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EMBARGOS DE EXECUTADO
LIVRANÇA EM BRANCO
PACTO DE PREENCHIMENTO
AVALISTA
INTERPELAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Sumário
1. No contexto da celebração de um contrato de mútuo, tendo um terceiro (potencial avalista) inscrito num impresso de modelo de livrança, parcialmente “em branco”, os dizeres “bom para aval” e aposto a sua assinatura, bem como subscrito um pacto de preenchimento que confere ao mutuante (beneficiário/promissário) o direito de preencher a livrança em caso de incumprimento das obrigações do mutuário (subscritor/promitente), não impõe a lei que o mutuante interpele o primeiro (potencial avalista) para proceder ao pagamento da prestação do mútuo incumprida pelo mutuário, antes de exercer a faculdade prevista no art. 781.º do Cód. Civil, quando esse terceiro conhecia ou não podia ignorar a situação de incumprimento. 2. As normas enunciadas nos arts. 781.º e 782.º do Cód. Civil não são aplicáveis às obrigações cambiárias, por estas não gerarem dívidas liquidáveis em prestações.
Texto Integral
Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
A. Relatório
A.A. Identificação das partes e indicação do objeto do litígio
Por apenso à execução que lhes move a Caixa Geral de Depósitos, S.A., Aaa e Bbb deduziram os presentes embargos de executado, pedindo, no essencial, que:
“2. Seja declarada a nulidade do título executivo, em razão da ausência de boa-fé e abuso de direito da Embargada, além da ausência de notificação prévia às Embargantes, nos termos do artigo 805.º, n.º 1 do Código Civil, e, subsidiariamente, seja concedido um prazo para pagamento da dívida vencida a contar da citação das Embargantes, em conformidade com o artigo 781.º do Código Civil, de modo a considerar a perda do benefício do prazo para o devedor principal não se estende às avalistas.
3. Considerando-se o benefício do prazo para pagamento das prestações vencidas, que seja reconhecido o pagamento dessa na importância de 23.762,33 €, bem como determinado que a Embargada emita a fatura deste pagamento e que as prestações vincendas sejam realizadas nos respetivos prazos estabelecidos no contrato.
4. Seja reconhecido que o pagamento parcial da dívida, com o ajuste do montante da dívida executada, considerando-se a nulidade da livrança, baseado na Lei Uniforme em Matéria de Letras e Livranças, que rege a regulação da Livrança e no 713.º do Código de Processo Civil, que exige que a execução seja fundamentada em título que contenha obrigação certa, líquida e exigível. (…)”
Para tanto, alegaram, no essencial, que: a) subscreveram a livrança (ainda em branco) que serve de título executivo, como avalistas, no âmbito de um contrato de mútuo celebrado com uma sociedade terceira; b) perante o incumprimento de uma prestação do mútuo pela mutuária, a mutuante (exequente e embargada) operou o vencimento antecipado das prestações vincendas, sem antes ter interpelado as embargantes para procederem ao pagamento da prestação incumprida, o que lhes teria permitido evitar o avolumar da dívida; c) a omissão referida no número anterior impede a perda do benefício do prazo e, ou, representa um exercício abusivo do direito, sendo nula a cláusula 20A do contrato de mútuo que a cauciona; d) a livrança foi preenchida quando ainda decorria a negociação para regularização da dívida, o que viola o dever de boa-fé contratual; e) a livrança foi preenchida por valor superior ao da dívida total, uma vez que houve o pagamento parcial do crédito subjacente;
Notificada a embargada, ofereceu esta a sua contestação, reiterando a regularidade da instância executiva.
Após realização da audiência final, o tribunal a quo julgou os embargos improcedentes, determinando “a prossecução da execução”.
Inconformadas, as embargantes apelaram desta decisão, concluindo, no essencial:
6 – (…) [N]ão há como provar que as cartas apresentadas na contestação da recorrida foram de facto enviadas para as recorrentes.
7 – Por esse motivo, não poderia o tribunal a quo considerar o ponto Q como sendo um facto provado, razão que a imagem que consta abaixo do ponto deveria ser excluída e a redação alterada para:
. “Q. Foram enviadas cartas registadas, datadas de 10/02/2023, para a morada sita em “Rua RRR, BL B, Nº 4, 3º D, Lisboa”, cujo conteúdo da carta é desconhecido”. *
10 – (…) [N]os pontos CC e DD, o juízo a quo alega que é um facto provado que a recorrente Bbb recebeu um e-mail no dia 10/08/2023.
11 – Acontece que não existe nenhum documento neste processo que é um e-mail rececionado pela recorrente – Bbb no dia 10/08/2023 (…).
12 – Isto posto, os pontos “CC” e “DD” da sentença devem ser alterados por não ter existido o e-mail que é referido na sentença, razão que os pontos deveriam ser unificados e a redação alterada para a que segue: . “CC. Em 04/08/2023, a embargada comunicou à embargante Bbb, através de carta registada, sobre um prazo de 15 dias para realizar o pagamento do valor em dívida ou apresentar proposta de pagamento: [com o teor do documento referido no ponto DD]” *
19 – Além disso, ainda que se considere a carta do ponto Q verdadeira e válida como notificação, a cobrança efetuada pela recorrida não se limitava às prestações em incumprimento, mas sim à totalidade do contrato, no montante de € 61.745,61.
20 – Ou seja, antes de conceder o benefício do prazo para as avalistas, o contrato já foi considerado vencido pela recorrida.
21 – O ponto acima viola a cláusula contratual 26.4 do próprio contrato de mútuo (…).
26 – (…) [A] recorrida exigiu a totalidade do contrato sem notificar as avalistas previamente, de forma a violar o artigo 782.º do Código Civil (…).
29 – Por esse motivo, a sentença deveria ser alterada a fim de considerar a nulidade do título executivo, uma vez que antes de realizar o preenchimento da livrança, não foi respeito o benefício do prazo de pagamento das avalistas, nos termos do art. 782.º do CC. *
29 [bis] – (…) [A] cláusula 20.A do contrato de mútuo (…) e os seus respetivos pontos devem ser declarados nulos, caso entenda-se que a antecipação da totalidade da dívida poderia ser exigida automaticamente contra os avalistas em virtude de um simples incumprimento do devedor principal. *
33 – (…) [O] procedimento da recorrida em antecipar o contrato sem qualquer interpelação prévia dos avalistas deveria ser considerado como abuso de direito e violação do art. 334.º do Código Civil. *
36 – (…) [C]aso não seja reconhecida a nulidade do título, requer-se a adequação do montante exequendo, limitando-se a cobrança ao valor da prestação vencida em 30/12/2022 no valor de € 6.614,91 (…) antes da antecipação indevida do contrato Q e, consequentemente, que sejam as recorrentes ressarcidas dos valores pagos a maior até a data da decisão e encerrada a execução por já ter existido o pagamento deste valor.
Concluíram, ainda, as apelantes:
8 – Outra questão que deve ser corrigida na sentença é que, apesar de ser mencionado [no ponto R] o ponto “P”, na verdade estava a se referir ao ponto “Q”. (…)
14 – (…) [N]o ponto GG, em vez de mencionar que as cartas do ponto FF não foram reclamadas pelas recorrentes, diz que as cartas do ponto DD é que não foram.
A apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão do tribunal a quo recorrida.
A.B. Questões que ao tribunal cumpre solucionar
As questões de facto a decidir são as referidas nas conclusões da alegação transcritas.
