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INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
PRESUNÇÕES
INSOLVÊNCIA CULPOSA
Sumário
I – Nos termos do artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, para que a insolvência seja culposa é necessário que (i) a sua criação ou agravamento tenha resultado (ii) de uma atuação dolosa ou com culpa grave (iii) do devedor ou dos seus administradores de direito ou de facto, (iv) nos três anos anteriores ao início do processo. II – Por sua vez, é notória a distinção entre o n.º 2 e n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, tendo o legislador feito constar que nas situações do n.º 2 considera-se sempre culposa a insolvência e nas situações do n.º 3 que se presume a existência de culpa grave. III – Assim, provado o facto elencado nas diversas alíneas constantes do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, presume-se, de forma inilidível, nos termos do artigo 350.º, n.º 2, última parte, do Código Civil, a existência de dolo ou culpa grave, bem como a existência do nexo de causalidade entre esse facto e a criação ou agravamento da insolvência. IV – Considera-se preenchida a alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE quando o insolvente, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, renunciou à quota hereditária a favor da sua mãe e da sua irmã, sem ter recebido, por conta dessa renúncia, qualquer contrapartida económica. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Proc. n.º 33/22.6T8OLH-B.E1
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]
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I - Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Comércio de Olhão – Juiz 1, nos autos de insolvência n.º 33/22.6T8OLH, em que foi declarado insolvente (…),[2] por sentença proferida em 25-01-2022, e já transitada, foi requerida pelo Ministério Público, em representação da Fazenda Pública, nos termos do artigo 188.º, n.º 1, do CIRE, que a referida insolvência seja qualificada como culposa, nos termos do artigo 186.º, n.º 2, alíneas a) e d), do mesmo Diploma Legal.
Declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência, o administrador da insolvência pronunciou-se, nos termos do artigo 188.º do CIRE, no sentido de que a insolvência fosse qualificada como culposa, por se verificarem as presunções a que alude o artigo 186.º, n.ºs 1, alíneas a) a g), 3, alíneas a) e b) e 4, do CIRE, sendo afetado o insolvente (…).
O insolvente (…) veio apresentar a sua oposição, nos termos do artigo 188.º, n.º 9, do CIRE, solicitando, a final, que a insolvência não seja qualificada como culposa, nem que o insolvente seja afetado por tal qualificação.
O administrador da insolvência veio responder à oposição, reiterando o teor do seu parecer.
Dada a simplicidade da causa, foi dispensada a tentativa de conciliação e a realização de audiência prévia, sendo proferido despacho saneador, onde foi fixado o valor da ação em valor idêntico ao do processo principal e dispensada a identificação do objeto do litígio e a enunciação dos temas da prova.
…
Efetuado o julgamento, foi proferida sentença, em 18-11-2024, com o seguinte teor decisório:
Em face do exposto, o Tribunal decide julgar totalmente improcedente o presente incidente de qualificação da insolvência e, em consequência decide qualificar a insolvência de (…) como fortuita.
Sem custas.
Registe e notifique.
Após trânsito, conclua os autos principais para apreciação liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
…
Inconformado com a sentença, veio o Ministério Público recorrer, terminando com as seguintes conclusões:
1. A apelação tem como objeto a reapreciação da factualidade constante dos pontos 12, 13, 14 e 15 dos factos provados e do ponto 3 dos factos não provados, e também da aplicação dos factos ao direito.
2. O tribunal fundamentou a prova dos factos vertidos nos pontos 12, 13 e 14 nas declarações de parte do insolvente e no depoimento das testemunhas (…) e (…), considerando que estas, não obstante a sua relação de proximidade familiar com o insolvente depuseram de forma espontânea, consistente e verosímil e que o os seus depoimentos eram credíveis.
3. Não olvidando que esta prova está sujeita à livre apreciação do tribunal, cremos que os depoimentos das testemunhas (…) e (…) não são isentos uma vez que ambas têm uma relação familiar direta com o insolvente (mãe e irmã), tendo sido beneficiadas com o acto de disposição do património do insolvente.
