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COOPERATIVA DE ENSINO
ABUSO DE DIREITO
QUESTÃO NOVA
ESTATUTOS
NULIDADES
Sumário
I - A exigência do pagamento de uma joia de 20.000,00 €, que figura no artigo 8.º dos Estatutos da ré, ofende o princípio da adesão voluntária e livre consagrado no artigo 3.º do Código Cooperativo II - Sendo considerado nulo esse preceito dos Estatutos da ré, o tribunal, contrariamente ao pedido pela autora, não pode fixar o valor da joia devida por esta em 2.000,00 € ou em "outro valor (…) de acordo com os princípios da equidade e da proporcionalidade", por, nesta matéria, apenas ter poderes de anulação.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I
AA instaurou a presente ação declarativa, que corre termos no Juízo Local Cível de Braga, contra EMP01... CRL, pedindo que seja:
"a) Declarada nula a estipulação pela Ré de uma joia de € 40.000,00 para a admissão de cooperadores. b) Condenada a Ré a admitir a A. como sua cooperadora, contra a subscrição dos 40 títulos de capital estatutariamente previstos, no valor de € 2.000,00 e o pagamento de uma joia de igual valor, € 2.000,00, ou de uma joia de outro valor que o Tribunal defina, de acordo com os princípios da equidade e da proporcionalidade, atento o valor dos títulos de capital cuja subscrição é exigível pelos Estatutos. c) Condenada a Ré ao pagamento da sanção pecuniária compulsória de € 100,00 por cada dia de atraso na admissão da A.."
Alegou, em síntese, que a ré é uma cooperativa que explora o estabelecimento de ensino denominado "Externato ...", de que é proprietária, e é aí professora desde ../../2002.
A 13 de novembro de 2020 requereu ao seu Conselho de Administração a sua admissão como cooperadora.
A 10 de maio de 2021 a ré comunicou-lhe que a sua pretensão reunia as "condições para ser deferida e aceite" e que para isso teria de subscrever 40 títulos de capital, tal como previsto nos Estatutos, ao valor unitário de 50,00 €, o que totalizava 2.000,00 €, e de pagar uma joia no valor de 40.000,00 €, a qual fora fixada em Assembleia Geral de 26 de março de 2021 (artigo 8.º. dos Estatutos). E fixou o dia 31 de maio de 2021, pelas 10 horas, para a "formalização da admissão".
Por considerar que a exigência da referida joia, atento o seu valor, viola os princípios cooperativos da liberdade de admissão e da equidade económica, previstos no artigo 3.º do Código Cooperativo e constitui mero expediente para vedar o acesso dos trabalhadores ao estatuto de cooperador, logo comunicou à ré que não aceitava pagar a joia de 40.000,00 €.
A ré contestou afirmando, em suma, que a joia de 40.000,00 € é válida e não viola quaisquer princípios de direito cooperativo, que o valor fixado se deveu às dificuldades pelas quais a ré passou aquando do termo dos contratos de associação celebrados com o Estado, que lhe causaram graves prejuízos financeiros, e que não visa restringir de forma injustificada a entrada de novos cooperadores.
Mais alegou que a autora atua com abuso de direito, uma vez que, em 2017, teve a possibilidade de ser admitida como cooperadora mediante o pagamento de apenas 2.000,00 € e que nessa ocasião recusou.
A autora respondeu impugnando grande parte do alegado pela ré e defendendo "que não se vislumbram os fundamentos do alegado abuso do direito".
A ré apresentou quatro articulados supervenientes, dando nota num deles que na Assembleia Geral de 18 de julho de 2022 foi deliberado rever o valor da joia de admissão, que foi então fixado em 20.000,00 €.
Realizou-se a audiência de julgamento e foi proferida sentença onde se decidiu:
"Julgando Atento tudo o exposto e nos termos das disposições legais supra citadas, julgo a ação parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência: a) Declaro a nulidade da estipulação pela Ré de uma joia de € 20.000,00 para a admissão de cooperadores. b) Condeno a ré a admitir a autora como sua cooperadora, contra a subscrição dos 40 títulos de capital estatutariamente previstos, no valor de € 2.000,00 e o pagamento de uma joia no valor de € 2.500,00. c) Absolvo a ré do demais peticionado."
Inconformada com esta decisão, dela a ré interpôs recurso findando a respetiva motivação com as seguintes conclusões:
I - A sentença revidenda enferma da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. e), do C.P.C. na parte em que conheceu do pedido formulado em a) do petitório da autora/recorrida - a saber: que seja [d]eclarada nula a estipulação pela Ré de uma joia de € 40.000,00 para a admissão de cooperadores.
II - A sentença revidenda cometeu erro de julgamento na questão de direito quanto ao tema da nulidade da estipulação da aqui apelante que fixou o valor da joia de admissão em 20.000,00 € e quanto à exceção de abuso do direito invocada na contestação.
Quanto à nulidade parcial da sentença
III - O Tribunal a quo não podia ter conhecido do pedido constante da al. a) do petitório da demandante, no sentido de ser declarada a nulidade da estipulação pela ré/recorrente de uma joia de € 40.000,00 para a admissão de cooperadores.
IV - À data da decisão, o valor da joia de admissão não era esse expressamente indicado na conclusão precedente, mas de 20.000,00€.
V - No circunstancialismo que resulta da conjugação entre si do teor das conclusões III e IV, e se pretendesse obter do Tribunal a declaração de nulidade da estipulação de uma joia de admissão de 20.000,00€, como é a que se encontra estabelecida, deveria a autora ter procedido a uma ampliação do seu pedido.
VI - A autora/recorrida nunca ampliou o seu pedido.
VII - O caso dos autos, no que à questão da nulidade parcial da sentença diz respeito, não configura uma situação de redução do pedido, como prefigurado na mesma.
VIII - Não obstante a alteração do valor da joia ter-se traduzido na redução de 40.000,00 € para 20.000,00 €, a expressão processual dessa alteração implicaria a ampliação do pedido, não a sua redução.
IX - No contexto da concreta causa de pedir alegada na petição da autora, o que se poderia considerar incluído nos limites do pedido formulado sob a respetiva al. a) seria se a ré/recorrente tivesse aumentado o valor da joia e não reduzido o seu importe - como sucedeu.
X - Em face da diminuição do valor da joia de admissão, a autora teria de ter ampliado o seu pedido de maneira a abranger a declaração de nulidade da estipulação de uma joia, agora, de 20.000,00 €.
XI - Conhecendo, como conheceu, do concreto pedido formulado em a) do petitório, o Tribunal recorrido proferiu uma condenação que suplantou o pedido, em clara violação do princípio do dispositivo.
XII - Em qualquer caso, estar-se-ia perante idêntica nulidade se a questão fosse de enquadrar como uma redução do pedido, porque a autora também não articulou nos autos qualquer redução do mesmo.
XIII - Por tudo o exposto nas conclusões precedentes, a decisão proferida pelo a quo neste conspecto consubstancia a nulidade prevista no artigo 615.º, al. e), do C.P.C., por violação das normas dos artigos 3.º, n.º 1, 260.º, 265.º, n.º 2, e 609.º, n.º 1, do C.P.C..
Quanto à questão da nulidade da estipulação da recorrente
XIV - A autora/recorrida requereu a sua admissão como cooperadora da recorrente em 13/novembro/2020.
XV - A autora não satisfez em tempo os requisitos legais previstos na lei e nos estatutos para ser admitida como cooperadora, uma vez que não pagou o valor da subscrição dos títulos cuja emissão solicitou.
XVI - Resulta da conjugação da matéria provada em 9.º), 10.º), 11.º) e 12.º) da decisão de facto da sentença que a recorrente comunicou à recorrida, em 10/maio/2021, que o seu requerimento de admissão tinha condições para ser deferido e aceite, logo indicando que era necessário, dentre o mais, pagar a quantia de 2.000,00 € pela subscrição dos títulos de capital na data da formalização da admissão, em 31/maio/2021.
XVII - A aquisição pela autora da qualidade de membro da cooperativa dependia do pagamento por esta do preço dos títulos, no valor global de 2.000,00 €, sendo certo que esse pagamento tinha prazo certo para ser efetuado - enfatiza-se, em 31/maio/2021, data da formalização da respetiva admissão.
XVIII - A autora nunca pôs em causa, na sua petição ou ao longo do processo, a legalidade da sua obrigação de pagar o preço dos títulos, a específica quantia em que se traduzia esse preço e a data indicada pela ré/recorrente para que ocorresse o pagamento.
XIX - Nos termos das disposições do artigo 83.º, n.º 1, do Código Cooperativo e do artigo 6.º n.º 2, dos Estatutos da apelante, a entrada de capital a subscrever pela autora teria de ser integralmente realizada em dinheiro no ato de admissão.
XX - Pese a existência de prazo certo para pagamento do preço da emissão dos títulos de capital, e da advertência que desse prazo e valor lhe foi feita, a autora nada pagou, transferiu ou consignou.
XXI - A autora limitou-se sempre a dizer, e apenas, que não concordava com o valor da joia de admissão.
