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INVENTÁRIO SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO
DÍVIDA DO CASAL
INUTILIDADE DA LIDE
Sumário
Extingue-se, por inutilidade superveniente da lide, o processo de inventário subsequente a divórcio em que, apesar de acordo parcial dos interessados quanto a uma dívida do património do extinto casal, inexiste qualquer massa patrimonial a partilhar, por ter sido remetida para os meios comuns a determinação de um tal património.
Texto Integral
PROC. N.º 2171/23.9T8VCD.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Família e Menores de Vila do Conde - Juiz 1
REL. N.º 960
Relator: Juiz Desembargador Rui Moreira
1º Adjunto: Juíza Desembargadora Maria da Luz Teles Meneses de Seabra
2º Adjunto: Juíza Desembargadora Raquel Lima
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
1. RELATÓRIO
Corre inventário para partilha para separação de meações, na sequência de processo de divórcio entre AA e BB, no qual aquele exerce o cargo de cabeça-de-casal.
Iniciado o processo em cartório notarial, foi apresentada relação de bens, que incluiu, enquanto passivo: “Verba Um: Dívida do extinto casal aos pais da interessada BB, no valor de 45.000,00€ (quarenta e cinco mil euros) valor que lhes foi mutuado por aqueles aquando a construção da habitação.”
Ainda nessa fase, foi apresentada reclamação à relação de bens, pela interessada BB, onde, para além do mais, alegou que a verba do passivo deveria ser quantificada em 85.000,00€, por ter sido esse o valor total dos empréstimos concedidos pelos seus pais, para construção da casa referida na verba nº1.
Transitado o processo para o tribunal e instruído o incidente, veio a ser proferida decisão que remeteu os interessados para os meios comuns, quanto a alguns aspectos da reclamação, indeferindo-a quanto a outros. Quanto à questão suscitada em relação ao valor do passivo, foi então referido: “… tendo em conta o reclamado pela interessada quanto ao valor do passivo mais concretamente a verba nº 1, é sabido que a aprovação do passivo é uma atribuição da conferência de interessados, na certeza de que, caso um dos interessados reconheça o passivo e, por isso, não o aprove na conferência, cabe ao juiz proceder então à apreciação da questão, no sentido de conhecer da sua existência quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados. Veja-se a este propósito o que dispõe o art. 1111°, n.º 3 do CPC. Só então o interessado deverá tomar posição sobre a aprovação ou não desse passivo. E, em caso de não aprovação, deverá o tribunal conhecer da sua existência em face dos documentos apresentados – arts. 11104º e ss. do CPC ou, caso não disponha de todos os elementos para decidir de forma segura, deverá remeter as partes para os meios comuns. Nesta medida, este não é o momento próprio para este Tribunal apreciar a verba nº 1 do passivo.
Sucessivamente, foi designada data para a realização da conferência de interessados, mas esta veio a ser desconvocada e o processo declarado extinto por inutilidade da lide, nos seguintes termos: “Quando preparávamos a diligência agendada para o dia de amanhã constatamos que por decisão datada de 29/09/2024, transitada em julgado, foi determinada a remessa dos interessados para os meios comuns no que respeita à verba nº 1 do activo, bem como quanto ao recheio do imóvel que constituiu a casa de morada de família, qual seja a verba nº 2 da relação de bens. Quanto às demais questões suscitadas na reclamação as mesmas improcederam. Assim, inexiste qualquer bem a partilhar. Assim sendo, deixou de existir objecto processual, pelo que determino a extinção dos autos por inutilidade superveniente da lide nos termos previstos no art. 277º al. e) art. 1326º nº 1 do Código de Processo Civil.”
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É desta sentença que a interessada BB vem interpor recurso, alegando que ambos os interessados aceitam que existe um passivo de 45.000,00€, pelo que não poderia o inventário ser extinto por falta de objecto. Concluiu nos seguintes termos:
a) O presente recurso visa sindicar a sentença com a referência citius número 467997288 que extinguiu a instância por inutilidade superveniente da lide, decorrente da falta de objeto processual.
b) Os presentes autos, no entanto, têm objeto processual, pois consta dos mesmo e da sua Relação de Bens o Passivo a Terceiros, nomeadamente como verba 1: Dívida do extinto casal aos pais da interessada BB, no valor de 45.000,00 € (quarenta e cinco mil euros), valor que lhes foi mutuado por aqueles aquando da construção da habitação.
c) Aos 12 de Novembro de 2019, a Recorrente reclamou da Relação de bens, e no seu artigo 5º aceitou o valor do Passivo aos terceiros identificados de, pelo menos, 45.000,00 €, ficando este passivo devidamente aceite por ambos os interessados, ora Recorrente e Recorrido.