Os lapsos sinalizados nas conclusões 8 e 14 serão imediatamente assinalados e corrigidos na transcrição da decisão de facto proferida pelo tribunal a quo.
As questões de direito a tratar – em torno da regularidade do preenchimento da livrança e da sua execução – serão mais desenvolvidamente enunciadas no início do capítulo dedicado à análise dos factos e à aplicação da lei.
*
B. Fundamentação
B.A. Factos provados (conforme decidido pelo tribunal ‘a quo’)
1. Factos processuais
A. A ação executiva de que os presentes embargos constituem apenso foi instaurada em 25/09/2023, para pagamento da quantia de € 66.112,21.
B. Em 23 de outubro de 2023 a exequente comunicou nos autos principais: a venda extrajudicial do imóvel indicado à penhora, ocorrida em 9 de outubro de 2023; que do produto da venda, foi aplicado à operação executada nos presentes autos o montante de € 23.762,33, requerendo a redução da quantia exequenda em conformidade.
C. Por despacho proferido nos autos em 9 de maio de 2024, foi determinada a alteração da forma de processo e absolvido da instância o executado Mmm.
2. Constituição do crédito exequendo
D. Em 8 de julho de 2022, no exercício da sua atividade creditícia, a exequente celebrou com a sociedade executada “Encantos do Bosque, L.da,” um contrato de mútuo, ao qual foi atribuído o n.º PT 00352630000927891.
E. O mencionado empréstimo encontra-se titulado pela Livrança n.º 500873631151452172, preenchida com o montante de € 65.589,89, vencida em 30/08/2023, subscrita pela sociedade “Encantos do Bosque, Lda.”, e avalizada pelos executados Nnn, Bbb e Aaa.
F. A dívida titulada pela livrança, que se encontra vencida, não foi paga na data do respetivo vencimento nem depois.
3. Constituição do crédito exequendo (continuação)
G. Em dezembro de 2021, o departamento de análise de risco da embargada decidiu não renovar os apoios de tesouraria concedidos anteriormente à sociedade executada, no âmbito do contrato de abertura de crédito em conta-corrente n.º 0083017142992.
H. No dia 6 de janeiro de 2022, a embargante Bbb foi contactada por um dos responsáveis pelo Departamento DAP da exequente, o qual informou que a conta da sociedade havia sido transferida para aquele departamento, e que todas as necessidades da empresa deveriam ser tratadas diretamente com o DAP.
I. Através de e-mail de 8 de fevereiro de 2022, enviado pela embargada à gerente da embargante, foi comunicado que: “Efetuada a análise à documentação enviada e tendo em consideração as atuais responsabilidades do Grupo Doce Baga, apresentamos abaixo uma proposta para reestruturação/refinanciamento das operações de crédito atuais, nos seguintes moldes: (…) Extinção da conta corrente e confirming, nas seguintes condições; NOVO CRÉDITO MLP (…)”.
J. Em 8 de julho de 2022, a sociedade executada, como devedora ou cliente, outorgou com a exequente o contrato de mútuo referido em D, destinado à liquidação de responsabilidades anteriormente contraídas junto da CGD emergentes de operações de crédito de conta corrente e Confirming.
K. As embargantes outorgaram o contrato referido em D como avalistas, tendo indicado a seguinte morada (ambas):
“residentes na Rua RRR, Bloco …, nº 4, 3º Direito, freguesia de Alvalade, concelho de Lisboa”
L. O contrato de mútuo foi celebrado no montante de € 60.000,00, pelo prazo de 72 meses.
M. Nos termos da cláusula 19 do contrato referido em D:
19. COMUNICAÇÕES, AVISOS E CITAÇÃO (DOMICÍLIO/SEDE): a) As comunicações e os avisos escritos dirigidos pela CGD aos demais contratantes serão sempre enviados para o endereço constante do presente Contrato, devendo 0 contratante informar imediatamente a CGD de qualquer alteração do referido endereço e, quando registados, presumem-se feitos, salvo prova em contrário, no terceiro dia posterior ao do registo ou no primeiro dia útil seguinte, se esse o não for. b) As comunicações e os avisos têm-se por efetuados se só por culpa do destinatário não foram por ele oportunamente recebidos. c) Para efeitos de citação, em caso de litígio judicial, o domicílio/sede será o indicado pela parte no presente Contrato.
N. Nos termos da cláusula 20A do contrato referido em D:
20A. INCUMPRIMENTO/EXIGIBILIDADE ANTECIPADA:
20A. l – A CAIXA poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento no caso de, designadamente: a) Incumprimento, pela/o(s) CLIENTE(S) elou pelo(s) Garante(s), se o/a(s) houver, de quaisquer obrigações, ainda que não pecuniárias, decorrentes do presente Contrato ou de quaisquer outros celebrados ou a celebrar com a CGD ou com empresas que com ela se encontrem em relação de domínio ou de grupo ou com outras instituições de crédito ou sociedades financeiras a operar em Portugal; b) Venda, permuta, arrendamento, cedência de exploração ou qualquer outra forma de alienação ou oneração, incluindo a realização de quaisquer contratos-promessa ou a atribuição de quaisquer direitos de opção, sem o prévio acordo escrito da CAIXA de quaisquer bens imóveis ou do ativo imobilizado que integrem ou venham a integrar o seu património c) Propositura contra a/o(s) CLIENTE(S) elou contra o/a(s) Garante(s), se o/a(s) houver, de qualquer execução, arresto, arrolamento ou qualquer outra providência judicial ou administrativa que implique limitação da livre disponibilidade dos seus bens; d) Insolvência da/o(s) CLIENTE(S) e/ou do/a(s) Garante(s), se o/a(s) houver, ainda que não judicialmente declarada, ou diminuição das garantias do crédito. e) Verificação de situações, facto, ocorrência mencionadas nas alíneas c) e d) da cláusula 18, e/ou da respetiva comunicação; f) Se se verificar uma alteração da estrutura acionista elou do exercício dos correspondentes direitos de voto da/na CLIENTE sem prévio consentimento prestado por escrito da CGD;
20A.2 – Quando tenha sido constituída hipoteca sobre bem(ens) imóvel(eis) para garantia das obrigações emergentes do presente Contrato, as partes declaram que, em alternativa ao exercício do direito que lhe é conferido na presente cláusula, de considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento e sem ao mesmo direito renunciar, fica desde já expressamente reconhecido à CAIXA o direito de: a) Celebrar por conta da parte devedora, junto de seguradora por si escolhida, um seguro sobre o(s) imóvel(eis) hipotecado(s), de âmbito igual ao referido na alínea j) da cláusula 18., logo que se verifiquem as situações seguintes: (i) cessação, independentemente da causa, do contrato de seguro formalizado pela parte devedora; (ii) não formalização, pela parte devedora, do contrato de seguro no prazo que lhe for fixado pele credora para o efeito. b) Debitar na conta do empréstimo e, subsequentemente, na conta de depósito à ordem associada ao empréstimo referida na cláusula 13., quaisquer despesas relativas ao seguro subscrito pela CGD, nas quais se incluem, sem limitar, os prémios e encargos emergentes do respetivo contrato de seguro e a cujo reembolso tenha direito.
20A.3 – Caso ocorra ou se verifique qualquer uma das situações referidas nos números anteriores da presente cláusula, a CGD fica com o direito de considerar imediatamente vencidas e exigíveis quaisquer obrigações da/o(s) CLIENTE(S) emergentes de outros contratos com ela celebrados.
