EXCEPÇÃO DO CASO JULGADO
CAUSA DE PEDIR
RESPONSABILIDADE DO GERENTE
SÓCIO
SOCIEDADE COMERCIAL
Sumário

Sumário:
1. Não é possível convidar o recorrente a aperfeiçoar as alegações de recurso quanto ao incumprimento dos ónus impostos a quem impugne a decisão relativa à matéria de facto.
2. A função negativa do caso julgado opera por via da excepção dilatória do caso julgado, pressupondo a sua verificação o confronto de duas ações, contendo uma delas decisão já transitada em julgado e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos, de pedido e de causa de pedir
3. Haverá identidade de pedido sempre que haja coincidência nos efeitos jurídicos pretendidos (ainda que implícitos), do ponto de vista da tutela jurisdicional reclamada e do conteúdo e objecto do direito reclamado; e identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico concreto, simples ou complexo, de que emerge o direito do autor e fundamenta legalmente a sua pretensão.
4. Sobre o autor não incide um ónus de concentrar todas as causas de pedir na primeira acção que proponha.
5. Perante a alegada actuação do réu como gerente de uma sociedade, de que o autor e réu são sócios, com a venda de imóvel propriedade daquela, o autor que pretende que o valor dessa venda reverta integralmente para si próprio, e não para a sociedade, não invoca um dano próprio e directo que possa ser indemnizável.

Texto Integral

Apelação n.º 2550/20.3T8PTM.E1
(1.ª Secção)

Relator: Filipe Aveiro Marques


1.º Adjunto: José António Moita


2.ª Adjunta: Ana Pessoa



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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO:

I.A.


AA, autor na acção de processo comum que tinha intentado contra BB, veio recorrer da sentença proferida pelo Juízo Central Cível de Portimão - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, que terminou com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, julgo a ação improcedente e, em consequência, decido absolver o réu do pedido.

Mais absolvo o autor do pedido de condenação como litigante de má fé.

Custas a cargo do autor.

Valor da ação: o já fixado, € 110 000.

Na petição o autor alegou, em suma, que autor e réu são sócios de uma sociedade comercial. O autor esteve doente e impedido de acompanhar a sociedade e, nesse período, aproveitando-se da ausência do autor, o réu vendeu 3 fracções autónomas que a sociedade tinha no seu património para uma outra sociedade de que era também sócio-gerente. Não foi pago o preço devido e, por isso, foi instaurada a acção 634/14.6... em que o Tribunal declarou a nulidade da venda e o cancelamento do registo de aquisição a favor da outra sociedade de duas das fracções. Quanto à terceira fracção, em causa nestes autos, a mesma foi adquirida por terceiros de boa-fé. Assim, o autor nunca foi ressarcido do valor da venda dessa terceira fracção (designada pela letra G) e o réu locupletou-se com esse valor para si. Deve, por isso, indemnizar o autor por esse valor.


Na contestação, o réu invocou, além do mais, que na referida acção 634/14.6... já foi formulado um pedido de reparação civil por danos relativamente à fracção que havia sido objecto de dupla alienação a terceiros de boa fé. O Tribunal não se pronunciou quanto a esse pedido e o autor não reagiu. Invoca as excepções da ilegitimidade, activa e passiva, de caso julgado e prescrição.


Em audiência prévia, o Tribunal a quo julgou improcedentes as excepções de ilegitimidade, de caso julgado e relegou o conhecimento da excepção da prescrição para final.


Realizou-se o julgamento.


Entretanto, foi junta aos autos certidão da sentença proferida no processo n.º 2806/20.5... e notificadas as partes para se pronunciarem quanto às excepções de litispendência e caso julgado.


Verifica-se que nesse processo n.º 2806/20.5... o mesmo autor AA veio intentar acção declarativa de condenação contra o mesmo réu BB pedindo a condenação deste a pagar-lhe uma indemnização de 165.170,00€.


Para tanto alegou, em suma, que autor e réu foram sócios de uma sociedade. O autor, por doença, ficou afastado da sociedade e, aproveitando-se disso, o réu vendeu 3 fracções do património da mesma a outra sociedade de que era também sócio. No artigo 8.º da PI o autor excluiu, expressamente, da sua pretensão a fracção com a letra “G” por já estar a decorrer outra acção judicial. Diz que apesar do preço declarado na escritura, o réu actuou em prejuízo do autor e da sociedade de ambos, que não recebeu o valor declarado pela venda das duas fracções (A e E). O autor já pediu a nulidade dos negócios e consequente reintegração dos bens no património da sociedade e foi decidido nesse sentido. Entretanto, a sociedade foi alvo de dissolução administrativa por via da gestão danosa do réu. O réu não devolveu ao autor o valor recebido pela venda dessas duas fracções.


Nessa acção o pedido do autor (assim identificado pelo Tribunal da Relação de Évora no Acórdão proferido nessa acção em 7/03/2024: “o pedido do autor (cuja legitimidade e bondade não se irá aqui discutir) funda-se na apropriação indevida, pelo réu, BB, do valor de 165 170,00 € (resultado da soma do valor patrimonial das duas frações em causa nos presentes autos, vendidas pela sociedade CC, Lda., de que eram sócios e gerentes o autor e o réu, e cuja nulidade da compra e venda, fundada em simulação, foi decretada por decisão transitada em julgado), a que o autor se julga com direito, e porque tal valor não lhe foi restituído pelo réu, pretende agora a sua condenação em indemnização equivalente àquele valor monetário” e que “não nos suscitam dúvidas que se trata de um pedido de natureza pecuniária, e não fundado em danos morais sofridos. Nada é alegado na petição inicial que integre o conceito de danos morais.”) foi julgado totalmente improcedente. Esse Acórdão do Tribunal da Relação de Évora já transitou em julgado em 16/09/2024.


