EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
DAÇÃO DE QUINHÃO HEREDITÁRIO
Sumário

I - Considerando que a exoneração do passivo restante tem como objectivo conceder ao devedor uma nova oportunidade, a prova de uma conduta censurável que seja enquadrável nos requisitos previstos na lei, determina o indeferimento liminar desta pretensão.
II - A transmissão que a insolvente concretizou à sua irmã, por escritura de dação do quinhão hereditário em pagamento, outorgada cerca de dois meses antes de se apresentar à insolvência, referente a uma herança constituída por um bem imóvel, revela uma actuação culposa à luz do art. 186.º, n.º 2, al. d) do CIRE, razão pela qual, segundo o legislador, não é merecedora de uma nova oportunidade.

Texto Integral

Processo n.º1656/23.1T8AMT-E.P1

Relatora: Anabela Andrade Miranda

Adjunta: Maria da Luz Seabra

Adjunta: Lina Castro Baptista


*

Sumário

………………………………

………………………………

………………………………


*

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I—RELATÓRIO

AA requereu a exoneração do seu passivo restante, declarou preencher os requisitos e dispôs-se a observar todas as condições legalmente previstas para esse efeito.

O Sr. Administrador Judicial não se opôs ao deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

O credor “A... DAC”, pronunciou-se contra o deferimento liminar da exoneração do passivo restante, alegando que a insolvente já se encontrava em situação de insolvência à data da dação em cumprimento, uma vez que é declarado que já vinha acumulando dívidas vencidas desde, pelo menos, o ano de 2010.

Acrescenta que a insolvente atuou com acentuada má fé, uma vez que sabia que com a sua conduta lesava os interesses dos credores, na medida em que impediu que o quinhão hereditário, que constituía todo o seu património, integrasse a massa insolvente.

Sustenta a violação do disposto no art 238º alíneas e) e g) do CIRE.


**

No âmbito do exercício do contraditório, a insolvente veio dizer que a dação em pagamento do bem que possuía foi feita para liquidar dívidas que vinha cumulando junto da sua irmã.

Agiu sempre de boa fé, tendo tido um comportamento anterior e atual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé, no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência.

Pede que seja diferido o pedido de exoneração do passivo restante, por entender que se encontram verificados os pressupostos do deferimento liminar da exoneração do passivo restante.


**

Proferiu-se decisão que indeferiu liminarmente a exoneração do passivo.

*

Inconformada com a decisão, a insolvente interpôs recurso finalizando com as seguintes

Conclusões

(…)


*

II—Delimitação do Objecto do Recurso

A questão principal decidenda, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em saber se deve ser indeferido liminarmente a exoneração do passivo restante.


*

III—FUNDAMENTAÇÃO

FACTOS PROVADOS (elencados na sentença)

1.O presente Processo de Insolvência teve início a 7.12.2023 com a apresentação da devedora à insolvência.

2. Por sentença proferida a 14.12.2023, transitada em julgado em 10.1.2024, foi AA, declarada insolvente.

3. Os créditos reclamados e reconhecidos no presente Processo cifram-se na quantia global de 518.885,70.

4. Encontram-se pendentes contra a insolvente os seguintes processos:

.-Processo executivo n.º ..., a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo de Execução de Guimarães J2;

.- Processo executivo n.º ..., a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo de Execução de Lousada - J1;

.- Processo executivo n.º ..., a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo de Execução de Guimarães J2;

.- Processo executivo n.º ..., a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste Juízo de Execução de Oeiras J1;

5. Em setembro de 2023 foi aberta a herança por óbito do pai da Insolvente, herança esta que era composta pela fracção autónoma designada pela letra E do prédio urbano sito em Felgueiras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o n.º ..., inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ..., sendo que o quinhão hereditário da Insolvente corresponde a ½ (metade) da herança.

6. A Insolvente transmitiu o seu quinhão hereditário à irmã, a título de Dação em Cumprimento, através de escritura pública outorgada em 16/10/2023.

7. Para além do quinhão hereditário, a insolvente não era titular de quaisquer outros bens.

8. Por carta registada com Aviso de Receção remetida à Autora, datada de 7.3.2024, o Sr. Administrador da Insolvência declarou resolver em benefício da massa insolvente, o acto jurídico consubstanciado na escritura de Dação em Cumprimento outorgada em 16/10/2023, em que a Insolvente transmitiu à sua irmã, BB, o quinhão hereditário de que era titular na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC, falecido em 29 de setembro de 2023.

