ARGUIÇÃO DE NULIDADES
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
NEXO DE CAUSALIDADE
DANO CAUSADO POR INSTALAÇÕES DE ENERGIA OU GÁS
ERRO DE JULGAMENTO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
Sumário


A aplicação da teoria da causalidade alternativa incerta, sem a demanda de todos os potenciais lesantes, não viola o princípio da igualdade ( art. 13º da CRP ) nem o princípio da proporcionalidade em sentido amplo ( art. 18, nº 2 da CRP).

Texto Integral


Revista nº 6314/16.0T8LSB.L1.S1

Acordam, em conferência, os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:


*


Vem a recorrente LISBOAGÁS COMERCIALIZAÇÃO, S.A. arguir a nulidade do acórdão proferido nestes autos, por contradição existente entre os fundamentos e a decisão, por excesso de pronúncia e pela verificação de inconstitucionalidades, pedindo que sejam declaradas verificadas as nulidades do acórdão suscitadas, nos termos da alínea c) e d), do nº 1 do art. 615º do CPC, e em consonância, que seja prolatado novo acórdão, requerendo, ainda, a título subsidiário, que o acórdão seja reformado pela expurgação do vício constitucional adveniente da violação dos arts. 18º, 13º e 204º da CRP.

Em resposta, veio o autor pugnar pelo indeferimento do requerido.

Cumpre apreciar.

A ré recorrente começa por imputar ao acórdão sob reclamação a nulidade, prevista na alínea c) do nº 1 do art. 615º do CPC, de oposição dos fundamentos com a decisão, afirmando ter sido condenada com fundamento na norma prevista no art. 509.º do CC, apesar de não se terem provado os pressupostos factuais de que depende a aplicação daquele preceito, consagrador da responsabilidade pelo risco, isto é, que, em concreto, a ré tivesse, à data do sinistro, a direcção efectiva da instalação destinada à condução de gás à dita fracção ou que utilizasse essa instalação no seu interesse.

Acrescenta que, ante a matéria de facto expressa nos pontos 15), 16), 17), 88) e 89) ficou demonstrado, ao invés, que “a Ré não detinha a direção efectiva, nem utilizava no seu interesse a instalação de gás da dita fracção.”

Segundo o que dispõe a alínea c) do nº 1 do art. 615º do CPC, aqui aplicável por força do nº 1 dos arts. 666º e 679º do CPC, a sentença é nula quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.

Tem o Supremo Tribunal de Justiça entendido, a este respeito, que a nulidade prevista no art. 615º, n.º 1, al. c), 1ª parte, do CPC se verifica, tão somente, quando das premissas de facto e de direito constantes da decisão se extraia uma consequência oposta à que logicamente se deveria ter extraído (cfr., v.g., os acórdãos do STJ de 29.10.2020, proc. 1872/18.8T8LRA.C1.S1, de 7.9.2020, proc. 705/14.9TBABF.E1.S1, de 16.11.2021, proc. 2534/17.9T8STR.E2.S1). Como observam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, no seu Código de Processo Civil anotado, vol. 2º, 3ª edição, a pág. 737, existe contradição lógica entre os fundamentos e a decisão determinativa da nulidade da sentença se “na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente.”, sendo que esse vício não se confunde com o erro de julgamento, em que o juiz, ainda que mal, “entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre”.

Ora, se lermos a decisão impugnada, verificamos que, atento o objecto do recurso de revista delimitado pelo autor, a mesma incidiu apenas sobre o pressuposto da responsabilidade civil atinente ao nexo de causalidade, e não sobre o preenchimento dos demais requisitos de aplicação do art. 509º do CC - cuja verificação, apreciada de forma concordante pelas instâncias, não foi colocada em causa pela ora reclamante, em sede de ampliação do âmbito do recurso de revista (cfr. art. 636º, nº 1 do CPC).