Após consideração do decidido nessa outra acção n.º 2806/20.5... foi, então, proferida, em 15/12/2024, a sentença recorrida nesta acção n.º 2550/20.3T8PTM agora em apreciação. Consignou-se nessa decisão recorrida que: “Considerando que numa e noutra ação temos o mesmo autor e o mesmo réu; numa e noutra ação está em causa a atuação do réu como gerente da sociedade de que ambos eram sócios e a apropriação por este de montantes correspondentes ao prejuízo do autor, sendo que a quantia aqui pedida já estava integrada no montante superior peticionado na ação 2806 e que incluía pedido de indemnização por danos não patrimoniais, é de concluir pela tripla identidade que conduz à verificação do caso julgado. Note-se a factualidade dada por provada na ação n.º 2806 em tudo semelhante à que consta da alegação do aqui autor – cfr. fls. 227 v. E dela também consta factualidade aqui relevante, mas dada por não provada – cfr. fls. 229”. E concluiu-se pela verificação da excepção do caso julgado e absolveu-se o réu do pedido.

I.B.

O autor apresentou alegações e termina com as seguintes conclusões:

A. Pelo que, em suma se deveria ter dado como integralmente provado que: ficou demonstrado que o Recorrido BB exerceu as funções de gerente da mencionada sociedade entre 21-04-2008 e 21-02-2013. Em tudo, porque também se apurou, que o Recorrente ficou doente em Dezembro de 2009, situação que se agudizou no ano de 2010, com ausência no acompanhamento da actividade da sociedade “CC, Lda.” e que nesse período foi o réu BB que ficou, em exclusivo, com responsabilidades na gestão da sociedade. E deste modo, em 8 de Março de 2010, o Recorrido BB, em representação da sociedade “CC, Lda.”, declarou que, pelo preço global de € 110 000 (Cento e dez mil euros), que recebeu, vendia à sociedade “Blumonte, Lda.” a Fracção autónoma, designada pela letra “G”, correspondente ao terceiro andar, destinada a habitação.

B. E, conforme se demonstrou que no período em que ficou, em exclusivo, responsável pela gestão da sociedade “CC, Lda.”, o Recorrido BB não prestou quaisquer informações ou esclarecimentos ao autor acerca dos negócios da sociedade de que ambos eram sócios e gerentes. Pelo que, ao intervir na referida escritura pública de compra e venda, foi intenção do Recorrido BB enganar o Recorrente, transferindo aquele concreto imóvel no património da sociedade “CC, Lda.” para o património da sociedade “Blumonte, Lda.” da qual detinha 95% do capital social.

C. Sendo por demais evidente que o Recorrido não efectuou o pagamento do preço recebido pela transmissão da referida fracção G, e alienada posteriormente a terceiros de boa fé pelo Recorrido, ao aqui Recorrente.

D. Na verdade, o Recorrente, como sócio maioritário e também gerente da sociedade “CC, Lda.”, não foi informado – ou consultado – acerca da realização do negócio e se o fosse seguramente que não concordaria com os termos em que se realizou, por se traduzir no acto ruinoso para a disponente, para mais num período de reconhecida contração do mercado do imobiliário.

E. O Recorrido BB, com uma quota minoritária da sociedade “CC, Lda.”, sozinho, aproveitou-se do facto de ser gerente da mesma e exercer em exclusivo tais poderes na ausência do Recorrente, por razões de saúde, decidiu dispor gratuitamente de todos os bens imóveis da sociedade a favor de uma outra sociedade, por si controlada.

F. Em face do exposto, deve o Recorrente ser ressarcido do montante ora peticionado, devendo o Recorrido ser condenado na indemnização do valor em mora desde o momento da prática dos factos supra mencionados.

G. Não pode pois o Recorrente concordar com a motivação presente na douta sentença recorrida porquanto, entende o Recorrente, sempre com a devida vénia, que a convicção do Tribunal “a quo” que resultou quanto à factualidade dada como provada e resultou da posição das partes, mas não analisou em pormenor o facto ali dado como não provado, influi negativamente na sua convicção para elaborar a referida sentença recorrida.

H. Sempre com a devida vénia por opinião diversa, não pode o Recorrente conformar-se com a interpretação aduzida pelo Tribunal “a quo”, não podendo aceitar, nomeadamente no que concerne a ter-se considerado na douta sentença recorrida que: “Considerando que numa e noutra ação temos o mesmo autor e o mesmo réu; numa e noutra ação está em causa a atuação do réu como gerente da sociedade de que ambos eram sócios e a apropriação por este de montantes correspondentes ao prejuízo do autor, sendo que a quantia aqui pedida já estava integrada no montante superior peticionado na ação 2806 e que incluía pedido de indemnização por danos não patrimoniais, é de concluir pela tripla identidade que conduz à verificação do caso julgado.