XXII - O não pagamento do valor dos títulos de capital, com prazo certo marcado na lei cooperativa e nos estatutos, gerou a perda de interesse, deserção ou renúncia à admissão - ou, se se reputar de mais acertado, a caducidade da pretensão da autora de aceder à cooperativa.
XXIII - O sinalagma da investidura da autora/recorrida na qualidade de cooperadora da ré/recorrente é o pagamento do preço dos respetivos títulos de capital - eles próprios constituindo-se como o título da aquisição dessa qualidade.
XXIV - A obrigação de efetuar o pagamento do valor dos títulos de capital, por um lado, e a do da joia de admissão, por outro, constituem-se como obrigações autónomas, independentes e com fins e objetivos diversos - vide o teor dos artigos 83.º, n.º 1, 89.º, 90.º e 99.º do Código Cooperativo, e dos artigos 6.º, 8.º e 19.º e 41.º, n.º 2, dos Estatutos da ré.
XXV - O montante do preço dos títulos de capital emitidos e subscritos integra o valor variável do capital social, e o seu pagamento é obrigatório, tem prazo certo e determinado para ser efetuado (a saber, logo no ato da admissão), sendo reembolsado e restituído no momento da demissão ou em caso de liquidação do património da cooperativa.
XXVI - As quantias pagas a título de joia de admissão nunca revertem para o capital social, a sua existência é meramente eventual, podem ser pagas de uma só vez ou em prestações, integram as reservas legais, e nunca podem reembolsadas ou restituídas no momento da demissão ou em caso de liquidação do património da cooperativa.
XXVII - A joia não é, per se, condição de emissão e subscrição dos títulos, tratando-se, apenas, de um contributo a ser pago por cada novo cooperador.
XXVIII - A joia de admissão, configurando um contributo eventual devido pelo novo cooperador em função da sua admissão, não é nem consubstancia condição da própria admissão - esta dependente apenas da emissão, subscrição e pagamento dos títulos do capital social.
XXIX - Em atenção ao teor das conclusões XXIV a XVIII não poderá deixar de se entender que existiu a renúncia e deserção, ou caducidade, do requerimento de admissão da autora, datado de 13/novembro/2020.
XXX - Cônscia da extinção dos efeitos jurídicos do seu requerimento para ser admitida como cooperadora da recorrente, a autora impetrou, em b) do petitório, o decretamento judicial da sua admissão.
XXXI - Todavia, a admissão judicial referida na conclusão anterior não pode ter lugar, desde logo porque a autora/recorrida não apresentou (novo) requerimento para o efeito junto da recorrente.
XXXII - O Tribunal não podia ordenar, como ordenou, a admissão da recorrida como cooperadora porque isso é matéria da competência, em primeiro lugar, do conselho de administração, e, depois, em recurso, da Assembleia Geral da recorrente - sem prejuízo da subsequente impugnação judicial da deliberação tomada por essa assembleia magna.
XXXIII - Não só a recorrente não está obrigada ou vinculada a nenhuma admissão, como uma tal admissão integra decisão que compete, em exclusivo, a si - em atenção às normas dos artigos 47.º, al. d), 38.º, al. k), e 32.º, n.º 6, do Código Cooperativo.
XXXIV - Não existe qualquer direito potestativo ou subjetivo da autora/recorrida a ser admitida como cooperadora apenas porque é professora da cooperativa ou nela exerce a sua atividade de forma estável.
XXXV - De acordo com o disposto no artigo 10.º, n.º 1, dos Estatutos da recorrente, o acesso da autora à condição de cooperadora está dependente, para além dos demais requisitos nessa norma apontados, de apresentação de requerimento e subsequente aprovação do mesmo pelo conselho de administração - em conformidade, de resto, com o estabelecido no artigo 19.º, n.º 1, do Código Cooperativo.
XXXVI - Em atenção ao teor das conclusões XXX a XXXV, a sentença revidenda cometeu erro de julgamento e de interpretação das normas aplicáveis ao caso vertente, violando o que se mostra determinado nos artigos 19.º, 32.º, n.º 6, 38.º, al. k), 47.º, al. d), 83.º, 89.º, 90.º, 96.º, 97.º e 99.º do Código Cooperativo e nos artigos 6.º, 8.º, 10.º e 19.º dos Estatutos.
XXXVII - A única interpretação possível dos comandos legais e estatutários referidos na conclusão precedente é a de que o pedido formulado pela autora em b) do seu libelo não podia ser decretado pelo a quo porque o mesmo estava sujeito à apresentação de prévio requerimento de admissão junto da cooperativa ré - a ser apreciado pelo conselho de administração e, depois, em sede de eventual recurso, pela Assembleia Geral, com possibilidade de subsequente impugnação judicial. Isto dito,
XXXVIII - Em 08/julho/2010 havia sido instituído, na forma da ata n.º ...74, um sistema dual para o valor da joia de admissão: (i) se o candidato a cooperador acedesse à relação cooperativa por via da emissão dos títulos de capital teria de pagar uma joia de 60.000,00€, e (ii) se o fizesse através da transmissão de títulos já previamente emitidos, adquiridos de um cooperador, teria de pagar à cooperativa apenas 2.000,00€.
XXXIX - A deliberação referida na conclusão antecedente teve o efeito de condicionar os candidatos a cooperadores a negociar a aquisição dos títulos junto de quem o fosse já, pagando quantia muito superior à estabelecida nos artigos 89.º do Código Cooperativo e 19.º dos Estatutos.
XL - Em atenção à deliberação referida em XXXVIII, os títulos de capital da recorrente transacionavam-se nas costas da cooperativa, por valores muito acima do nominal, enquanto esta embolsava, apenas, 2.000,00€ de joia de admissão.
XLI - Ainda por causa do teor da deliberação referida em XXXVIII, a partir de 1996 e até 2022, todos os novos cooperadores que acederam à relação cooperativa fizeram-no por via da transmissão de títulos, numa verdadeira dança de lugares que nunca deu lugar à emissão de novos títulos - i.e., sem que se aumentasse o número de cooperadores e sem que se potenciasse o espírito cooperativo.
XLII - Para se colocar fim nesse sistema dual, potencialmente violador do princípio da porta aberta acolhido no artigo 3.º do Código Cooperativo, foi revogada a deliberação de 08/julho/2010, mediante uma outra, datada de 26/março/2021, vertida na ata n.º ...49, por via da qual foi instituído um regime de joia única, no valor de 40.000,00 €, fosse qual fosse o modo de admissão à cooperativa.
XLIII - Radicava à alteração de regime referida na conclusão precedente a muito premente necessidade de financiamento acessório que a recorrente vivia então - como se mostra provado de 25.º) a 57.º) da decisão de facto, especialmente em 51.º).
XLIV - Em nova Assembleia Geral da recorrente, de cariz extraordinário, realizada em 18/junho/2022, foi deliberado proceder-se a uma redução do valor da joia de admissão, que passou a ser de 20.000,00 €.
XLV - Em função do novo valor da joia, estabelecido nos termos descritos na conclusão anterior para se fazer face ao pior período da vida da recorrente, foram apresentados 11 requerimentos de admissão pela via da emissão de títulos de capital - requerimentos que foram aprovados. XLVI - No lapso de tempo contado de agosto/2022 a agosto/2024 foram apresentados 11 pedidos de admissão de novos cooperadores que ganharam assento na Assembleia Geral da cooperativa e que pagaram a joia de 20.000,00€ - facto inédito na vida da recorrente.
XLVII - Por força da deliberação referida na conclusão XLIV, a recorrente pôs fim (i) aos negócios realizados nas costas da cooperativa, (ii) ao esquema de placa giratória na transmissão dos títulos de capital, (iii) à perda de financiamento e (iv) à violação do princípio da porta aberta. Por outro lado, XLVIII - A representação da EMP02... compete aos seus órgãos próprios, de que é expoente executivo máximo o seu diretor, como resulta do disposto nos artigos 26.º, 27.º e 28.º dos respetivos estatutos.
XLIX - Foi o diretor da EMP02... que subscreveu as várias credenciais que certificam a legal constituição e o regular funcionamento da recorrente.
L - O parecer emitido pelo gabinete jurídico da EMP02... é completamente infundado quando afirma que a joia de admissão tem natureza meramente subsidiária.
LI - Não existe qualquer norma ou comando, seja no Código Cooperativo, seja no DL n.º 441-A/82, de 06 de novembro, seja, até, no Código das Sociedades Comerciais, que sustente a natureza subsidiária da joia de admissão.
LII - Ao contrário do que afirma o parecer do gabinete jurídico da EMP02..., não existe qualquer disposição legal que estabeleça a indexação entre o valor da joia e essoutro do capital social das cooperativas.
LIII - Mostra-se consolidada, já desde 1996, por força do disposto no artigo 25.º da Lei n.º 51/96, de 07 de setembro, uma clara opção normativa no sentido da completa autonomização da figura da joia de admissão relativamente ao capital social.
LIV - Em atenção ao disposto nos artigos 16.º, n.º 1, al. f), e 90.º, n.º 1, do Código Cooperativo, a joia de admissão tem natureza facultativa.
