SIMULAÇÃO
INSOLVENTE
CREDOR RECLAMANTE
LEGITIMIDADE ACTIVA
Sumário


O credor reclamante em processo de insolvência tem legitimidade ativa para propor ação tendo em vista a declaração de nulidade por simulação da alienação de um imóvel da insolvente (não apreendido para a massa insolvente), ocorrida mais de dois anos antes da declaração de insolvência.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
           
AA intentou a presente ação declarativa contra “EMP01..., SA” e BB pedindo que:

a. Seja declarada a nulidade por simulação dos contratos de compra e venda que foram celebrados pelas escrituras públicas outorgadas nos dias 28 de Dezembro de 2012 e 10 de Dezembro de 2019 e do contrato de arrendamento que descreve;
b. Seja determinado o cancelamento dos registos que resultam das escrituras públicas que foram outorgadas;
c. Seja determinado que a ampliação modular construída no prédio urbano situado no Lugar ..., em ... (...), ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº...44 e inscrito no art. ...11º da matriz predial respetiva, integra a massa insolvente;
d. Caso assim não seja entendido, os réus sejam condenados a pagar à massa insolvente a quantia € 300.000,00 (trezentos mil euros) a título de enriquecimento sem causa.
Alega que foram celebrados dois contratos de compra e venda através de duas escrituras públicas outorgadas nos dias 28 de dezembro de 2012 e 10 de dezembro de 2019, relativos ao prédio urbano situado no Lugar ..., em ... (...), ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº...44 e inscrito no art. ...11º da matriz predial respetiva. Através do primeiro contrato este prédio urbano foi vendido pela sociedade comercial EMP02... - Unipessoal, Ldª à sociedade comercial EMP03..., Sa. e através do segundo foi vendido à ré. O autor era trabalhador da sociedade comercial EMP02... - Unipessoal, Ldª. Esta sociedade comercial foi declarada insolvente no processo de insolvência nº2684/24.... do Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão (Juiz ...), tendo o autor reclamado o seu crédito no processo de insolvência. O autor alega que os contratos de compra e venda são nulos por terem sido simulados e pretende que o prédio urbano seja restituído à massa insolvente da sociedade comercial EMP02... - Unipessoal, Ldª. Caso assim não seja entendido, pretende que, a título de enriquecimento sem causa, os réus paguem à massa insolvente a quantia de € 300.000,00, correspondente ao valor do prédio urbano. O autor invoca a qualidade de credor enquanto trabalhador da sociedade comercial EMP02... - Unipessoal, Ldª e de credor reclamante no processo de insolvência.
Os réus contestaram excecionando a litispendência, a ilegitimidade do réu BB, a ineptidão da petição inicial e a ilegitimidade do autor. Contestaram, também, por impugnação.
O autor e os réus foram notificados para se pronunciarem quanto à ilegitimidade do autor e o autor, também, quanto às exceções deduzidas na contestação, o que ambos fizeram.
Dispensada a audiência prévia, foi proferida decisão que julgou improcedente a nulidade de ineptidão da petição inicial e julgou verificada a exceção dilatória de ilegitimidade do autor e, em consequência, absolveu os réus da instância.