4. A falta de isenção e de credibilidade do depoimento da testemunha (…) ficou bem patente quando pelo mandatário do insolvente, lhe foi perguntado quais os bens da herança do seu marido, imediatamente respondeu: “ficou combinado com o meu marido que o meu filho deixaria a sua parte da herança para a irmã para a compensar por não ter recebido ajudas como aconteceu com o filho” (gravação do minuto 02:48 a 03:19 da sessão de julgamento de 15-03-2024).
5. O depoimento destas testemunhas e as declarações do insolvente não são isentos nem merecem credibilidade.
6. Embora as testemunhas tenham afirmado que o repudio realizado pelo insolvente em 2-01-2020 teve como objectivo deixar a herança para a sua mãe e irmã para compensar as ajudas que o insolvente tinha recebido do seu pai, a verdade é que tais depoimentos valem o que valem, perante os factos que resultam da prova produzida, que permitem concluir que a verdadeira motivação do repúdio foi a situação de pré-insolvência em que o devedor já se encontrava (cfr. factos 4 e 16 da matéria provada).
7. Também não se afigura verosímil que o pai do insolvente tivesse por vontade, que o filho repudiasse a sua herança para beneficiar a filha que não estudou, quando o podia ter feito através de uma doação ou deixando à mesma a quota disponível.
8. Assentando a prova dos factos contidos nos pontos 12 a 14 apenas nos depoimentos das testemunhas (…) e (…) e nas declarações de parte do insolvente, face à ausência de outras provas que corroborem a versão trazida aos autos pelos mesmos, deverão ser eliminados os referidos itens (12 a 14) dos factos provados.
9. Quanto ao ponto 15 dos factos provados, a prova assenta, de acordo com a fundamentação vertida na sentença, em que não há qualquer elemento de prova que permita concluir que no momento do repúdio, (…), estivesse em situação de insolvência ou sequer de insolvência iminente.
10. O tribunal não pode dar por verificados factos com o fundamento em que não há qualquer prova do contrário do facto provado.
11. A fundamentação deste facto é inexistente, estando mesmo em contradição com o facto provado no ponto 4-ii, do qual consta que já em data anterior ao repúdio o insolvente estava em incumprimento para com o Banco (…), como avalista, no montante total de € 31.827,47.
12. Os elementos probatórios juntos aos autos, nomeadamente o documento emitido pelo Banco de Portugal, junto com a PI de apresentação à insolvência, no processo principal, e as declarações do AI prestadas do minuto 1:11 ao minuto 3:07,da sessão de julgamento gravada em 7-03-2024, permitem concluir que em 2020, o insolvente já sabia que não conseguiria resolver a sua situação de incumprimento para com a banca, que em 17-04-2019 o insolvente já se encontrava em situação de incumprimento pelo montante de € 36.404,95 e em 23-06-2019, o insolvente como avalista já se encontrava em incumprimento ao Banco no valor de € 29.075,58.
13. O facto que consta do ponto 15 deve, assim, ser eliminado dos factos provados por não existir nos autos qualquer elemento de prova que o sustente.
14. Finalmente, no que respeitas ao facto que consta do ponto 3 dos factos não provado, os elementos de prova referidos na análise do ponto 15 dos factos provados e a desconsideração do conteúdo das declarações das testemunhas (…) e (…), deverão conduzir também à alteração do decidido, ou seja, dessa prova retira-se que o insolvente ao repudiar a herança, conscientemente, quis retirar da sua esfera jurídica o direito a um quinhão hereditário, avaliado em € 22.500,00, dispondo desse património.
15. Este facto do ponto 3 dos factos não provados deverá passar a constar do elenco dos factos provados.
16. Nos termos do disposto no artigo 185.º do CIRE, a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita.
17. A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
18. Considera-se sempre culposa a insolvência que não seja pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: disposto dos bens do devedor em proveito de pessoal ou de terceiros.
19. Os comportamentos enunciados no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, ocorridos nos três anos anteriores ao início do processo, determinam inexoravelmente, a atribuição do carácter culposo à insolvência, porque as presunções aí vertidas, desde que provado o facto que as integra, não admitem a prova da culpa, nem a demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres aí constantes e a situação de insolvência ou o seu agravamento.
