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ACIDENTE DE VIAÇÃO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
LEGITIMIDADE PASSIVA
Sumário
I - A legitimidade das partes, incluindo em todas as situações em que se considere que existe preterição de litisconsórcio necessário ativo ou passivo, configura um pressuposto processual que a lei classifica expressamente como exceção dilatória, de conhecimento oficioso, e cuja verificação dá lugar à absolvição do réu da instância, sem prejuízo dos casos em que tal exceção é sanável. II - O Fundo de Garantia Automóvel responde perante os lesados em acidentes de viação ocorridos em Portugal, quando não exista seguro obrigatório de responsabilidade civil para o veículo causador, independentemente da natureza dos danos causados. III - Já em relação aos acidentes causados por veículo não identificado (em que o responsável é desconhecido), o Fundo de Garantia Automóvel satisfaz, até ao valor do capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, as indemnizações que sejam devidas por danos corporais - artigo 49.º, n.º 1, al. a), do Dec. Lei n.º 291/2007 - e por danos materiais, quando exista, em simultâneo, direito a uma indemnização por danos corporais significativos - artigo 49.º, n.º 1, al. c), e n.º 2 - sendo que, mesmo nestes casos, se o lesado beneficiar da cobertura de um contrato de seguro automóvel de danos próprios, a reparação dos danos do acidente que sejam subsumíveis nos respetivos contratos incumbe às empresas de seguros, ficando a responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel limitada ao pagamento do valor excedente ao do capital seguro - artigo 51.º, n.º 2. IV - Ainda que resulte do alegado pelo autor/recorrente na petição inicial que o mesmo terá sofrido um acidente de viação, causado por outro veículo que não identifica, desconhecendo a identidade do interveniente nesse sinistro, bem como do proprietário do automóvel que o provocou, resulta manifesto que as circunstâncias alegadas na presente ação não conferem ao FGA a titularidade da relação material controvertida, desde logo porque o autor alega apenas a existência de danos materiais (danos para o seu automóvel, mormente na lateral direita daquele, e o prejuízo emergente da privação do veículo), incindindo sobre estes a indemnização reclamada, mais alegando que o evento causador dos danos reclamados na presente ação é suscetível de desencadear a cobertura do risco de danos próprios prevista no contrato de seguro celebrado com a ré seguradora.
Texto Integral
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães: I. Relatório AA intentou ação declarativa comum contra o EMP01... Plc - Sucursal Em Portugal, pedindo a condenação da ré: a) no pagamento do montante de 17.134,00 € a título de indemnização pela verificação de um dos riscos cobertos pelo contrato de seguro automóvel em vigor (colisão); b) no pagamento do montante de uma indemnização pela privação do valor da indemnização que é devida ao autor e que resulta da sua privação do uso de um veículo equivalente ao que conduzia e que ficou privado, cujo montante nesta data ascende a 8.070,00 € (30,00 € X 269 dias), bem como nos valores que diariamente se vencerem à razão de 30,00 € dia até que a ré proceda ao pagamento da indemnização devida ao autor, a liquidar em incidente de liquidação posterior à sentença; c) no pagamento de juros de mora calculados à taxa legal desde a data em que ocorreu o sinistro, e/ou, se assim se não entender, e para os valores vincendos ao sinistro, desde a citação e até que ocorra o efetivo e integral pagamento, ou desde que se vençam os valores ocorrendo posteriormente à citação.
Alega para o efeito, em suma, que era proprietário do veículo de marca ... ... do ano de 2013, com a matrícula ..-PE-.., relativamente ao qual celebrou com a ré contrato de seguro que incluía coberturas facultativas de danos próprios, tais como os decorrentes de furto ou de roubo, de choque, colisão, capotamento, incêndio, raio e explosão; que no dia 14 de julho de 2023, pelas 19h30, circulava com o referido veículo na Rua ... quando se confrontou com um veículo vindo da direção oposta, sendo que, para não colidir com o mesmo, desviou-se e acabou por embater num muro localizado à sua direita, não tendo sido possível apurar a existência de demais intervenientes no acidente de viação descrito, desconhecendo-se inclusive o proprietário do automóvel que provocou o despiste do autor. Na sequência do referido embate, resultaram diversos danos para o seu automóvel, mormente na lateral direita daquele, cujo valor é da responsabilidade da ré por força do contrato de seguro então em vigor, assim como o prejuízo emergente da privação do veículo.