O autor interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

I.Por sentença proferida pelo Tribunal recorrido foi decidido o seguinte:
«Pelo exposto, decido julgar verificada a exceção dilatória de ilegitimidade do autor e, em consequência, absolvo os réus da instância.
II. Com o devido respeito, que é muito, o Recorrente não se pode conformar com a sentença proferida.
III. O autor intentou conta a ré ação na forma de processo comum peticionando o seguinte:
«que seja julgada totalmente procedente, por provada, a presente ação, e em consequência:
a) Ser declarada a nulidade das escrituras de compra e venda mencionadas nos artigos 18.º e 19.º da petição inicial e o contrato de arrendamento mencionado no artigo porquanto padecem de simulação;
b) Mais deve ser ordenado o cancelamento imediato dos registos que resultam das escrituras de compra e venda mencionadas nos artigos 18.º e 19.º da petição inicial;
c) Deverá a ampliação modular construída no prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo ...11 integrar a massa insolvente;
Caso não seja esse o entendimento,
d) Deverão os Réus ser condenados a pagar à massa insolvente o valor € 300.000,00 (trezentos mil euros) a título de enriquecimento sem causa, do qual se apropriou sem causa justificativa ou a título ilegítimo.».
IV. Em sede de contestação, os agora recorridos vierem alegar sobre a admissibilidade do pedido, e/ou improcedência do pedido, contra si formulado.
V. Após a fase dos articulados, o tribunal a quo proferiu despacho para as partes se pronunciarem quanto à eventual ilegitimidade do autor, ora recorrente, no processo.
VI. Tendo o Tribunal a quo proferido sentença, no qual julgou como verificada a exceção dilatória de ilegitimidade do autor, absolvendo os réus da instância.
Ora:
VII. Analisando devidamente a sentença, o recorrente não pode aceitar a alegação exposta pelo tribunal a quo, no sentido de julgar como ilegítimo o seu interesse com a presente ação.
VIII. Aceitar e abarcar em tal procedimento, seria uma privação e denegação de acesso ao direito enquanto normativo constitucionalmente previsto.
IX. Relativamente ao objeto do recurso, entende o recorrente, que a sentença da qual se recorre, ao ter julgado procedente a exceção dilatória de ilegitimidade, enferma em erro de matéria de direito, não tendo sido determinada e aplicada a norma jurídica correta.
X. Em substância, considera o Tribunal a quo que, apesar de legalmente reconhecido, o autor, na qualidade de credor no processo de insolvência, «não pode, assim, invocar um crédito sobre a sociedade comercial e pretender a restituição de um bem para a massa insolvente.».
XI. O que, a nosso ver, foi erradamente sentenciado e por nós vem a ser recorrido.
Senão vejamos:
XII. Na presente ação estão em causa dois contratos de compra e venda que foram celebrados por duas escrituras públicas, outorgadas nos dias 28 de dezembro de 2012 e 10 de dezembro de 2019. Os contratos de compra eram relativos ao prédio urbano situado no Lugar ..., em ... (...), ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº...44 e inscrito no art. ...11º da matriz predial respetiva.
XIII. Através do primeiro contrato este prédio urbano foi vendido pela sociedade comercial EMP02...-Unipessoal, Ldª à sociedade comercial EMP03..., Sa. e através do segundo foi vendido à sociedade ré.
XIV. A sociedade EMP02... – Unipessoal, Lda foi declarada insolvente no processo de insolvência nº2684/24.... do Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão (Juiz ...), tendo o autor reclamado o seu crédito no processo de insolvência.
XV. O crédito ora reclamado, foi graduado e reconhecido no processo de insolvência na qualidade de crédito privilegiado.
XVI. O que, desde já, leva a que o recorrente tenha um crédito sobre a massa insolvente, e seja titular de interesses de que decorre a massa insolvente.
XVII. O aqui recorrente, na qualidade de credor reconhecido da massa insolvente EMP02... – Unipessoal, lda, pretende, em substância, com a presente ação, a declaração de nulidade por simulação dos contratos de compra e venda que foram celebrados mediante duas escrituras outorgadas nos dias 28 de dezembro de 2012 e 10 de dezembro de 2019, com restituição dos bens à esfera jurídica da sociedade insolvente, cujo património é ora representado pela Massa Insolvente.