20. Questiona-se se a decisão aplicou corretamente o direito aos factos, considerando as alterações da matéria de facto acima peticionadas e mesmo independentemente da procedência das mesmas.
21. Está em causa saber se o repúdio de herança efetuado pelo devedor/insolvente no período temporal dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, é passível de integrar a alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
22. Dispõe-se na sentença recorrida que o estabelecimento da presunção vertida na referida alínea ancora-se nos conceitos de atos de disposição e proveito e que tendo em consideração o repúdio realizado pelo insolvente não configura um ato de disposição patrimonial no sentido de as beneficiárias terem recebido um benefício sem justa causa.
23. Mais se diz que o valor do quinhão hereditário – vinte e dois mil euros – não constitui nenhum benefício, pois constitui um modo de compensar a irmã do insolvente pelo valor que o insolvente havia beneficiado ao longo da sua vida.
24. Conclui-se que o repúdio da herança do pai não gerou nenhum proveito suscetível de preencher a hipótese legal da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
25. Em nosso entender o proveito gerado é evidente e reconduz-se ao valor efetivo que as restantes herdeiras da herança receberam em consequência do referido repúdio.
26. Quem alega o facto tem que o provar e tendo o insolvente alegado que o repúdio se destinou a compensar transferências financeiras que lhe foram prestadas pelas outras herdeiras, teria que o provar o que em nosso entender não sucedeu, pois como se acentuou a prova pessoal que fez quanto a esses factos, não é isenta, é interessada e por isso não merece credibilidade.
27. A fundamentação encontrada para qualificar a insolvência como fortuita não é consistente e não apreciou a actuação do insolvente à luz das normas infringidas e dos valores que tutelam, nomeadamente a salvaguarda da posição dos credores.
28. No direito insolvencial a atuação do insolvente revela acentuado desvalor jurídico e ético, ao ponto o repúdio de herança poder ser resolvido em benefício da massa se praticado nos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência (cfr. artigos 120.º, n.º 1, 2 e 3 e 121.º, n.º 1, alínea b), do CIRE).
29. Tendo presente a alteração da matéria de facto que pretendemos em sede de recurso, entendemos que a conduta do insolvente reconduz-se à situação prevista alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, que estabelece uma presunção iuris et de iure de insolvência culposa, determinando inexoravelmente, a qualificação da insolvência como culposa.
30. Cabe, assim, concluir que a insolvência de (…) deve ser julgada como culposa.
IV- Pedido
Pelo exposto, conforme o direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências deve ser concedido provimento ao presente recurso, requerendo-se a revogação da decisão recorrida, por violação do preceituado nos artigos 607.º, n.º 4, do CPC e 186.º, n.º 1 e 2, alíneas d) e b), do CIRE, decidindo-se no sentido qualificação da insolvência como culposa e declarando-se afectado pela mesma o insolvente, (…), com todas as consequências a que alude o disposto no n.º 2 do artigo 189.º do CIRE.
V. Exas farão a costumada JUSTIÇA.
…
O insolvente (…) veio apresentar as suas contra-alegações, terminando com as seguintes conclusões:
a) O Recorrente impugna a decisão do Tribunal a quo, versando sobre a matéria de facto e de direito.
b) Ora, relativamente à matéria de facto o Recorrente não cumpre o estabelecido pelos normativos legais para que se possa considerar impugnada a matéria de facto.
c) O Recorrente invoca colocar em crise a sentença, e em particular os factos provados 12, 13, 14 e 15 e o facto não provado 3.
d) Primeiro impugnou a matéria de facto por blocos, ou seja, através de um excerto que retirou da matéria de facto, pretende que três factos provados sejam considerados como não provados, não identificando facto a facto a prova gravada que permite decidir em contrário.