A ré contestou, aceitando a vigência do contrato de seguro relativamente ao referido veículo, mas sustentando que o autor é parte ilegítima para reclamar as indemnizações decorrentes dos alegados danos materiais sofridos ao abrigo da cobertura de danos próprios, por falta de legitimação para o efeito, já que nunca foi proprietário do mesmo veículo. Invocou os limites da cobertura, designadamente a franquia estabelecida. Impugnou ainda, parcialmente, os factos alegados na petição inicial, sustentando que os danos invocados não têm como causa o sinistro relatado pelo autor e concluindo pela sua absolvição do pedido.
Findos os articulados, o Tribunal a quo concedeu contraditório sobre a possibilidade de vir a considerar verificada a exceção dilatória de ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário da empresa de seguros e do Fundo de Garantia Automóvel, visto resultar do alegado pelo autor que o mesmo terá sofrido acidente de viação, proporcionado por outro veículo que não identifica, desconhecendo a identidade do interveniente nesse sinistro, bem como do proprietário do automóvel que o provocou, convidando o autor a suscitar o competente incidente de intervenção principal provocada do Fundo de Garantia Automóvel, o que reiterou após resposta do autor no sentido de ser inútil o chamamento do Fundo de Garantia Automóvel uma vez que o «não consegue identificar a matricula do veiculo que surgiu e que nessa medida causou o acidente, sendo certo que o FGA, nos termos da Lei, não se responsabiliza em caso de acidentes, que não tenham causados danos corporais significativos, e/ou que não seja possível identificar a matricula do veiculo causador do acidente, pelo que, neste caso (…) nada o FGA ressarcirá o Autor, sendo assim um ato inútil requerer o seu chamamento».
Depois de várias incidências processuais, foi proferido despacho (ref.ª ...18, de 16-12-2024), julgando procedente a exceção de ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário, não sanada pelo autor, absolvendo a ré da instância, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 278.º, n.º 1, al. d), 576.º, n.º 2, e 577.º, al. e), do CPC, com o seguinte teor:
«(…) Da ilegitimidade passiva Resulta da alegação carreada aos autos pelo A. que o mesmo terá sofrido acidente de viação, proporcionado por outro veículo que não identifica, desconhecendo a identidade do interveniente nesse sinistro, bem como do proprietário do automóvel que o provocou.
Ora, prevê o art. 62.º do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), com a epígrafe «Legitimidade»: «1 - As acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz, são propostas contra o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável civil, sob pena de ilegitimidade. 2 - Quando o responsável civil por acidentes de viação for desconhecido, o lesado demanda directamente o Fundo de Garantia Automóvel. 3 - Se nos casos previstos nos números anteriores o acidente de viação for, nos termos do n.º 2 do artigo 51.º, subsumível em contrato de seguro automóvel de danos próprios, a acção deve ser proposta também contra a respectiva empresas de seguros». Daqui decorre que a lei atribui legitimidade para contradizer, no âmbito de ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, e nas situações em que o lesado é beneficiário de seguros automóvel de danos próprios e desconhece a identidade do lesante, tanto à empresa de seguros, como ao Fundo de Garantia Automóvel. Convidado a sanar a exceção dilatória de ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário, através da dedução do incidente de intervenção principal provocada do Fundo de Garantia Automóvel, o A. não moveu o competente incidente no prazo fixado. Donde, julgando verificada a exceção dilatória de ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário, a qual não foi sanada tempestivamente pelo A., absolve-se a R. da instância, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 278.º, n.º 1, al. d), 576.º, n.º 2, e 577.º, al. e), do CPC.
