PRESTAÇÃO DE CONTAS
CABEÇA DE CASAL
COMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO CÍVEL
TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES
INTERPRETAÇÃO DA LEI
INVENTÁRIO
EX-CÔNJUGE
CASO JULGADO
PROCESSO ESPECIAL
RECURSO PER SALTUM
Sumário


I. É da competência dos juízos cíveis (e não dos juízos de família) o julgamento da pretensão, emanada do cônjuge cabeça-de-casal, de que o outro ex-cônjuge preste contas, pelas razões específicas invocadas na petição inicial (o outro cônjuge foi o administrador de facto dos bens comuns indicados pelo A.).
II. O disposto no art.º 947.º do CPC (“as contas a prestar…pelo cabeça-de-casal…judicialmente nomeado(s) são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita”) não obsta ao aduzido em I, se o concreto tribunal a quem se pretende, por conexão, atribuir a competência para a apreciação da prestação de contas por parte do cônjuge Réu, já rejeitou essa competência, por despacho transitado em julgado, proferido no processo de inventário.

Texto Integral


Processo n.º 1199/24.6T8AVR.P1.S1

Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. Em 25.3.2024 AA intentou, no Juízo Local Cível de ... do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, ação especial de prestação de contas contra BB.

O A. alegou que esteve casado com a R., no regime de comunhão de adquiridos, e que tal casamento foi dissolvido, por divórcio, em 23.12.2016, no âmbito da ação de divórcio por mútuo consentimento que correu termos na Conservatória do Registo Civil de.... Na pendência do matrimónio a R. constituiu, com o irmão desta, uma sociedade comercial, da qual era sócia-gerente. Por outro lado, tanto o A. como a R. titulavam uma conta bancária. Ora, a R. nunca prestou contas da atividade prestada na aludida sociedade, sendo certo que a quota da R. é bem comum do casal, assim como não prestou contas das movimentações da conta bancária, a que apenas a R. acedia, uma vez que o A. se encontrava no estrangeiro. Por fim, no âmbito do processo de divórcio, o destino e o uso da casa de morada de família do casal, bem comum, foi atribuído à R., até à partilha, que ainda não ocorreu (sendo certo que se encontra a decorrer o processo de inventário sob o n.º 873/23.9..., do Juiz ... do Juízo de Famílias e Menores de ... do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro). Ora, a R. tem de prestar contas da administração que fez do bem comum do casal.

O A. terminou formulando o seguinte petitório:

Nestes termos e nos mais de direito, deve apresentar ação ser recebida e, em consequência, ser citada a R. para no prazo de 30 dias, prestar contas de todos os atos que praticou na constância do matrimónio após o divórcio dos A. e R. até à data, designadamente em relação à administração da conta bancária do casal, bem como de todos os atos supra referidos que praticou na supra referida sociedade comercial no período compreendido entre 27/12/2013 e a presente data, de modo a inferir qual o valor da quota, quais os lucros apurados e se foram distribuídos dividendos, e ainda, a prestação de contas relativamente ao uso que tem feito do imóvel que constituía casa de morada de família, desde o divórcio, para apuramento e aprovação das receitas e a sua condenação, sendo caso disso, na entrega ao A. do valor que se vier a apurar, em relação à globalidade da prestação de contas efetuada nos presentes autos e que esteja indevidamente na sua posse”.

2. Em 8/04/2024 foi proferido o seguinte despacho:

É meu entendimento que a prestação de contas pelo ex-cônjuge deve correr por apenso ao processo de inventário para partilha de bens subsequente ao divórcio.

Assim em face do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código do Processo Civil, notifique o autor para, querendo, se pronunciar”.

3. O A. pronunciou-se a favor da competência do juízo cível para julgar a pretensão deduzida, tendo, para esse efeito, invocado decisões jurisdicionais já anteriormente proferidas, fora e no âmbito do processo de inventário suprarreferido, acerca de igual pretensão do A..

4. Em 18.6.2024 foi proferido o seguinte despacho:

“Atento o disposto no artigo 298.º, n.º 4, do Código de Processo Civil e na ausência de elementos que permitam infirmar o valor indicado pelo autor, atribuo à ação o valor de 30.000,01€.


*


AA instaurou o presente processo especial de prestação de contas contra BB, com quem foi casado, até 23 de dezembro de 2016, data em que o casamento foi dissolvido, por divórcio.

Pede que a ré preste contas de todos os atos que praticou, na constância do matrimónio e após o divórcio até à data, designadamente em relação à administração da conta bancária do casal, bem como de todos os atos que praticou na sociedade “V..., Lda.”, no período compreendido entre 27/12/2013 e a presente data, e ainda a prestação de contas relativamente ao uso que a ré tem feito do imóvel que constituía a casa de morada de família, desde o divórcio, para apuramento e aprovação das receitas e a sua condenação, sendo caso disso, na entrega ao autor do valor que se vier a apurar, em relação à globalidade da prestação de contas.