XVIII. Quanto a isto, não cremos que subsistam dúvidas que a nulidade do contrato em causa nos autos irá incrementar o património da massa insolvente das EMP02..., Unipessoal, e por consequência possibilitará o ressarcimento por parte do recorrente no seu crédito.
XIX. Pelo que, relativamente à legitimidade ativa processual, o recorrente, enquanto credor da massa insolvente EMP02..., Unipessoal, é titular de crédito sobre a massa, e por consequência lógica e necessária, a possibilidade do incremento patrimonial da massa insolvente leva a que o recorrente possa ser ressarcido dos créditos a si atribuídos.
Ainda, e relativamente à legitimidade para a propositura da ação:
XX. O artigo 121º, n.º 1 CIRE menciona que é resolúvel em benefício da massa insolvente, sem a dependência de quaisquer outros requisitos, os atos celebrados pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, incluindo o repúdio de herança ou legado, com exceção dos donativos conformes aos usos sociais (art.º 121º, n.º 1 b) CIRE).
XXI. A resolução em benefício da massa insolvente encontra-se restrita à figura do liquidatário judicial, não podendo ser invocada por um credor da massa insolvente.
XXII. No entanto, quando não haja lugar à resolução ou esta não produza os seus efeitos, os credores dispõem de um mecanismo de controlo que beneficia a massa insolvente, que é a figura da impugnação pauliana, (cfr. artigo 127.º, n.º 2 do CIRE).
XXIII. “IV – A ação pauliana traduz-se num direito pessoal de restituição, em nada afetando o ato translativo das situações jurídicas para o terceiro. Por inerência, não tendo ocorrido resolução do ato jurídico em causa pelo Administrador da Insolvência (ou vindo a mesma a revelar-se improcedente) o objeto de tal ato translativo para terceiro, considerando-se o negócio válido e eficaz, não pode ser considerado como integrando a massa insolvente (por, como é evidente,   pertencer a terceiro)» - in Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, processo n.º 316/21.2T8CTX.E1, de 23/11/2023, em: www.dgsi.pt.
XXIV. Em face da omissão de diligências que se assumem indispensáveis por parte do administrador de insolvência no sentido de resolver os contratos operados em causa, não assistia outra opção ao recorrente se não a avançar com a presente impugnação pauliana.
XXV. Sobre esta ação refere Maria do Rosário Epifânio que «se um ato não for objeto de resolução pode ser objeto de impugnação pauliana (intentada individualmente pelo credor) antes ou depois da declaração de insolvência (e que não é apensa ao processo de insolvência) (artigo 127.º, n.º 1 a contrario, e n.º 2).».
XXVI. Analisando devidamente ao caso em concreto, o autor, ora recorrente e credor reconhecido e graduado da massa insolvente, ao não ter sido apresentada a devida reclamação em benefício da massa insolvente e demais trâmites legais, mediante a inoperância do ilustre administrador de insolvência, apresentou a devida impugnação pauliana no sentido de obter a nulidade dos negócios praticados pelos recorridos em prejuízo da massa insolvente.
XXVII. Assim, para cumprimento do desporto no artigo 639.º, n.º 2 do Código Processo Civil, vem o recorrente expor que considera que Tribunal a quo ao ter decidido como decidiu violou o disposto no artigo 127.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas e o artigo 30.º, n.º1, 1.ª parte do Código de Processo Civil.
XXVIII. Mais, cumpre expor que o Tribunal a quo errou ao não aplicar o normativo legal no artigo 127.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas que legitima a apresentação da presente ação.
XXIX. Pelo que, consideramos que o Tribunal a quo deu, erradamente, como verificada a exceção dilatória de ilegitimidade do autor, absolvendo os réus da instância, quando, no presente caso, a referida exceção deveria ter sido julgada como não procedente, por não verificada, na medida em que, e conforme melhor exposto supra, o recorrente apresente legitimidade bastante para a apresente a presente ação.
Nestes termos, e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, ser a sentença recorrida revogada e substituída por outra que julgue a exceção dilatória de ilegitimidade improcedente, com as demais consequências legais daí advenientes.