9. A Insolvente encontra-se desempregada.

10.Entre 2001 e 2007 a Insolvente garantiu pessoalmente, designadamente através de avais, diversas operações financeiras tituladas pela sociedade e B..., Lda (NIF ...), da qual era sócio o seu ex-marido.

11. O casal divorciou -se em 2018.

12. As dividas reconhecidas são todas anteriores a 17 de maio de 2018, data em que o casal se divorciou.

13. A Autora requereu o benefício do apoio judiciário no dia 14 de agosto de 2023, mencionando expressamente que a finalidade do pedido

14. Por sentença proferida em 22.11.2024, proferida no apenso B, foi julgada válida a resolução efectuado pelo Sr. Administrador de Insolvência e neste processo impugnada, mais concretamente a Dação em Cumprimento outorgada em 16/10/2023, em que a Insolvente transmitiu à sua irmã, BB, o quinhão hereditário de que era titular na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC, falecido em 29 de setembro de 2023.

Factos Não provados:

a) A dação em pagamento extinguiu divida no mesmo valor atribuído ao direito pelas partes.


*

IV-DIREITO

A lei permite ao insolvente, pessoa singular, requerer que lhe seja concedida a exoneração do passivo restante que consiste na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste (cfr. art. 235.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas –CIRE-alterado pela Lei n.º 9/2022 de 11/01).

Na opinião de Luís Menezes Leitão “Trata-se de uma medida especial de protecção do devedor pessoa singular que não representa grande prejuízo para os credores uma vez que os créditos já representavam um valor insignificante, dada a situação económica do devedor.[1]

Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial a determinar que, no referido período de três anos da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a uma entidade designada por fiduciário (cfr. art. 239.º, n.º 2 do CIRE).

O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o tribunal declarar comprovado algum dos fundamentos enumerados no artigo 238.º do CIRE.

Considerando que a exoneração do passivo restante tem como objectivo conceder ao devedor uma nova oportunidade, a prova de uma conduta censurável que seja enquadrável nos requisitos previstos no mencionado preceito legal, revelam ao tribunal que o devedor não é merecedor desse fresh start.

Na análise deste normativo Carvalho Fernandes e João Labareda[2] reconhecem três grupos diferentes dos quais depende, pela negativa, a exoneração: “Respeita um deles a comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram” - alíneas b), d) e e));outro compreende situações ligadas ao passado do insolvente” – alíneas c) e f); finalmente, a alínea g) configura condutas adotadas pelo devedor que consubstanciam a violação de deveres que lhe são impostos no decurso do processo de insolvência.”

O juiz deverá apreciar se o comportamento do devedor é merecedor de um juízo de censura, de culpa, em qualquer uma das modalidades do dolo ou da negligência, à luz das circunstâncias concretas do caso e sob o critério da diligência de um bom pai de família.

Na perspectiva de Catarina Serra[3] “não pode deixar de se associar o despacho inicial e a subsequente abertura do procedimento da cessão à concessão da liberdade condicional por bom comportamento-uma espécie de período experimental em que, se tudo correr bem, terá lugar a libertação definitiva do sujeito.”

No mesmo sentido Assunção Cristas[4] esclarece que “para ser proferido despacho inicial é necessário que o devedor preencha determinados requisitos e desde logo que tenha tido um comportamento anterior ou atual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, aferindo-se da sua boa conduta, dando-se aqui especial cuidado na apreciação, apertando-a, com ponderação de dados objetivos “passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade.”

Relativamente a esta matéria, compete apenas ao devedor a declaração de que se encontra nas condições previstas na lei para lhe ser concedido este benefício, e, por seu turno, cabe aos credores ou ao administrador da insolvência invocar e demonstrar qualquer um dos fundamentos elencados no citado art. 238.º do CIRE, como factos impeditivos daquele direito potestativo.[5]

Efectivamente a jurisprudência e a doutrina têm reconhecido que as hipóteses elencadas no art.º 238.º, n.º 1 do CIRE, configuram factos impeditivos, e consequentemente, compete aos credores e ao administrador da insolvência, face ao disposto no art. 342.º, n.º 2 do C.Civil, a sua alegação e prova, sem prejuízo do princípio do inquisitório (cfr. art.º 11.º do CIRE).