Suscitada a incompetência material deste Juízo Local Cível para tramitar e conhecer da presente ação, veio o autor pronunciar-se, pugnando pela competência do tribunal, uma vez que, no âmbito do processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal, que corre termos no Juízo de Família e Menores de... – Juiz ..., sob o n.º 873/23.9..., foi proferido despacho que afirmou que a competência para a ação de prestação de contas pertence aos Juízos Cíveis. Daí a instauração da presente ação.

Apreciando e decidindo.


*


O artigo 122.º, n.º 2, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), estatui que os juízos de família e menores exercem as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.

O artigo 947.º do Código de Processo Civil, por sua vez, estatui que as contas a prestar por representantes legais de incapazes, pelo cabeça-de-casal e por administrador ou depositário judicialmente nomeados são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita.

Conforme entendimento de Luís Filipe Pires de Sousa, in Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 2.ª edição, Almedina, 2021, páginas 162 e 163:

(…) a prestação de contas pelo ex-cônjuge deve ocorrer por apenso ao processo de inventário para partilha de bens, subsequente ao divórcio.

Em abono desta posição, argumenta-se designadamente que:

- A especificidade das questões pessoais e patrimoniais envolvidas justifica que a competência seja deferida ao tribunal de família, por razões de celeridade (a individualização e valor dos bens já constarão no processo de inventário), de harmonia e coerência das decisões judiciais porquanto o juiz que preside à partilha dos bens comuns conhece melhor as questões suscitadas no inventário;

-As leis de organização judiciária não constituem a fonte exclusiva de delimitação da competência material dos tribunais, podendo esta derivar também do CPC (Artigo 60º, nº 1, do CPC);

-Tendo o legislador, no âmbito da LOSJ, atribuído às Secções de Família e Menores a competência para os inventários requeridos na sequência de ações de divórcio (Artigo 122º, nº 2, da LOSJ), não é crível que o mesmo – conhecedor como era da dependência determinada pelo Artigo 947º - quisesse excluir da competência daqueles Tribunais a de conhecer da ação de prestação de contas a que está obrigado o cabeça de casal, nomeado no âmbito de processo de inventário que tenha corrido termos perante tais Tribunais.

Mais aduz que:

Atualmente, atento o disposto nos Artigos 1082º, al. d), e 1083º, nº 1, al. b), do CPC (redação da Lei nº 117/2019, de 13.9), tendo o inventário subsequente ao divórcio regressado à competência dos juízos de família, cremos que se dissiparam as razões desta discussão, devendo a ação de prestação de contas correr por dependência ao processo de inventário.

Não desconheço a existência de outro entendimento, atribuindo aos tribunais cíveis a competência material para conhecer da prestação de contas pelo ex-cônjuge (vd. ob. cit., página 162, e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8-10-2020, processo n.º 487/19.8T8PMS.S1).

No entanto, não é esse o meu entendimento, sufragando, como dito, aqueloutra corrente que atribui competência material para conhecer da ação de prestação de contas pelo ex-cônjuge aos Juízos de Família e Menores, com os fundamentos acima apresentados.

Acresce que a posição vertida no processo de inventário que corre termos no Juízo de Família e Menores de... – Juiz ..., sob o n.º 873/23.9..., não se impõe a este tribunal (cfr. artigo 100.º do Código de Processo Civil).

Decorre do exposto que, salvo melhor opinião, a competência para conhecer e processar esta ação está atribuída legalmente ao juízo de família e menores.


*


A infração das regras relativas à competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal (artigo 96.º, alínea a), do Código de Processo Civil), a qual deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal até ser proferido despacho saneador (artigos 97.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), e determina a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar (artigo 99.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Termos em que, atentos os comandos normativos acima mencionados e, bem assim, o disposto nos artigos 549.º, n.º 1, e 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, julgo este Juízo Local Cível materialmente incompetente para conhecer da presente ação de prestação de contas e, em consequência, indefiro liminarmente a petição inicial.

Custas pelo autor, fixando a taxa de justiça no mínimo legal – artigo 7.º, n.º 4, do Regulamento das Custas Processuais.

Notifique.”

5. O A. interpôs recurso per saltum, para o Supremo Tribunal de Justiça, desse despacho, tendo formulado as seguintes conclusões:

“1. Mediante despacho proferido em 18/06/2024 no âmbito da ação de prestação de contas instaurada pelo ora Recorrente, a qual foi distribuída ao Juiz ... do Juízo Local Cível de ... do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, sob o Proc. n.º 1199/24.6T8AVR, foi indeferida liminarmente a Petição Inicial, com base na exceção da incompetência material do Tribunal.