LV - O valor da joia de admissão deve ser perspetivado à luz da necessidade de financiamento acessório da reserva legal das cooperativas. LVI - A absoluta necessidade de recapitalizar as reservas legais da recorrente - através, designadamente, da joia de admissão a satisfazer por quem a queira integrar como cooperador - está profusamente provada de 25.º) a 51.º) da decisão de facto.
LVII - A factualidade adquirida nos autos desmente categoricamente que a estipulação de um valor de joia de admissão no montante de 20.000,00€ configure qualquer violação do princípio da porta aberta.
LVIII - O artigo 3.º do Código Cooperativo determina, a respeito do princípio da adesão voluntária e livre, que o acesso às cooperativas deve ter lugar, prima facie, sem discriminações de sexo, sociais, políticas, raciais ou religiosas - nenhuma referência fazendo a paradigmas de ordem financeira.
LIX - Não existe na deliberação da recorrente de 18/junho/2022 qualquer foco discriminatório, já que o valor da joia nela estabelecido deve ser satisfeito por quem queira integrar a cooperativa, independentemente do modo de aceder a essa relação.
LX - Em homenagem ao princípio cooperativo da gestão democrática pelos seus membros, a competência para fixar o valor da joia compete exclusivamente à respetiva assembleia magna.
LXI - A joia de admissão é um instrumento privilegiado de garantia da equidade entre os cooperadores fundadores, os cooperadores que lhes sucederam e os que sobrevirão a estes, já que permite equiparar o contributo de todos para o sucesso da cooperativa.
LXII - Em atenção ao teor das conclusões formuladas de L a LXI, forçoso é concluir que o valor da joia deve ser encontrado no justo equilíbrio entre todos os princípios cooperativos definidos no artigo 3.º do Código Cooperativo e as características matriciais da figura da joia de admissão - isto é, (i) a sua natureza facultativa e (ii) o seu horizonte referencial nas necessidades de financiamento das reservas legais.
LXIII - O caso dos autos revela esplendorosamente que a estipulação da recorrente que fixou o valor da joia em 20.000,00 € não constitui qualquer obstáculo à admissão de novos cooperadores, em face dos 11 requerimentos que foram apresentados entre agosto/2022 e agosto/2024.
LXIV - O resultado imediato da deliberação da recorrente de 18/junho/2022 está à vista nos autos: em 2017 abandonaram a cooperativa 8 cooperadores e entre 2022 e 2024 entraram 11, pagando efetivamente uma joia de 20.000,00 €.
LXV - Considerando o teor das conclusões XXXVIII a LXIV, entende a recorrente que a sentença revidenda interpretou mal, assim as violando, as normas dos artigos 9.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil, 3.º, 16.º, n.º 1, al. f), 90.º, 96.º, n.º 2, 97.º, n.º 2, al. a), e 99.º do Código Cooperativo, 17.º, n.º 2, do DL n.º 441-A/82, de 06 de novembro, 8.º dos Estatutos da recorrente e 18.º, 26.º, 27.º e 28.º dos Estatutos da EMP02.... Acresce que,
LXVI - O valor do salário do candidato a cooperador para se aquilatar da legalidade da deliberação da recorrente que fixou a joia em 20.000,00 € não tem expressão legal.
LXVII - A joia em causa nestes autos é devida em função da admissão a uma cooperativa de ensino, na qual os respetivos membros cooperadores prestam - ou podem prestar, assim o queiram - o seu trabalho ao longo de toda a vida profissional.
LXVIII - A recorrida vence o mesmo salário que o presidente do conselho de administração da recorrente, e quantia francamente superior a qualquer dos 11 novos cooperadores admitidos entre 2022 e 2024.
LXIX - Os factos que integram a conclusão antecedente terão o condão de demonstrar que o valor do salário auferido pela autora não poderá ser considerado um obstáculo ao princípio da adesão voluntária e livre consagrado no artigo 3.º do Código Cooperativo. Por outro lado,
LXX - É ilegal a fixação do valor da joia por referência a critérios de um ordenamento estrangeiro, como sucede com o apelo ao teor do artigo 52.º, n.º 2, da Ley Estatal de Cooperativas.
LXXI - Não existe vazio legal na ordem jurídica portuguesa, nem fatores de conexão, que justifiquem o lançar de mão de uma lei a que subjaz a regulação de interesses específicos da realidade de Espanha.
LXXII - A acrescer ao concluído em LXX e LXXI, verifica-se que o a quo fundamenta o valor da joia de admissão num critério de indexação ao capital social, quando o Código Cooperativo português deixou de prever a fixação do valor da joia por referência ao capital social já em 1996.
LXXIII - A sentença recorrida violou, a respeito da questão tratada nas conclusões LXX a LXXII, as normas dos artigos 1.º, n.ºs 1 e 2, 5.º, n.º 1, 9.º, n.ºs 2 e 3, e 35.º do Código Civil, dos artigos 3.º e 90.º do Código Cooperativo e do artigo 17.º, n.º 2, do DL n.º 441-A/82, de 06 de novembro.
LXXIV - O Tribunal a quo não podia fixar um valor de joia de admissão porque essa é competência que a lei defere apenas à Assembleia Geral da recorrente, enquanto emanação dos 2.º, 3.º e 4.º princípios previstos no artigo 3.º do Código Cooperativo - sem prejuízo da subsequente e eventual sindicância judicial, nos termos do artigo 32.º, n.º 6, do Código Cooperativo.
LXXV - Entendendo o a quo que a estipulação pela recorrente de uma joia de admissão de 20.000,00€ é nula, então, deveria ter devolvido à respetiva Assembleia Geral o dever de fixar um outro.
LXXVI - Ao decidir da forma diferente da enunciada na conclusão anterior, o Tribunal recorrido violou as normas dos artigos 3.º, 16.º, n.º 1, al. f), e 90.º, n.º 1, do Código Cooperativo, o artigo 17.º, n.º 2, do DL n.º 441-A/82, e o artigo 8.º, n.º 1, dos Estatutos.
Quanto ao abuso do direito
LXXVII - A recorrida enjeitou em 2017 fazer-se cooperadora da recorrente através da transmissão de títulos, pagando, então, a joia 2.000,00 € - o que configura um comportamento positivo e expresso da autora, integrador do factum proprium.
LXXVIII - Em 2021, meros 4 anos volvidos, a autora apresenta-se em juízo pedindo a condenação judicial da recorrente a admiti-la como cooperadora contra o pagamento de uma joia de idênticos 2.000,00€ - no que consubstancia o venire contra o facto próprio praticado em 2017.
LXXIX - Ao não deferir a exceção de abuso do direito, o Tribunal a quo procedeu a uma interpretação incorreta da norma do artigo 334.º do Código Civil, subsumindo-lhe de forma errada os factos provados.
LXXX - A melhor interpretação e aplicação do instituto do abuso do direito impõe, no caso vertente, a consideração do comportamento antagónico e censurável da autora quando, em 2017, recusou fazer-se cooperadora contra o pagamento de uma joia de 2.000,00 €, para, em 2021, pedir em juízo a condenação da ré a aceitá-la como sua cooperadora contra o pagamento de uma joia do mesmo valor de 2.000,00 €.
A autora contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.
O Meritíssimo Juiz pronunciou-se sustentando "que não se verifica a apontada nulidade".
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 4, 637.º n.º 2 e 639.º n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil[1], delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:
a) "a sentença revidenda enferma da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. e), do C.P.C. na parte em que conheceu do pedido formulado em a) do petitório da autora/recorrida"[2];
b) "ao não deferir a exceção de abuso do direito, o Tribunal a quo procedeu a uma interpretação incorreta da norma do artigo 334.º do Código Civil, subsumindo-lhe de forma errada os factos provados"[3].
c) "existiu a renúncia e deserção, ou caducidade, do requerimento de admissão da autora, datado de 13/novembro/2020"[4], pelo que "a admissão judicial (…) não pode ter lugar (…) porque a autora/recorrida não apresentou (novo) requerimento para o efeito junto da recorrente"[5];
d) "a factualidade adquirida nos autos desmente categoricamente que a estipulação de um valor de joia de admissão no montante de 20.000,00 € configure qualquer violação do princípio da porta aberta" e "não constitui qualquer obstáculo à admissão de novos cooperadores"[6];
e) "o Tribunal a quo não podia fixar um valor de joia de admissão porque essa é competência que a lei defere apenas à assembleia-geral da recorrente, enquanto emanação dos 2.º, 3.º e 4.º princípios previstos no artigo 3.º do Código Cooperativo - sem prejuízo da subsequente e eventual sindicância judicial, nos termos do artigo 32.º, n.º 6, do Código Cooperativo. Entendendo o a quo que a estipulação pela recorrente de uma joia de admissão de 20.000,00 € é nula, então, deveria ter devolvido à respetiva assembleia-geral o dever de fixar um outro"[7];
f) "o Tribunal não podia ordenar, como ordenou, a admissão da recorrida como cooperadora porque isso é matéria da competência, em primeiro lugar, do conselho de administração, e, depois, em recurso, da assembleia geral"[8].