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Fixa-se à causa o valor de 26.001,69€ (vinte e seis mil e um euros e sessenta e nove cêntimos) - cfr. art. 297.º, n.ºs 1 e 2, do CPC. A responsabilidade por custas incumbe ao A. – cfr. art. 527.º, n.º 1, do CPC. Registe e notifique».
Inconformado, o autor apelou, formulando as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«1) Está em causa neste recurso a nulidade da sentença proferida pelo Tribunal a quo (referência citius n.º 40409618) que julgou verificada a exceção dilatória de ilegitimidade passiva por preterição do litisconsórcio necessário e, consequentemente, absolveu a Recorrida da causa;
2) Apesar de o Recorrente, se disso pudesse valer-se, muito quereria ter feito a intervenção do Fundo Garantia Automóvel, na medida em que tal opção, sendo admissível e válida, ser-lhe-ia mais favorável do que demandar a aqui Recorrida, como o fez, no âmbito da responsabilidade contratual, e apenas pelos danos próprios contratados;
3) O Recorrente nada pode fazer contra o Fundo Garantia Automóvel, nem nada pode ser exigido deste no âmbito desta ação, pois desconhece a identidade do responsável civil, não se discutindo sequer a culpa de um terceiro, estando a ação - objeto e pedido - restringida aos critérios e limites do contrato de seguro contra todos os riscos que contratou e fora da responsabilidade civil extracontratual;
4) O Recorrente não consegue identificar o veículo de que se desviou, nem lhe imputa responsabilidade pela produção do sinistro, nesta medida, não pode exercer contra quem quer que seja uma hipotética responsabilidade civil extracontratual, o que concomitantemente inexiste qualquer obrigação de demandar o Fundo Garantia Automóvel;
5) Inexistindo, tal como a ação está construída, qualquer veículo que tenha dado culposamente causa ao acidente, e desconhecendo por completo a matrícula, a identidade do condutor e, consequentemente, a seguradora do veículo de que se teve de desviar, e que nenhuma culpa lhe imputa;
6) Nestes autos não está em causa, nem foi proposta, qualquer ação de responsabilidade civil extracontratual, a cujo escopo o DL n.º 291/2007, de 21 de agosto se cinge;
7) Sendo esta ação uma demanda no âmbito da responsabilidade contratual, contra a seguradora de danos próprios do veículo acidentado;
8) Sendo por isso invalida a decisão de, numa ação de responsabilidade contratual relativa a uma demanda contra a seguradora dos danos próprios, ser imposto o chamamento do Fundo Garantia Automóvel, quando este não foi criado, nem existe, nem a citada lei prevê, a sua demanda, para este tipo de ações, bastando para tal fazer a devida interpretação da norma invocada (o citado artigo 62.º do DL n.º 291/2007, de 21 de agosto) e do fim para que foi criada a referida lei;
9) Aliás, mesmo no caso de nos limitarmos à letra da lei, conforme decorre do conteúdo do citado preceito, este tem a sua aplicação limitada: “as ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz, são propostas contra o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável civil, sob pena de ilegitimidade”;
10) Analisado o ratio da lei, está subjacente à exigência de a ação ser proposta também contra o FGA, que esteja em causa a responsabilidade civil extracontratual e existir um responsável conhecido a quem se pretende imputar a responsabilidade civil do acidente, que não possui seguro obrigatório;
11) Infelizmente, não se verificam qualquer um dos três requisitos para ser obrigatória a intervenção do FGA na presente ação, pois não está em causa uma ação destinada à efetivação da responsabilidade civil extracontratual decorrente de um acidente de viação, inexiste qualquer responsável conhecido e não se pode dizer que há ou não seguro obrigatório de terceiro;
12) Inexiste, nestes autos, qualquer litisconsórcio necessário que tenha sido preterido, sendo por isso nula e inválida a decisão que se recorre, a qual deverá ser substituída por outra que revogue a absolvição da instância da Recorrida e que mande prosseguir os presentes autos sem o incidente de intervenção principal provocada do FGA;
13) A decisão que se recorre violou por erro de interpretação, além do mais, o disposto no artigo 62.º do DL n.º 291/2007, de 21 de agosto, devendo ser alterada em função das conclusões anteriores,
Assim se fazendo a costumada,
Justiça».