2. Sucede que, o Recorrente não concorda com o teor de tal despacho pelo que, vem dele, nesta sede, recorrer.

3. Nessa conformidade, o despacho de indeferimento liminar da Petição Inicial é uma das causas de extinção da instância, conforme previsto no art. 277.º do CPC, pelo que, uma vez que com este se põe termo ao processo, encontra-se desta forma a suscetibilidade de recurso desse despacho prevista no artigo 644.º n.º 1 a) do CPC.

4. No entanto, uma vez que, no presente caso, se encontram preenchidos os pressupostos legais enunciados no artigo 678.º do CPC, porquanto o valor da causa é superior à alçada do Tribunal da Relação, não pretendendo o Recorrente discutir matéria de facto, suscitando, apenas, questões de direito e não existindo quaisquer questões interlocutórias suscetíveis de ser reapreciadas, requer-se a V.Exa. se digne a admitir RECURSO PER SALTUM PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, ao abrigo do disposto no art. 678º do CPC.

5. Com efeito, o objeto do presente recurso é a impugnação do Despacho proferido pelo Tribunal a quo em 18 de junho de 2024, mediante o qual a Mm.ª Juiz a quo indeferiu liminarmente a Petição Inicial apresentada pelo Recorrente, declarando o Tribunal materialmente incompetente para conhecer da ação de prestação de contas, na firme convicção que o Despacho aqui em recurso tem por base uma errada e insuficiente qualificação jurídica, a qual vai em sentido bem diferente daquele que Vossas Excelências elegerão, certamente, como mais acertada.

6. Pois bem, com todo o respeito, que é muito e bem devido, o Tribunal recorrido decidiu mal.

7. Efetivamente, é firme convicção do Recorrente que o Despacho ora recorrido é baseado numa errada aplicação das regras, normas e princípios de Direito, sendo errada, salvo o devido respeito, a fundamentação que lhe foi subjacente.

Vejamos porquê:

8. Assim sendo, nos presentes autos, mediante notificação datada de 08/04/2024, foi o Autor, ora Recorrente, notificado do teor do despacho proferido, nos termos do qual a Mm.ª Juiz a quo entendeu que «… a prestação de contas pelo ex-cônjuge deve correr por apenso ao processo de inventário para partilha de bens, subsequente ao divórcio», tendo, ao abrigo do artigo 3.º n.º 3 do CPC, concedido prazo ao A., ora Recorrente, para se pronunciar,

9. o que o Recorrente fez, mediante Requerimento apresentado em 19/04/2024, com a Ref.ª ...94, nos termos do qual, em suma, considera que não poderá ser considerado que a prestação de contas pelo ex-cônjuge deverá correr por apenso ao processo de inventário para partilha de bens, subsequente ao divórcio, porquanto, atento o Despacho proferido naqueles autos, devidamente fundamentado e transitado em julgado, através do qual foi considerado por esse Tribunal que o Juízo de Família e Menores de Aveiro não tem competência material para a ação de prestação de contas,

10. sendo de se admitir o Juízo Local Cível de ... como o Tribunal materialmente competente para julgar a ação de prestação de contas, o que requereu.

11. Não obstante, a Mm.ª Juiz a quo proferiu o despacho ora em crise e julgou «… este Juízo Local Cível materialmente incompetente para conhecer da presente ação de prestação de contas e, em consequência, indefiro liminarmente a petição inicial».

12. O Recorrente não se pode conformar com o despacho recorrido, por entender, com o devido respeito por melhor opinião, que deveria considerar-se o Tribunal a quo como o Tribunal materialmente competente para tramitar a ação.

13. Sucede que, o ora Recorrente instaurou uma primeira ação de prestação de contas contra a R., em 27/08/2020, que correu termos sob o Proc. n.º 2539/20.2..., do Juiz ... do Juízo Local Cível de ... do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, tendo sido proferida, em 02/12/2020, decisão, ora junta sob o doc. n.º 1, que julgou o Tribunal materialmente incompetente por: «encontrando-se pendente no Cartório Notarial processo de inventário, a competência para apreciar e decidir das contas prestadas voluntariamente pelo cabeça de casal, ou cuja prestação venha a ser requerida pelos demais interessados, está atribuída aquele, o que determina a incompetência em razão da matéria do Tribunal, nos termos do artigo 64.º do Código de Processo Civil e do artigo 40.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário. (…) Desta forma, atentos os argumentos acima expendidos, ter-se-á de concluir pela incompetência material deste Juízo Local Cível de ..., para decidir da presente ação, e, nessa medida, absolver o réu da instância.».