I. Muito embora se admita, existir numa e noutra ação, que temos o mesmo autor e o mesmo réu; numa e noutra ação estar em causa a atuação do réu como gerente da sociedade de que ambos eram sócios e a apropriação por este de montantes correspondentes ao prejuízo do autor, os montantes reclamados não são iguais, porquanto numa ação corresponde o pedido ao valor das frações sem embargo, e independentemente de estar em causa também do pedido que o Recorrido, viesse a ser condenado a pagar-lhe a quantia de € 165 170 pela gestão danosa que fez da sociedade de que ambos eram sócios gerentes.:

a) Fracção autónoma, designada pela letra “A”, correspondente ao résdochão, apartamento A, destinada a habitação, com uso exclusivo do estacionamento com o no 2 e arrecadação na cave, com o valor patrimonial IMT de €81.450,00;

b) Fracção autónoma, designada pela letra “E”, correspondente ao segundo andar, apartamento A, destinada a habitação, com uso exclusivo do estacionamento com o no 3, com o valor patrimonial IMT de €83.720,00;

J. E na presenta ação corresponde tão somente ao valor da fração vendida terceiros de boa fé em que o Recorrido acabou por locupletar-se e enriquecer sem justa causa:

c) Fracção autónoma, designada pela letra “G”, correspondente ao terceiro andar, destinada a habitação, com uso exclusivo do terraço e garagem na cave com o no 4, com o valor patrimonial IMT de €104.700,00;

K. Ora, em boa verdade, é errado estabelecer que a quantia pedida na presente ação já estava integrada no montante superior peticionado na ação 2806, porquanto o valor aqui peticionado pelo Recorrente tem a ver com o valor recebido pelo Recorrido a terceiros de boa fé em nada semelhante ao valor peticionado naquela outra ação. Logo, não é pois de poder-se concluir, pela tripla identidade que conduz à verificação do caso julgado, porque efetivamente a mesma não existe.

L. No entendimento do Recorrente, por inexistir um nexo causal, ao invés do que aponta a sentença recorrida de que, a factualidade dada por provada na ação n.º 2806 é em tudo semelhante à que consta da alegação do aqui autor, porque basta atentar no acima exposto para se poder discernir, que tal não pode ser verdade, e consequentemente sendo irrelevante se dela também consta factualidade aqui relevante, mas dada por não provada.

M. E, concomitantemente, é completamente desajustado e desproporcional a decisão recorrida vir concluir que daí, se dá por verificada a exceção de caso julgado, sob pena de o Tribunal vir a apreciar uma outra vez os mesmos factos e um pedido que estava incluso no anterior, porque efetivamente o não estava.

N. Não perdendo de vista que, tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (...) – art.º 580.º do Código de Processo Civil (doravante CPC). Atento o facto, do constante no n.º 1 daquele dispositivo legal, em que, repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

O. O pedido formulado pelo Recorrente não no seu entendimento completamente coincidente, porquanto como já referido o valor da ação diz respeito ao valor da fração alienada a terceiros de boa fé quando na outra causa o valor da ação e ali peticionado diz respeito às outras duas frações, sendo por isso, desajustado o raciocínio evocado pelo tribunal a quo.

P. Efetivamente constata-se existir identidade de sujeitos verificando-se o disposto no n.º 2 pois há identidade de sujeitos quando as partes e são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica. Mas não obstante, já não existe no nosso entendimento, o previsto no n.º 3, quanto à identidade de pedido, porquanto numa e noutra causa não se pretende obter o mesmo efeito jurídico, por serem distintos.

Q. Na realidade, é até questionável, se efetivamente existe identidade de causa de pedir, quanto a pretensão deduzida nas duas ações, pois estamos em crer, que não procede inteiramente do mesmo facto jurídico. Sempre com a devida vénia por entendimento diverso, e salvo melhor opinião, face ao supra exposto, tendencialmente constata-se, que o Tribunal “a quo” no nosso entendimento, deixou de pronunciar-se sobre questões que deveria apreciar, ou ainda efetuou uma errada interpretação quanto aos pedidos efetuados em ambos os processos (al. d) do n.º 1, art.º 615.º do CPC).

R. Note-se que, a questão principal a decidir é a de saber se há motivo para condenar o Recorrido no pagamento de indemnização ao Recorrente. Ao autor nunca foi pago qualquer valor relativo à venda da fração autónoma, designada pela letra “G”, cujo preço de venda foi de € 110 000,00”(nosso sublinhado e negrito)

S. Pelo que se impugna por não ser verdade a Factualidade não provada, em que pretende o Tribunal “a quo” “que ficou por demonstrar: - Que o réu se tenha locupletado com o montante da venda deste imóvel, correspondente à fração autónoma, designada pela letra “G” (art.º 25.º da petição inicial).”

T. Ora, decorre do supra exposto que o Recorrente, ao praticar o referido negócio nunca pagou o valor do preço por ele recebido ao Recorrente, e como tal, locupletou-se com o montante da venda deste imóvel, correspondente à Fracção autónoma, designada pela letra “G, deduzindo assim esse valor ao património do autor. Porquanto entende pois o Recorrente que o Recorrido não pode nem deve ficar impune, por ter agido de má-fé ab initio, pelo que face ao exposto, requer desde logo lhe seja aplicado a título de indemnização o valor de € 110 000,00 (cento e dez mil euros), correspondente ao valor recebido pela fração G, alienada pelo Recorrido sem o conhecimento do Recorrente, acrescido de juros de mora desde o momento da prática do facto ilícito, a pagar ao Recorrente. Considerandose que esse concreto facto que foi dado como não provado, deveria figurar sim como facto provado, devendo constar na sentença recorrida como tal, pelo que se tem por impugnada esse facto que na substância reproduz a causa de pedir e o pedido em si mesmo da presente ação.

U. Resulta pois, que o Recorrido alienou pelo valor global de 110.000,00 (cento e dez mil euros), não tendo entregado tal montante à sociedade “CC, Lda. ” nem desse facto dado conhecimento ao Recorrente, e bem assim o Recorrido locupletou-se com tal valor, só para si, nunca o tendo entregue ao Recorrente.