É o que decorre da leitura do seguinte excerto do acórdão:

“As instâncias entenderam que a ré, na qualidade de comercializadora ou fornecedora de gás natural, poderia ser responsabilizada objectivamente, ao abrigo da citada norma, ainda que não lhe competisse a gestão da rede (e, por isso, a “direcção efectiva da instalação”). O Tribunal de 1ª instância fundou tal entendimento na interpretação racional e actualista do art. 509º do CC e no facto de a ré, ao apresentar-se publicamente como entidade de gestão da rede, se assumir na posição de verdadeira corresponsável pela rede, assim elaborando uma construção assente no entendimento de que a representação aparente é vinculativa para o representado perante terceiros de boa-fé, tendo por referência o princípio da confiança. Deixou escrito o Tribunal de Primeira Instância, numa argumentação que não nos suscita objecções, que “a conclusão que se retira de uma interpretação histórica, ainda comportada na literal, é que a lei pretendeu, indistintamente, abranger os riscos decorrentes de problemas da própria rede (mau estado, fugas imprevistas, danos originados por intervenção humana indeterminada) como os riscos decorrentes da própria matéria ou energia”, acrescentando: “Além deste elemento interpretativo, por referência ao princípio da confiança e que se traduz na conclusão de a segregação de negócios de distribuição e comercialização existir para protecção do mercado e dos consumidores, não para exonerar de responsabilidade o fornecedor, pelo menos na relação com os lesados diretos e sem prejuízo de regresso para com a entidade gestora, há um outro elemento relevante a considerar - na altura do facto, ambas as sociedades pertenciam ao mesmo grupo económico – grupo Galp. Além deste elemento organizacional, na sua relação com consumidores, e com terceiros, a sociedade distribuidora não era publicamente reconhecida e reconhecível.” Ora, o ponto que motivou o dissentimento entre as instâncias prendeu-se com a verificação do pressuposto da responsabilidade civil atinente ao nexo de causalidade: enquanto a 1ª instância considerou que, ainda que a ré Lisboagás “não tivesse gás contratado com a fração onde se deu a explosão, estabelecido que todo o gás fornecido ao prédio o foi por si, está estabelecido o vínculo objectivo suficiente para estabelecer uma relação causalmente adequada entre o risco protegido pela norma e a posição jurídica da ré”, o acórdão recorrido, na sequência da alteração efectuada à matéria de facto provada (cfr. ponto 90 dos factos provados) -em que ficou demonstrado que, para além da ré, também a GALP Power, S.A. e a EDP Comercial, S.A. forneciam gás a fracções autónomas do mesmo prédio- veio a concluir, ao invés, que não era possível “estabelecer um nexo de causalidade e adequação entre qualquer comportamento da ré e a explosão dos autos” nem “imputar à ré qualquer responsabilidade pela manutenção das condutas de gás do prédio dos autos.” Deste modo, a questão que se oferece para apreciação consiste em aquilatar se, perante a factualidade provada, se deverá considerar preenchido o pressuposto da responsabilidade civil atinente ao nexo de causalidade entre o fornecimento de gás natural pela ré Lisboagás (actividade que implica o risco) e a explosão ocorrida, da qual resultaram danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo autor.”

Do exposto resulta, assim, que um dos pressupostos no qual a reclamante assentou a sua invocação quanto à nulidade do acórdão – como a existência de uma apreciação, por parte do Supremo, dos requisitos normativos ínsitos ao art. 509º, nº 1 do CC, concernentes à “direcção efetiva” da instalação e à utilização da mesma no seu interesse – não se verifica, o que, conduz à improcedência da arguida nulidade.

De todo o modo, sempre se diga que os termos em que a reclamante configura a nulidade nos remetem não para o plano da regularidade formal do acórdão– já que não está em causa a contradição lógica entre uma premissa e uma conclusão - mas para o plano, ora insindicável, do seu mérito.

Noutra perspectiva, ainda que o Supremo tivesse analisado os sobreditos pressupostos normativos de aplicação do art. 509º do CC, a circunstância, alegada pela ré, de que os factos adquiridos contrariam o juízo valorativo empreendido, configuraria, quando muito, um erro de julgamento insusceptível de ser aqui apreciado.

Invoca a ré que o vício da contradição entre os fundamentos e a decisão se manifesta também na circunstância de o acórdão sob reclamação não ter excluído a responsabilidade pelo risco da ré, nos termos do art. 505º do CC, não obstante ter resultado provado (factos n.os 27, 31 e 32) que o sinistro em causa foi imputável a terceiros, concluindo que “se está provado que, por acção de terceiro, foi furado um cano da rede de gás no prédio, justamente numa fracção do mesmo piso da fracção onde ocorreu o sinistro em causa, demonstrado está, à luz das mais elementares regras de experiência de vida e senso comum, que essa terá sido a causa mais provável da fuga de gás dentro da aludida fracção.”

Mas também aqui a sua pretensão não pode ser acolhida.