14. Em face disso, foi ordenada a extração de certidão de todo o processado e a sua remessa ao Cartório Notarial do Exmo. Sr. Dr. CC, para os fins tidos por convenientes, o que se veio a concretizar mediante ofício datado de 18/05/2021 (Cfr. Doc. n.º 2 ora junto).

15. Posteriormente, mediante Despacho proferido a 01 de março de 2023, foi determinado, pela Sra. Notária Dra. DD, a remessa para o Tribunal, do processo de inventário n.º 5142/19, que correu termos no Cartório Notarial de ... (Cfr. Doc. n.º 3 ora junto), atualmente a correr termos no Juiz ... do Juízo de Família e Menores de ... do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, sob o Proc. n.º 873/23.9...

16. Assim, nos termos do n.º 2 do artigo 76.º da Lei n.º 23/2013, de 5 de março, ordenada a remessa do inventário para o Tribunal, foram os interessados dela notificados, para, no prazo de 15 dias, deduzirem as impugnações contra as decisões proferidas pelo notário e que pretendessem impugnar, tendo o cabeça de casal, ora Recorrente, se insurgido contra o teor do despacho proferido pelo Sr. Notário Dr. CC, datado de 02/03/2022, conforme resulta dos documentos ora juntos sob os n.ºs 4 e 5 ora juntos.

17. Em face disso, foi proferido despacho judicial sob a Ref.ª ...47, no processo de inventário pendente no Juízo de Família e Menores de ..., em 28 de maio de 2023, (Cfr. Doc. n.º 6 ora junto) nos termos do qual, em síntese, conclui que «(…) As partes se quiserem uma prestação de contas devem intentar ação de prestação de contas no Juízo Cível, que é o competente.»

18. O Recorrente, apresentou Requerimento de Reapreciação e Reforma do despacho proferido naqueles autos, sendo que o Tribunal de Família e Menores de ... nada ordenou de novo a esse respeito, remetendo a sua posição para aquela que já havia sido tomada no despacho supracitado (Cfr. Docs. n.ºs 7 e 8 ora juntos).

19. Aqui chegados, importa mencionar que o processo de inventário aqui em causa, deu entrada no Cartório Notarial em 2019, tendo sido remetido para o Tribunal, ao abrigo do artigo 12.º, n.º 2 da Lei n.º 117/2019 de 13 de setembro, por o cabeça de casal, ora Recorrente, ter requerido a sua remessa para o Tribunal, em virtude de o mesmo ter estado parado, sem realização de diligências úteis há mais de seis meses, sendo que, não existe dúvida que a lei que se aplica ao processo de inventário em curso, após a remessa para o Tribunal, é a Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro e não o RJPI.

20. Com efeito, ao abrigo da aludida Lei, deixou de estar prevista a situação do incidente de prestação de contas do cabecelato, pelo que esta questão fica então prejudicada, não podendo o Tribunal de Família e Menores se pronunciar quanto a ela, por carecer de competência material.

21. Como tal, para que possa ser solicitada a prestação de contas àquele que administra bens ou interesses próprios ou alheios, manifesta-se como o meio processual adequado a ação de prestação de contas autónoma, prevista pelo artigo 941.º e ss. do CPC.

22. A conexão que permitia a afirmação da competência dos tribunais de família e menores para a tramitação e julgamento das ações de prestação de contas, e que decorria da circunstância de, à luz do antigo artigo 81.º da LOTJ, serem também os Tribunais competentes para tramitarem e decidirem os processos de inventário subsequentes ao divórcio, desapareceu quando a legislação aplicável deixou de prever a competência dos tribunais de família para a tramitação e julgamento dos processos de inventário subsequentes ao divórcio, passando a atribuir tal competência aos cartórios notariais.

23. Assim, face ao circunstancialismo existente e tendo ficado, entretanto, precludida ao Autor, ora Recorrente, a oportunidade de requerer, em sede de processo de inventário, o incidente de prestação de contas, uma vez que, ocorrendo a remessa do inventário ao Tribunal, ao abrigo da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, o Tribunal de Família e Menores deixa de ter competência para apreciar da requerida prestação de contas, então, o pretendido pelo ora Recorrente só poderia ser alcançado mediante a propositura de nova ação de prestação de contas nos Juízos Cíveis do Tribunal Judicial de..., o que veio a ocorrer, com a propositura da presente ação.

24. Sucede que, em face do supra exposto, tem vindo o ora Recorrente a deparar-se com diversas decisões, proferidas quer pelo Cartório Notarial, quer pelo Juízo Cível e quer pelo Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial de ..., a declararem-se materialmente incompetentes para conhecer da ação de prestação de contas.