20A.4 – O não exercício pela CGD de qualquer direito ou faculdade que pelo presente Contrato lhe sejam conferidos, em nenhum caso significará renúncia a tal direito ou faculdade, pelo que se manterão válidos e eficazes não obstante o seu não exercício.
20A.5 – A eventual concessão pela CGD de um prazo adicional para cumprimento de determinada obrigação não constitui precedente suscetível de ser invocado no futuro.
O. Nos termos da cláusula 24 do contrato referido em D:
24. LIVRANÇA EM BRANCO:
24.1 – Para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes do presente Contrato, a/o(s) CLIENTE(S) entrega(m) à CGD, neste ato, uma livrança com montante e vencimento em branco, devidamente datada, por ela/e(s) subscrita e avalizada pelo/a(s) AVALISTA(S), se aplicável, e autoriza(m) desde já a CGD a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria CGD, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte: a) A data de vencimento será fixada pela CAIXA quando, em caso de incumprimento pela/o(s) CLIENTE(S) das obrigações assumidas, a CAIXA decida preencher a livrança; b) A importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes do presente empréstimo, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança; c) A CAIXA poderá inserir cláusula “sem protesto” e definir o local de pagamento,
24.2 – A livrança não constitui novação do crédito, pelo que se mantêm as condições do empréstimo, incluindo as garantias.
24.3 – No caso de cessão, parcial ou total, da posição contratual ou dos créditos emergentes para a CAIXA do presente Contrato, poderá esta entregar a livrança ao cessionário, podendo o mesmo preenchê-la nos termos constantes da presente cláusula.
24.4 – EM ANEXO: LIVRANÇA EM BRANCO
P. Após a contratação do crédito referido em D, a situação financeira da sociedade executada agravou-se no final do ano de 2022, e, em 30 de dezembro de 2022 a empresa não conseguiu realizar o pagamento da prestação.
Q. Através de cartas registadas, datadas de 10 de fevereiro de 2023, enviadas para a morada sita em “Rua RRR, BL ..., Nº 4, 3º D, Lisboa”, a embargada comunicou às embargantes:
Reportamo-nos à operação de crédito identificada em assunto, na qual a Encantos do Bosque, Lda é devedora, garantida por aval/fiança de V.Exa.
Perante o incumprimento da obrigação de pagamento da prestação, vem a CGD declarar integralmente vencida e imediatamente exigível a totalidade da dívida, cujo pagamento que, na presente data ascende a 61.745,61 €, deve ser efetuado no prazo de 10 (dez) dias, sob pena de, sem mais aviso, proceder à cobrança judicial da totalidade dos seus créditos, apresentando a seguinte composição:
Operação
Capital
Juros
Juros Mora
Comissões
Total
PT 00352630000927891
60.000,00 €
1.189,93 €
63,56 €
492,12 €
61.745,61 €
Sobre os juros e comissões a cobrar incidirá Imposto de Selo à taxa em vigor, se aplicável.
Aos valores referidos acrescem juros de mora, a partir da presente data sobre o capital em dívida, até integral pagamento, e os demais encargos legais.
R. As cartas referidas em P [será Q] foram devolvidas ao remetente por não terem sido reclamadas.
S. Em 17 de fevereiro de 2023, foi realizada uma reunião no DAP da embargada, em Lisboa, com os sócios da sociedade (incluindo embargantes), e funcionários da embargada.
T. Em 22 de fevereiro de 2023, na sequência da reunião, foram enviadas propostas de pagamento à embargada, umas pelo sócio Nnn, outras pelas sócias Bbb e Aaa.
U. Em 21 de abril de 2023, a embargada comunicou à embargante Bbb, através de e-mail, que: “Como é do seu conhecimento a situação de incumprimento está em análise por parte da instituição pelo que, com a maior brevidade possível, entraremos em contacto.”.
V. Em 7 de junho de 2023, a embargante Bbb recebeu um e-mail da embargada a informar que “Não sendo possível obter um entendimento entre os sócios sobre o caminho a tomar relativamente à reestruturação das responsabilidades da empresa, situação alheia à CGD, cumpre-nos informar que esta Instituição irá recorrer à via judicial para cobrança coerciva dos respetivos créditos, face ao incumprimento que registam e ao insucesso da via negocial”.
W. Em 7 de junho de 2023, a embargante Bbb remete à embargada e-mail no qual informa que: “(…) Da nossa parte estamos e sempre estivemos disponíveis para prosseguir com a negociação, mas claramente necessitamos ser conhecedores de todo o processo. Contrariamente ao que descreve, os sócios têm entendimento quanto às responsabilidades da empresa, se a questão se prende com os 60.000€ podem os mesmos ser divididos por “cabeça” conforme proposta apresentada “cenário b)”, contudo solicito informação sobre o que está a ser negociado”.
X. Em 15 de junho de 2023, a embargada comunicou à embargante Bbb, através de e-mail, que: “No âmbito do processo de análise da CGD cumpre-nos informar que, por questões de sigilo bancário, não podemos transmitir detalhe de informação sobre terceiros. Não obstante, será tido em consideração a entrega do valor que identifica referente à operação nº 2630000927891, cerca de 21.920,03€/cada um dos sócios/avalistas. Assim que exista uma decisão sobre o pedido apresentado entraremos novamente em contacto”, acrescentando que “À data de hoje o valor para liquidação da operação seria de 65.760,10 €”.
Y. Em 14 de julho de 2023, a embargada comunicou ao sócio Nnn, através de e-mail: “No seguimento das propostas apresentadas (…) para reestruturação das responsabilidades tituladas pela empresa ENCANTOS BOSQUE, LDA., vimos por este meio comunicar que a CGD aceitou avançar com a reestruturação/liquidação das responsabilidades existentes, através da concessão de um novo crédito consolidado hipotecário, conforme carta que se remete em anexo. A destacar: • Reforço da nova operação com hipoteca de imóvel urbano que permita uma relação financiamento garantia perto dos 100% (por exemplo casa dos seus pais, caso estes concordem); • Liquidação da operação nº PT 00352630000927891 no valor de 68.466,34€ (à data de hoje), no prazo máximo de 30 dias; • Restantes condições refletidas na carta em anexo. Agradecemos a sua resposta no prazo máximo de sete dias mediante a entrega do documento em anexo devidamente assinado por todos os intervenientes”.
Z. Em 14 de julho de 2023, a embargada comunicou à embargante Bbb, através de e-mail: “Relativamente às propostas apresentadas por essa sociedade, vimos por este meio informar que a CGD aceitou reestruturar a operação de crédito PT 00350428000770991 titulada pela empresa, através do sócio avalista o Sr. Nnn mediante a aceitações das condições particulares comunicadas hoje ao mesmo. Para o efeito importa referir que caberá à sociedade ou aos seus sócios avalistas a liquidação da operação PT 00352630000927891 no prazo máximo de 30 dias, cujo valor para liquidação antecipada à data de hoje são 68.466,34 €”.
AA. Em 2 de agosto de 2023, a embargada comunicou à embargante Bbb, através de e-mail, que: “(…) informo que as condições aprovadas pela CGD para reestruturação/liquidação das responsabilidades da empresa através do sócio Nnn não foram aceites pelo mesmo, assim sendo, o processo vai transitar para o departamento de contencioso, conforme comunicação já remetida por correio”.