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, tendo o recurso sido admitido nos mesmos termos.
II. Delimitação do objeto do recurso
Face às conclusões das alegações dos recorrentes, e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 do CPC - o objeto do presente recurso circunscreve-se às seguintes questões:
A) aferir se as referências feitas pelo apelante a propósito das questões decididas pelo Tribunal a quo permitem consubstanciar a arguição de nulidade da decisão recorrida, e se a mesma se verifica;
B) se estão verificados os pressupostos da procedência da exceção de ilegitimidade da ré, por preterição de litisconsórcio necessário passivo, tal como entendeu a decisão recorrida.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
III. Fundamentação
1. Os factos
1.1.Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra.
2. Apreciação sobre o objeto do recurso
2.1. Da nulidade da decisão recorrida
Nas conclusões 1.ª e 12.ª da apelação o recorrente suscita genericamente a nulidade da decisão recorrida, sustentando estar em causa neste recurso a nulidade da sentença proferida pelo Tribunal a quo (referência citius n.º 40409618) que julgou verificada a exceção dilatória de ilegitimidade passiva por preterição do litisconsórcio necessário e, consequentemente, absolveu a Recorrida da causa.
No caso, o recorrente não especifica qual o fundamento de nulidade que invoca, dentro das causas de nulidade previstas no artigo 615.º do CPC, antes se observando que a referência à nulidade da decisão recorrida surge em sede de impugnação do juízo decisório formulado na mesma, o que configura a discordância quanto aos pressupostos/fundamentos da decisão proferida, mas não traduz a nulidade da sentença.
Com efeito, as nulidades de decisão são vícios intrínsecos (quanto à estrutura, limites e inteligibilidade) da peça processual que é a própria decisão (trata-se, pois, de um error in procedendo), nada tendo a ver com os erros de julgamento (error in iudicando) seja em matéria de facto seja em matéria de direito. As nulidades da sentença são vícios formais, intrínsecos de tal peça processual, taxativamente consagrados no nº 1, do art. 615º, sendo tipificados vícios do silogismo judiciário, inerentes à sua formação e à harmonia formal entre premissas e conclusão, não podendo ser confundidas com hipotéticos erros de julgamento (error in judicando) de facto ou de direito. Assim, as nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento, estes, a sindicar noutro âmbito[1].
Como tal, as causas de nulidade taxativamente enumeradas neste preceito não visam o chamado erro de julgamento e nem a injustiça da decisão, ou tão pouco a não conformidade dela com o direito aplicável, configurando realidades distintas[2].
Pelo exposto, não enferma a decisão recorrida de qualquer nulidade que cumpra verificar ou declarar.
2.2. A lei procede à classificação das exceções entre dilatórias e perentórias (artigo 576.º, n.º 1 do CPC), estabelecendo que as primeiras obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal (n.º 2 do citado preceito), enquanto as exceções perentórias importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor (artigo 576.º, n.º 3 do CPC).
A legitimidade das partes, incluindo em todas as situações em que se considere que existe preterição de litisconsórcio necessário ativo ou passivo, configura um pressuposto processual que a lei classifica expressamente como exceção dilatória, de conhecimento oficioso, e cuja verificação dá lugar à absolvição do réu da instância, sem prejuízo dos casos em que tal exceção é sanável, nos termos conjugados dos artigos 30.º, 33.º, 261.º, 576.º, nºs 1 e 2, 577.º, al. e), todos do CPC.