e) Por um lado, a remissão genérica realizada pelo Recorrente não pode ser aceite, pois refere que através dos depoimentos de (…) e (…), respetivamente mãe e irmã do Recorrido, o Tribunal a quo deveria ter decidido de forma diferente, transcrevendo apenas um excerto do depoimento da mãe do Recorrido
f) Por outro lado, transcreve um excerto do depoimento do Administrador de Insolvência que por si só não prova o que se pretende porque constam documentos do incumprimento e datas dos créditos expostos na insolvência do qual o Recorrente e o Administrador nunca fizeram distinção sobre ser devedor a título principal ou fiador pelo que consideram que o ponto 15 dos factos provados e o ponto 3 dos factos não provados não deveriam ter sido considerados dessa forma.
g) Por esse motivo uma impugnação em bloco com remissão genérica para a prova nunca pode ser considerada como impugnação da matéria de facto, pelo que o presente Recurso padece dessa omissão e é nulo por esse motivo, não podendo o Recorrente aproveitar o prazo acrescido de 10 dias.
h) O Recorrente Ministério Público vem colocar em crise a sentença do Tribunal a quo sob a qual decidiu que a qualificação da insolvência seria fortuita e não culposa devido ao repudio da herança pelo Recorrido realizada em 02/01/2020.
i) Ora, no recurso de que se recorre, o Recorrente considera existir a violação do n.º 1 e 2 nas alíneas b) e d) do artigo 186.º do CIRE, contudo no requerimento que apresentou considerou apenas que violavam o n.º 2, alíneas a) e d), do artigo 186.º do CIRE, pelo que se contradiz no direito a aplicar.
j) O Recorrido na sua defesa deve ter uma certeza jurídica do que lhe é imputado, não podendo o Recorrente fazer um uso indiscriminado da lei e das opções normativas para, em face da prova produzida, vir considerar que o insolvente violou normativos que antes não tinham sido invocados.
k) Ora, a mãe, irmã e sobrinha do Recorrido referiram que sempre tentaram ajudar o Recorrido e que o repúdio foi apenas uma consequência dessa ajuda e um desejo do falecido pai do Recorrido.
l) Inclusivamente verificou-se qual o quinhão hereditário que cabia ao Recorrido, que era um valor muito diminuto considerado pelo Administrador de Insolvência e pelo Ministério Público.
m) O repudio foi realizado num momento em que o Recorrido não pensava sequer numa insolvência.
n) A única dívida vencida antes do repúdio foi da sociedade (…) com o Banco (…) e não do Recorrido em nome pessoal.
o) A sociedade (…) foi declarada insolvente no final de 2021 a pedido do próprio Recorrido.
p) O Administrador de Insolvência e o Recorrente sempre confundiram as dívidas assumidas pela sociedade que o Recorrido era gerente (…) e as dívidas assumidas pelo próprio Recorrido na qualidade de pessoa singular, pelo que a atuação de duas pessoas jurídicas distintas é sobreposta e nunca foi corrigida durante os autos por estes dois sujeitos processuais.
q) O repúdio teve como objetivo deixar a herança para a sua mãe, irmã e consequentemente sobrinha, devido à ajuda financeira que as mesmas lhe deram em alturas de necessidade, nomeadamente para a criação e manutenção das duas empresas e igualmente por não ter quaisquer descendentes, tal como ficou assente pelo Tribunal a quo.
r) O repúdio apenas configura a perda de oportunidade de ver aumentado o seu património e não uma diminuição da garantia dos credores.
s) Neste caso, o repúdio não obstou ao pagamento a nenhum credor, pois esse património não foi aceite nem era seu, nem mesmo o património do Recorrido diminuiu por esse repúdio.
t) Pelo que o Supremo Tribunal de Justiça, através de jurisprudência supra exposta, clarifica que a atuação do insolvente não foi dolosa nem prejudicou qualquer credor.
u) Ora, muito pelo contrário e até à presente data o Recorrido sempre teve uma postura cooperante e tentou liquidar as suas dívidas, inclusivamente algumas dívidas não estão vencidas porque outros devedores encontram-se a pagar os créditos.
v) Da mesma forma que o Recorrido juntou aos autos emails trocados com o seu mandatário cujo sigilo foi levantado a solicitação deste último, no qual o Recorrido pretendia iniciar a insolvência pessoal, mas só pôde iniciar no final de 2021 a da sociedade (…) por falta de recursos económicos, nunca equacionando um prazo para o fazer, designadamente os 2 anos para se poder resolver o repúdio, nos termos do disposto nos artigos 120.º, n.º 1, 2 e 3 e 121.º, n.º 1, alínea b), do CIRE.