BB. Em 7 de agosto de 2023, a embargante Bbb remete à embargada e-mail no qual: “Informo que a comunicação remetida pela DAP/CGD e recebida via CTT não diz respeito ao crédito 0428000770991, mas sim ao crédito 2630000927891. Neste sentido na qualidade de gerente da Encantos do Bosque solicito o envio da referida comunicação, a que se refere no seu email, com a maior brevidade possível. Por forma a ser célere pode por favor enviar cópia por esta via uma vez que não foi rececionado nenhuma carta, notificação ou postal ctt com o conteúdo que menciona por forma a que a sociedade e eu gerente tome conhecimento oficial da situação atual relativa ao empréstimo 0428000770991”.
CC. Em 10 de agosto de 2023, a embargada comunicou à embargante Bbb, através de e-mail, que: “Segue em anexo a última comunicação remetida à sociedade, uma vez que a carta não foi rececionada agradeço que verifique se a morada se encontra correta, caso não esteja peço que me envie a certidão atualizada”.
DD. Com o e-mail de 10 de agosto de 2023, foi anexa cópia de carta datada de 25 de julho de 2023, na qual a embargada comunica à embargante Bbb, relativamente a três operações, entre as quais o contrato referido em D, que:
Na qualidade de Avalista e principal pagador das operações identificadas em assunto, informamos V. Exa. de que a Caixa Geral de Depósitos irá recorrer à via judicial para cobrança coerciva dos respetivos créditos, face ao incumprimento que registam e ao insucesso da via negocial, caso tal situação persista após esta interpelação.
Assim e salvo se no prazo de 15 dias, a contar da receção desta carta, a referida dívida for regularizada ou liquidada, não nos restará outra alternativa senão a de instaurar a competente ação executiva contra o mutuário ENCANTOS DO BOSQUE LDA. e respetivos Avalistas/Fiadores, entre os quais se incluem V. Exa., com todas as consequências daí resultantes.
Sublinhamos, em particular, que tal situação habilitará a Caixa a, nos termos contratualmente estabelecidos, considerar antecipadamente vencidas e imediatamente exigíveis todas as dívidas emergentes das demais operações de financiamento que estejam em vigor, o que, todavia, gostaríamos de evitar.
EE. Através de carta registada datada de 23 de agosto de 2023, as embargantes propuseram à embargada «(…) a liquidação das 2 (duas) prestações vencidas, que totalizam 14.800,00€ (quatorze mil e oitocentos euros). Esta quantia seria dividida em prestações mensais ao longo de 11 (onze) meses, com a inclusão dos juros decorrentes do período de mora» e solicitaram «(…) a suspensão de qualquer ação que vise à liquidação antecipada ou a execução do crédito».
FF. Através de cartas registadas com AR, datadas de 30 de agosto de 2023, enviadas para a morada sita em “Rua RRR, BL ..., Nº 4, 3º D, Lisboa”, a embargada comunicou às embargantes:
Como é do conhecimento de V. Exa, encontra-se vencida, e não paga, a responsabilidade emergente do contrato de mútuo celebrado em 08.07.2022, de que a sociedade ENCANTOS DO BOSQUE, LDA é mutuária.
De acordo com o estabelecido no contrato de mútuo com aval datado de 08.07.2022, que se encontra em poder desta Caixa por lhe ter sido entregue aquando da contratação da operação acima referida, havendo incumprimento de qualquer das obrigações garantidas, consideram-se vencidas todas as restantes, sendo exigível o pagamento da totalidade do nosso crédito.
Desta forma, e nos termos contratados, consideramos vencida nesta data a totalidade do nosso crédito e fixámos para o dia 30.08.2023 o vencimento da livrança em branco, subscrita pela sociedade ENCANTOS DO BOSQUE, LDA, e avalizada por V. Exa, por NNN e por Aaa, que preenchemos pelo valor de €65.589,89, correspondente ao valor total do crédito na data de vencimento fixado, a que acrescem juros de mora, e legais encargos, até integral pagamento.
Solicitamos que procedam à sua liquidação no prazo de 5 dias, a contar da receção da presente carta, sob pena de adequado procedimento judicial para cobrança do crédito.
GG. As cartas referidas em DD [será FF] foram devolvidas ao remetente por não terem sido reclamadas.
HH. Em 14 de setembro de 2023, a embargada comunicou ao mandatário das embargantes, através de e-mail, que o processo já havia transitado para contencioso.
II. Em 27 de setembro de 2023, a embargante Bbb recebeu um e-mail da embargada a informar que uma carta sobre o preenchimento da livrança tinha sido enviada em 30 de agosto de 2023, mas fora devolvida à embargada no dia seguinte.
B.B. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
1. Impugnação do ponto Q da fundamentação de facto
O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto:
“Q. Através de cartas registadas, datadas de 10 de fevereiro de 2023, enviadas para a morada sita em “Rua RRR, BL …, Nº 4, 3ºD, Lisboa”, a embargada comunicou às embargantes:
(…) Perante o incumprimento da obrigação de pagamento da prestação, vem a CGD declarar integralmente vencida e imediatamente exigível a totalidade da dívida, cujo pagamento que, na presente data ascende a 61.745,61 €, deve ser efetuado no prazo de 10 (dez) dias (…)”.
Sustentam as embargantes que “não há como provar que as cartas apresentadas na contestação da recorrida foram de facto enviadas para as recorrentes”. Por assim ser, deve o ponto em questão passar a rezar “Q. Foram enviadas cartas registadas, datadas de 10 de fevereiro de 2023, para a morada sita em “Rua RRR, BL …, Nº 4, 3º D, Lisboa”, cujo conteúdo da carta é desconhecido”.
As apelantes limitam-se a transmitir a sua opinião – no sentido de que “não há como provar” o facto em questão. Estão erradas. O facto em questão – isto é, o teor das cartas enviadas – pode ser provado, designadamente, por prova testemunhal. Questão diferente desta é a de saber se, sendo possível a prova, ela efetivamente foi feita.
O tribunal a quo motivou a sua convicção sobre este ponto nos seguintes termos:
“O tribunal revelou, para a formação da sua convicção, a análise crítica dos documentos juntos com o requerimento executivo, requerimento de embargos e contestação aos embargos, destacando-se:
(…)
• E-mails juntos com o requerimento de embargos e contestação aos embargos (alíneas (…) Q (…) dos factos provados)
• Cópia de carta registada com AR e respetivo AR, juntos pela embargada com a contestação (alíneas Q (…) dos factos provados)
(…)
A testemunha David Oliveira confirmou a interpelação das embargantes, após o incumprimento, seguindo-se contactos e reuniões, sendo que a posição final da CGD foi a de que a dívida em causa tinha de ser liquidada. (…) Em relação às moradas para as quais foram enviadas as cartas, disse a testemunha que as mesmas são enviadas para a morada que consta do sistema”.
Nada há a apontar ao raciocínio probatório desenvolvido pelo tribunal a quo. Na sua sustentação, podemos, ainda, invocar as regras da experiência. Ditam estas que as instituições de crédito não desperdiçam dinheiro remetendo cartas despropositadas aos devedores ou potenciais devedores. As cartas comprovadamente remetidas às embargantes tinham um propósito. Considerando o contexto no qual se insere a sua expedição, a explicação mais plausível para a sua remessa – se não mesmo a única explicação – é destinarem-se elas a alertar as embargantes para liquidarem a dívida da mutuária, assim evitando o preenchimento da livrança e a instauração da execução.