Com efeito, a prova dos factos em causa (27. Na sequência de tal intervenção de picagem foi furado um cano de abastecimento de gás existente no interior de tal fração; 31. AA informou o réu BB que havia sido furado um cano de gás em tal intervenção; 32. O réu administrador do condomínio, na sequência de tal comunicação, não solicitou intervenção de técnicos da empresa de gás) não obstava, do ponto de vista da coerência lógica, a que se responsabilizasse a ré ao abrigo do nº 1 do art. 509º do CC, num contexto em que ficou provado que “a explosão ocorreu em consequência de uma fuga de gás natural fornecido ao prédio, com origem não concretamente apurada” (ponto 18) e em que a questão da imputação do sinistro a terceiro não foi abordada pelo acórdão da Relação nem suscitada pela ora reclamante nas suas contra-alegações de revista.

Não se verifica, pois, a nulidade imputada: o acórdão extraiu uma determinada consequência jurídica de determinada matéria de facto provada e deixou essa consequência expressa na respectiva fundamentação.

Finalmente, também não integra a nulidade em causa a circunstância de o acórdão sob reclamação ter apreciado, segundo a perspectiva da reclamante, a prova de forma arbitrária. Trata-se, uma vez mais, da imputação ao aresto de um erro de julgamento que, para o presente âmbito, se mostra juridicamente inconsequente.

Contesta, também, a reclamante a aplicação da teoria da causalidade alternativa incerta ao instituto da responsabilidade pelo risco, afirmando que tal entendimento se mostra “violador dos princípios da proporcionalidade e de igualdade previstos nos artºs 18º e 13º da Constituição da República Portuguesa”, concretizando que “ao estabelecer uma responsabilidade solidária, fundada no risco, englobando entidades que nem sequer figuram como partes nos autos e que por isso não tiveram qualquer possibilidade de se defender dessa imputação, e de contribuir para o cabal esclarecimento da verdade material, equivale a atribuir ao lesado um excesso de proteção, infringindo o princípio da proporcionalidade nas suas três vertentes de adequação, necessidade e racionalidade e, como tal, implica outrossim ofender o princípio da igualdade.”

Considerou-se no acórdão, por apelo à teoria da causalidade alternativa incerta, que se mostrava possível responsabilizar objectivamente a ré, num contexto em que ficou provada a causa do sinistro – a fuga de gás - desconhecendo-se, muito embora, a autoria do fornecimento de tal gás. A este propósito deixou-se escrito: “Por conseguinte, ainda que não se prescinda da ideia da condicionalidade “sine qua non”, importa, na linha do caminho já iniciado pelo acórdão do STJ de 19.5.2015, valorar casos como este de causalidade alternativa incerta, acolhendo, neste âmbito, uma interpretação do ónus da prova da causalidade (art. 563º do CC) funcionalmente orientada à teleologia específica da responsabilidade civil pelo risco, em que se admite o afrouxamento de tal ónus a cargo do lesado, de modo a não comprometer a obtenção de uma decisão materialmente justa. A aplicação de tal entendimento à situação presente implica, assim, reconhecer que, para que a ré Lisboagás, criadora da fonte de perigo, se eximisse de responsabilidade, teria de demonstrar que o prejuízo causado não radicou nela ou que, no caso concreto, o dano se teria produzido de qualquer forma. Tal não sucedeu, sendo que a recorrida também não logrou provar a causa real do dano, não tendo demonstrando que a mesma não se integrava na esfera de riscos que criou.”

Em primeiro lugar, importa salientar que não existe obstáculo, do ponto de vista lógico, à aplicação da teoria da causalidade alternativa a um título de imputação fundado na responsabilidade pelo risco – que prescinde da culpa, mas não da verificação do pressuposto do nexo de causalidade entre facto e dano. Não se verifica, por isso, a nulidade do acórdão por contradição entre os fundamentos e a decisão.

Por outro lado, nenhuma inconstitucionalidade, por violação do princípio igualdade (art. 13º da CRP) ou do princípio da proporcionalidade em sentido amplo (art. 18º, nº 2 da CRP), se vislumbra no entendimento - que a reclamante sustenta redundar num excesso de protecção do lesado - de responsabilizar a ré por esta via sem que as demais fornecedoras de gás sejam partes na causa.