w) Por fim sempre se dirá que na impossibilidade de anular-se o repúdio e ao qualificar-se a insolvência como culposa, o Recorrido perderá o seu trabalho como Diretor Executivo da (…) e, consequentemente a exoneração do passivo restante não será concedida e não ocorrerá cessão do rendimento disponível.
x) Caso a pretensão do Recorrente tenha provimento, os credores não receberão qualquer montante por parte do Recorrido, a não ser a quota da empresa (…), Lda. apreendida nos autos.
y) Por esse motivo, não se compreende a insistência do Recorrente, no qual será mais prejudicial aos credores, do que a concessão da exoneração do passivo restante e a cessão do rendimento disponível, em face do desemprego do Recorrido que certamente irá ocorrer, por não poder exercer cargos de Direção.
z) Pelos motivos supra expostos, a douta sentença deve manter-se inalterada.
Termos em que e nos demais de Direito deve ser negado provimento ao presente recurso, devendo ser mantida e confirmada a douta decisão recorrida, assim se fazendo a acostumada Justiça!
…
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Após ter sido recebido o recurso neste tribunal nos seus exatos termos, foram os autos aos vistos, cumprindo agora apreciar e decidir.
…
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (artigo 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Assim, no caso em apreço, as questões que importa decidir são: 1) Impugnação fáctica; e 2) Insolvência culposa.
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III – Matéria de Facto
Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1- (…) apresentou-se à insolvência a 11.01.2022, que foi declarada por sentença de 25.01.2022, transitada em julgado.
2- No seu requerimento de apresentação à insolvência, no anexo IV relativo a relação de bens, (…) declarou apenas duas quotas em sociedades comerciais, designadamente: (i) quota de € 5.000,00 na sociedade (…), Unipessoal, Lda.; e (ii) quota de € 5.000,00 na sociedade (…), Lda..
3- Após a declaração da insolvência, o Senhor Administrador da Insolvência apurou a existência do seguinte bem no património do Insolvente, que apreendeu: Quota no valor nominal de € 5.000,00, de que o Insolvente é titular na sociedade (…), Unipessoal, Lda., com sede na Rua (…), Sala J, n.º 20, Funchal, Ilha da Madeira.
4- No apenso de verificação e graduação de créditos foram reconhecidos os seguintes créditos sobre o Insolvente, no valor total de € 400.883,98:
(i) Créditos de Banco (…) Português, S.A., no total de € 261.043,83, de natureza comum, constituídos pelo menos em 2018, provenientes de créditos relativos a sociedades comerciais (…), Lda., (…), Lda. e (…), Unipessoal, Lda., e em incumprimento desde 17.01.2020 (€ 33.515,17, acrescido de juros), 12.06.2020, 11.10.2021 e 13.10.2021 respectivamente;
(ii) Créditos de Banco (…), S.A., no total de € 31.827,47, de natureza comum, um deles constituído pela sociedade (…), Lda., em 2016, no valor total de € 31.118,88 e em incumprimento desde 24.05.2019, de que o Insolvente é fiador e principal pagador, e um crédito pessoal constituído em 2016, no valor de € 4.883,50, e em incumprimento desde 11.02.2022;
(iii) Créditos da Autoridade Tributária e Aduaneira, no valor total de € 3.400,69, relativos a IRS, IVA, Custas e juros de mora em dívida, vencidos em 2021;
(iv) Créditos de (…), relativos à sociedade (…), Lda., valor de € 104.611,98.
5- Por escritura pública de 02.01.2020, lavrada no Cartório Notarial de Alcobaça, o insolvente (…) declarou ser filho de (…), falecido no dia 04 de Julho de 2019, e declarou repudiar a herança aberta por óbito deste.
6- Sucederam a (…) o seu cônjuge (…) e os seus filhos (…) e (…).