V. Acresce que, como consequência de tal conduta e da posterior não restituição daquela quantia, resultou directamente, para o Recorrente, um prejuízo naquele valor (uma vez que se viu privado daquela verba), verificando-se um nexo de causalidade adequado entre aquele facto e este dano.

W. E, que assim, constituindo o prejuízo causado ao autor no valor global actual de 110 000,00 € está o Recorrido obrigado a reconstituir a situação que existiria se tal facto não se tivesse verificado (cfr. art. 562.° do Código Civil), através da entrega ao Recorrente de igual montante, conforme peticionado inicialmente.

Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser julgado e considerado procedente e consequentemente ser revogada a decisão recorrida que decretou julgar improcedente o pedido do Recorrente, e determinou (com a devida vénia) erradamente, a absolvição do Recorrido.

E por conseguinte dar continuidade à pretensão do recorrente, nos termos ali peticionados.

I.C.

A recorrida apresentou resposta, pugnando pela improcedência do recurso.


I.D.


O recurso foi devidamente recebido pelo tribunal a quo.


Após os vistos, cumpre decidir.



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II. QUESTÕES A DECIDIR:

As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).


No caso impõe-se apreciar:

a. Impugnação da matéria de facto;

b. Se estão preenchidos os requisitos da excepção do caso julgado;

c. Em caso negativo, se estão reunidos todos os pressupostos da responsabilidade civil;

d. Ou se está prescrito o eventual direito indemnizatório do autor.



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III. FUNDAMENTAÇÃO:

III.A. Fundamentação de facto:

III.A.1 Impugnação da matéria de facto:

O recorrente não cumpriu minimamente os requisitos do artigo 640.º do Código de Processo Civil.


Percorrendo as suas conclusões (e mesmo as suas alegações), embora tenha apontado quais os concretos pontos dos factos que considera incorrectamente julgados, não indicou os meios de prova nos quais funda essa pretensão (e não o fez nas conclusões nem na alegação).


Ora, quando impugna a matéria de facto, o recorrente tem de cumprir os ónus que sobre si impendem, sob pena de rejeição, conforme preceituado no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil.


De tal preceito decorre que, na impugnação da matéria de facto, a lei exige o cumprimento pelo Recorrente dos seguintes requisitos cumulativos:

1. a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

2. a indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados;

3. a indicação da decisão que, no seu entender, deve ser proferida quanto aos indicados pontos da matéria de facto;

4. a indicação, com exatidão, das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, isto quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sem prejuízo da faculdade que a lei concede ao Recorrente de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.


Estes requisitos impostos para a admissibilidade da impugnação da decisão de facto têm em vista garantir uma adequada delimitação do objecto do recurso, não apenas para circunscrever o âmbito do poder de cognição do tribunal de recurso, mas também para que a outra parte tenha a possibilidade de exercer o contraditório com o âmbito previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 640.º, designadamente indicando os meios de prova que, a seu ver, infirmem as conclusões do recorrente.


O que se visa é circunscrever a reapreciação do julgamento efetuado a pontos concretos da matéria controvertida, uma vez que os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto não visam a realização de um segundo julgamento de toda a matéria de facto, devendo consequentemente recusar-se a admissibilidade de recursos genéricos contra uma invocada errada decisão da matéria de facto.


Quando falte a especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, deve ser rejeitado o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, o mesmo sucedendo quanto aos restantes dois requisitos, nomeadamente a falta de indicação da decisão pretendida sobre esses mesmos factos (ver António Abrantes Geraldes1).


Como se sumariou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/02/2022 (processo n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S12):

I. Os ónus primários previstos nas alíneas a), b) e c) do art.º 640.º do CPC são indispensáveis à reapreciação pela Relação da impugnação da decisão da matéria de facto.

II. O incumprimento de qualquer um desses ónus implica a imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.

No mesmo sentido, sumariou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/02/2024 (processo n.º 2351/21.1T8PDL.L1.S1[3]): “Para o cumprimento do ónus de especificação do art. 640.º, n.º 1, do CPC, os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respectivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios e à exigência da decisão alternativa, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação”.


Também para esta solução aponta a jurisprudência constante deste Tribunal, de que é exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10/10/2024 (processo n.º 1109/21.2T8ENT.E1[4]).


Não está prevista a possibilidade de convidar o recorrente a aperfeiçoar as alegações de recurso quanto ao incumprimento dos ónus impostos a quem impugne a decisão relativa à matéria de facto.


Não será, consequentemente, de reapreciar no presente caso a decisão proferida sobre a matéria de facto, impondo-se a imediata rejeição do recurso nessa parte.


Pelo exposto, rejeita-se o recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto, mantendo-se a decisão de facto expressa na decisão recorrida.