É que a recorrente assenta a sua argumentação num pressuposto que não se verifica: o de que nos presentes autos foram condenadas, solidariamente, entidades que não são partes na causa, nem “tiveram qualquer possibilidade de se defender dessa imputação, e de contribuir para o cabal esclarecimento da verdade material.”

É manifesto que tal não sucedeu – nem, naturalmente, poderia ter sucedido, tendo em conta que o caso julgado material formado nesta causa não poderá afectar desfavoravelmente terceiros juridicamente interessados - como facilmente se extrai da leitura do dispositivo do acórdão sob reclamação, que abrange apenas a reclamante na condenação proferida.

É certo que, a dado passo, se afirma, tal como foi sublinhado pela reclamante: “Assim, e independentemente da prova da condicionalidade, provados que estão, por um lado, a ocorrência do evento lesivo e, por outro, o envolvimento da fonte de risco da ré na sucessão de acontecimentos que conduziram ao surgimento do dano, mostram-se reunidos, na nossa perspectiva, os pressupostos para afirmar a obrigação da ré Lisboagás de indemnizar o autor pelos danos sofridos, ao abrigo do art. 509, nº 1 do CC, responsabilizando-a, a título solidário, com as demais fornecedoras de gás, de acordo com o nº 1 do 507º do CC (já que os termos da responsabilidade em análise são paralelos, como sublinha Antunes Varela, aos que se se aplicam à obrigação de indemnizar em matéria de acidentes de viação (Das Obrigações em Geral, volume I, 10.ª edição, pág. 712) .”

No entanto, como se verifica, o segmento em que se alude à responsabilização, a título solidário, das demais fornecedoras de gás, de acordo com o art. 507º do CC, surge no acórdão como reforço argumentativo, como mero “obter dictum”, pois do mesmo não se extraiu qualquer consequência jurídica ao nível da decisão.

E, por isso, deverá improceder a argumentação que, a esse título, a reclamante apresentou.

Com base no entendimento erróneo de que o acórdão sob reclamação condenou a ré, a título solidário, juntamente com as demais fornecedoras de gás, aduz a reclamante que foi cometida nulidade por excesso de pronúncia, acrescentando ter existido “uma violação da tutela jurisdicional efetiva das entidades que, por não terem sido partes no processo, não tiveram oportunidade de pronunciar-se”, dado que inexistiu “uma modificação subjetiva pela intervenção de novas partes, nos termos do artigo 261º do C.P.C.”

Noutro plano, contrapõe que a construção da teoria da causalidade alternativa incerta pressupunha que “a todas as fornecedoras de gás do aludido prédio deveria ter sido dada a possibilidade de intervir nos autos para poderem, não só se defender, como contribuir para o apuramento da verdade material e deduzir as pretensões que entendessem por bem deduzir”, tendo-se verificado a preterição de litisconsórcio necessário passivo que inviabiliza que a decisão produza o seu efeito útil normal entre todos os potenciais responsáveis (art. 33º, nº 2 do CPC).

Afirma, ainda, que “a interpretação que o Tribunal faz do art.º 33º do C.P.C. ao entender tacitamente que o referido normativo dispensa, no presente caso, a intervenção dos demais interessados, viola o disposto não só do referido normativo, bem como o art.º 3º n.º 3 e 4, 6º, nº 2, 590º, nº 1 do C.P.C., assim como o princípio da igualdade previsto no art.º 13º da Constituição”, para além de o fazer incorrer na nulidade prevista na segunda parte da alínea d) do nº 1 do art. 615º do CPC.

Vejamos.

Segundo o que dispõe o art. 615º, nº 1, als. d) e e) do CPC, a sentença é nula quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

Como explicam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, as nulidades suscitadas pelos reclamantes constituem, em rigor, situações de anulabilidade da decisão, e não de verdadeira nulidade, dizendo respeito aos limites da mesma. Está, pois, vedado ao juiz o conhecimento de causas de pedir não invocadas ou de excepções não deduzidas que se encontrem na exclusiva disponibilidade das partes, assim como o acto de, em violação do princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objectiva da instância, não observar os limites impostos pelo art. 609º, nº 1 do CPC, condenando ou absolvendo em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso do pedido (ob. cit., págs. 735 a 737).

Neste domínio, sintetizou-se no Ac. STJ de 4.2.2021, proc. n.º 6837/17.4T8LRS.L1.S1: “a nulidade por excesso de pronúncia decorre da violação da regra consagrada no art. 608º, nº 2, do CPC, segundo a qual o tribunal não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras. No âmbito de qualquer recurso, o objecto da sua pronúncia, suscitado pelas partes, consubstancia-se nas obrigatórias conclusões do recurso.”