25. Na realidade, não obstante as decisões proferidas no âmbito quer do processo de inventário (Proc. n.º 873/23.9...), quer do anterior processo cível de prestação de contas (Proc. n.º 2539/20.2...) apenas produzirem efeitos nesses processos, e não fora deles, em consonância com o preceituado no art. 100.º do CPC, a verdade é que, é este quadro factual muito específico que oferece ainda mais força ao entendimento defendido pelo Recorrente, nos termos do qual, no momento em que propôs a presente ação, o Tribunal materialmente competente para tramitar a mesma é, no nosso entendimento, de facto, o Juízo Cível e não os Juízos de Família e Menores de ....

26. Aqui chegados, importa aqui invocar a autoridade de caso julgado, a qual encerra em si duas vertentes que, embora distintas, se complementam: uma, de natureza positiva, quando faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões; a outra, de natureza negativa, quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro Tribunal.

27. Afigura-se, assim, ao Recorrente, salvo melhor entendimento por opinião em contrário, ter ficado assente que o tribunal competente para tramitar a presente ação de prestação de contas é o Juízo Cível.

28. Assim sendo, na constância do casamento, a Lei não prevê que o cônjuge que exerça a administração de facto preste contas da mesma ao outro cônjuge, conforme decorre do n.º 1 do art. 1681.º do C.C., salvo nos casos especificamente previstos nos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo, que não estão aqui em causa, sem prejuízo de poder responder pelos atos praticados em prejuízo daquele.

29. Havendo necessidade de prestação de contas pelo cônjuge que administre bens comuns, tal só poderá ser requerido pelo outro após a dissolução do casamento, sendo o ex-cônjuge administrador que detenha a posse de bens comuns do casal e deles colha os frutos obrigado a prestar contas ao outro ex-cônjuge.

30. Com efeito, a questão essencial, aqui, consiste então em saber se o Tribunal Judicial a quo é o competente, em razão da matéria, para julgar a presente ação de prestação de contas.

31. Prescreve o artigo 65.º do CPC que as leis de organização judiciária “determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”.

32. Como tal, por sua vez, na Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) – Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto – pode ler-se que, na ordem interna, a competência se reparte “pelos tribunais judiciais, segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território” (art. 37.º, n.º 1), determinando a competência em razão da matéria entre os Tribunais Judiciais, estabelecendo aí as causas que competem aos tribunais de competência específica.

33. Nesta consonância, da leitura do art. 122.º da LOSJ, sob a epígrafe “Competência relativa ao estado civil das pessoas e família”, verifica-se que a Lei não prevê a competência material dos Juízos de Família e Menores para tramitar a ação de prestação de contas intentada por um ex-cônjuge contra o outro, não podendo sequer integrar a alínea a) do n.º 1 do art. 122.º da LOSJ, pois a ação de prestação de contas não é uma ação de jurisdição voluntária a que se referem os artigos 986.º e seguintes do CPC, consubstanciando um processo especial de jurisdição contenciosa, para a qual têm competência material os Juízos Cíveis.

34. Na mesma senda, também a jurisprudência tem vindo a ser do entendimento de que são os Juízos Cíveis os competentes para tramitar a ação especial de prestação de contas, entendimento esse que o ora Recorrente sufraga, e que, salvo melhor opinião, se demonstra o mais acertado, pelo que, salvo o devido respeito, mal andou o Tribunal a quo com a prolação do despacho ora posto em crise e do qual se recorre.

35. Assim sendo, salvo o devido e merecido respeito, o Autor, ora Recorrente, discorda do Douto Despacho proferido pela Meritíssima Juiz a quo por ter decidido pela incompetência material do Juízo Cível do Tribunal Judicial de ... para julgar a presente lide.

36. É convicção do aqui Recorrente que, o que se passa no caso vertente, é que existe um indubitável erro de apreciação por parte do Tribunal a quo, na interpretação do quadro factual e jurídico existente, ao entender que não é materialmente competente para apreciar da ação especial de prestação de contas proposta pelo A., ora Recorrente.

37. Isto posto, consideramos que, a este respeito, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 40.º, 64.º, 65.º, 941.º e 986.º e ss. do Código de Processo Civil, os arts. 81.º, 37.º n.º 1 e 122.º da LOSJ (Lei da Organização do Sistema Judiciário), bem como o art. 211.º da Constituição da República Portuguesa.