Em suma, improcede, nesta parte, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
2. Impugnação dos pontos CC e DD da fundamentação de facto
O tribunal a quo deu por provados os seguintes factos:
“CC. Em 10 de agosto de 2023, a embargada comunicou à embargante Bbb, através de e-mail, que: “Segue em anexo a última comunicação remetida à sociedade, uma vez que a carta não foi rececionada agradeço que verifique se a morada se encontra correta, caso não esteja peço que me envie a certidão atualizada”.
DD. Com o e-mail de 10 de agosto de 2023, foi anexa cópia de carta datada de 25 de julho de 2023, na qual a embargada comunica à embargante Bbb, relativamente a três operações, entre as quais o contrato referido em D, que: [com o teor do documento referido no ponto DD]”.
Sustentam as embargantes que “não existe nenhum documento neste processo que é um e-mail rececionado pela recorrente – Bbb no dia 10/08/2023 (…)”. Por assim ser, devem os pontos em questão “ser unificados” e passar a rezar: “CC. Em 4 de agosto de 2023, a embargada comunicou à embargante Bbb, através de carta registada, sobre um prazo de 15 dias para realizar o pagamento do valor em dívida ou apresentar proposta de pagamento: [com o teor do documento referido no ponto DD]”.
O tribunal a quo motivou a sua convicção sobre este ponto nos seguintes termos:
“O tribunal revelou, para a formação da sua convicção, a análise crítica dos documentos juntos com o requerimento executivo, requerimento de embargos e contestação aos embargos, destacando-se:
(…)
• E-mails juntos com o requerimento de embargos e contestação aos embargos (alíneas (…) CC dos factos provados)
Não se esclarece na sentença apelada a que emails juntos aos autos se refere o tribunal. No entanto, podemos constatar que com a petição de embargos foi junto o email referido no ponto CC – trata-se da última página do “DOC 28”. Nada há, pois, a censurar no julgamento deste ponto.
O erro detetado pelas apelantes encontra-se no ponto DD. Do mero confronto entre os enunciados dos pontos CC e DD, podemos afirmá-lo. No primeiro ponto é referido que, em anexo ao email seguiu (apenas) uma carta dirigida à sociedade; no segundo ponto é dito que em anexo ao email seguiu (apenas) uma carta dirigida à embargante Bbb.
Deve, pois, no essencial, ser julgada procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto em análise – conforme impõe o teor dos documentos 29 e 30 (ponto 3) juntos com a petição de embargos –, passando o ponto DD a rezar:
DD. Com data de 27 de julho de 2023, a embargada remeteu à embargante Bbb uma carta registada, por esta recebida em 4 de agosto de 2023, com o seguinte teor:
Na qualidade de Avalista e principal pagador das operações identificadas em assunto, informamos V. Exa. de que a Caixa Geral de Depósitos irá recorrer à via judicial para cobrança coerciva dos respetivos créditos, face ao incumprimento que registam e ao insucesso da via negocial, caso tal situação persista após esta interpelação.
Assim e salvo se no prazo de 15 dias, a contar da receção desta carta, a referida dívida for regularizada ou liquidada, não nos restará outra alternativa senão a de instaurar a competente ação executiva contra o mutuário ENCANTOS DO BOSQUE LDA. e respetivos Avalistas/Fiadores, entre os quais se incluem V. Exa., com todas as consequências daí resultantes.
Sublinhamos, em particular, que tal situação habilitará a Caixa a, nos termos contratualmente estabelecidos, considerar antecipadamente vencidas e imediatamente exigíveis todas as dívidas emergentes das demais operações de financiamento que estejam em vigor, o que, todavia, gostaríamos de evitar.
3. Alteração oficiosa da decisão respeitante à matéria de facto
Na 21.ª conclusão da sua alegação, as apelantes referem que a apelada violou “a cláusula contratual 26.4 do próprio contrato de mútuo”. Embora o teor do contrato de mútuo não esteja relevantemente controvertido, verifica-se que tal cláusula não consta da fundamentação de facto da sentença. Para uma adequada apreciação das questões suscitadas na apelação, é útil a sua descrição na fundamentação de facto deste acórdão.
Não é esta uma verdadeira alteração da decisão de facto, mas apenas um mero desenvolvimento do seu conteúdo. Em qualquer caso, esta iniciativa encontra total cobertura na norma enunciada no n.º 1 do art.º662.º do Cód. Proc. Civil, quer por força do disposto na al. c) do n.º 2 do art.º 662.º do Cód. Proc. Civil, alterar a decisão de facto – sobre a admissibilidade da alteração oficiosa, cfr. o Ac. do STJ de 17-10-2019 (3901/15.8T8AVR.P1.S1), bem como António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2022, pp. 357 e 358.
Assim, deverá a factualidade em causa passar a ter o seguinte conteúdo provado:
O bis. Nos termos da cláusula 26 do contrato de mútuo subscrito pelas embargantes, referido em D:
“26. COMUNICAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES À CENTRAL DE RESPONSABILIDADES DE CRÉDITO DO BANCO DE PORTUGAL:
26.1 – (…) [A] CGD está obrigada a comunicar à Central de Responsabilidades de Crédito (“CRC”) do Banco de Portugal, (…) em relação a cada devedor, informações respeitantes às responsabilidades de crédito por este contraídas (…).
(…)
26.4 – A CGD informará cada um dos devedores do inicio da comunicação em situação de incumprimento, sendo esta informação transmitida àqueles previamente ao seu envio à CRC; a comunicação à CRC da situação de incumprimento dos fiadores ou avalistas, se existirem, só ocorrerá após os mesmos serem informados pela CGD da situação de incumprimento dos devedores e não procederem ao pagamento que lhes seja devido no prazo estabelecido pela CGD para o efeito.
26.5 – Os devedores têm o direito de conhecer a informação que a seu respeito tenha sido transmitida à CRC pela CGD (…)”.
O 2bis. A subscrição pelas embargantes do contrato de mútuo, referido em D, foi objeto do documento que o antecede, intitulado “TERMO DE AUTENTICAÇÃO”, no qual consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:
“TERMO DE AUTENTICAÇÃO
No dia vinte e um de julho de dois mil e vinte e dois, (…) compareceram como outorgantes:
a) Nnn (…);
b) Bbb (…); e
c) Aaa (…),
todos com domicílio profissional na sede da sociedade sua representada;
que outorgam na qualidade de únicos sócios e os outorgantes identificados em a) e b) ainda como únicos gerentes, com poderes para o ato, em representação da sociedade comercial por quotas com a firma “ENCANTOS DO BOSQUE, LDA” (…). (…)
E POR ELES FOI DITO, na invocada qualidade:
que para fins de autenticação me apresentam o presente documento, declarando-me que já o leram e assinaram e que o mesmo exprime a vontade da sua representada, que é um “CONTRATO DE MÚTUO”. (…)”
No mais, deve ser mantida a decisão de facto do tribunal a quo, improcedendo a sua impugnação. Esta decisão original é acima reproduzida, embora com uma sistematização distinta, mais ajustada à crónica dos factos essenciais, e transcrevendo-se o teor de documentos já considerados assentes.
