substancial na lide, mas inclusivamente do ponto de vista da sua identidade e da sua posição processual.
Claro que o trânsito em julgado da decisão que conheceu do pedido de declaração de insolvência não é, por si só, impeditivo de um novo pedido de declaração de insolvência da mesma pessoa. Mas sê-lo-á, como a própria recorrente parece reconhecer, se à identidade de sujeitos e de pedidos acrescer a identidade de causas de pedir.
É, precisamente, esta a questão que divide as partes e que importa decidir.
Como já dissemos, desconhecemos o teor da petição inicial que deu início ao anterior processo de insolvência. Porém, a própria recorrente admite que a causa de pedir nestes autos apenas diverge da anterior na medida em que o valor do seu crédito sobre a devedora passou de 21.614,85 € para 10.414,85 €, por força dos pagamentos efectuados já pendência do primeiro processo de insolvência, e na medida em que o pedido já não se baseia (apenas) nas facturas em dívidas, mas no reconhecimento por parte da requerida da existência desse crédito e da assumpção da obrigação de o pagar em 15 dias.
Mas não tem razão, pelas razões que passamos a expor.
Nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do CIRE, é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. É este o conceito geral de insolvência.
O n.º 2, do mesmo artigo 3.º, dispõe que as pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis.
A declaração de insolvência pode ser requerida pelo devedor, conforme previsto no artigo 19.º do CIRE, ou pelos interessados enumerados no artigo 20.º do mesmo código – por quem for legalmente responsável pelas dívidas daquele, por qualquer credor ou pelo Ministério Público.
Sendo requerida por pessoa distinta do devedor, a lei impõe requisitos especiais: o requerente tem de alegar e provar alguma das situações objectivas taxativamente elencadas no artigo 20.º do CIRE, usualmente denominadas factos índice ou presuntivos da insolvência, por constituírem sintomas de insolvência, «tendo precisamente em conta a circunstância de, pela experiência da vida, manifestarem a insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações, que é a pedra de toque do instituto» (ac. do TRG, de 29.06.2017, proc. n.º 174/16.9T8VPC.G1). Como se afirma no ac. do TRP, de 09.03.2020 (proc. n.º 3800/19.4T8VNG.P1), «[o] estabelecimento de factos presuntivos da insolvência tem por principal objetivo permitir aos legitimados o desencadeamento do processo, fundados na ocorrência de alguns deles, sem haver necessidade de, a partir daí, fazer a demonstração efetiva da situação de penúria traduzida na insuscetibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, nos termos em que ela é assumida, no art. 3º, nº 1 do CIRE, como característica nuclear da situação de insolvência». Estes factos-índice constituem, assim, uma condição necessária para a iniciativa processual sempre que o requerente não seja o devedor, como sucede no presente caso. Nas palavas de Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Coimbra 2022, p. 38), «trata-se de requisito indispensável para se preencher o pressuposto da insolvência (quando o requerente não é o próprio devedor), pois tem necessariamente de se verificar um dos factos elencados nas várias alíneas do n.º 1 do art. 20.º (art. 20.º, n.º 1, proémio)». A sua ocorrência dá origem a uma presunção relativa ou iuris tantum de insolvência, pelo que cabe ao devedor, para obstar à declaração da insolvência, ilidir essa presunção, demonstrando que, apesar da verificação do facto índice, não está insolvente.
A causa de pedir da acção especial de insolvência há-se corresponder, portanto, aos factos que revelam a concreta impossibilidade de cumprimento; mesmo quando a declaração de insolvência é pedida por pessoa diversa do devedor e, por isso, se baseie nos factos índices previstos no artigo 20.º do CIRE, a causa de pedir não deixa de ser a referida impossibilidade, que estes factos indiciam ou fazem presumir.
Aqueles factos correspondem, por regra, ao concreto passivo do devedor em determinado momento e à insuficiência do activo disponível para fazer face ao passivo que se encontra vencido nesse momento.