38. EM SUMA, não se conforma, de forma alguma, o ora Recorrente, com o douto despacho em crise, aqui recorrido, por entender que, em face do direito aplicável e dos princípios norteadores do nosso processo civil, a única decisão possível seria a determinação do Tribunal a quo como materialmente competente para apreciar da ação de prestação de contas instaurada pelo aqui Recorrente, o que se requer.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que V/Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso do despacho de indeferimento da petição inicial e declaração de incompetência material do Tribunal a quo ser admitido e julgado procedente, e em consequência ser revogado o despacho recorrido, e, em sua substituição, ser proferido Despacho que considere o Tribunal a quo como o materialmente competente para tramitar a ação de prestação de contas, aqui em apreço, assim se fazendo inteira JUSTIÇA!”

6. Citada para a ação e para os efeitos do recurso, a R. apresentou contestação, pugnando pela improcedência da ação.

7. Não houve contra-alegações.

8. Foram colhidos os vistos legais.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. O objeto deste recurso é a determinação de qual o tribunal competente, quanto à matéria, para julgar a presente ação de prestação de contas.

2.1. Dos autos resulta, além do que consta no Relatório, a seguinte

Matéria de facto

1. Em 23.12.2016 o A. e a R. divorciaram-se, por mútuo consentimento, na Conservatória do Registo Civil, Predial e Comercial de ....

2. O ora A. e recorrente instaurou uma primeira ação de prestação de contas contra a R., em 27.08.2020, que correu termos sob o Proc. n.º 2539/20.2..., do Juiz... do Juízo Local Cível de ... do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, tendo sido proferida, em 02.12.2020, decisão que julgou o Tribunal materialmente incompetente por:

“…encontrando-se pendente no Cartório Notarial processo de inventário, a competência para apreciar e decidir das contas prestadas voluntariamente pelo cabeça de casal, ou cuja prestação venha a ser requerida pelos demais interessados, está atribuída aquele, o que determina a incompetência em razão da matéria do Tribunal, nos termos do artigo 64.º do Código de Processo Civil e do artigo 40.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

(…)

Desta forma, atentos os argumentos acima expendidos, ter-se-á de concluir pela incompetência material deste Juízo Local Cível de ..., para decidir da presente ação, e, nessa medida, absolver o réu da instância.”

3. Na sequência do referido em 2, foi ordenada a extração de certidão de todo o processado e a sua remessa ao Cartório Notarial do Exmo. Sr. Dr. CC, para os fins tidos por convenientes, o que se veio a concretizar mediante ofício datado de 18.05.2021.

4. Mediante despacho proferido a 01.3.2023, foi determinado, pela Sra. Notária DD, a remessa para o Tribunal, do processo de inventário n.º 5142/19, que correu termos no Cartório Notarial de ..., na sequência do divórcio do Autor, ora Recorrente, e da R.

5. O qual se encontra, na presente data a correr termos no Juiz ... do Juízo de Família e Menores de ... do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, sob o Proc. n.º 873/23.9...

6. Em 28.5.2023 foi proferido, no referido processo de inventário, o seguinte despacho judicial:

(…)

Como no inventário que corre no Tribunal, ao abrigo da Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, deixou de estar prevista a situação do incidente de prestação de contas do cabecelato, essa questão ficou prejudicada, não podendo o Tribunal de Família e Menores se pronunciar quanto a esta, porque não tem competência material.

Pois o artigo 122.º, n.º 2 da Lei da Organização Judiciária prevê que:

2- Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime destes processos.

Este artigo só confere competência aos tribunais de família para os processos de inventário, não estando prevista a competência para a ação de prestação de contas.

Por isso, tal competência pertence aos Juízos Cíveis.

(…)

Aliás, foi o próprio cabeça de casal, representado por ilustre advogada, que veio requerer a remessa do processo para o tribunal, sabendo que na Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, deixava de estar previsto o incidente de prestação de contas do cabecelato e que tal não iria ser apreciado pelo tribunal, tendo se conformado com essa decisão.

Pois a adaptação do processado, não permite ao Tribunal pronunciar-se sobre questões para as quais não tem competência material.

As partes se quiserem uma prestação de contas devem intentar ação de prestação de contas no Juízo Cível, que é o competente”

7. A decisão referida em 6 transitou em julgado.

2.2. O Direito

O exercício da função jurisdicional é repartido por diversos órgãos jurisdicionais, atendendo a diversos critérios entre os quais avulta o da matéria a que respeitam as respetivas causas.

Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art.º 211.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e art.º 40.º n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário – LOSJ – aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8, com as alterações publicitadas; art.º 64.º do CPC de 2013).

A instituição de diversos tribunais e a demarcação da respetiva competência de acordo com a natureza da relação substantiva pleiteada visa a fruição das vantagens inerentes à especialização, que são a maior celeridade e a maior adequação das decisões aí proferidas, por força da particular experiência e preparação dos respetivos magistrados e, quiçá, dos seus funcionários.