ASSIM FARÃO V.EX.AS INTEIRA JUSTIÇA.

Não foram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

A questão a resolver traduz-se em saber se o autor, como credor reclamante no processo de insolvência, tem legitimidade para intentar ação a peticionar a declaração de nulidade por simulação da alienação de um imóvel, em ordem a restitui-lo à massa insolvente.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Os factos com relevo para a decisão são os que constam do relatório supra.

Não há dúvida, que, como se refere na decisão recorrida, o primeiro critério para aferir a legitimidade das partes é a indicação da lei ou, para sermos mais exatos, o regime legal aplicável à pretensão do autor, uma vez que são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade, na falta de indicação da lei em contrário, os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor, sendo este (2.ª parte do n.º 3) o outro critério aplicável (cfr. o disposto no artigo 30.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC)

Considerou-se na sentença recorrida que só o administrador judicial tem legitimidade para propor este tipo de ações – cobrança de créditos ou restituição de bens para a massa insolvente.

Pensamos que se decidiu mal.
O negócio simulado é nulo – artigo 240.º, n.º 2 do Código Civil – sendo a nulidade invocável a todo o tempo por qualquer interessado e podendo ser declarada oficiosamente pelo tribunal – artigo 286.º do Código Civil – ou seja, a nulidade pode ser invocada “pelo titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afetada pelo negócio” – Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. I, 4.ª edição revista e atualizada, pág. 263. Especificamente quanto aos credores, rege o artigo 605.º do CC “Os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos atos praticados pelo devedor, quer estes sejam anteriores, quer posteriores à constituição do crédito, desde que tenham interesse na declaração da nulidade, não sendo necessário que o ato produza ou agrave a insolvência do devedor”, acrescentando o seu n.º 2 que a nulidade aproveita não só ao credor que a tenha invocado, como a todos os demais. Ou seja, “basta o interesse, nos termos em que é definido genericamente no artigo 30.º do CPC, segundo o qual o do autor se exprime na utilidade (prática) derivada da procedência da ação” – autores e obra citada, pág. 621.
Mais especificamente, e considerando que estamos perante um processo de insolvência, não há dúvida que o CIRE dá prevalência à atuação do administrador da insolvência na resolução de atos do insolvente – artigos 120.º e seguintes do CIRE. Contudo, como alertam Carvalho Fernandes e João Labareda in CIRE Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, pág. 517, não tendo havido resolução de certo ato do insolvente pelo administrador, um credor da insolvência pode tomar a iniciativa de o impugnar (veja-se o disposto no artigo 127.º, n.º 2 do CIRE quanto à impugnação pauliana).
A este propósito, em acórdão do STJ de 11/03/2025, proferido no processo n.º 343/22.2T8VNF.G1.S1 (Maria Olinda Garcia), in www.dgsi.pt, sumariou-se o seguinte: “A sociedade declarada insolvente tem legitimidade passiva para estar em juízo (em litisconsórcio necessário) na ação proposta por um credor tendo em vista a declaração de nulidade por simulação da alienação de um imóvel (não apreendido para a massa insolvente), ocorrida três anos antes da declaração de insolvência”. Se é certo que o que estava em discussão nos autos era a legitimidade passiva, a verdade é que resulta do mesmo, em vários trechos e, como visto, do sumário, que um credor tem legitimidade ativa para propor ação tendo em vista a declaração de nulidade por simulação da alienação de um imóvel não apreendido para a massa insolvente e ocorrida três anos antes da declaração de insolvência. É exatamente o caso dos nossos autos.
Não há dúvida que, nos termos do artigo 141.º e seguintes do CIRE, é o administrador da insolvência quem tem legitimidade passiva para as ações de restituição e separação de bens integrantes da massa, e é também o administrador quem tem legitimidade ativa para invocar a resolução dos negócios praticados nos 2 anos anteriores à declaração de insolvência, nos termos do artigo 120.º e seguintes do CIRE, sendo certo até que o artigo 82.º, n.º 3 do CIRE estabelece o elenco das ações que o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir (operando, assim, desvios às regras gerais consagradas no artigo 30.º do CPC).