Ora, no caso, não se presta a qualquer discussão que o acórdão sob reclamação se ocupou apenas da questão que lhe cabia conhecer e que se reportava à verificação dos pressupostos da responsabilidade civil da ré, mais uma vez se sublinhando que os pressupostos da responsabilidade das demais fornecedoras de gás não foram objecto de apreciação, não podendo, naturalmente, a condenação nestes autos proferida afectar a esfera jurídica daquelas fornecedoras (cfr. art. 522º do CC).

Só haveria fundamento para sustentar que o acórdão tinha incorrido em nulidade, por excesso de pronúncia (por desvio ao princípio do dispositivo), e na violação ao direito ao processo equitativo que o nº 4 do art. 20º da CRP atribui a tais pessoas colectivas, se o mesmo tivesse condenado as demais fornecedoras de gás, que não são partes no processo.

No entanto, como se disse, não foi isso que sucedeu: a referência à condenação solidária da reclamante com as demais fornecedoras de gás surge apenas como “obter dictum”, sem repercussão em termos decisórios.

Por outro lado, deve salientar-se que não existe qualquer erro de raciocínio lógico entre o facto de se considerar existir fundamento legal para responsabilizar a ré solidariamente com as demais fornecedoras de gás e a decisão - que conserva o seu efeito útil - de condenação da mesma no pedido, nos termos decretados pelo tribunal de 1ª instância, uma vez que do regime das obrigações solidárias decorre que o credor tem a faculdade de exigir ao devedor solidário a prestação integral (arts. 512º e 518º do CC).

Não se detectando qualquer vício estrutural neste âmbito, a aplicação da teoria da causalidade alternativa não se encontra dependente, para análise dos respectivos pressupostos, da intervenção de todos os interessados (isto é, de todos os potenciais lesantes) na relação material controvertida.

O regime da solidariedade passiva entre potenciais lesantes – e este é o ponto - não foi estabelecido, em termos decisórios, pelo acórdão sob reclamação. Assim, o autor poderá, com base nas decisões proferidas nos presentes autos, responsabilizar a ré, ora reclamante. No entanto, se pretender responsabilizar outras fornecedoras de gás pelos danos advenientes do mesmo sinistro não terá outra alternativa senão a de intentar a correspondente acção contra as mesmas. Também no plano das relações internas, se a ora reclamante pretender exercer o seu direito de regresso contra algum codevedor (art. 524º do CC), terá, para o efeito, de intentar a correspondente acção.

O nexo de causalidade que foi estabelecido não se apresenta como arbitrário, mostrando-se fundado na criação da fonte de perigo que se veio a materializar no dano e alinhado com a finalidade específica da responsabilidade civil pelo risco.

Daqui resulta, pois, que não se mostra violado o princípio constitucional da igualdade (art. 13º da CRP), no seu sentido negativo (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 222) não tendo a reclamante – que se absteve de suscitar a intervenção acessória nos presentes autos de outros potenciais lesantes para eventual direito de regresso (art. 321º do CPC) - sido colocada perante o lesado numa situação de desvantagem injustificada, já que poderá sempre, no plano das relações internas, e caso venha a demonstrar os factos constitutivos do seu direito, ser ressarcida junto de eventuais corresponsáveis do que vier a satisfazer para além da parte que lhe competir.

Por outro lado, não se vislumbra qualquer violação do princípio da proporcionalidade em sentido amplo (art. 18º, nº 2 da CRP; cfr., a este respeito, Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, Almedina, págs 269-270) uma vez que a condenação decretada foi apropriada ao ressarcimento dos danos, patrimoniais e não patrimoniais, que o lesado provou ter sofrido, foi necessária a tal ressarcimento – exprimindo a adaptação do ónus da prova da causalidade (art. 563º do CC) a cargo do lesado à teleologia específica da responsabilidade civil pelo risco, com vista a impedir uma decisão materialmente injusta –e o fim e a medida de ressarcimento proporcionais à desvantagem patrimonial imposta à ré reclamante, criadora da fonte de perigo.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em julgar improcedente a reclamação.

Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.


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Lisboa, 27 de Maio de 2025

António Magalhães (Relator)

Henrique Antunes

Jorge Leal