Assim, a Constituição da República Portuguesa prevê que “na primeira instância pode haver (…) tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas” (art.º 211.º n.º 2) e que “os tribunais da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça podem funcionar em secções especializadas” (n.º 4 do art.º 211.º). Tal possibilidade é reafirmada, como princípio geral, na LOSJ, no art.º 37.º n.º 1 (cfr. igualmente o art.º 65.º do CPC de 2013) e explicitada nos artigos 111.º e seguintes, através da enunciação dos tribunais judiciais de competência especializada (incluindo tribunais de competência territorial alargada) que poderão existir e da definição da respetiva área de competência. Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada (art.º 130.º n.º 1 da LOSJ).

Os tribunais de comarca desdobram-se em juízos, que, nos termos da classificação usada pelo legislador, podem ser de competência especializada, de competência genérica e de proximidade (art.º 81.º n.º 1 da LOSJ).

A distribuição da competência entre os juízos efetua-se de acordo com o território, a matéria e o valor (cfr. artigos 43.º n.º 5, 40.º n.º 2, 41.º, da LOSJ).

Exercendo a sua competência no âmbito da comarca, em parte ou na totalidade dela, podem existir, e existem, os juízos centrais cíveis, os juízos centrais criminais, os juízos de instrução criminal, os juízos de família e menores, os juízos do trabalho, os juízos de comércio, os juízos de execução, os juízos locais cíveis, os juízos locais criminais, os juízos locais de pequena criminalidade – todos qualificados pela lei como juízos de competência especializada (art.º 81.º n.º 3 da LOSJ) e, ainda, juízos de competência genérica, igualmente de natureza local (artigos 81.º n.º 1 e 130.º da LOSJ).

A competência dos juízos centrais cíveis define-se, não só pela matéria das causas (causas cíveis, isto é, de direito privado, que não sejam da competência de outros juízos especializados, territorialmente concorrentes), mas também pelo valor das ações e pela forma do processo: compete-lhes a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50 000,00; ações executivas de natureza cível de valor superior a € 50 000,00, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal com competência especializada em matéria de execuções; preparação e julgamento dos procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência – art.º 117.º da LOSJ.

Aos juízos de família e de menores compete julgar ações relativas ao estado civil das pessoas e família, avultando, por mais frequentes, as ações de separação de pessoas e bens e de divórcio, ações e execuções por alimentos entre cônjuges e ex-cônjuges, exercício de competências atribuídas aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens ou divórcio, atribuição da casa de morada de família (art.º 122.º da LOSJ). Mais compete a estes juízos o exercício das competências atribuídas aos tribunais relativamente a menores e filhos maiores (art.º 123.º da LOSJ). Acresce o exercício das competências em matéria tutelar educativa e de proteção (art.º 124.º da LOSJ).

Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada (art.º 130.º n.º 1 da LOSJ).

Em suma, a competência material destes juízos é residual face à dos juízos de competência especializada e dos tribunais de competência territorial alargada, na respetiva área territorial. Nestas circunstâncias, os juízos locais cíveis terão competência residual nas causas de natureza cível (incluindo causas de família e menores dessa natureza, de matéria laboral dessa natureza, de comércio), que caibam aos tribunais judiciais e não sejam da competência de outros juízos ou tribunais de competência territorial alargada.

A ação de prestação de contas constitui um processo com forma especial (art.º 941.º e seguintes do CPC), pelo que não caberá na área de competência dos juízos centrais cíveis (que apenas cuidam, no que concerne a ações declarativas, de processos com a forma comum – art.º 117.º da LOSJ).

Assim, apenas se figura, in casu, a atribuição de competência aos juízos de família ou aos juízos locais cíveis.

Sendo certo que a competência recairá nos juízos locais cíveis, se não houver texto legal que atribua a competência aos juízos de família.

Vejamos, então, o que consta no art.º 122.º da LOSJ:

Competência relativa ao estado civil das pessoas e família

1 - Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar:

a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;

b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;

c) Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio;

d) Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;

e) Ações intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966;

f) Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges;

g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.

2 - Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”.

Não se lobriga, na enunciação das causas cujo julgamento a lei atribui aos juízos de família, referência às ações de prestação de contas.

Porém, é sabido que poderá haver normas de natureza processual que contendam com a definição do tribunal que, em concreto, irá julgar o litígio, independentemente da sua natural jurisdição material, sobrelevando razões de economia e proximidade que prevalecerão - veja-se o disposto nas ações de honorários (art.º 73.º do CPC) e, precisamente, o disposto no art.º 947.º do CPC:

Prestação de contas por dependência de outra causa

As contas a prestar por representantes legais de incapazes, pelo cabeça de casal e por administrador ou depositário judicialmente nomeados, são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita”.