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III.A.2 Factos provados:

Considera-se a seguinte matéria de facto provada tal como consta da decisão recorrida:

1. O Autor e o Réu, BB, foram sócios da Sociedade, denominada de “CC, Lda.”, conforme certidão da constituição da firma – fls 10 (art. 1.º da petição inicial)

2. O Autor foi o sócio-gerente maioritário da Sociedade “CC, Lda.” (art. 2.º da petição inicial)

3. O Réu, BB, no período decorrido entre 21/04/2008 a 08/03/2013, foi também sócio e gerente da Sociedade “CC, Lda. ”, ora Ré (art. 3.º da petição inicial)

4. A sociedade foi dissolvida e cancelada a respetiva matrícula em 2015 – fls. fls. 173 (art. 5.º do Código de Processo Civil)

5. O Autor ficou doente em dezembro de 2009 – fls.12 (art. 4.º da petição inicial)

6. No ano de 2010, o Autor esteve doente– fls. 13 e ss. (art. 5.º da petição inicial)

7. Não se manteve a par do que sucedia na Sociedade “CC, Lda.” (art. 6.º da petição inicial)

8. Neste período, ficou o Réu, BB, responsável pela mesma, uma vez que detinha a qualidade de sócio-gerente, da referida Sociedade “CC, Lda.” (art. 7.º da petição inicial)

9. A Sociedade “CC, Lda.” detinha no seu património três frações autónomas, designadamente: a) Fração autónoma, designada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão, apartamento A, destinada a habitação, com uso exclusivo do estacionamento com o nº 2 e arrecadação na cave, com o valor patrimonial IMT de €81.450,00; b) Fração autónoma, designada pela letra “E”, correspondente ao segundo andar, apartamento A, destinada a habitação, com uso exclusivo do estacionamento com o nº 3, com o valor patrimonial IMT de €83.720,00; c) Fração autónoma, designada pela letra “G”, correspondente ao terceiro andar, destinada a habitação, com uso exclusivo do terraço e garagem na cave com o nº 4, com o valor patrimonial IMT de €104.700,00, frações do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o n.º ... – fls 14 v. e ss. (art. 8.º da petição inicial)

10. O Réu, BB, munido do poder que detinha na ausência do Autor, na qualidade de sócio-gerente da Sociedade “CC, Lda.”, vendeu a 08/03/2010, as referidas frações autónomas, por um valor global de €281.000,00 (€ 85 000, a fração “A”; € 88 000, a fração “E” e € 180 000, a fração “G”) à Sociedade “BLUMONTE, Lda.”, representada pela Sra. DD – fls. 17 e ss. (art. 9.º da petição inicial)

11. O Réu, BB, assinou a escritura de compra e venda das frações, em representação da Sociedade “CC, Lda.”, transacionando as ditas frações autónomas para o ativo patrimonial da Sociedade “BLUMONTE, Lda.”, de que também era sócio-gerente, com uma quota de 95% do respetivo capital – fls 19 v. (arts. 10.º e 12.º (parte) da petição inicial)

12. O autor tomou conhecimento das vendas realizadas “CC, Lda.” na sua ausência (art. 11.º da petição inicial)

13. O autor propôs ação, a qual correu trâmites no processo n.º 634/14.6..., a qual terminou por sentença de 22 de outubro de 2015, assim: julga-se a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum instaurada por AA contra BB, “Blumonte, Lda.”, DD, “CC, Lda.”, EE e FF, parcialmente procedente e por via disso: (i) Declara-se a nulidade, por simulação, da compra e venda realizada entre as sociedades “CC, Lda.” e “Blumonte, Lda”, em 8 de Março de 2010, relativamente os prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob os n.ºs ...-A e ...-E, ambos da freguesia de Portimão; (ii) Determina-se o cancelamento dos seguintes registos: o Aquisição a favor da ré “Blumonte, Lda.” da fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão, apartamento A, destinada a habitação, com uso exclusivo do estacionamento com o n.º 2 e arrecadação na cave, descrita na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o n.º ...-A, da freguesia de Portimão, cujo registo foi efectivado a partir da AP 2427 de 2010/03/12; e Aquisição a favor da ré “Blumonte, Lda.” da fracção autónoma, designada pela letra “E”, correspondente ao segundo andar, apartamento A, destinada a habitação, com uso exclusivo do estacionamento com o n.º 3, descrita na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o n.º ...-E, da freguesia de Portimão, cujo registo foi efectivado a partir da AP 2427 de 2010/03/12; (iii) No mais improcede a acção, absolvendo-se os réus do demais peticionado pelo autor – fls. 89 e ss. (arts. 13.º a 15.º da petição inicial)

14. Cuja decisão veio confirmada em sede de recurso de apelação, pelo Tribunal da Relação de Évora, em janeiro de 2017 (art. 14.º da contestação)

15. E pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 07 de maio de 2018 (art. 15.º da contestação)

16. No âmbito desse processo, de início, num plano subsidiário, foi oportunamente acoplado ao pedido principal do Autor, um pedido de reparação civil por danos, relativamente à fração imobiliária que havia sido objeto da dupla alienação a terceiros de boa fé (art. 16.º da contestação)

17. O tribunal foi claro quanto ao destino da fração, não se pronunciando quanto ao pedido subsidiário então formulado (art. 17.º da contestação)

18. Foi dada oportunidade de defesa e resposta ao Autor para reiterar tempestivamente, no âmbito de recurso de apelação, a sua intenção de ressarcimento por danos (arts. 18.º e 19.º da contestação)

19. Resultou aí provado que ao intervirem na escritura púbica de «compra e venda e mútuo com hipoteca», realizada em 17 de janeiro de 2011, e ao adquirirem a fração autónoma designada pela letra “G”, descrita na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o n.º ...-G, da freguesia de Portimão, EE e FF desconheciam os termos e as circunstâncias que rodearam o negócio alcançado entre as sociedades “CC, Lda.” e “Blumonte, Lda.”, em 8 de Março de 2010 – fls 89 e ss. (art. 16.º da petição inicial)

20. Através da AP 2001/01/12, confirmada em 2011/01/18, foi a fração registada a favor de EE e FF, por compra a “Blumonte, Lda.”, a aquisição do imóvel descrito na Conservatória do registo Predial de Portimão sob o n.º ...-G, da freguesia de Portimão (art. 24.º da petição inicial)