B.C. Análise dos factos e aplicação da lei
São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar: 1. Comunicação do incumprimento da obrigação subjacente 1.1. Comunicação do incumprimento como condição de exequibilidade do título 1.2. Perda do benefício do prazo 2. Violação do pacto de preenchimento 2.1. Violação da cláusula 26.4 do contrato de mútuo 2.2. Violação da cláusula 24 do contrato de mútuo 3. Nulidade da cláusula 20.A do contrato de mútuo 4. Exercício abusivo do direito 5. Redução do valor devido ao montante da prestação vencida não liquidada 6. Responsabilidade pelas custas
1. Comunicação do incumprimento da obrigação subjacente
Em apertada síntese, a relação litigiosa pode ser descrita nas seguintes etapas: a) Em 8 de julho de 2022, a exequente celebrou com a Encantos do Bosque, L.da, um contrato de mútuo, tendo as embargantes Aaa e Bbb subscrito o documento que o formalizou na qualidade de sócias e, a segunda, de gerente da mutuária. b) No âmbito do referido contrato de mútuo, a mutuária subscreveu uma livrança, avalizada, designadamente, pelas embargantes. c) As embargantes subscreveram o contrato de mútuo ainda na declarada qualidade de “avalistas”. d) Em 30 de dezembro de 2022, a mutuária não realizou o pagamento da prestação nessa data vencida. e) Em 10 de fevereiro de 2023, a mutuante remeteu às apelantes cartas (não recebidas) declarando que, “[p]erante o incumprimento da obrigação de pagamento da prestação, vem a CGD declarar integralmente vencida e imediatamente exigível a totalidade da dívida, cujo pagamento que, na presente data ascende a 61.745,61 €, deve ser efetuado no prazo de 10 (dez) dias, sob pena de, sem mais aviso, proceder à cobrança judicial da totalidade dos seus créditos”. f) Em 30 de agosto de 2023, a mutuante preencheu a livrança avalizada pelas embargantes, nela inscrevendo a quantia de € 65.589,89.
Entendem as apelantes que a embargada não tinha a faculdade de considerar vencidas todas as prestações ainda vincendas, perante o incumprimento de uma prestação pela mutuária, devendo antes interpelá-las para procederem ao seu pagamento. Apenas no caso de as avalistas não satisfazerem a prestação em falta, poderia a mutuante reclamar o pagamento imediato integral de todas as restantes prestações do mútuo.
Antes de avançarmos, recordamos que “[o] aval é o ato pelo qual uma pessoa (…) garante por algum dos coobrigados no título o pagamento da obrigação pecuniária que este incorpora. O aval é uma garantia dada pelo avalista à obrigação cambiária, e não à relação extracartular” (arts. 30.º e 77.º, § 3.º, da LULL) – cfr. o Ac. do STJ de 25-05-2017 (9197/13.9YYLSB-A.L1.S1).
1.1. Comunicação como condição de exequibilidade do título
Em geral, um (assim designado no contrato de mútuo) “avalista” apenas se constituiu como tal – isto é, como avalista, obrigado perante o beneficiário/promissário (exequente) – com o preenchimento do impresso (parcialmente “em branco”) do título de crédito, decorrente do incumprimento da obrigação subjacente pelo subscritor/promitente da livrança – cfr. o Ac. do TRL de 19-05-2015 (146/13.5TCFUN-A.L1-7). Isto significa, no caso dos autos, que as apelantes só seriam garantes, se o viessem a ser, depois de preenchida a livrança. Só então adquiririam a qualidade de garantes, isto é, de avalistas, e não antes – designadamente, não na data em que assinaram o impresso nem na data da insatisfação de uma prestação pela sociedade mutuária.
Ou seja, as embargantes não eram (nem são) garantes da obrigação subjacente – reembolso da quantia mutuada. Não têm nenhuma responsabilidade, designadamente, enquanto garantes (que não são), pela sua satisfação. São meras terceiras, potencialmente interessadas no cumprimento da obrigação.
Não explicam as apelantes por que razão haveria a apelada de as notificar da ocorrência do incumprimento de uma prestação pelo mutuário, considerando, repisa-se, que “a obrigação do avalista é uma obrigação de garantia do pagamento da obrigação cambiária avalizada, no seu vencimento, e não da obrigação relação subjacente” – cfr. o Ac. do TRC de 15-12-2021 (2550/20.3T8SRE-A.C1).
Não tinha a apelada nenhum dever de fonte legal de interpelar as (potenciais) avalistas. Por assim ser, conforme é sustentado no Ac. do STJ de 25-05-2017 (9197/13.9YYLSB-A.L1.S1), “não é condição de exequibilidade do título, que antes de o portador do título o completar, informe e discuta com o avalista o incumprimento da relação extracartular, onde não foi parte”. “[A] lei cambiária não impõe ao portador que, antes de acionar, dê informação ao avalista acerca da situação de incumprimento que legitima o preenchimento do título que ele avalista autorizou” – idem; cfr., ainda, o Ac. do TRE de 28-01-2021 (7362/18.1T8STB.-A.E1).
1.2. Perda do benefício do prazo
Estabelece o art.º 781.º do Cód. Civil que, “[s]e a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas”. No entanto, “[a] perda do benefício do prazo não se estende (…) a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia” (art.º 782.º do Cód. Civil).
Como vimos, na data do incumprimento da prestação pela mutuária, as embargantes (ainda) não eram garantes de uma dívida da sociedade mutuária; muito menos o eram relativamente à obrigação de reembolso da quantia mutuada. Não perderam nem deixaram de perder o benefício do prazo, pois não eram titulares passivas da obrigação sujeita a prazo “liquidável em prestações” – designadamente, relativamente às suas prestações vincendas – nem de uma relação dela acessória (garantia). O mesmo é dizer que, não lhes é aplicável o disposto no art.º 782.º do Cód. Civil.
No que respeita à (ulterior) qualidade de avalistas das embargantes, afigura-se-nos evidente que o crédito pessoalmente pelas mesmas garantido (obrigação cartular) não é uma “dívida liquidável em prestações”, não lhe sendo aplicável o disposto nos arts. 781.º e 782.º do Cód. Civil. A norma enunciada no art.º 782.º do Cód. Civil “não tem aplicação às obrigações cambiárias” – cfr. os Acs. do TRE de 28-01-2021 (7362/18.1T8STB.-A.E1) e do TRC de 25-10-2005 (2270/05).
Em face do exposto, conclui-se que a embargada não violou nenhuma (inexistente) obrigação de notificar as embargantes do incumprimento de uma prestação pela mutuária, antes de exercer a faculdade prevista no art.º 781.º do Cód. Civil. Perante este incumprimento, a mutuante exerceu validamente tal faculdade, que só a ela cabia exercer – cfr. o Ac. do STJ de 11-03-2021 (1366/18.1T8AGD-B.P1.S1).
2. Violação do pacto de preenchimento
Questão diferente daquela que acabámos de abordar é a de saber se, de acordo com o pacto de preenchimento, tinha a credora a obrigação de notificar as (potenciais) avalistas, antes mesmo de operar o vencimento antecipado das prestações vincendas do mútuo – assim lhes dando a oportunidade de atuarem nos termos previstos nos arts. 767.º, n.º 1, e 592.º, n.º 1, último caso, do Cód. Civil. Para além desta questão, e ainda no contexto da suposta violação do pacto de preenchimento, importa verificar se esta convenção foi de outro modo violada pela exequente, tal como alegam as embargantes.
Recordamos que “[o] pacto de preenchimento é um contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário, no que respeita aos elementos que habilitam a formar um título executivo, ou que estabelece em que termos se torna exigível a obrigação cambiária” – cfr. o Ac. do STJ de 25-05-2017 (9197/13.9YYLSB-A.L1.S1). “O regular preenchimento, em obediência ao pacto, é o quid que confere força executiva ao título, mormente, quanto aos requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade” – idem.