d) Por decisão do incidente à reclamação de bens, veio a ser proferida decisão pela Juiz “a quo” aos 29/09/2024, referência Citius 463143104, que decidiu remeter para os meios comuns as questões do ativo, e no que tange ao Passivo foi proferida a seguinte decisão: “este não é o momento próprio para este Tribunal apreciar a verba n.º 1 do Passivo”.
e) Posteriormente e agendada a respetiva conferência de interessados, veio esta a ser dada sem efeito, por sentença que ora se sindica, que decidiu a extinção de instância, por inutilidade superveniente da lide, e por falta de objeto processual, com a qual não pode “aquiescer” a Recorrente, já que, “in casu” existe objeto processual que é tão somente decidir do Passivo a Terceiros (verba 1), o qual se encontra aceite, pelo menos quanto a 45.000,00€, o que ora se requer.
f) Na verdade, o entendimento da Julgadora que o Passivo a Terceiros não constitui objeto de inventário, por entender que todo o activo foi relegado para os meios comuns, esvaziando o objeto processual não pode ser singrar, pois tal passivo, por não ter sido alvo de impugnação deverá ser reconhecido na própria sentença homologatória da partilha, dela devendo constar o respetivo pagamento, por se tratar de passivo a terceiros, tudo no estrito cumprimento do disposto no artigo 1106º, n.º 1 do CPC.
g) E se assim não se entender, deve então a Julgadora reagendar a conferência de interessados, nesta se decidindo então pela aprovação do presente passivo, seguindo então o processo os demais e ulteriores termos processuais.
h) Na verdade, o inventário não se destina apenas à partilha de bens, mas à liquidação definitiva das responsabilidades dos cônjuges para com terceiros, como claramente se verifica nos presentes autos, e que a Julgadora, na sua sentença que ora se sindica, não acautelou, e com a qual a Recorrente não pode concordar.
i) Violou ainda a Julgadora o princípio da economia processual, até porque a extinção da presente instância obrigará o terceiro a instaurar ação contra o património do extinto casal, para colher a devida sentença, quando se perde o reconhecimento de tal passivo por ambos os interessados (Recorrente e Recorrido) nos presentes autos.
j) Meritíssimos Juízes Desembargadores, mal andou a Julgadora em extinguir a presente instância, violando o disposto no artigo 1106º, n.º 1 do CPC, que urge reparar e que ora se requer
Termos em que, dando provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrido que extinguiu os autos por inutilidade superveniente da lide, substituindo-a por outra que decida pelo percurso normal dos autos, para aprovação e pagamento do Passivo já aceite, naquele valor de 45.000,00 €, V.Ex.ª farão como sempre JUSTIÇA.”
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Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso.
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O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Foi depois recebido nesta Relação.
Cumpre decidir.
2- FUNDAMENTAÇÃO
Nos termos dos arts. arts. 639º e 635º nº 4, do C.P.Civil, sediam-se nas conclusões da alegação da recorrente, as questões que, constituindo o objecto do recurso, cabe conhecer. Além dessas, só haverão de ser conhecidas questões que sejam de conhecimento oficioso.
Atentas as conclusões que acima se transcreveram, cabe decidir se, tendo ficado o processo de inventário sem qualquer activo a ser partilhado, deve ele prosseguir para definição da responsabilidade de cada um dos interessados – ex-cônjuges de um dissolvido casamento – pelo pagamento do passivo apurado.
Com efeito, na relação de bens apresentada, o cabeça-de-casal, ora recorrido, incluiu como passivo a seguinte verba: “Dívida do extinto casal aos pais da interessada BB, no valor de 45.000,00€ (quarenta e cinco mil euros) valor que lhes foi mutuado por aqueles aquando a construção da habitação.”
BB, ora apelante, reclamou, alegando ser de 85.000,00€ essa verba. Sendo certo que o tribunal não chegou a decidir dessa reclamação, por entender que o deveria fazer em momento ulterior, mostra-se adquirido, por acordo das partes e tal como a apelante o alega, que existe pelo menos um passivo de 45.000,00€.
Nestas circunstâncias, por efeito do disposto no nº 1 do art. 1106º do CPC, essa dívida deve ter-se por reconhecida e uma subsequente sentença homologatória de partilha haveria de condenar no seu pagamento. Pretendeu o legislado, com tal solução, ter resolvidas, mesmo antes da conferência de interessados, todas as questões relacionadas com o passivo que o pudessem ser, em observância do regime do despacho de saneamento do processo, previsto no art. 1110º do CPC.
Assim, devendo ter-se por adquirida a existência de um passivo de pelo menos 45.000,00€, mas também a ausência de qualquer activo a partilhar, o que não é controverso nestes autos - pois que as partes foram remetidas para discussão, nos meios comuns, quanto aos bens a partilhar - entende a interessada BB que o inventário deve prosseguir.