A questão da legitimidade tem que ser apreciada e decidida à luz do que dispõe o artigo 30.º do CPC, que reporta a legitimidade do réu ao interesse direto em contradizer (n.º 1 do referido preceito), o qual, por sua vez, se exprime pelo prejuízo que resultará para o réu da procedência da ação (n.º 2 do referido preceito).
Tal como resulta claro da redação do n.º 3 do artigo 30.º do CPC, o legislador consagrou sem restrições o critério da determinação da legitimidade em função da titularidade da relação material controvertida com a configuração que lhe foi dada unilateralmente na petição inicial, ao dispor que na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Deste modo, «[a] partir da introdução de um preceito com a redação do actual n.º 3, ficou claro que tal pressuposto processual é identificado em função da relação jurídica configurada pelo autor. Assim, avaliado tal pressuposto por um critério formal, o autor é parte legítima se, atenta a relação jurídica que invoca, surgir nela como sujeito suscetível de beneficiar directamente do efeito jurídico pretendido; já o réu terá legitimidade passiva se for diretamente prejudicado com a procedência da ação. A exigência de um “interesse” emergente da pronúncia judicial, reconduz-nos a um interesse direto e indica que é irrelevante para o efeito um mero interesse indireto, reflexo ou mediato, ou ainda um interesse diletante ou de ordem moral ou académica»[3].
Daí que se saliente no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3-10-2017[4]: «A legitimidade, quer activa, quer passiva, não é, assim, algo fixo, variando com a natureza e o objecto da acção, tal como configurada pelo autor.
A legitimidade processual, enquanto pressuposto adjectivo para que se possa obter decisão sobre o mérito da causa, não exige a verificação da efectiva titularidade da situação jurídica invocada pelo A., bastando-se com a alegação dessa titularidade».
Em conclusão, «a legitimidade processual apenas pode ser procedentemente impugnada pelo réu ou negada pelo tribunal nos casos em que o autor convoca para o processo pessoas que não são as que expõe como integrando a relação material»[5], pois ao apuramento da legitimidade interessa apenas a consideração do pedido e da causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última[6].
Porém, tal como decorre do segmento inicial do n.º 3 do artigo 30.º do CPC, a par do critério residual em que assenta a legitimidade direta, pautado pela titularidade da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor, hipóteses há em que o próprio legislador indica quais os titulares do direito de ação ou de defesa.
Tal como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa[7], «sempre que uma relação jurídica envolva diversas pessoas, a respetiva discussão judicial pode ter lugar com a presença de todos os interessados. Quando a presença de todos na lide ocorra sem que haja imposição (legal ou outra) nesse sentido, o litisconsórcio diz-se voluntário».
Por seu turno, «o litisconsórcio necessário pode ter origem na lei ou no negócio jurídico ou assentar na natureza da relação jurídica litigada. Os critérios que presidem à previsão do litisconsórcio necessário são essencialmente dois: o critério da indisponibilidade individual ou da disponibilidade plural do objeto do processo para o litisconsórcio legal e convencional e o critério da compatibilidade dos efeitos produzidos para o litisconsórcio natural»[8].
Deste modo, «a pluralidade de partes que caracteriza o litisconsórcio coincide, em princípio, com uma pluralidade de titulares do objecto do processo»[9]. Porém, «no litisconsórcio voluntário todos os interessados podem demandar ou ser demandados, mas não se verifica qualquer ilegitimidade se não estiverem todos presentes em juízo. No litisconsórcio necessário, todos os interessados devem demandar ou ser demandados, originado a falta de qualquer deles uma situação de ilegitimidade»[10].
Como tal, a figura do litisconsórcio, que pode basear a intervenção principal provocada, refere-se à situação em que a mesma e única relação material controvertida tem uma pluralidade de partes[11].
Neste domínio, importa sublinhar que «a intervenção na lide de alguma pessoa como associado do réu pressupõe um interesse litisconsorcial no âmbito da relação controvertida, cuja medida da sua viabilidade é limitada pela latitude do acionamento operado pelo autor, não podendo intervir quem lhe seja alheio»[12].