II
1.º
Estão provados os seguintes factos:
1.º) A Ré é uma cooperativa de ensino, constituída em ../../1983, encontrando-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial ..., sob o n.º ...16.
2.º) No exercício da sua atividade a Ré explora um estabelecimento, denominado "Externato ...", de que é proprietária, estabelecimento dedicado ao ensino, educação e formação, autorizado pelo Ministério da Educação através do Alvará n.º ...04, emitido em ../../1976.
3.º) A autora é professora licenciada pela Universidade ... para o "Ensino de Português e Inglês".
4.º) A autora foi admitida ao serviço da Ré em 01/09/2002.
5.º) Desde então, ininterruptamente, a autora presta o seu trabalho à Ré, lecionando aquelas disciplinas.
6.º) Trabalho que sempre prestou com horário completo.
7.º) Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 10 dos Estatutos da Ré "podem ser cooperadores os docentes da cooperativa e do estabelecimento de ensino de que esta é titular que requeiram ao Conselho de Administração que os admita".
8.º) A A. requereu, em 13/11/2020, ao seu Conselho de Administração da ré a sua admissão como cooperadora.
9.º) Em 10 de maio de 2021 a Ré comunicou à A. que a sua pretensão de ser admitida como cooperadora reunia as "condições para ser deferida e aceite".
10.º) E que para isso a A. apenas teria que subscrever 40 títulos de capital, tal como previsto nos Estatutos (n.º. 2 do art.º. 6.º.), ao valor unitário de 50,00 €, o que totalizava 2.000,00 €.
11.º) Teria ainda a A. que pagar uma joia, no valor de 40.000,00 €, joia que fora fixada em Assembleia Geral de 26 de março de 2021 (art.º. 8.º. dos Estatutos).
12.º) Foi fixado o dia 31 de maio de 2021, pelas 10 horas, para "formalização da admissão" da A..
13.º) A A. logo comunicou à Ré que não aceitava pagar a joia de € 40.000,00.
14.º) Em resposta a Ré informou a A. de que mantinha a sua posição quanto àquele valor, mais dizendo que o mesmo até tinha sido alterado de € 60.000,00 para € 40.000,00 na referida assembleia geral de 26 de março.
15.º) Até ../../2021, nunca nenhum dos atuais cooperadores da Ré, nem nenhum seu ex-cooperador pagou qualquer das referidas quantias a título de joia nem qualquer outra que se lhes aproximassem.
16.º) Entre 1983, data da sua constituição, e cerca de 1995, os cooperadores da ré acederam à relação cooperativa através da emissão de participações no capital social, que, assim, foi sendo sucessivamente aumentado,
17.º) Tendo pago, pelo menos alguns deles, a quantia de PTE 10.000,00$/EUR. 50,00 € a título de joia,
18.º) A partir de 1996 os novos membros passaram a ser admitidos pela via da transmissão, inter vivos, dos títulos de capital,
19.º) O que determinou o pagamento, pelo menos a partir de dada altura da respetiva joia de admissão pelo montante de 2.000,00 €.
20.º) Em 08/07/2010, foi estabelecido que o valor da joia seria de 60.000,00 € para os casos de admissão de novos cooperadores através da emissão de títulos de capital
21.º) E de 2.000,00 € para as situações em essas admissões ocorressem através da transmissão de títulos de capital.
22.º) A Assembleia Geral da ré, por deliberação de 26/03/2021, fixou o valor da joia de admissão de novos cooperadores em 40.000,00 €, sem possibilidade de aquisição de títulos por outra via, nomeadamente por transmissão de títulos de capital.
23.º) Em tempos, especialmente na década de 90 do século passado e até cerca de 2010, estavam instituídos benefícios como planos de reforma, bolsas de estudo, seguros de saúde e de vida, subsídios de refeição e de doença, pagamento do 15.º mês e transporte escolar gratuito para os filhos dos cooperadores.
24.º) Atualmente, os cooperantes não têm qualquer regalia em relação aos demais trabalhadores da cooperativa ré.
25.º) A ré celebrou, de modo sucessivo e ininterrupto desde 1984 até ao ano letivo de 2017/2018, contratos de apoio financeiro com o Estado Português, na modalidade de "Contratos de Associação", para os 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e para o ensino secundário, assim se suportando, financeiramente, com as verbas que, por via da execução de tais contratos, lhe eram entregues, e sem prejuízo dos cortes e reduções que vinham sendo feitos ao valor dessas verbas desde 2010/2011, e que foram causa de acumulação de constrangimentos financeiros nos orçamentos e contas da ré.
26.º) No ano letivo de 2015/2016 a cooperativa ré foi confrontada com o fim desses "Contratos de Associação", no âmbito de decisão política que teve ampla discussão e notoriedade pública,
27.º) Sendo que, os últimos contratos então celebrados, ademais de já escassos, viram a respetiva execução terminar no ano letivo 2018/2019.
28.º) Diretamente relacionado com o fim do financiamento estatal, a ré sofreu, imediatamente, uma redução drástica do número de alunos inscritos,
29.º) Já que no ano letivo de 2015/2016 a população estudantil era composta por 1397 alunos,
30.º) Em 2016/2017 por 1254 alunos,
31.º) Em 2017/2018 era integrada por 735 alunos,
32.º) Tendo atingido um mínimo de 726 alunos no ano letivo de 2018/2019.
33.º) Tendo tido necessidade de reestruturar totalmente a sua organização e a ajustar o seu modelo de negócio e financiamento,
34.º) Passando a um regime exclusivamente privado, assente no pagamento de propinas pelos alunos.
35.º) Tudo isto ocorreu em contexto difícil, desde logo, pelo facto de a Cooperativa estar inserida no tecido rural da freguesia ..., que dista cerca de 10 km da cidade ...,
36.º) Cujos potenciais destinatários - isto é, alunos - se integravam, e integram, em agregados familiares de classes baixas e médias-baixas,
37.º) E de rescisões de contratos de trabalho com docentes e não docentes, nos quais despendeu valores superiores a 1.540.000,00 €, no pagamento das correspondentes compensações,
38.º) Sobressaindo os anos de 2015 e 2017, em que atingiram, respetivamente, EUR. 492.462,45 € e EUR. 611.152,89 €.
39.º) No ano civil de 2014 a ré teve resultados negativos de EUR. 117.362,15 €,
40.º) Em 2015 de (-) EUR. 269.646,63 €,
41.º) Em 2016 de (-) EUR. 206.612,39 €,
42.º) Em 2017 acumulou um resultado negativo de 796.110,50 €,
43.º) Em 2018 de (-) EUR. 250.479,11 €,
44.º) E em 2019 de (-) EUR. 141.182,27 €
45.º) E em 2020 de (-) EUR. 40.718,94 €,
46.º) A ré foi condenada judicialmente a pagar ao Estado Português a quantia de EUR. 183.442,66 €,
47.º) Estando em curso ação judicial tendente à declaração da prescrição do direito reconhecido ao Estado,
48.º) A ré foi notificada de despacho exarado pelo Ministro da Educação, de 8/01/2020, determinando a reposição nos cofres do Estado de 1.046.500,00 €,
49.º) Por ter beneficiado de financiamento indevido no ano letivo de 2015/2016 no âmbito dos sobreditos "Contratos de Associação" relativos a 13 das suas turmas,
50.º) Correndo, atualmente, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga a respetiva ação de impugnação.
51.º) Foi devido a essas dificuldades económicas que a ré fixou o montante da joia na quantia de 40 mil euros.
52.º) No ano de 1989 o capital da ré estava disperso por 35 cooperadores,
53.º) Em 1993 por 34 cooperadores,
54.º) Em 1995 por 29 cooperadores,
55.º) Situação que se manteve até 2002, altura em que a ré tinha 28 cooperadores,
56.º) Passando para um universo de 27 membros em 2016,
57.º) Em 2017 abandonaram o projeto cooperativo 8 cooperadores da ré, que assim passou a ser controlada por 19 membros.
58.º) Aquando da instauração da ação, a ré tinha o seu capital disperso por 17 cooperadores, detendo ainda, como participações próprias, os títulos que foram de 2 membros que também se desligaram da cooperativa.
59.º) A autora teve a oportunidade de, em 2017, ser admitida como membro de pleno direito da cooperativa ré,
60.º) À data, através da transmissão dos títulos que eram detidos pela cooperadora BB
61.º) E de acordo com as normas estatutárias então em vigor, a admissão da autora importaria para a mesma, nessa altura, o pagamento de EUR. 2.000,00€ a título da respetiva joia,
62.º) Tendo a autora recusado integrar em 2017 a cooperativa.
63.º) A autora aufere o vencimento de € 1.796,50.
Articulado Superveniente de 06/01/2023
64.º) Em 18/07/2022, realizou-se sob iniciativa do seu Conselho de Administração uma Assembleia Geral, de cariz extraordinário, da ré, na qual foi deliberado rever o valor da joia de admissão, que foi fixado em EUR. 20.000,00 €.