Conforme dão notícia Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pereira de Sousa em Código de Processo Civil anotado, vol. II, 2022, Almedina, páginas 421 e 421, esta norma (art.º 947.º do CPC, correspondente ao art.º 1019.º do CPC anterior) tem suscitado duas correntes interpretativas quanto ao âmbito da competência que delimita.

Para uma primeira corrente, o art.º 947.º do CPC não constitui uma norma de atribuição de competência em razão da matéria, mas de fixação de competência funcional dos tribunais, de modo que o processo corre por apenso a outro (regra de conexão ou dependência e não de competência), mas sem perturbar a competência em razão da matéria. Dentro desta linha de raciocínio, a prestação de contas pelo ex-cônjuge designado cabeça de casal no inventário pós-divórcio corre perante o juízo cível e não perante o juízo de família e menores competente para o processo de inventário correspondente, como acontece, de resto, nos casos de ação de honorários, nos termos do art. 73.º, ainda que para o efeito seja necessário requisitar o processo. Já quando se trate de prestação de contas por parte do tutor, o art.º 123.º, n.º 2, al. a), da LOSJ, assim como o art.º 1944.º, n.º 1, do CC, prescrevem explicitamente que a competência cabe ao tribunal que apreciou a tutela.

Outra corrente defende, porém, que a prestação de contas deve correr sempre por apenso ao processo que gerou a designação para o cargo de administração de bens em causa, independentemente das regras de competência material. Assim, tratando-se de contas a cargo do cônjuge designado cabeça de casal no inventário pós-divórcio, competente seria o juízo de família onde correu a ação de divórcio, argumentando que: a) a especificidade das questões pessoais e patrimoniais envolvidas justifica que a competência seja deferida ao juízo de família, por razões de celeridade (a individualização e valor dos bens já constarão no processo de inventário), harmonia e coerência das decisões judiciais; b) as leis de organização judiciária não constituem a fonte exclusiva da delimitação da competência material dos tribunais, podendo esta derivar também do CPC (art. 60.º, no 1); c) sendo atribuída aos Juízos de Família e Menores a competência para os inventários requeridos na sequência da declaração de divórcio por via judicial (art. 122.º, n.º 2, da LOSJ), em face da dependência determinada pelo art.º 947.º, essa competência abarca a ação de prestação de contas a cargo do ex-cônjuge cabeça de casal.

Ainda que se considere a segunda posição como a correta (como é o caso dos autores supracitados), caberá notar que, in casu, não está em causa a prestação de contas por parte do cônjuge cabeça de casal, como tal nomeado em processo judicial, mas a pretensão, emanada do cônjuge cabeça-de-casal, de que o outro ex-cônjuge preste contas, pelas razões específicas invocadas na petição inicial (o outro cônjuge foi o administrador de facto dos bens comuns indicados pelo A.).

Assim, pelo menos na sua literalidade, o art.º 947.º do CPC não resolve a questão da atribuição material de competência para julgar o presente litígio.

E, se a não resolve, concorda-se com o juízo formulado no acórdão do STJ de 08.10.2020, processo n.º 487/19.8T8PMS.S1, onde se evidenciou que o art.º 122.º da LOSJ não atribui aos juízos de família e menores competência material para conhecer das ações de prestação de contas entre ex-cônjuges.

Acresce, em desfavor da manutenção da decisão recorrida, um outro elemento.

É que o concreto tribunal a quem se pretende, por conexão, atribuir a competência para a apreciação da prestação de contas por parte do cônjuge Réu, já rejeitou essa competência, por despacho transitado em julgado, proferido no processo de inventário sub judice. Tal decisão tem força de caso julgado, no âmbito desse processo (artigos 100.º e 620.º n.º 1 do CPC). Isto é, não cabe alargar o âmbito do objeto do processo de inventário, ora pendente, em contrário do que, com trânsito em julgado, nele já foi decidido.

A revista é, pois, procedente.

III. DECISÃO

Pelo exposto, julga-se a revista procedente e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se a prossecução da ação, se outro obstáculo não existir, declarando-se o juízo cível competente, quanto à matéria, para julgar a causa.

Não tendo a R. contra-alegado, e tendo a A. pago as custas devidas pela interposição do recurso, não há lugar a mais custas, pelas quais seria responsável o recorrente, por do recurso ter beneficiado (artigos 527.º n.º 1, 529.º n.º 1 e 533.º do CPC).

Lx, 27.5.2025

Jorge Leal (Relator)

Maria Clara Sottomayor

Anabela Luna de Carvalho