7- Compunham essa herança, três prédios, sitos no concelho de Alcobaça, sendo um rústico inscrito na matriz sob o artigo … (União das Freguesias de … e …), e dois urbanos inscritos na matriz com os artigos … e … (União das Freguesias de … e …).
8- Á data do repúdio, os referidos prédios tinham o seguinte valor patrimonial:
(i) Prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo (…) - € 171,08.
(ii) Prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo (…) - € 20.147,75; e
(iii) Prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo (…) - € 20.160,23.
9- Á data do repúdio, o prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo (…) tinha um valor comercial de € 51.000,00.
10- Á data do repúdio, o prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo (…) tinha um valor comercial de € 84.000,00.
11- Para além do referido quinhão o insolvente apenas possuía no seu património os bens descritos em 2-supra.
12- O repúdio teve como objectivo deixar a herança para a sua mãe e irmã, para compensar as ajudas que o Insolvente tinha recebido do seu pai em vida – para pagamento de estudos superiores, aquisição de automóveis e doações de dinheiro –, de que a sua irmã não havia beneficiado. (Eliminado, conforme fundamentação infra)
13- Era vontade do pai do Insolvente que a sua herança revertesse para a mãe e irmã do Insolvente, em virtude de ter suportado tais despesas do Insolvente e não ter podido fazer o mesmo com a sua irmã. (Eliminado, conforme fundamentação infra)
14- O repúdio destinou-se também a compensar a ajuda financeira que a sua mãe e irmão lhe tinham prestado, nomeadamente financiamento para a criação e manutenção das duas empresas, e igualmente por não ter quaisquer descendentes. (Eliminado, conforme fundamentação infra)
15- No momento do repúdio, o Insolvente não tinha intenção de se apresentar à insolvência, estando convencido de que poderia cumprir as suas obrigações. (Eliminado, conforme fundamentação infra)
16- Tendo para isso renegociado créditos das suas sociedades e formas de pagamento. (Alterado, conforme fundamentação infra)
17- Contudo, na segunda metade do ano de 2021, a situação económica da empresa (…) agudizou-se, motivada pela pandemia Covid-19, tendo o Insolvente decidido apresentar a sociedade à insolvência e apresentar-se à insolvência.
18- Não tendo dado entrada de todos os processos simultaneamente por não dispor de meios financeiros para suportar os honorários de advogado para o efeito.
19- A sociedade (…), Lda. foi constituída por (…), que foi sempre o seu único sócio e gerente.
20- A sociedade (…), Lda. apresentou-se à insolvência a 12.11.2021 e foi declarada insolvente por sentença de 15.11.2021, transitada em julgado, no processo de insolvência n.º 892/21.0T8OLH que pende neste Juízo de Comércio de Olhão (Juiz 1).
21- Tal processo foi encerrado por insuficiência da massa insolvente, tendo sido determinada a liquidação e dissolução da sociedade nos termos do artigo 234.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
22- A sociedade (…), Lda. foi constituída em 27.09.2016 por (…) e (…), ex-cônjuge do Insolvente.
23- Entre 19.03.2019 e 21.07.2021, a sociedade teve como únicos sócios (…) e (…), sobrinha do Insolvente.
24- Entre 19.03.2019 e 21.03.2021, o Insolvente (…) foi gerente da sociedade (…), Lda..
25- A sociedade (…), Unipessoal, Lda. foi constituída em 30.06.2016 por (…), ex-cônjuge do Insolvente, que assumiu a gerência da sociedade.
26- A 18.03.2021, o Insolvente (…) adquiriu a totalidade do capital social da sociedade (…), Unipessoal, Lda., tornando-se seu único sócio e gerente.
…
E deu como não provados os seguintes factos:
1- Á data do repúdio, os referidos prédios tinham o seguinte valor de mercado:
(i) Prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo (…) - € 171,08.
(ii) Prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo (…) - € 286.859,00; e
(iii) Prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo (…) - € 286.675,00.
2- Á data do repúdio, o prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo (…) tinha um valor de mercado de € 329.000,00.