21. Ficou assim decidido que os adquirentes são titulares de um direito real – direito de propriedade; adquiriram-no a título oneroso – € 110 000; o direito incide sobre um imóvel; são terceiros de boa-fé – no momento da aquisição desconheciam as vicissitudes anteriores ao negócio que tiveram por objeto a dita fração (arts. 17.º e 18.º da petição inicial)

22. Os adquirentes EE e FF mantêm, assim, intocados todos os direitos sobre a fração autónoma descrita na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o n.º ...-G (art. 19.º da petição inicial)

23. Ao autor nunca foi pago qualquer valor relativo à venda da fração autónoma, designada pela letra “G”, cujo preço de venda foi de € 110 000 (arts. 21.º e 22.º da petição inicial)

24. BB exerceu funções de administração e gerência de facto da sociedade CC, Lda. (art. 25.º da contestação) devido à ausência do sócio AA, o qual, contudo, se manteve na qualidade de gerente (vide, certidão permanente – doc nº 1) (arts. 26.º e 27.º da contestação)

25. Nesses termos e autos, decidiu o Tribunal de Primeira Instância anular os dois atos de disposição de alienação, condenando a Ré / àquela data, Blumonte Lda à restituição de duas frações para o património inicial, isto é donde havia sido alienada (art. 31.º da contestação)

26. Na ação n.º 2806/20.5..., AA demandou BB, pedindo que viesse a ser condenado a pagar-lhe a quantia de € 165 170 pela gestão danosa que fez da sociedade de que ambos eram sócios gerentes. O pedido consistiu expressamente no seguinte: pretende o autor ser ressarcido pelos prejuízos que advieram da conduta do réu, pela celebração de negócios simulado relativos à venda das frações “A” e “E”, assim como pelo facto de não ter prestado as contas no período em que ficou responsável pela gestão da sociedade, tendo-se discutido se o réu se apropriara ou não de alguns montantes enquanto esteve na gerência de facto da sociedade, concluindo-se no sentido “não provado” - cfr. fls. 235/239.

27. Aí, foram arguidas exceções como o caso julgado e a prescrição, não julgadas procedentes.

28. Nessa ação, foi o réu condenado a pagar ao autor a título de danos não patrimoniais (dando por não provados os patrimoniais). Depois, o Tribunal da Relação de Évora julgou procedente a apelação e absolveu o réu do pedido contra si formulado (acórdão de 7 de março de 2024), de que foi interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que decidiu não conhecer do objeto do recurso – cfr. despacho de 3 de setembro.

29. Aí, o réu foi citado no dia 5 de janeiro de 2021.

30. Aqui, o réu foi citado no dia 25 de novembro de 2020.



*




III.A.2. Factos não provados:


Continuará a constar do elenco dos factos não provados:


- Que o réu se tenha locupletado com o montante da venda deste imóvel, correspondente à fração autónoma, designada pela letra “G” (art. 25.º da petição inicial)



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III.B. Fundamentação jurídica:


A. A excepção do caso julgado desta acção no confronto com a decisão proferida no processo 634/14.6... já foi decidida nos autos (decisão proferida em despacho saneador com a qual as partes se conformaram e, por isso, é obrigatória – cf. artigo 620.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).


Resta apurar, porque é esse o objecto do recurso, se no confronto com o decidido no processo n.º 2806/20.5..., se verificam os requisitos da excepção do caso julgado.


A decisão definitiva proferida nesse processo n.º 2806/20.5... passou a ter os efeitos (positivo e negativo) do caso julgado.


A função negativa do caso julgado opera por via da excepção dilatória do caso julgado, pressupondo a sua verificação o confronto de duas ações – contendo uma delas decisão já transitada em julgado – e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos, de pedido e de causa de pedir (neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/12/2017, processo n.º 1565/15.8T8VFR-A.P1.S1[5]).


A autoridade de caso julgado (efeito positivo do caso julgado) tem por finalidade evitar que a relação jurídica material, já definida por uma decisão definitiva, possa voltar a ser apreciada de modo diferente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica, pressupondo a vinculação de um tribunal de uma acção posterior ao decidido numa acção anterior, ou seja, que a decisão de determinada questão (proferida em acção anterior e que se inscreve, quanto ao seu objeto, no objecto da segunda) não possa voltar a ser discutida (neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/10/2024, processo n.º 46/21.5T8VFL-B.G1-A.S1[6]).


Ao contrário do efeito negativo do caso julgado (a já referida excepção dilatória do caso julgado, que pressupõe para a sua verificação o confronto de duas acções, sendo uma delas decisão já transitada e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos, de pedido e de causa de pedir), a autoridade de caso julgado funciona independentemente da verificação daquela tríplice identidade. Entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13/09/2018 (processo n.º 687/17.5T8PNF.S1[7]), de 6/11/2018 (processo n.º 1/16.7T8ESP.P1.S1[8]), de 28/03/2019 (processo n.º 6659/08.3TBCSC.L1.S1[9]), de 25/03/2021 (processo n.º 12191/18.0T8LSB.L1.S1[10]) e de 11/07/2023 (processo n.º 2816/20.2T8BRG.G2.S2[11]).


Importa considerar o que ensina Miguel Teixeira de Sousa[12]: “O caso julgado assegura a confiança nas decisões dos tribunais, pois que evita o proferimento de decisões contraditórias por vários tribunais. Para obter este desiderato o caso julgado produz, como bem se sabe, dois efeitos: um efeito impeditivo, traduzido na excepção de caso julgado, e um efeito vinculativo, com expressão na autoridade do caso julgado. Aquela excepção visa obstar à repetição de decisões sobre as mesmas questões (ne bis in idem), impede que os tribunais possam ser chamados não só a contrariarem uma decisão anterior, como a repetirem essa decisão. Em contrapartida, a autoridade de caso julgado garante a vinculação dos tribunais e dos particulares a uma decisão anterior, pelo que impõe que aqueles tribunais e estes particulares acatem (e, neste sentido, respeitam) o que foi decidido anteriormente”.