2.1. Violação da cláusula 26.4 do contrato de mútuo
Invocam as apelantes a cláusula 26.4 do contrato de mútuo em seu benefício. Considerando que as avalistas também subscreveram este contrato (por nele estar integrado o pacto de preenchimento da livrança), a invocação desta cláusula em seu benefício não é descabida, se entendermos que o pacto de preenchimento também é por ela integrado (ainda que tacitamente).
Tem a cláusula 26 do contrato de mútuo o seguinte teor, no que para o caso releva:
26. COMUNICAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES À CENTRAL DE RESPONSABILIDADES DE CRÉDITO DO BANCO DE PORTUGAL:
26.1 – (…) [A] CGD está obrigada a comunicar à Central de Responsabilidades de Crédito (“CRC”) do Banco de Portugal, (…) em relação a cada devedor, informações respeitantes às responsabilidades de crédito por este contraídas (…).
(…)
26.4 – A CGD informará cada um dos devedores do inicio da comunicação em situação de incumprimento, sendo esta informação transmitida àqueles previamente ao seu envio à CRC; a comunicação à CRC da situação de incumprimento dos fiadores ou avalistas, se existirem, só ocorrerá após os mesmos serem informados pela CGD da situação de incumprimento dos devedores e não procederem ao pagamento que lhes seja devido no prazo estabelecido pela CGD para o efeito.
26.5 – Os devedores têm o direito de conhecer a informação que a seu respeito tenha sido transmitida à CRC pela CGD (…).
Afigura-se-nos ser evidente que esta estipulação nada tem a ver com a perda do benefício do prazo nem com o pacto de preenchimento. A informação que a mutuante se comprometeu partilhar é a que diz respeito à futura comunicação do incumprimento ao Banco de Portugal, isto é, é a informação de que o incumprimentodas avalistas seria comunicado à Central de Responsabilidades de Crédito. O mesmo é dizer que a cláusula 26 do contrato de mútuo não foi pela embargada violada, em nada obstando ao vencimento imediato das prestações vincendas nem ao subsequente regular preenchimento da livrança.
2.2. Violação da cláusula 24 do contrato de mútuo
Entendem, ainda, as apelantes ter ocorrido uma violação do pacto de preenchimento por parte da embargada. Encontra-se este vertido na cláusula 24 do contrato mútuo, também subscrito pelas apelantes (designadamente, enquanto potenciais avalistas).
O pacto de preenchimento representa uma relação jurídica imediata, relativamente aos sujeitos que o subscreveram. O mesmo é dizer que o seu pontual cumprimento pode ser discutido pelo avalista que o subscreveu – cfr. o Ac. do STJ de 25-05-2017 (9197/13.9YYLSB-A.L1.S1). Neste caso, cabe ao embargante (avalista) o ónus da prova dos factos que revelam o preenchimento abusivo da livrança, como facto impeditivo do direito exercido pelo exequente (art. 342.º, n.º 2, do Cód. Civil) – cfr. o Ac. do TRE de 28-01-2021 (7362/18.1T8STB.-A.E1).
Dispõe a cláusula 24 do contrato mútuo, designadamente:
24. LIVRANÇA EM BRANCO:
24.1 – Para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes do presente Contrato, a/o(s) CLIENTE(S) entrega(m) à CGD, neste ato, uma livrança com montante e vencimento em branco, devidamente datada, por ela/e(s) subscrita e avalizada pelo/a(s) AVALISTA(S), se aplicável, e autoriza(m) desde já a CGD a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria CGD, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte: a) A data de vencimento será fixada pela CAIXA quando, em caso de incumprimento pela/o(s) CLIENTE(S) das obrigações assumidas, a CAIXA decida preencher a livrança; b) A importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes do presente empréstimo, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança; c) A CAIXA poderá inserir cláusula “sem protesto” e definir o local de pagamento. (…)
À face deste clausulado contratual, por um lado, não sinalizaram as embargantes qual destas estipulações entendem não ter sido observada. Por outro lado, dos factos provados não se extrai a sua insatisfação. Temos, pois, de concluir que não se encontra demonstrada a alegada violação do pacto de preenchimento.
3. Nulidade da cláusula 20.A do contrato de mútuo
Sustentam as embargantes que “a cláusula 20.A do contrato de mútuo (…) e os seus respetivos pontos devem ser declarados nulos, caso entenda-se que a antecipação da totalidade da dívida poderia ser exigida automaticamente contra os avalistas em virtude de um simples incumprimento do devedor principal”. No capítulo da motivação intitulado “VI.B – DA NULIDADE DA CLÁUSULA CONTRATUAL (ABUSO DE DIREITO)”, as apelantes alegam:
“130.º – Nesse contexto, ao analisar o presente caso, verifica-se que a decisão da Recorrida de antecipar o vencimento das prestações, sem notificação prévia das avalistas, com negociações em curso e sem qualquer evidência de prejuízo, configura uma violação dos princípios da boa-fé e do abuso de direito. Tal circunstância é mais do que suficiente para que a cláusula 20.A do contrato de mútuo (…) e os seus respetivos pontos sejam declarados nulos, resultando, consequentemente, na anulação do próprio título executivo contra as Recorrentes”.
A posição das apelantes, misturando a nulidade contratual com o abuso do direito, constitui-se como uma aberração jurídica.
A nulidade é uma sanção que a lei estabelece para determinadas deficiências genéticas (vícios) do ato jurídico. No seu regime-regra substantivo, a nulidade importa a total ineficácia do ato, no que respeita aos efeitos jurídicos visados com a sua prática.
Já o exercício abusivo do direito pressupõe a sua existência, isto é, a existência da posição jurídica correspondente – que, no caso, é exercida abusivamente. Se o direito existe tal significa que o ato que o gerou não é nulo. É apodítico.
O exercício abusivo do direito não fere, retroativamente, o ato jurídico de um vício genético. Estas patologias da relação contratual situam-se em planos necessariamente diferentes – a fase estipulativa e a fase executiva –, não se intercetando. Temos, pois, de as analisar separadamente, o que faremos começando por verificar se a cláusula 20A do contrato de mútuo padece de um vício genético.
Antes, porém, sublinhamos que “nas ações constitutivas e de anulação [a causa de pedir] é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido” (art. 581.º, n.º 4, segunda parte, do Cód. Proc. Civil). Importa, pois, perceber qual “é o facto concreto ou a nulidade específica” que as apelantes invocam para sustentar a nulidade arguida.
É, ainda, notar que só será reconhecida legitimidade às embargantes para discutirem a validade desta norma da relação subjacente na exata medida em que a mesma pode estar abrangida, ainda que implicitamente, pelo pacto de preenchimento subscrito pelas potenciais avalistas.
Conforme consta do ponto N dos factos provados, a cláusula 20A do contrato de mútuo tem o seguinte teor, no que para o caso releva:
20A. INCUMPRIMENTO/EXIGIBILIDADE ANTECIPADA:
20A. l – A CAIXA poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento no caso de, designadamente: a) Incumprimento, pela/o(s) CLIENTE(S) e/ou pelo(s) Garante(s), se o/a(s) houver, de quaisquer obrigações (…) decorrentes do presente Contrato (…);
(…)
20A.3 – Caso ocorra ou se verifique qualquer uma das situações referidas nos números anteriores da presente cláusula, a CGD fica com o direito de considerar imediatamente vencidas e exigíveis quaisquer obrigações da/o(s) CLIENTE(S) emergentes de outros contratos com ela celebrados.