65.º) Após essa data, foram apresentados junto da ré quatro requerimentos subscritos por outros tantos professores em exercício de funções no seu estabelecimento de ensino, a saber: (i) pela professora CC, em 16/Agosto/2022, (ii) pela professora DD, em 18/Agosto/2022; (iii) pela professora EE, em 20/Setembro/2022; e (iv) pelo professor FF, em 11/Outubro/2022, tendo em vista a admissão dos respetivos subscritores como seus membros cooperadores,
66.º) requerimentos que, depois de apreciados, foram deferidos,
67.º) Tendo os agora cooperadores aceitado pagar, em conformidade, o valor da joia de admissão de EUR. 20.000,00 €, ademais, naturalmente do da emissão dos correspondentes títulos.
Articulado Superveniente de 20/04/2023
68.º) Depois de 06/01/2023, a ré admitiu como seus membros cooperadores mais quatro professores em exercício de funções no seu estabelecimento de ensino, a saber: (i) a professora GG, admitida em 10/janeiro/2023; (ii) a professora HH, admitida em 11/janeiro/2023; (iii) a professora II, admitida em 12/janeiro/2023; e (iv) a professora JJ, em 15/março/2023
69.º) Os sobreditos quatro novos membros pagaram já junto da ré o valor da joia de admissão de EUR. 20.000,00 € - ademais do da emissão dos correspondentes títulos.
Articulado Superveniente de 19/10/2023
70.º) Já depois 20/abril/2023, a ré admitiu à relação cooperativa mais dois professores em exercício de funções no seu estabelecimento de ensino, a saber, as professoras KK e LL, ambas admitidas em 06/setembro/2023
71.º) As duas novas cooperadoras pagaram já junto da ré o valor da joia de admissão de EUR. 20.000,00 € - ademais do valor da emissão dos correspondentes títulos.
Articulado Superveniente de 12/09/2024
72.º) Em 14/agosto/2024 a ré admitiu à relação cooperativa a professora MM, a qual pagou já junto da ré o valor da joia de admissão de EUR. 20.000,00 € - ademais do valor da emissão dos correspondentes títulos.
73.º) A EMP02..., por via da sua Direção, emitiu em 20/07/2023, sob solicitação da ré, a credencial cooperativa, da qual consta que: [a]tento o disposto no n.º 1 do Art.º 117.º do Código Cooperativo, incumbe à EMP02... para a Economia Social, Cooperativa de Interesse Público de Responsabilidade Limitada, a emissão de credencial comprovativa da legal constituição e regular funcionamento das cooperativas, e que [v]erificado o dever de comunicação previsto no Art.º 116.º do Código Cooperativo, a presente Credencial comprova a legal constituição / regular funcionamento da Cooperativa em apreço, não havendo conhecimento de que esta desrespeite o Código Cooperativo, a legislação complementar sectorial, ou outra legislação aplicável, cumprindo, assim, os requisitos para os efeitos de acesso ao apoio técnico e financeiro, bem como aos benefícios fiscais atribuídos por entidades públicas, conforme o disposto no n.º 2 do Art.º 117.º do Código Cooperativo.
74.º) Em 12/09/2024, a EMP02... emitiu nova credencial à ré, onde consta o seguinte: Verificado o dever de comunicação previsto no Art.º 116.º do Código Cooperativo, a presente Credencial comprova a legal constituição / regular funcionamento da Cooperativa em apreço, não havendo conhecimento de que esta desrespeite o Código Cooperativo, a legislação complementar sectorial, ou outra legislação aplicável, cumprindo, assim, os requisitos para os efeitos de acesso ao apoio técnico e financeiro, bem como aos benefícios fiscais atribuídos por entidades públicas, conforme o disposto no n.º 2 do Art.º 117.º do Código Cooperativo.
75.º) Em 14/11/2023, o Gabinete Jurídico da EMP02... emitiu parecer com o seguinte teor: 1. O valor da joia de admissão, fixado pela cooperativa EMP01..., CRL (20 000 euros) continua a ser manifestamente exorbitante à luz dos princípios e regras fundamentais a que as cooperativas, pela sua natureza e finalidades, estão especialmente vinculadas, ainda que se reconheça terem existido reduções significativas dos anteriores valores, de 60 000 e 40 000 euros; 2. O atual valor resulta de repetidas iniciativas persuasivas da EMP02... junto da cooperativa, no sentido de adequada conformação, tendo em consideração a sua natureza, finalidades e inserção numa perspetiva de equitativa contribuição financeira dos cooperadores. 3. Com efeito, na última comunicação efetuada com a cooperativa, foi mantido o entendimento de que seria necessário continuar a reduzir o montante da joia para valores mais equilibrados, em consonância com o espírito e finalidades legais; 4. A lei cooperativa comete à joia de admissão natureza meramente subsidiária e facultativa, sendo que o seu valor deve respeitar os princípios da proporcionalidade e necessidade, entendidos, respetivamente, numa ótica adicional ou acessória ao capital subscrito pelos cooperadores, bem como da necessidade de financiamento das reservas legal e da educação e formação cooperativas, para as quais reverte: de modo exclusivo para a primeira, ou para as duas, na percentagem que for determinada nos estatutos ou pela assembleia geral ( art.º 96.2 e 97.2.a, CCoop. ); 5. Não é suposto, igualmente, que tal prestação de obrigação única possa ser servir de ilícito e desnecessário expediente para obstaculizar a admissão de cooperadores, propiciando a violação do princípio cooperativo da liberdade de admissão (art.º 3.º-1.º, CCoop.); 6. Na verdade, a liberdade de admissão não constitui um direito absoluto. Pode, sempre, a cooperativa, invocar fundamentação objetiva para recusar a admissão de cooperadores, com sejam, designadamente, a idoneidade do candidato ou a estrutura ou recursos funcionais da cooperativa; 7. Na tradição legislativa das cooperativas, sempre esteve presente aquela figura, com o seu carácter de facultatividade e subsidiariedade, como veremos. 8. A primeira lei cooperativa, denominada Lei Basilar de Cooperativas (Lei de 2 de julho de 1867) ou Lei de Andrade Corvo (ministro que a propôs) determinava no seu art.º 5.º que «o capital destas sociedades é formado por quotas semanais ou mensais, pagas pelos sócios e fixadas nos estatutos. Pode também nos estatutos ser convencionado o pagamento de um direito de admissão ou joia, unicamente para constituir fundo de reserva.; 9. No mesmo sentido, o Código Comercial de 1888, denominado Código de Veiga Beirão, que a passou a regular as cooperativas, estabelece, no mesmo sentido, no art.º 211.º, que «é lícito estipular que o pagamento do capital se faça por quotas semanais, mensais ou anuais e, que além destas, satisfaça o sócio um direito de admissão ou joia, destinado a constituir o fundo de reserva»; 10. Entretanto, a partir de 1980, as cooperativas são reguladas pelo primeiro Código Cooperativo, sendo que a matéria atinente à joia constava do art.º 27.º, fixando-se, pela primeira vez, um limite objetivo do montante, nos termos seguintes: «os estatutos da cooperativa podem exigir, para a admissão dos cooperadores, o pagamento de uma joia, desde que o seu montante não exceda um vigésimo do capital cooperativo, podendo a joia ser paga de uma só vez ou em prestações, periódicas ou não»; 11. Com a revisão operada em 1983, através da Lei n.º 1/83 de 10.01, os critérios limitativos para a fixação da joia foram aperfeiçoados, estipulando-se que «1. Os estatutos da cooperativa podem exigir, para a admissão de cooperadores, a realização de uma joia, pagável de uma só vez ou em prestações periódicas, cujo montante será definido por uma percentagem sobre o capital social reportado ao último balanço aprovado (…) sendo que «o valor percentual a que se refere o número anterior não poderá exceder: a) 5% do capital social, quando este não exceder 1 milhão de escudos; b) 3% do capital social, quando este for superior a 1 milhão de escudos e não exceder 3 milhões de escudos; c) Quando o capital social for superior ao máximo da alínea anterior, o valor da joia não poderá exceder 2 vezes o capital mínimo previsto no artigo 20.º.3 - A legislação complementar aplicável ao ramo agrícola do sector cooperativo ou os estatutos poderão prever para as cooperativas agrícolas outra forma de Oxação do valor da joia, nomeadamente tendo por base o capital individual subscrito, desde que não exceda os máximos previstos no número anterior»; 12. Em 1996 foi aprovado o segundo Código Cooperativo, constando a matéria da joia do art.º 25.º, omitindo-se quaisquer critérios objetivos, tais como constavam do CCoop 1980: «os estatutos da cooperativa podem exigir a realização de uma joia de admissão, pagável de uma só vez ou em prestações periódicas»; 13. O atual Código Cooperativo manteve a mesma redação, no art.º 90.1; 14. Uma das possíveis explicações para a omissão de critérios limitativos expressos nos dois últimos Códigos prende-se com a constatação de que, na quase totalidade das cooperativas, ou não é exigível qualquer joia, ou o seu valor é simbólico, diminuto ou razoável; 15. Também, que uma leitura sistemática e integrativa do Código Cooperativo e dos princípios e normais nele vertidos, constituiria orientação suficiente para o entendimento da matéria.