Deste modo, no direito substantivo o conceito de legitimidade «reporta-se à relação entre o sujeito e o objeto do ato jurídico, postulando em regra a coincidência entre o sujeito do ato jurídico e o titular do interesse por ele posto em jogo, ao passo que como pressuposto processual (geral), ou condição necessária à prolação de decisão de mérito, no direito adjetivo o mesmo conceito exprime a relação entre a parte no processo e o objeto deste (a pretensão ou pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o»[13].
No caso em referência, o Tribunal a quo suscitou oficiosamente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio necessário da empresa de seguros e do Fundo de Garantia Automóvel (FGA), por resultar do alegado pelo autor que o mesmo terá sofrido acidente de viação, proporcionado por outro veículo que não identifica, desconhecendo a identidade do interveniente nesse sinistro, bem como do proprietário do automóvel que o provocou, entendendo aquele Tribunal que o artigo 62.º, n.º 3 do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21-08, atribui legitimidade para contradizer, no âmbito de ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, e nas situações em que o lesado é beneficiário de seguro automóvel de danos próprios e desconhece a identidade do lesante, tanto à empresa de seguros como ao FGA.
Contra este entendimento insurge-se o recorrente, sustentando que não se verificam os requisitos de obrigatoriedade da intervenção do FGA na presente ação, pois, segundo alega, não está em causa uma ação destinada à efetivação da responsabilidade civil extracontratual decorrente de um acidente de viação, inexiste qualquer responsável conhecido e não se pode dizer que há ou não seguro obrigatório de terceiro.
Apreciando a questão suscitada, cumpre atender ao disposto no artigo 62.º do Dec. Lei n.º 291/2007[14], de 21-08, com a epígrafe Legitimidade, nos termos do qual:
1 - As ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz, são propostas contra o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável civil, sob pena de ilegitimidade.
2 - Quando o responsável civil por acidentes de viação for desconhecido, o lesado demanda diretamente o Fundo de Garantia Automóvel.
3 - Se nos casos previstos nos números anteriores o acidente de viação for, nos termos do n.º 2 do artigo 51.º, subsumível em contrato de seguro automóvel de danos próprios, a ação deve ser proposta também contra a respetiva empresa de seguros.
Como se vê, o âmbito de aplicação do preceito em análise não se limita às ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz, contrariamente ao que parece sustentar o ora recorrente. Ou seja, a exigência de a ação ser proposta também contra o FGA não se resume aos casos em que esteja em causa a responsabilidade civil extracontratual e exista um responsável conhecido, a quem se pretende imputar a responsabilidade civil do acidente, que não possui seguro obrigatório.
Com efeito, decorre dos n.ºs 2 e 3 do mesmo preceito que a intervenção do FGA compreende, ainda, as ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável civil por acidentes de viação fordesconhecido (n.º 2 do citado preceito).
E em ambos os casos, se o acidente de viação for, nos termos do n.º 2 do artigo 51.º, subsumível em contrato de seguro automóvel de danos próprios, a ação deve ser proposta também contra a respetiva empresa de seguros (n.º 3 do citado artigo 62.º).
Porém, o artigo 62.º, n.º 3 do Dec. Lei n.º 291/2007, remete expressamente para o 51.º, n.º 2 do mesmo diploma[15], o qual, por sua vez, é aplicável aos lesados por acidente previsto nos correspondentes artigos 48.º e 49.º.
Ora, de acordo com o disposto no artigo 49.º do Dec. Lei n.º 291/2007, o Fundo de Garantia Automóvel garante, nos termos do n.º 1 do artigo anterior[16], e até ao valor do capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a satisfação das indemnizações por:
a) Danos corporais, quando causados por veículo não identificado ou em relação ao qual não haja seguro válido e eficaz;
b) Danos materiais, quando causados por veículo em relação ao qual não haja seguro válido e eficaz;
c) Danos materiais, quando, sendo causados por veículo não identificado, exista, em simultâneo, direito a uma indemnização por danos corporais significativos;
d) Danos corporais e materiais, quando causados por veículo objeto de seguro por empresa de seguros sujeita a um processo de insolvência ou de liquidação.