Coerentemente, a jurisprudência tem entendido que existe identidade de causas de pedir se o passivo invocado para fundamentar o pedido de insolvência já existia à data e que foi apreciado o anterior pedido de declaração de insolvência e se nenhum outro activo tiver acrescido àquele que existia naquele momento. Nestes casos, não restam dúvidas de que a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas alegada para justificar o novo pedido é a mesma que já se verificava no anterior processo. Por conseguinte, não estando em causa a situação prevista no artigo 39.º, n.º 7, al. d), do CITR, deve ser liminarmente indeferida a petição inicial da acção intentada depois do trânsito em julgado da sentença que apreciou o anterior pedido de declaração de insolvência. Neste sentido vide os acórdãos do TRC, de 03.12.2019 (proc. n.º 562/19.9T8FND.C1) e de 05.04.2022 (proc. n.º 354/22.8T8CBR.C1), o ac. do TRL, de 11.04.2023 (proc. n.º 3916/22.0T8VFX.L1-1), e o ac. do TRP, de 05.03.2024 (proc. n.º 1385/23.6T8STS-C.P1).
Maiores dúvidas poderão surgir – e têm surgido – nos casos em que, após o trânsito em julgado da declaração de insolvência, o devedor contrai novas dívidas, mantendo o passivo anterior, bem como a anterior impossibilidade de o satisfazer.
No já citado ac. do TRC de 26.10.2021 defendeu-se, assertivamente, que o surgimento de novas dívidas é insuficiente para que se possa falar de uma nova causa de pedir, sendo para tanto necessário que o devedor tenha conseguido de alguma forma eliminar o passivo cuja impossibilidade de satisfação constitui o fundamento da anterior declaração de insolvência. Escreve-se aí o seguinte: «ainda que a devedora tenha alegado novas dívidas (novas obrigações já vencidas) não estaremos por tal motivo diante de “factos novos”, e muito menos em face de uma nova causa de pedir.
É que a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas que justifica o novo pedido não é nova: é a mesma que já se verificava no anterior processo, na medida em que se não vislumbra que as dívidas aí relacionadas tenham deixado de subsistir. Na verdade, no processo precedente não só os créditos aí reconhecidos e graduados ficaram por satisfazer, como não houve qualquer exoneração do passivo, sem embargo de lhes acrescerem outras que a devedora entretanto contraiu. Por outro lado, não alega a recorrente e Requerente do presente processo a extinção desse passivo, total ou parcialmente, após o encerramento do anterior (nomeadamente por força de pagamentos que supervenientemente haja efectuado).
Para se poder falar de uma nova causa de pedir seria mister que a anterior tivesse desaparecido, ou seja, que a devedora tivesse conseguido por alguma forma eliminar o passivo cuja impossibilidade de satisfação serviu de razão para a instauração do anterior processo insolvencial.
Persistindo esse passivo e a impossibilidade da sua satisfação, mantém-se necessariamente a situação de insolvência então invocada, de nada importando que ela se tenha agravado com o vencimento de novas obrigações. Como, aliás, também de nada relevaria para a configuração de uma eventual nova causa de pedir o facto de o activo da devedora se ter modificado para mais – modificação que, de resto, tão pouco foi aduzida no novo requerimento a pedir a declaração de insolvência».
De forma mais cautelosa, afirma-se no também já citado ac. do TRG, de 10.07.2023, que a causa de pedir se mantém inalterada se, na segunda acção de insolvência, o passivo existente for o mesmo ou se tiver sido diminutamente aumentado e se nenhum outro activo tiver acrescido ao que existia quando foi declarada a insolvência. Neste sentido, escreve-se aí o seguinte, citando o ac. do TRC, de 24.01.2023 (proc. n.º 3245/22.9T8LRA): «a pretensão de ver declarada a insolvência será idêntica à pretensão já obtida na acção anterior se o passivo existente for o mesmo que já existia à data da anterior declaração de insolvência e se nenhum outro activo tiver acrescido àquele que existia naquele momento. Isso não significa, porém, que qualquer acréscimo de activo ou qualquer alteração do passivo deva conduzir necessariamente à conclusão de que estão em causa pretensões diferentes; importará ainda saber, nesse caso, se a alteração existente tem ou não a relevância bastante para concluir que está em causa uma realidade de facto diferente daquela que ocorria aquando do primeiro processo que configure uma situação de insolvência distinta e que, como tal, possa justificar e conferir alguma utilidade a uma nova declaração de insolvência. Ou seja, para que se possa concluir pela existência de uma nova e diferente situação de insolvência será necessário que a impossibilidade (agora existente) de satisfazer o passivo vencido seja uma realidade diferente daquela que existia aquando do primeiro processo por se reportar a um passivo e a um activo que, não obstante possam ser parcialmente coincidentes com os que existiam anteriormente, apresentam alterações com relevância bastante para concluir que não estamos perante um mero prolongamento ou agravamento da situação de insolvência que já foi declarada, mas sim perante uma situação de insolvência nova e diferente por se reportar a passivo e activo que divergem, em termos relevantes, daqueles que existiam aquando da primeira declaração de insolvência».