2.º
Na perspetiva da ré "a sentença revidenda enferma da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. e), do C.P.C. na parte em que conheceu do pedido formulado em a) do petitório da autora/recorrida".
Fundamenta a sua posição dizendo que "o Tribunal a quo não podia ter conhecido do pedido constante da al. a) do petitório da demandante, no sentido de ser declarada a nulidade da estipulação pela ré/recorrente de uma joia de € 40.000,00 para a admissão de cooperadores [porque] à data da decisão, o valor da joia de admissão não era esse (…), mas de 20.000,00 €". Por isso, "se pretendesse obter do Tribunal a declaração de nulidade da estipulação de uma joia de admissão de 20.000,00 €, como é a que se encontra estabelecida, deveria a autora ter procedido a uma ampliação do seu pedido".
Ora, por força do princípio consagrado no artigo 609.º n.º 1, o juiz "não pode proferir sentença que transponha os limites do pedido, quer no que respeita à quantidade quer quanto ao próprio objeto do mesmo."[9] Tem de haver "correspondência entre o requerido e o pronunciado"[10]; "o objeto da sentença deve (…) coincidir com o objeto do processo, tal como ele foi configurado pelas partes nos articulados"[11].
Por isso, o artigo 615.º n.º 1 e) diz-nos que, se o juiz condenar em "quantidade superior ou em objeto diverso do pedido", essa decisão está ferida de nulidade por ultra petita. E "o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da ação, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido."[12]
Na situação em apreço, para além de um terceiro pedido, a autora pede que seja:
"a) Declarada nula a estipulação pela Ré de uma joia de € 40.000,00 para a admissão de cooperadores. b) Condenada a Ré a admitir a A. como sua cooperadora, contra a subscrição dos 40 títulos de capital estatutariamente previstos, no valor de € 2.000,00 e o pagamento de uma joia de igual valor, € 2.000,00, ou de uma joia de outro valor que o Tribunal defina, de acordo com os princípios da equidade e da proporcionalidade, atento o valor dos títulos de capital cuja subscrição é exigível pelos Estatutos."
À data da propositura da ação o valor da joia exigida pela ré era de 40.000,00 €. Porém, por decisão da Assembleia Geral da ré já na pendência da lide (18-7-2022), "foi deliberado rever o valor da joia de admissão, que foi fixado em EUR. 20.000,00 €"[13].
Esse facto foi trazido para os autos num articulado superveniente da ré e quanto a ele a autora respondeu dizendo que essa joia "continua a revelar-se exagerada e desproporcionada relativamente ao valor do capital, que se manteve, o que impede que a maioria dos interessados possam candidatar-se a tal estatuto" e que ela "é manifestamente exagerada, ilícita e sem qualquer justificação"[14].
Fica assim claro que a autora manteve a sua pretensão inicial de somente lhe ser exigido "o pagamento de uma joia de (…) € 2.000,00, ou de uma joia de outro valor que o Tribunal defina, de acordo com os princípios da equidade e da proporcionalidade".
Neste contexto, o pedido da ré abrange qualquer valor superior a 2.000,00 €; é esse o efeito prático-jurídico pretendido pela autora. Significa isso que, como se diz na sentença recorrida, "apesar de a autora pedir a declaração de nulidade da estipulação pela Ré de uma joia de € 40.000,00 para a admissão de cooperadores, considera-se que o pedido se estende ao novo valor fixado, de € 20.000,00." Admitindo a hipótese de o tribunal poder estabelecer um concreto valor da joia, nesse caso o que ele não podia fazer era fixá-la abaixo da fasquia dos 2.000,00 €.
Por conseguinte, não ocorre a apontada nulidade.
3.º
A ré entende que a autora atua com abuso do direito porque:
"De acordo com as normas estatutárias vigentes em 2017, data em que à autora foi oferecida a possibilidade de adquirir os títulos de uma cooperadora, o valor da joia de admissão era, para essa modalidade de acesso à relação cooperativa, de 2.000,00 €. Ou seja, o exato valor que a autora pugnou na sua petição que deveria ser fixado para a joia de admissão. Não o quis. Em 2017 a autora recusou integrar a cooperativa ré/recorrente. Calculistamente, à distância, a autora esperou que outros colegas seus - os cooperadores com assento na assembleia-geral entre 2017 e 2021 - lutassem noite e dia para inverter a acumulação de prejuízos na ordem das centenas de milhares de euros, a sangria de alunos, a implementação e reconversão do modelo de negócio da cooperativo num colégio privado... Meros 4 anos volvidos interpõe a presente demanda, pedindo o decretamento da sua admissão contra o pagamento do mesmíssimo valor a título de joia de admissão que teria pago em 2017.
(…) Ou seja, a autora agiu em juízo em claro venire contra factum proprium, cuja invocação segue reiterada nesta instância recursória."
Assim, conclui que "ao não deferir a exceção de abuso do direito, o Tribunal a quo procedeu a uma interpretação incorreta da norma do artigo 334.º do Código Civil, subsumindo-lhe de forma errada os factos provados"[15].
Face aos factos 59 a 62, sabemos que "a autora teve a oportunidade de, em 2017, ser admitida como membro de pleno direito da cooperativa ré. À data, através da transmissão dos títulos que eram detidos pela cooperadora BB e de acordo com as normas estatutárias então em vigor, a admissão da autora importaria para a mesma, nessa altura, o pagamento de EUR. 2.000,00 € a título da respetiva joia, tendo a autora recusado integrar em 2017 a cooperativa".
E também sabemos que não se provou que "a autora esperou que outros colegas seus - os cooperadores com assento na assembleia-geral entre 2017 e 2021 - lutassem noite e dia para inverter a acumulação de prejuízos na ordem das centenas de milhares de euros, a sangria de alunos, a implementação e reconversão do modelo de negócio da cooperativo".
O abuso do direito verifica-se "quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, todavia no caso concreto aparece exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça"[16]. Por isso o abuso do direito"deve funcionar como limite ao exercício de direitos quando a atitude do seu titular se manifeste em comportamento ofensivo do sentido ético-jurídico da generalidade das pessoas em termos clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica"[17]. No abuso do direito "a ilegitimidade não resulta da violação formal de qualquer preceito legal concreto, mas da utilização manifestamente anormal, excessiva do direito"[18]. E "para haver abuso de direito é necessário a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito"[19].
E pode «ocorrer abuso do direito, na modalidade do "venire contra factum proprium", quando existem condutas contraditórias do seu titular a frustrar a confiança criada pela contraparte em relação à situação futura»[20], pois o «"venire contra factum proprium" configura uma violação qualificada do princípio da confiança»[21], sendo certo que "as relações entre as pessoas pressupõem um mínimo de confiança sem a qual não seriam possíveis"[22].
No nosso caso regista-se que em 2017 a autora teve a possibilidade de ser admitida como cooperadora, que então a joia era de 2.000,00 € e que recusou assumir essa qualidade.
Desconhecemos os motivos por que a autora nessa ocasião assim decidiu.
Então, não podemos afirmar que a autora, face ao que presentemente pretende, tem uma conduta efetivamente contraditória com a adotada em 2017 e que nessa data, com a sua conduta, criou na ré a expetativa de que nunca quereria ser cooperadora.
Não sendo conhecidas as circunstâncias que rodearam a sua decisão de 2017, não se pode concluir que, quando cerca de três anos depois (novembro de 2020), solicita ao Conselho de Administração da ré a sua admissão como cooperadora está a exercer um direito "em termos clamorosamente ofensivos da justiça"; o mesmo é dizer que a autora não atua com abuso do direito.
4.º
Nas conclusões XXIX e XXXI a ré sustenta que:
- "existiu a (…) deserção, ou caducidade, do requerimento de admissão da autora, datado de 13/novembro/2020";
- "a admissão judicial (…) não pode ter lugar (…) porque a autora/recorrida não apresentou (novo) requerimento para o efeito junto da recorrente";
Examinada a sentença recorrida constatamos que nenhuma destas questões foi lá conhecida. E verificamos que elas não foram suscitadas na contestação. Dito por outras palavras, não só o tribunal a quo não se pronunciou quanto a estas questões, como também a defesa da ré não se funda nelas.
Como é sabido, os recursos "destinam-se a permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação da decisão recorrida"[23] e "não a conhecer de questões novas, salvo se estas forem de conhecimento oficioso e não estiverem já resolvidas por decisão transitada em julgado"[24]. "As questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos."[25] Os recursos constituem, assim, um instrumento processual para reapreciar questões concretas, de facto ou de direito, que se consideram mal decididas e não para conhecer questões não apreciadas e discutidas no tribunal a quo, sem prejuízo das que são de conhecimento oficioso[26]. Com efeito, "o recurso permite a reapreciação (e não apreciação ex novo) de decisões de uma instância inferior, ou seja, numa «fórmula impressiva, no recurso não se decide, com rigor, uma causa, mas apenas questões específicas e delimitadas que tenham já sido objeto de decisão anterior pelo tribunal a quo e que um interessado pretende ver reapreciadas»."[27]
E importa não esquecer que o n.º 1 do artigo 573.º consagra o princípio de que "toda a defesa deve ser deduzida na contestação". Nessa medida, "os atos (maxime as alegações de factos ou os meios de provas) que não tenham lugar no ciclo próprio ficam precludidos. Devendo os fundamentos da ação ou da defesa ser formulados todos de uma vez num certo momento, a parte terá de deduzir uns a título principal e outros in eventu - a título subsidiário, para a hipótese de não serem atendidos os formulados em primeira linha."[28]
Consequentemente, não pode este tribunal ad quem conhecer das questões acima identificadas, que foram colocadas nas conclusões XXIX e XXXI.