2 - Para efeitos do disposto na alínea c) do número anterior, consideram-se danos corporais significativos a lesão corporal que determine:
a) Morte ou internamento hospitalar igual ou superior a sete dias; ou
b) Incapacidade temporária absoluta por período igual ou superior a 60 dias; ou
c) Incapacidade parcial permanente igual ou superior a 15 /prct..
Assim, conforme decorre das disposições legais antes referenciadas, o FGA responde perante os lesados em acidentes de viação ocorridos em Portugal, quando não exista seguro obrigatório de responsabilidade civil para o veículo causador, independentemente da natureza dos danos causados.
Já em relação aos acidentes causados por veículo não identificado (em que o responsável é desconhecido), o FGA satisfaz, até ao valor do capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, as indemnizações que sejam devidas por danos corporais - artigo 49.º, n.º 1, al. a) - e por danos materiais, quando exista, em simultâneo, direito a uma indemnização por danos corporais significativos - artigo 49.º, n.º 1, al. c), e n.º 2 - sendo que, mesmo nestes casos, se o lesado beneficiar da cobertura de um contrato de seguro automóvel de danos próprios, a reparação dos danos do acidente que sejam subsumíveis nos respetivos contratos incumbe às empresas de seguros, ficando a responsabilidade do FGA limitada ao pagamento do valor excedente ao do capital seguro - artigo 51.º, n.º 2.
No âmbito da exposição factual constante da petição inicial que deu origem à ação em referência vem alegado pelo autor que era proprietário do veículo de marca ... ... do ano de 2013, com a matrícula ..-PE-.., relativamente ao qual celebrou com a ré contrato de seguro que incluía coberturas facultativas de danos próprios, tais como os decorrentes de furto ou de roubo, de choque, colisão, capotamento, incêndio, raio e explosão; que no dia 14 de julho de 2023, pelas 19h30, circulava com o referido veículo na Rua ... quando se confrontou com um veículo vindo da direção oposta, sendo que, para não colidir com o mesmo, desviou-se e acabou por embater num muro localizado à sua direita, não tendo sido possível apurar a existência de demais intervenientes no acidente de viação descrito, desconhecendo-se inclusive o proprietário do automóvel que provocou o despiste do autor. Na sequência do referido embate, resultaram diversos danos para o seu automóvel, mormente na lateral direita daquele, cujo valor é da responsabilidade da ré por força do contrato de seguro então em vigor, assim como o prejuízo emergente da privação do veículo.
Ora, ainda que resulte do alegado pelo autor/recorrente na petição inicial que o mesmo terá sofrido um acidente de viação, causado por outro veículo que não identifica, desconhecendo a identidade do interveniente nesse sinistro, bem como do proprietário do automóvel que o provocou, resulta manifesto que as circunstâncias alegadas na presente ação não conferem ao FGA a titularidade da relação material controvertida, desde logo porque o autor alega apenas a existência de danos materiais (danos para o seu automóvel, mormente na lateral direita daquele, e o prejuízo emergente da privação do veículo), incindindo sobre estes a indemnização reclamada.
Neste enquadramento, de acordo com a configuração da relação controvertida que foi dada unilateralmente na petição inicial, não se vislumbra que o FGA tenha em relação ao objeto da causa um interesse igual ou paralelo ao das partes principais, por expressa imposição legal, nem que a sua ausência impeça que a decisão a proferir sobre as concretas pretensões formuladas nos autos produza qualquer efeito útil, porquanto, como se viu, em relação aos acidentes causados por veículo não identificado (em que o responsável é desconhecido), o FGA satisfaz, até ao valor do capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, as indemnizações que sejam devidas por danos corporais - artigo 49.º, n.º 1, al. a) - e por danos materiais, quando exista, em simultâneo, direito a uma indemnização por danos corporais significativos - artigo 49.º, n.º 1, al. c), e n.º 2 -, o que no caso não sucede, sendo certo, por outro lado, que o autor alega que o evento causador dos danos reclamados na presente ação é suscetível de desencadear a cobertura do risco de danos próprios prevista no contrato de seguro celebrado com a ré seguradora.