Objectivamente, esse prosseguimento levaria a que, na conferência de interessados, estes pudessem deliberar sobre o passivo (o que até permitiria ser ali ser reconhecido que o respectivo valor era de 85.000,00€) e sobre a forma do seu pagamento, nos termos do nº 3 do art. 1111º, cabendo, em qualquer caso, ao tribunal, condenar no respectivo pagamento, na sentença homologatória da partilha (art. 1106º, nº 1 do CPC), na sequência do mapa de partilha a elaborar após a conferência, conforme disposto no art. 1120º do CPC.
Todavia, não se esquecendo a ausência de qualquer activo a partilhar, importa decidir se a atenção ao passivo legitima o prosseguimento do inventário.
É inequívoco que a actual regime do processo de inventário tende a concentrar nele a decisão de todas as questões relevantes para a partilha, designadamente quanto ao passivo. Isso ressuma das soluções previstas não só no art. 1106º, já referidas, mas também das previstas no art. 1088º do CPC. E a exequibilidade das certidões extraídas do inventário, designadamente quanto ao passivo, tal como previsto no nº 2 do art. 1096º do CPC, tende a materializar essa intenção.
Porém, da natureza e do significado económico do processo de inventário também resulta outra coisa: as soluções previstas para a satisfação do passivo tendem a garantir que as forças da herança sejam aplicadas, antes de mais, à satisfação das dívidas da herança, isto é, que os bens a partilhar respondam pelo passivo, antes da sua partilha pelos herdeiros.
É isso que resulta dos nºs 5 a 7 do art. 1106º do CPC: estando o passivo fixado, deve ser pago imediatamente, se os credores o exigirem; se a herança não tiver dinheiro, os interessados podem acordar na forma de fazer tal pagamento de imediato; caso contrário, o juiz, eventualmente com acordo dos interessados, designa os bens a vender; e se o credor o pretender, poderá ficar com esses bens, ajustando-se o preço. Se o passivo não for assim satisfeito, a sentença homologatória da partilha condenará os interessados no pagamento (art. 1106º, nº 1), servindo de título executivo para a respectiva cobrança coerciva (art. 1096º, nº 2 do CPC).
Ora, se não houver dinheiro, nem bens a partilhar no âmbito do processo, inútil se torna determinar ali o pagamento do passivo, pois não será nunca no âmbito desse mesmo processo que se haverá de dar satisfação ao respectivo credor. E isso será tanto mais inútil quanto, em tal processo, nem sequer tenha vindo o próprio credor pedir o pagamento do seu crédito, que bem poderá ser diferente, quanto ao seu teor, vencimento, ou garantias, daquele que possa ter sido relacionado pelo cabeça-de-casal e aceite pelos interessados.
Veja-se, no caso em apreço, que o cabeça-de-casal relacionou a dívida pelo valor de 45.000,00€, só em relação a esse montante se verificando acordo dos interessados, apesar de a ora apelante alegar que esse valor é de 85.000,00€. Não tendo o respectivo credor (pais da interessada) reclamado esse crédito, nem havendo instrução sobre o seu valor, sempre teria esse credor de se socorrer dos meios comuns para obter o reconhecimento de tal dívida e o seu pagamento pelos ora interessados, para obter o pagamento do crédito na totalidade. E isso nunca por via da execução dos bens a partilhar, perante a inexistência, neste processo, desses mesmos bens. Inexiste, pois, qualquer interesse de economia processual que o prosseguimento do inventário possa homenagear.
Nestas circunstâncias, um tal prosseguimento do inventário tornar-se-ia um exercício inútil, estéril, pois que não permitiria assegurar a tais credores a satisfação de um direito que eles próprios nem se apresentaram a exercer.
É certo que, em relação a um valor de 45.000,00€, ambos os interessados se manifestam de acordo quanto a ser ele devido. Mas, para actuarem de acordo e em ordem ao pagamento dessa dívida, o que podem fazer livremente e fora do processo, é indiferente este mesmo processo de inventário, pois que dele não poderá emanar qualquer providência tendente à satisfação imediata de tal dívida, por o processo não compreender uma massa patrimonial que a isso habilite.
Em suma, a ausência de qualquer massa patrimonial a partilhar torna inconsequente, no âmbito do processo de inventário, a definição do direito de qualquer credor que pudesse ser satisfeito à custa dessa mesma massa.
Por todo o exposto, em concordância com o decidido pelo tribunal recorrido, conclui-se pela inutilidade superveniente destes autos de inventário, o que, nos termos do art. 277º, al e) do CPC, determina a extinção da instância.
Resta, pois, na rejeição de provimento desta apelação, confirmar a decisão recorrida.
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Sumariando, nos termos do art. 663º, nº7 do Código do Processo Civil:
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3 – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em rejeitar o provimento da presente apelação, na confirmação integral da douta decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Reg e not.
Porto, 27 de Maio de 2025
Rui Moreira
Maria da Luz Seabra
Raquel Correia de Lima