5.º
Segundo a ré, "existiu a renúncia (…) do requerimento de admissão da autora, datado de 13/novembro/2020". Como já havia dito no artigo 26.º da contestação, a ré "entendeu não pagar [o valor da joia de 40.000,00 €], assim renunciando à admissão que requereu e que lhe foi deferida".
Provou-se que, perante a exigência do pagamento de uma joia desse valor, a autora "logo comunicou à Ré que não aceitava pagar a joia de € 40.000,00"[29]. Quer isso dizer que a manifestação de vontade então expressa pela autora se limitou à não aceitação do montante que lhe foi solicitado. Nada mais. Dessa divergência entre a autora e a ré não decorre, necessariamente, uma renúncia à pretensão de ser admitida como cooperadora. Aliás, a instauração deste processo evidencia justamente o contrário[30].
Nada há nos factos provados que suporte a ideia de que a autora renunciou ao seu pedido de 13 de novembro de 2020, pelo que não se pode reconhecer tal renúncia.
6.º
Na ótica da ré, pelos motivos que expõe, e que é inútil aqui repetir, "a factualidade adquirida nos autos desmente categoricamente que a estipulação de um valor de joia de admissão no montante de 20.000,00 € configure qualquer violação do princípio da porta aberta" e "não constitui qualquer obstáculo à admissão de novos cooperadores".
Como bem dá nota o tribunal a quo:
"Nas palavras de Rui Namorado, "[a]s cooperativas são organizações de uma natureza empresarial atípica, cujos membros visam, por seu intermédio, a prossecução de objetivos comuns"[31]. E explicita este Autor que "[e]sses objetivos podem ser, não só de natureza económica, mas também social ou cultural", sendo a principal energia que anima as cooperativas a cooperação entre os seus membros. A Lei n.º 119/2015, de 31 de agosto, Código Cooperativo (CCoop), no seu art. 2º, n.º 1, diz que as cooperativas são pessoas coletivas autónomas, de livre constituição, de capital e composição variáveis, que, através da cooperação e entreajuda dos seus membros, com obediência aos princípios cooperativos, visam, sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles. Esta definição tem, implícitos, dois elementos: um elemento positivo — o fim mutualístico — e um elemento negativo — a ausência de um fim lucrativo[32]. O objeto social da cooperativa surge intimamente ligado à sua vocação mutualista, pelo que toda a atividade da cooperativa visa a promoção dos interesses dos cooperadores, ou seja, a satisfação das suas necessidades económicas, sociais e culturais. De facto, diversamente de uma sociedade comercial, as cooperativas desenvolvem uma atividade económica que prossegue um fim mutualístico e não lucrativo. As cooperativas não têm um fim próprio ou autónomo face aos seus membros, sendo um instrumento de satisfação das necessidades individuais (de todos e de cada um) dos cooperadores, que, no seio dela, e através dela, trabalham, consomem, vendem e prestam serviços[33]. Quanto à sua natureza jurídica, na doutrina portuguesa podem identificar-se três diferentes orientações: uma primeira corrente, defende o enquadramento das cooperativas nas associações em sentido restrito; para outros, a cooperativa deve ser qualificada como uma sociedade; de acordo com uma terceira corrente, a cooperativa constitui um tertium genus, ao lado das sociedades civis e comerciais[34].
(…) Na abordagem do fenómeno cooperativo é fundamental considerar a especificidade cooperativa que consiste na ausência de escopo lucrativo."
O Meritíssimo Juiz salienta ainda que as cooperativas estão sujeitas, para além do mais, aos vários princípios enunciados no artigo 3.º do Código Cooperativo, dos quais se destaca o da "adesão voluntária e livre" ou da porta aberta, segundo o qual "as cooperativas são organizações voluntárias, abertas a todas as pessoas aptas a utilizar os seus serviços e dispostas a assumir as responsabilidades de membro, sem discriminações de sexo, sociais, políticas, raciais ou religiosas."
No que se reporta à joia, o n.º 1 do artigo 90.º do Código Cooperativo estabelece que "os estatutos da cooperativa podem exigir a realização de uma joia de admissão, pagável de uma só vez ou em prestações". Quer isso dizer que a existência de joia tem natureza facultativa.
Neste ponto, como lembra Deolinda Aparício Meira, na citação que consta na decisão recorrida[35], "deveremos ter sempre presente o Princípio cooperativo da adesão voluntária e livre, que impedirá o estabelecimento de condições de admissão extremamente gravosas para os aspirantes a sócios. Assim, o estabelecimento de quantias elevadas para a joia constituiria um obstáculo ao direito de admissão". Na verdade, "além das discriminações expressamente referidas no citado art. 3º, consideramos que também existem discriminações de carácter económico, quando, por exemplo, uma cooperativa exige aos seus aderentes um capital individual ou uma joia de tal modo elevados que não podem deixar de ser entendidos como barreiras discriminatórias ou restrições que podem, artificialmente, encobrir uma vontade de não partilhar por parte dos que já estão na cooperativa"[36].
A este propósito devemos ter presente a posição da EMP03... para a Economia Social - Cooperativa de Interesse Público de Responsabilidade Limitada EMP02... que consta no facto 75.
Aqui abrimos um parêntesis para lembrar que a EMP02... tem funções de supervisão relativamente às cooperativas, das quais sobressai o processo de credenciação anual destas, que é da sua competência nos termos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 4.º do Decreto-lei n.º 282/2009, de 7 de outubro, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-lei n.º 39/2017, de 4 de abril[37], e do n.º 1 do artigo 117.º do Código Cooperativo[38].
Fechado o parêntesis, regista-se que a EMP02... considera que:
- "1. O valor da joia de admissão, fixado pela cooperativa EMP01..., CRL (20 000 euros) continua a ser manifestamente exorbitante à luz dos princípios e regras fundamentais a que as cooperativas, pela sua natureza e finalidades, estão especialmente vinculadas, ainda que se reconheça terem existido reduções significativas dos anteriores valores, de 60 000 e 40 000 euros; 2. O atual valor resulta de repetidas iniciativas persuasivas da EMP02... junto da cooperativa, no sentido de adequada conformação, tendo em consideração a sua natureza, finalidades e inserção numa perspetiva de equitativa contribuição financeira dos cooperadores. 3. (…) na última comunicação efetuada com a cooperativa, foi mantido o entendimento de que seria necessário continuar a reduzir o montante da joia para valores mais equilibrados, em consonância com o espírito e finalidades legais; 4. (…) o (…) valor [da joia] deve respeitar os princípios da proporcionalidade e necessidade, entendidos, respetivamente, numa ótica adicional ou acessória ao capital subscrito pelos cooperadores, bem como da necessidade de financiamento das reservas legal e da educação e formação cooperativas, para as quais reverte: de modo exclusivo para a primeira, ou para as duas, na percentagem que for determinada nos estatutos ou pela assembleia geral (art.º 96.2 e 97.2.a, CCoop.); 5. Não é suposto, igualmente, que tal prestação de obrigação única possa ser servir de ilícito e desnecessário expediente para obstaculizar a admissão de cooperadores, propiciando a violação do princípio cooperativo da liberdade de admissão (art.º 3.º-1.º, CCoop.)".
Vemos, assim, que esta entidade qualifica a joia de 20.000,00 € como "manifestamente exorbitante" e que entende que a ré deve "continuar a reduzir o montante da joia para valores mais equilibrados". E não esqueçamos que exorbitante significa "que excede os justos limites; excessivo; desmedido; imoderado; que não é razoável"[39].
Ora, a EMP02... adota tal posição conhecendo a concreta situação da ré, pois cabe-lhe de emitir anualmente credencial comprovativa do regular funcionamento desta.
Por outro lado, face aos considerandos formulados pela ré nas suas conclusões, recorda-se que não está em causa a legalidade da exigência do pagamento de uma joia, exigência que a autora aceita. O que se questiona é a legalidade do montante da joia. E a circunstância de, entretanto, terem sido "apresentados 11 pedidos de admissão de novos cooperadores que ganharam assento na assembleia-geral da cooperativa e que pagaram a joia de 20.000,00 €"[40] não converte em legal o que eventualmente ofender o disposto no Código Cooperativo.
Aqui chegados, acompanha-se o tribunal a quo quando afirma que, "tendo em conta os factos e a doutrina citada, entende-se que o valor de € 20.000,00 de joia é excessivo. Trata-se de um valor bastante elevado."
Assim, a exigência do pagamento de uma joia de 20.000,00 €, que figura no artigo 8.º dos Estatutos da ré, é nula por violação do princípio da adesão voluntária e livre consagrado no artigo 3.º do Código Cooperativo.