Importa também salientar que o devedor não pode beneficiar da exoneração se, além do mais, constarem no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem, com toda a probabilidade, a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação da insolvência nos termos do artigo 186.º-cfr. al. e) do art. 238.º do CIRE.

Retomando a análise do caso, e tal como se referiu no Acórdão da Relação de Coimbra, de 17/12/2008[6] “Torna-se, pois, necessário um especial cuidado e rigor na apreciação da conduta dos insolventes “apertando-a, com ponderação de dados objectivos”. A mesma deve apresentar-se sem mácula, transparente, e sem qualquer indício de má fé sob pena de se estar a proceder a um verdadeiro branqueamento de dívidas, impondo o Estado gratuitamente danos aos credores que perdem e nada colhem.

Se assim não for, o incidente vai esgotar-se num instrumento oportunística e habilidosamente empregue unicamente com o objectivo de se libertarem os devedores de avultadas dívidas, sem qualquer propósito mesmo de alcançar o seu regresso à actividade económica, no fundo o interesse social perseguido.”

No caso concreto, não há dúvida de que a Insolvente, ao transmitir à sua irmã o quinhão hereditário, por escritura de dação em pagamento, outorgada em 16/10/2023, referente a uma herança constituída por um bem imóvel, actuou culposamente à luz do art. 186.º, n.º 2, al. d) do CIRE, razão pela qual, segundo o legislador, não é merecedora de uma nova oportunidade.

Por outras palavras, a Insolvente, cerca de dois meses antes de se apresentar à insolvência transferiu para a sua irmã o único património de que era titular, o que é subsumível ao art. 186.º, n.º 2, al. d) ex vi art. 238.º, al. e) do CIRE.

Com efeito, nos termos do n.º 2, do art. 186º, do C.I.R.E. «Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto tenham: (…)

d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;”

Verificando-se qualquer uma das situações previstas no n.º 2 do art. 186.º do C.I.R.E presume-se que a insolvência é culposa, sendo considerado, pela doutrina e jurisprudência, que estamos perante uma presunção iuris et de iure, ou seja, inilidível de acordo com o preceituado no art. 350.º do C.Civil.

Como bem se explanou na decisão, “cremos que esta transferência de propriedade visou, tão só, furtar-se ao cumprimento das obrigações assumidas, impedindo o pagamento aos seus credores.

E este comportamento da devedora não é merecedor do benefício de exoneração.

Na verdade, a insolvente agiu com a consciência de que os seus actos agravariam a sua situação de insolvência, bem como causariam prejuízo efetivo aos credores.”

Em suma, a transmissão que a Insolvente concretizou à sua irmã, através da dação do quinhão hereditário em pagamento, cerca de dois meses antes de se apresentar à insolvência, referente a uma herança constituída por um bem imóvel, revela uma actuação manifestamente culposa à luz do art. 186.º, n.º 2, al. d) do CIRE, razão pela qual, segundo o legislador, não é merecedora de uma nova oportunidade.

Face às razões aduzidas, conclui-se que a decisão não merece reparo por estar comprovado nos autos uma das hipóteses legais que determina o indeferimento liminar da exoneração do passivo restante.


*

V-DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso, e em consequência, confirmam a decisão.

Custas pela Insolvente.

Notifique.


Porto, 27/5/2025
Anabela Miranda
Maria da Luz Seabra
Lina Baptista
______________
[1] Cfr, Direito da Insolvência, 2015, Almedina, pág. 305.
[2] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotada, QJ, 3.ª edição, pág. 854, nota 2.
[3] Lições de Direito da Insolvência, pág. 568.
[4] Novo Direito da Insolvência, Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Edição Especial, pág. 264 e Acs. desta Relação, entre outros, de 15/3/2011, de 7/4/2011, todos acessíveis em www.dgsi.pt
[5] V. neste sentido, Luis Carvalho Fernandes e António Labareda, Código de Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, 3.ª edição, pág. 855.
[6] Rel. Gregório Silva Jesus, disponível em www.dgsi.pt.