Conforme se pode ler no Acórdão do STJ atrás citado “Tais desvios justificam-se por ser o administrador da insolvência quem está em melhor posição para diretamente defender os interesses dos credores, ao zelar pela consolidação da massa insolvente. Todavia, a regra consagrada no artigo 81º, n.º 4 do CIRE (nos termos da qual “o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência”), não pode ser interpretada num sentido tão amplo como se entendeu no acórdão recorrido, pois tal levaria a concluir que o administrador da insolvência teria legitimidade passiva ilimitada para toda e qualquer ação (de natureza patrimonial) que pudesse ser proposta contra o devedor, bem como legitimidade ativa ilimitada para propor qualquer ação (de natureza patrimonial) que entendesse interessar à insolvência. Caso se sustentasse tal interpretação dificilmente se compreenderia o disposto no artigo 82º, n.º 3 do CIRE quando estabelece o elenco das ações que o administrador da insolvência tem legitimidade exclusiva para propor, pois tal legitimidade já resultaria do n.º 4 do artigo 81º. E também dificilmente se compreenderia a existência do limite temporal de 2 anos para a resolução dos negócios anteriores à insolvência (nos termos do art.º 120.º e seguintes) que pudessem lesar o interesse dos credores”.
E aí se acrescenta, ainda, o seguinte: “Se o próprio devedor insolvente pretendesse invocar, nos termos do artigo 242º do CC, a simulação de um negócio em que foi parte (praticado, por exemplo, 3 ou 4 anos antes da declaração da insolvência), cujo resultado pode aproveitar aos credores, não se compreenderia que lhe fosse negada legitimidade ativa para o efeito, tendo de ser substituído em tribunal pelo administrador da insolvência”.
Concluindo-se que o devedor insolvente, para além das hipóteses especificamente previstas na legislação de natureza insolvencial, mantém legitimidade processual (ativa e passiva) nos termos do artigo 30.º do CPC, tal conclusão, por maioria de razão, terá que ser extensível ao credor da insolvência que pretende que se declare nulo um negócio simulado, a fim de que o seu objeto possa ser incluído na massa insolvente, assim beneficiando todos os credores, não podendo o artigo 81.º, n.º 4 do CIRE ser interpretado como conferindo ao administrador da insolvência legitimidade ilimitada para toda e qualquer ação de natureza patrimonial em que se discutam interesses da insolvência (“caberá, desde logo, distinguir entre efeitos em relação ao insolvente e efeitos em relação aos atos praticados pelo insolvente” – Menezes Leitão, CIRE Anotado, 8.ª edição, Almedina, pág. 139).
Veja-se que, tendo o imóvel sido alienado vários anos antes da insolvência (foi alienado em 2019 e a insolvência decretada em 2024), logo, não existindo na titularidade do insolvente a essa data, não poderia ter integrado a massa insolvente. Por outro lado, dado o decurso desse tempo, o administrador da insolvência já não poderia proceder à resolução do negócio, nos termos do artigo 120º e seguintes do CIRE. Já não tinha, assim, legitimidade ativa, para poder ampliar a massa insolvente, por via da resolução de atos prejudiciais aos credores.
Deste modo, não existindo norma que especificamente transfira a legitimidade processual para o administrador da insolvência, deve concluir-se que, tal como a relação controvertida é configurada pelo autor, o titular do interesse diretamente relevante é o credor reclamante no processo de insolvência. Devem, portanto, aplicar-se as regras gerais previstas no artigo 30.º do CPC.
Caso se possa concluir, a afinal, que o negócio foi simulado, o efeito útil normal da decisão será o regresso do imóvel à titularidade do insolvente (dado o efeito retroativo da nulidade - art.º 289.º do CC), onde, por força dos efeitos da declaração de insolvência, será apreendido para a massa insolvente, aqui se concretizando o interesse do credor em demandar.
Conclui-se, assim, que a sentença recorrida não fez a correta aplicação da lei processual, impondo-se a sua revogação, com as inerentes consequências ao nível do prosseguimento da ação.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida e determinando-se o prosseguimento da ação.
Custas pelos apelados.

***
Guimarães, 29 de maio de 2025

Ana Cristina Duarte
Alcides Rodrigues
Maria dos Anjos Melo Nogueira