7.º
Admitindo este cenário, a ré advoga que "o Tribunal a quo não podia fixar um valor de joia de admissão porque essa é competência que a lei defere apenas à assembleia-geral da recorrente, enquanto emanação dos 2.º, 3.º e 4.º princípios previstos no artigo 3.º do Código Cooperativo - sem prejuízo da subsequente e eventual sindicância judicial, nos termos do artigo 32.º, n.º 6, do Código Cooperativo. Entendendo o a quo que a estipulação pela recorrente de uma joia de admissão de 20.000,00 € é nula, então, deveria ter devolvido à respetiva assembleia-geral o dever de fixar um outro."
Neste ponto, se é verdade que esta questão não foi suscitada na contestação[41], não é menos verdade que na sua sentença o tribunal a quo concluiu, pelo menos tacitamente, ter competência para estabelecer um outro valor da joia e, na sequência disso, fixou o exato montante da mesma e condenou "a ré a admitir a autora como sua cooperadora, contra (…) o pagamento de uma joia no valor de € 2.500,00."
Quer isso dizer que na decisão recorrida, aquando da interpretação do direito, por considerar ter poderes para tal, o tribunal a quo assumiu a competência para definir um concreto valor da joia; entendeu que isso era possível. Deste modo, ao defender em sede de recurso que o tribunal a quo não o podia fazer, isto é, que há aqui um error iuris, a ré não coloca uma questão nova, pois, como resulta do que acima já se deixou dito, os recursos visam "modificar as decisões impugnadas mediante o reexame das questões nelas equacionadas"[42] (sublinhado nosso).
Assim, ao agora conhecer tal matéria - "o Tribunal a quo não podia fixar um valor de joia de admissão" - este tribunal ad quem estará a reponderar um segmento da decisão recorrida.
Como já se viu, o n.º 1 do artigo 90.º do Código Cooperativo estabelece que "os estatutos da cooperativa podem exigir a realização de uma joia de admissão, pagável de uma só vez ou em prestações." Daqui resulta, desde logo, que a joia e o seu valor só podem ser definidos pelo órgão competente para aprovar os estatutos da cooperativa. E segundo o n.º 2 do artigo 3.º do mesmo código, "as cooperativas são organizações democráticas geridas pelos seus membros, os quais participam ativamente na formulação das suas políticas e na tomada de decisões", acrescentando o seu n.º 4 que "as cooperativas são organizações autónomas de entreajuda, controladas pelos seus membros".
Por outro lado, quando se coloca em causa a legalidade de uma norma estatutária o tribunal tem somente um controlo de anulação; o tribunal não se pode substituir ao órgão competente da sociedade ou da cooperativa e redefinir para o caso concreto que se encontra a julgar, em termos que considere legais, o preceito que considerou ilegal.
Por conseguinte, o tribunal não pode estabelecer qual o valor da joia que a autora deverá pagar.
Ao anular a norma dos Estatutos que determina que a joia é de 20.000,00 €, cabe à ré decidir o que depois acontecerá. Se nada faz ou se aprova um outro valor (inferior) que respeite o artigo 3.º do Código Cooperativo.
Assim, o pedido formulado sob b) está votado ao insucesso.
Consequentemente, fica prejudicado o conhecimento da questão colocada na conclusão XXXII.
III
Com fundamento no atrás exposto julga-se parcialmente procedente o recurso, pelo que se:
a) revoga o segmento da sentença recorrida que condenou a ré "a admitir a autora como sua cooperadora, contra a subscrição dos 40 títulos de capital estatutariamente previstos, no valor de € 2.000,00 e o pagamento de uma joia no valor de € 2.500,00";
b) absolve a ré do pedido formulado pela autora sob b);
c) mantém no mais a decisão recorrida.
Custas pela autora e pela ré, na proporção de ½ para cada parte.
Notifique.
António Beça Pereira
Joaquim Boavida
Afonso Cabral de Andrade
[1] São deste código todos os artigos mencionados adiante sem qualquer outra referência. [2] Cfr. conclusão I. [3] Cfr. conclusão LXXIX. [4] Cfr. conclusão XXIX. [5] Cfr. conclusão XXXI. [6] Cfr. conclusões LVII e LXIII. [7] Cfr. conclusões LXXIV e LXXV. [8] Cfr. conclusão XXXII. [9] Pais de Amaral, Direito Processual Civil, 8.ª Edição, pág. 390. [10] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 374. [11] Remédio Marques, Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 2.ª Edição, pág. 643. [12] Ac. STJ de 7-4-2016 no Proc. 842/10.9TBPNF.P2.S1, www.gde.mj.pt. [13] Cfr. facto 64. [14] Cfr. respostas de 29-8-2023 e de 29-1-2024. [15] Cfr. conclusão LXXIX. [16] Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 3.ª Edição, pág. 63. [17] Ac. STJ de 18-6-02, Jurisprudência Selecionada de Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, pág. 321. [18] Ana Prata, Dicionário Jurídico, 5.ª Edição, Vol. I, pág. 13. [19] Ac. STJ de 25-6-98, Jurisprudência Selecionada de Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, pág. 340. [20] Ac. STJ de 17-1-02, Proc. 3778/01, Ref. 199/2002, www.colectaneade jurisprudencia.com. [21] Ac. Rel. Porto de 19-1-96, Proc. 838/96, Ref. 10216/1996, www.colectaneade jurisprudencia.com. Neste sentido Ana Prata, Dicionário Jurídico, 5.ª Edição, Vol. I, pág. 1523, Ac. STJ de 25-5-99, Proc. 409/99, Ref. 4235/1999 e Ac. Rel. Lisboa de 20-5-99, Proc. 362/99,Ref. 10011/1999, ambos em www.colectaneade jurisprudencia.com e Ac. STJ de 11-12-2012 no Proc. 116/07.2TBMCN.P1.S1, Ac. STJ de 12-11-2013 no Proc. 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1 e Ac. STJ de 11-12-2013 no Proc. 629/10.9TTBRG.P2.S1, estes em www.gde.mj.pt. [22] Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 5.ª Edição, pág. 20. [23] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 2008, pág. 23. [24] Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 566. [25] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª Edição, pág. 98. [26] Neste sentido veja-se ainda Ac. STJ de 24-4-2012 no Proc. 424/05.7TYVNG.P1.S, Ac. STJ de 5-5-2016 no Proc. 1571/05.0TJPRT-C.P1.S1, Ac. STJ de 3-11-2016 no Proc. 73/14.9T8BRG.G1.S1, Ac. STJ de 8-10-2020 no Proc. 4261/12.4TBBRG-A.G1.S1, Ac. STJ de 15-12-2022 no Proc. 125/20.6T8TND.C1-A.S1, Ac. STJ de 2-2-2023 no Proc. 314/19.6YHLSB.L2.S1, Ac. STJ de 25-5-2023 no Proc. 1864/21.0T8AGD-A.P1.S1, todos em www.gde.mj.pt, Ac. STJ de 14-7-2020 no Proc. 989.19.6T8BCL.G1.S1, jurisprudencia.csm.org.pt/ecli e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª Edição, pág. 156. [27] Ac. STJ de 4-5-2023 no Proc. 96/20.9PHOER.L1.S1, www.gde.mj.pt. [28] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 382. A este propósito veja-se Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 670 e os Ac. STJ de 13-5-2014 no Proc. 16842/04.5TJPRT.P1.S1 e de 30-9-2014 no Proc. 232/06.8TBBRR.L2.S1, www.gde.mj.pt. [29] Cfr. facto 13. [30] E o mesmo se diz quanto ao email a que a ré se refere no artigo 200.º da contestação. [31] O Essencial sobre Cooperativas, INCM, janeiro de 2013, p. 9. [32] Assim, Deolinda Meira, "As Joias e o Princípio da Adesão Voluntária e Livre Comentário ao Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25 de março de 2016", in Cooperativismo e Economia Social Núm. 39 (2016-2017), pp. 293-311, p. 297. [33] Continuamos a seguir o texto da autora Deolinda Meira. [34] Assim, Costeira da Rocha, "Ação de Anulação de Deliberação da Assembleia Geral de uma Cooperativa — Caducidade, Competência e Natureza Jurídica da Cooperativa - Breve anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31 de janeiro de 2008", in Cooperativismo e Economia Social, nº 31 (2008-2009), pp. 255-260, p. 258. [35] O Regime Económico das Cooperativas no Direito Português, Vida Económica, 2009:212. [36] Ac. STJ de 12-6-2017 no Proc. 860/13.5TJVNF, www.dgsi.pt. Este acórdão vem mencionado numa nota de rodapé da decisão recorrida. [37] "Emitir, anualmente, credencial comprovativa da legal constituição e regular funcionamento das cooperativas". [38] "Compete à EMP02... emitir, anualmente, credencial comprovativa da legal constituição e regular funcionamento das cooperativas." [39] www.infopedia.pt. [40] Cfr. conclusão XLVI. [41] Note-se que não se trata de uma exceção. [42] Ac. Rel. Lisboa de 5-5-2020 864/18.1YLPRT.L1-7, www.dgsi.pt.