Assim, existirá a excepção do caso julgado quando se verifica a repetição de uma causa depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário (cf. artigo 580.º, n.º 1, parte final, do Código de Processo Civil).


Por sua vez, esclarece o artigo 581.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que se repete a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.


Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (n.º 2 desse artigo), identidade de pedido quando numa e noutra se pretende obter o mesmo efeito jurídico (n.º 3 da norma em análise) e identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico (n.º 4. do referido artigo).


Verifica-se, seguindo o referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/12/2017 (processo n.º 1565/15.8T8VFR-A.P1.S1[13]), que existirá:

1) A identidade de sujeitos: quando as partes se apresentem com a mesma qualidade jurídica perante o objeto da causa, quando sejam portadoras do mesmo interesse substancial, independentemente da sua identidade física e da posição processual que ocupam, no lado ativo ou passivo da lide;

2) A identidade de pedido: sempre que haja coincidência nos efeitos jurídicos pretendidos (ainda que implícitos), do ponto de vista da tutela jurisdicional reclamada e do conteúdo e objecto do direito reclamado, importando avaliar a posição das partes quanto à relação material; ocorrerá identidade de pedido se existir coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional (implícita ou explícita) pretendida pelo autor e do conteúdo e objecto do direito a tutelar, na concretização do efeito que, com a ação, se pretende obter.

3) A identidade de causa de pedir: quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico concreto, simples ou complexo, de que emerge o direito do autor e fundamenta legalmente a sua pretensão, constituindo um elemento definidor do objecto da acção; e, de acordo com a “teoria da substanciação”, tal factualidade afirmada pelo autor de que faz derivar o efeito jurídico pretendido terá de traduzir a causa geradora (facto genético) do direito alegado ou da pretensão invocada, de modo a individualizar o objecto do processo e a prevenir assim a repetição da mesma causa.

No caso concreto, na presente acção e no processo n.º 2806/20.5..., existe claramente identidade de sujeitos: ambas as acções foram propostas pelo mesmo autor e contra o mesmo réu, pelo que as partes se apresentam com a mesma qualidade (o mesmo interesse) perante o objecto de ambas as acções.


Verifica-se, por outro lado, que na presente acção, no confronto com essa acção n.º 2806/20.5..., o pedido não é totalmente coincidente. Desde logo, aqui pretende‑se uma indemnização no valor de 110.000,00€ e na outra acção n.º 2806/20.5... uma indemnização no valor de 165.170,00€.


Implicitamente, porém, o que se verifica é que a coberto de uma pretensão indemnizatória, o que o autor pretende nesta acção é reaver o valor da fracção G (que foi, na sua versão, vendida a terceiros de boa fé). E, na outra acção n.º 2806/20.5..., pretendeu o autor reaver a soma do valor patrimonial das duas frações em causa nesses autos (fracções A e E).


A causa de pedir nas duas acções, tendo muitos pontos em comum, divergem num ponto essencial: na acção agora em causa o que está em causa é a situação jurídica da fracção G, vendida a terceiros e, portanto, não pode voltar a entrar na esfera patrimonial da sociedade de ambos; já na outra acção n.º 2806/20.5... o autor expressamente deixou de fora tudo o que se relaciona com essa fracção G, fundando a sua pretensão em novos factos relativos às fracções A e E (alegou o autor que, tendo estas fracções reentrado na esfera jurídica da sociedade – por força do decidido no processo 634/14.6... –, esta se dissolveu por culpa do réu).


Não existe, por isso, identidade de causa de pedir.


Nas palavras de António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa[14], sobre o autor não incide nenhum ónus de concentração de todas as causas de pedir na acção que proponha. Pelo que, tendo intentado esta acção com o n.º 2550/20.3T8PTM o autor não ficou impedido de propor outra acção, com o n.º 2806/20.5..., com diferente causa de pedir (sendo que nessa segunda acção, que veio a terminar mais cedo, não foi levantada nem decidida qualquer excepção de litispendência). Nem o decidido nessa acção n.º 2806/20.5... pode impedir a apreciação do que o autor havia pedido nesta acção anteriormente proposta e que ainda está em apreciação.


Assim, deverá proceder esta parte do recurso.


B. Entrando na análise da pretensão expressa na petição inicial, não pode deixar de se salientar a estranheza de, perante a alegada actuação do réu como gerente de uma sociedade e venda de imóvel propriedade desta (e não propriedade do autor), o autor pretenda que o valor dessa venda reverta integralmente para si próprio e não para a sociedade.


Por ser assim, não se inscreve a presente acção na previsão do artigo 77.º do Código das Sociedades Comerciais (acção social em que os interessados fazem valer não um direito próprio, mas um direito da própria sociedade, à qual se sub-rogam – neste sentido António Menezes Cordeiro[15]). Reafirma-se: o autor nada pede para a sociedade, que era a proprietária da fracção G.


Tratar-se-ia, pelo contrário, de uma acção instaurada ao abrigo do regime do artigo 79.º do Código das Sociedades Comerciais?