Nestes termos, não existe qualquer litisconsórcio passivo, voluntário ou necessário, que permita fundamentar a viabilidade da suscitada intervenção principal provocada do FGA na presente ação.
Nesta conformidade, não se verifica a exceção de ilegitimidade da ré, por preterição de litisconsórcio necessário passivo, o que implica a procedência do recurso com a consequente revogação da decisão recorrida. Síntese conclusiva:
… IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento da instância apenas contra a ré/recorrida.
Custas da apelação pela recorrida.
Guimarães, 29 de maio de 2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Paulo Reis
(Juiz Desembargador - relator)
Maria dos Anjos Melo Nogueira
(Juíza Desembargadora - 1.º adjunto)
Ana Cristina Duarte
(Juíza Desembargadora - 2.º adjunto)
[1]Cf. o Ac. TRG de 04-10-2018 (relatora: Eugénia Cunha), p. 1716/17.8T8VNF.G1, disponível em www.dgsi.pt. [2]Cf. o Ac. TRL de 16-05-2024 (relatora: Ana Paula Nunes Duarte Olivença), p. 11769/19.9T8LSB-A. L1-8, disponível em www.dgsi.pt. [3]Cf. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 59. [4] Relatora Cristina Coelho, p. 20120/16.9T8LSB.L1-7, acessível em www.dgsi.pt. [5]Cf., Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª edição, 2015, Coimbra Editora, p. 65. [6]Cf. José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º - 4.ª edição - Coimbra, Almedina, 2018, p. 93. [7] Obra citada, pgs. 61-62. [8]Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa - Obra citada -, pgs. 62-63. [9]Cf. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª edição, LEX, Lisboa, 1997, p. 151. [10]Cf. Miguel Teixeira de Sousa - Obra citada -, p. 152. [11]Cf. o Ac. TRC de 21-05-2019 (relator: Pires Robalo), p. 177/18.9T8OHP-A.C1, acessível em www.dgsi.pt. [12]Cf. Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2002, p. 108. [13]Cf. o Ac. TRC de 12-06-2011, relator Carlos Querido, p. 1223/10.0TBTMR.C1, acessível em www.dgsi.pt. [14] Diploma que transpõe parcialmente para ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio, que altera as Diretivas n.ºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Diretiva 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis («5.ª Diretiva sobre o Seguro Automóvel), definindo, entre o mais, o âmbito de intervenção e as atribuições do FGA. [15] Artigo 51.º, n.º 2: se o lesado por acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º beneficiar da cobertura de um contrato de seguro automóvel de danos próprios, a reparação dos danos do acidente que sejam subsumíveis nos respetivos contratos incumbe às empresas de seguros, ficando a responsabilidade do Fundo limitada ao pagamento do valor excedente. [16] Estipula o artigo 48.º, n.º 1 que, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 5.º e nos artigos 57.º-C e 57.º-D, o Fundo de Garantia Automóvel satisfaz, nos termos da presente secção, as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal e originados:
a) Por veículo cujo responsável pela circulação está sujeito ao seguro obrigatório e, seja com estacionamento habitual em Portugal, seja matriculados em países que não tenham serviço nacional de seguros, ou cujo serviço não tenha aderido ao Acordo entre os serviços nacionais de seguros;
b) Por veículo cujo responsável pela circulação está sujeito ao seguro obrigatório sem chapa de matrícula ou com uma chapa de matrícula que não corresponde ou deixou de corresponder ao veículo, independentemente desta ser a portuguesa;
c) Por veículo cujo responsável pela circulação está isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ainda que com estacionamento habitual no estrangeiro;
d) Por veículo retirado e proibido de utilização, ainda que de forma temporária, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 4.ºD