No caso dos autos, salta à vista que os factos descritos na petição inicial correspondem, sem qualquer alteração, à situação existente no momento em que a requerente desistiu do pedido de declaração da insolvência e o tribunal homologou tal desistência. As alterações invocadas pela recorrente para justificar o novo pedido de insolvência – o pagamento parcial do seu crédito e a assumpção da obrigação de pagar o remanescente no prazo de 15 dias – ocorreram antes da desistência do pedido e da sua homologação judicial, entretanto transitada em julgado, pelo que o direito de pedir a declaração da insolvência com base nesses factos se extinguiu, nos termos previstos no artigo 285.º, n.º 1, do CPC.
Por conseguinte, ainda que se entendesse que não existe identidade de causas de pedir nas duas acções, sempre teríamos de concluir pela improcedência deste novo pedido, com fundamento no efeito vinculativo ou positivo do caso julgado anterior, traduzido na proibição de contradição da decisão transitada, usualmente denominado como autoridade do caso julgado material.
Em todo o caso, concordamos com a decisão recorrida, quando decide com base no efeito impeditivo ou negativo do caso julgado anterior, traduzido na proibição de prolação de nova decisão sobre o mesmo objecto processual, ou seja, com base na excepção dilatória de caso julgado, por considerar que à identidade de sujeitos e pedidos, acresce a identidade de causas de pedir.
Como vimos, a requerente baseia o pedido de declaração de insolvência formulado nestes autos no mesmo crédito invocou no processo anterior, acrescentando apenas que este foi pago parcialmente e que a devedora se comprometeu a pagar o remanescente no prazo de 15 dias, mas que, decorridos quase dois meses, não o fez e não tem capacidade económica ou financeira para o fazer.
Afigura-se de meridiana clareza que o reconhecimento da dívida e a promessa de a pagar no prazo de 15 dias não alteram a fonte nem a natureza do crédito da requerente. De resto, esta não esclarece em que medida tais factos poderão configurar um nova e diferente causa de pedir. Estas circunstâncias não alteram, sequer, as condições de exigibilidade do crédito em causa, que – de acordo com a alegação da requerente – há muito que se havia vencido.
Dúvidas apenas se poderiam suscitar a respeito da diminuição do valor em dívida, por força dos pagamentos parciais realizados durante a pendência do anterior processo de insolvência. Porém, estes pagamentos parciais nem sequer são suficientes para que se possa falar de uma diminuição do passivo total, nem tal foi alegado pela requerente.
Em contrapartida, esta alegou expressamente que a requerida não tem património que lhe permita pagar as dívidas da requerente e dos demais eventuais credores, como já havia alegado quando apresentou o primeiro pedido de declaração de insolvência (como se infere da posição assumida neste recurso).
Deste modo, da alegação da requerente decorre que a impossibilidade da requerida de cumprir as suas obrigações vencidas manteve-se inalterada, não tendo sido revertida pelos pagamentos parciais do seu crédito efectuados na pendência do anterior processo de insolvência, não decorrendo daquela alegação qualquer outra alteração no passivo ou no activo da requerida que permita concluir que estamos perante uma situação de insolvência diferente da invocada no processo onde a requerente desistiu do pedido. Dito de outro modo, as alegadas alterações no património da requerida não têm a relevância necessária para que se possa afirmar a existência de uma nova e diferente causa de pedir.
Está, assim, verificada a identidade de causas de pedir, tal como os restantes pressupostos da excepção do caso julgado. Importa, assim, confirmar a decisão recorrida.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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III. Decisão
Pelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
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Porto, 27 de Maio de 2025
Artur Dionísio Oliveira
Alexandra Pelayo
Raquel Correia de Lima