Os gerentes respondem, nos termos gerais, para com os sócios e terceiros pelos danos que directamente lhes causarem no exercício das suas funções. Mas, nos termos deste artigo 79.º, só se admite a responsabilidade para com os sócios na base de danos directos. É de excluir, portanto, que um prejuízo causado à sociedade e que só indirectamente afecta os sócios seja fundamento de uma “acção individual” destes.


Os danos causados directamente pelo gerente aos sócios são aqueles que, assentes em responsabilidade delitual comum (com os requisitos do artigo 483.º do Código Civil), ocorrem em termos que não são interferidos pela presença da sociedade – designadamente, a recusa ilícita de informações ou o fornecimento de informações falsas que causem prejuízos –, sendo irrelevante para a produção de tais danos, ainda que invocada, a representação da sociedade (neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/01/2014, processo n.º 548/06.3TBARC.P1.S1[16]).


No caso, apenas vem invocado um dano provocado à sociedade com a venda de um bem desta, sem que tenha entrado no património desta o respectivo valor e sem que o bem possa regressar à sua esfera jurídica, por ter sido adquirido por terceiros de boa fé. Não se vislumbra que o autor tenha invocado (e, consequentemente, tenha logrado provar) qualquer dano na sua esfera jurídica que pudesse fundar o pedido indemnizatório: na sua alegação, apenas foi afectado o património da sociedade.


Contra essa conclusão não pode invocar-se a circunstância de a sociedade entre autor e réu se ter dissolvido administrativamente após ter sido instaurada a presente acção. É que não resultou provado que a sociedade tenha sido liquidada e sempre poderia, numa operação posterior, ser verificado o crédito e partilhado pelos sócios (cf. artigos 146.º e 164.º do Código das Sociedades Comerciais).


A sociedade comercial é uma pessoa colectiva distinta das pessoas físicas que a fundaram ou exprimem a sua vontade, com um património próprio que não se confunde com o dos seus sócios. Na verdade, é o património da sociedade que responde pelas suas dívidas próprias, libertando o património pessoal dos sócios e administradores dessa função (ver, desde logo, o disposto nos artigos 197.º, n.º 3, 270.º-G e 271.º do Código das Sociedades Comerciais), pelo que não podem estes sócios e gerentes ou administradores tratar o património da sociedade como se fosse seu.


Os danos indirectos (aqueles que se produzem no património da sociedade e que indirectamente prejudicam os sócios, ao reduzirem o valor das suas participações sociais) não são indemnizáveis por este regime (neste sentido ver Pedro Pais de Vasconcelos[17]).


De resto, os danos provocados ao património social ou a gestão negligente poderão originar responsabilização dos gerentes e administradores para com a sociedade, mas não uma responsabilização perante os accionistas ou sócios[18].


Não sendo aplicável este regime do artigo 79.º do Código das Sociedades Comerciais, a verdade é que não se vislumbra poder a pretensão do autor ser procedente ao abrigo do regime geral da responsabilidade civil do artigo 483.º do Código Civil. Não resulta dos factos qualquer dano na esfera jurídica do autor (nem mesmo indirecto, já que nem se provaram factos de onde se pudesse retirar qualquer diminuição no valor da sua participação social) e, consequentemente, por faltarem os pressupostos da responsabilidade civil, deverá improceder totalmente a sua pretensão (e fica, naturalmente, prejudicada a apreciação da prescrição do seu invocado direito).


Por outras palavras, deverá manter-se, com fundamento diverso, a decisão de absolvição do pedido.



*




As custas do presente recurso deverão ficar a cargo do recorrente, por ter ficado vencido, nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.



***




IV. DECISÃO:


Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, em conformidade e com fundamento diverso, confirma-se a sentença recorrida que absolveu o réu do pedido.


Condena-se o autor/apelante nas custas do recurso.


Notifique.



Évora, 8 de Maio de 2025


Filipe Aveiro Marques


José António Moita


Ana Pessoa

_______________________________________________

1. Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição, Almedina, pág. 200 e ss..↩︎

2. Acessível em https://www.dgsi.pt/JSTJ.NSF/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/526a06e36e808e84802587e3003cb7ce.↩︎

3. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1007b672c0f9ed2980258ad6005cfad7.↩︎

4. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/009a5f03f424577380258bc5005038be.↩︎

5. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/B2074A7D03F4D3CE802581F3003673FD.↩︎

6. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1d5a143ab48258b080258bac005a3c86.↩︎

7. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ea1d753bcfa855b680258308003969f8.↩︎

8. Acessível em https://www.jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2018:1.16.7T8ESP.P1.S1.57/pdf.↩︎

9. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/66ac27dbde8eeafb802583cc0033c3e0.↩︎

10. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7dcab5823e92786a802586d80030b42f.↩︎

11. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4da373470fd2a11d802589ea002f0c8f.↩︎

12. Preclusão e “contrário contraditório” (Ac. do STJ de 10.10.2012, Proc. 1999/11), Cadernos de Direito Privado, n.º 41, Maio de 2013, pág. 24 e 25.↩︎

13. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/B2074A7D03F4D3CE802581F3003673FD.↩︎

14. Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2.ª Edição, Almedina, pág. 688.↩︎

15. Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2.ª Edição, Almedina, pág. 286.↩︎

16. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1acc0d24e39e7c0d80257c7b00557d58.↩︎

17. “Responsabilidade civil dos gestores das sociedades comerciais”, Direito das Sociedades em Revista, ano 1, vol 1 – Março de 2009, pág.s 29 e 30.↩︎

18. “Responsabilidade civil dos gerentes e administradores das sociedades comerciais por danos causados aos trabalhadores”, Revista Julgar, n.º 42, pág. 20.↩︎