(…)
Resulta do ponto Q dos factos provados, designadamente, que o concreto incumprimento invocado pela mutuante embargada (para considerar vencidas as prestações vincendas) foi a falta de pagamento de uma prestação do mútuo. Perante estes dados de facto – isto é, do teor da cláusula impugnada, na parte em que se lhe subsume o concreto incumprimento ocorrido –, temos de concluir que não se encontra na alegação de recurso nenhum “facto concreto ou a nulidade específica” que vicie esta estipulação contratual.
As apelantes invocam uma violação do princípio da boa-fé – que, por força do disposto no art. 15.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, poderia gerar a nulidade do contrato. No entanto, nunca esclarecem de que modo a referida estipulação, na parte que nos interessa, viola a boa-fé contratual, designadamente, tendo por referência o disposto no art. 16.º do referido Decreto-Lei n.º 446/85.
Em face do exposto, inexiste fundamento para julgar nula a cláusula 20A do contrato de mútuo, na parte relevante na relação material controvertida discutida nestes autos. Resta acrescentar que o vencimento das prestações vincendas operado pela exequente é uma faculdade que sempre lhe assistiria, independentemente da existência ou da validade da cláusula 20A do contrato de mútuo, por força da já analisada norma enunciada no art. 781.º do Cód. Civil.
4. Exercício abusivo do direito
Na conclusão 33 da alegação, defendem as apelantes que “o procedimento da recorrida em antecipar o contrato sem qualquer interpelação prévia dos avalistas deveria ser considerado como abuso de direito e violação do art.º 334.º do Código Civil”. O direito da embargada supostamente exercido abusivamente, isto é, o direito que lhe assiste, mas que exerceu abusivamente é, pois, o direito de operar o vencimento antecipado das prestações vincendas. Nas conclusões da alegação não é afirmado ser abusivo o exercício de outro direito.
Apenas aceitamos analisar esta linha argumentativa na exata medida em que o exercício da faculdade de provocar o vencimento antecipado das prestações vincendas pode representar uma violação do pacto de preenchimento – designadamente, quanto ao montante a inscrever no título –, em coerência entendimento que temos vindo a seguir.
Importa, ainda, notar que não se discute aqui a diferente questão da notificação das avalistas informando-as do iminente preenchimento do título, subsequente e fundado no incumprimento da obrigação de reembolso da totalidade da quantia mutuada (após a perda do benefício do prazo), mas sim a questão da sua notificação para pagamento da prestação incumprida, evitando o exercício da faculdade prevista no art. 781.º do Cód. Civil – cfr o ponto Q dos factos provados, bem como os Acs. do TRL de 26-09-2024 (22874/21.1T8LSB-B.L1-2) e do TRP de 29-01-2019 (1418/14.7TBPVZ-B.P2).
O único facto destacado pelas apelantes para sustentar o suposto abuso deste concreto direito potestativo é a circunstância de a embargada ter mantido negociações tendentes à satisfação do seu crédito – sem sucesso, obviamente. Ora, afigura-se-nos apodítico que a ulterior manutenção de negociações é absolutamente irrelevante para a qualificação do pretérito exercício pela mutuante da faculdade de considerar imediatamente vencidas todas as prestações do mútuo (art.º 781.º do Cód. Civil). Obviamente, os factos ulteriores ao exercício do direito não podem ter por efeito cunhar retroativamente de abusivo tal exercício.
Nem mesmo relativamente aos diferentes direitos ulteriormente exercidos pela embargada – como o direito de preencher a livrança ou o direito de instaurar a ação executiva – tal facto determina que o seu exercício foi abusivo. Por um lado, o credor não está obrigado a aceitar o cumprimento parcial (art.º 763.º do Cód. Civil), notando-se que, quando as negociações foram mantidas após se terem vencido a totalidade das prestações do mútuo. Por outro lado, quem decide quando não se justifica mais continuar a negociar o cumprimento voluntário da obrigação vencida não é o devedor, mas sim o credor (art.º 817.º do Cód. Civil).
Deixando de lado o concreto facto destacado pelas apelantes acima mencionado – o decurso de negociações para regularização da dívida –, podemos aceitar, a bem da discussão, que a ideia de que, no exercício do direito de preencher a livrança – antes mesmo, pois, do nascimento do crédito cambiário –, a mutuante deve atuar de boa-fé não é desprovida de razoabilidade (art.º 762.º, n.º 2, do Cód. Civil). Neste contexto, se estiver ao alcance do credor evitar maiores prejuízos para o futuro avalista – ambos já partes da relação jurídica em que se traduz o pacto de preenchimento –, podemos aceitar que pode ter o dever de o alertar para a ocorrência do incumprimento que cauciona(rá) o vencimento das prestações vincendas (e o preenchimento da livrança por valor superior), quando este desconhecia sem culpa tal incumprimento, permitindo-lhe evitar a perda do benefício do prazo pelo mutuário e o preenchimento do título pelo valor total das prestações do mútuo. No entanto, não é este o caso dos autos.
Por um lado, as embargantes podiam, a qualquer momento – mesmo sem recurso a soluções de financiamento ou capitalização da mutuária consentidas pelo direito societário –, liquidar a prestação em falta (art.º 767.º do Cód. Civil), obviamente, antes de a mutuante exercer a sua faculdade prevista no art.º 781.º do Cód. Civil. Por outro lado, a sua pretensão, no sentido de serem notificadas do incumprimento da mutuária, só teria cabimento se desconhecessem tal incumprimento – desconhecimento este que nunca arguiram precedentemente. Recorde-se que as apelantes, à data, eram sócias da mutuária – tendo esta apenas três sócios –, sendo uma delas sua gerente. Nada podia a mutante dizer-lhes que elas não soubessem já – ou não tivessem a obrigação de conhecer.
Em suma, improcedem os argumentos expendidos pelas apelantes agora analisados.
5. Redução do valor devido ao montante da prestação vencida não liquidada
Por último, pretendem as apelantes “a adequação do montante exequendo, limitando-se a cobrança ao valor da prestação vencida em 30/12/2022 no valor de € 6.614,91 (…) antes da antecipação indevida do contrato (…)” – cfr. a conclusão 36.ª. Trata-se de uma pretensão sem sustentação legal.
Como já sublinhámos ad nauseam, as embargantes nada têm a ver pessoalmente com as obrigações emergentes do contrato de mútuo. Apenas integram a relação jurídica cartular, sendo que o valor regularmente inscrito na livrança não é o valor pretendido (€ 6.614,91). Tendo as apelantes avalizado a livrança (garantindo a obrigação do subscritor), têm o dever de liquidar toda a quantia titulada (arts. 32.º e 77.º, § 3.º, da LULL). Sempre seria este, de resto, o regime geral aplicável – arts. 763.º e 817.º do Cód. Civil.
Em conclusão, devem os embargos improceder, confirmando-se a sentença apelada.
6. Responsabilidade pelas custas
A responsabilidade pelas custas cabe às apelantes (art.º 527.º do Cód. Proc. Civil), por terem ficado vencidas.
C. Dispositivo
C.A. Do mérito do recurso
Em face do exposto, na improcedência da apelação, acorda-se em manter a decisão recorrida.
C.B. Das custas
Custas a cargo das apelantes.
* Notifique.
Lisboa, 13 de Maio de 2025
Paulo Ramos de Faria
João Bernardo Peral Novais
Ana Mónica Mendonça Pavão