3- Com a conduta referida o insolvente quis e ocultou o quinhão hereditário supra referido, transferindo-o, sem receber qualquer contrapartida. (Alterado, conforme fundamentação infra) (os factos 12, 13, 14 e 15 passam a não provados, com a designação, respetivamente, de factos não provados 4, 5, 6 e 7)
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IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar são as questões supramencionadas.
…
1 – Impugnação da matéria de facto
Entende o Ministério Público que os factos provados 12, 13, 14 e 15 devem ser eliminados e que o facto não provado 3 deve passar a provado, em consequência do não atendimento às declarações do insolvente e das testemunhas (…) e (…), da contradição existente entre o facto provado 15 e o facto provado 4, ii), das declarações do administrador da insolvência e do documento emitido pelo Banco de Portugal, junto com a petição inicial de apresentação à insolvência.
Considera-se estarem cumpridos os requisitos previstos no artigo 640.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do Código de Processo Civil, visto que o recorrente fundamentou a eliminação dos factos provados 12 a 14 na descredibilização dos depoimentos em que se fundamentou a prova desses factos e a eliminação do facto provado 15 e a prova do facto não provado 3, nas declarações do administrador da insolvência, tendo indicado o momento exato dessas declarações, e num documento que também identificou.
Apreciemos.
a)Factos provados 12, 13 e 14
Consta dos factos provado 12, 13 e 14 que:
12- O repúdio teve como objectivo deixar a herança para a sua mãe e irmã, para compensar as ajudas que o Insolvente tinha recebido do seu pai em vida – para pagamento de estudos superiores, aquisição de automóveis e doações de dinheiro –, de que a sua irmã não havia beneficiado.
13- Era vontade do pai do Insolvente que a sua herança revertesse para a mãe e irmã do Insolvente, em virtude de ter suportado tais despesas do Insolvente e não ter podido fazer o mesmo com a sua irmã.
14- O repúdio destinou-se também a compensar a ajuda financeira que a sua mãe e irmão lhe tinham prestado, nomeadamente financiamento para a criação e manutenção das duas empresas, e igualmente por não ter quaisquer descendentes.
Pretende o recorrente que estes factos sejam eliminados em face da descredibilização que merecem quer as declarações do insolvente quer os depoimentos das testemunhas (…) e (…), respetivamente mãe e irmã do insolvente.
Vejamos, então.
Efetivamente, fazendo-se constar nestes factos a intenção do falecido quanto ao destino a dar à sua herança, intenção essa baseada apenas em declarações, sejam elas do insolvente, sejam elas da mãe e da irmã daquele, revelam-se tais declarações insuficientes para que estes factos possam, sem mais, ser dados como provados. Acresce que essa intenção do falecido alicerçar-se-ia no facto de ter contribuído para o pagamento de estudos superiores ao filho, na aquisição de automóveis para este e em doações em dinheiro de que este foi o beneficiário, o que não fizera para a filha. Ora, para além de, em vida, o falecido ter podido dispor, por testamento, em benefício da filha, da sua quota disponível, importa referir que os factos de disposição a favor do filho não se mostram comprovados, (para além das declarações genéricas do insolvente, da sua mãe e da sua irmã), nem por testemunhas fora do círculo restrito familiar, nem por prova documental.
De igual modo, não existe qualquer meio de prova (para além das declarações já mencionadas), objetivo e credível (designadamente, através de documentação comprovativa das transferências bancárias), de que a mãe e a irmã do insolvente tivessem prestado ajuda financeira ao insolvente para a criação e manutenção das duas empresas.
Nesta conformidade, por insuficiência de prova, os factos provados 12, 13 e 14 devem passar a não provados, procedendo, nesta parte, a pretensão do recorrente.
b)Facto provado 15 e facto não provado 3
Consta do facto provado 15 que:
15- No momento do repúdio, o Insolvente não tinha intenção de se apresentar à insolvência, estando convencido de que poderia cumprir as suas obrigações.
E consta do facto não provado 3 que:
3- Com a conduta referida o insolvente quis e ocultou o quinhão hereditário supra referido, transferindo-o, sem receber qualquer contrapartida.
Pretende o recorrente que o facto provado 15 seja eliminado, quer por contradição com o facto provado 4, ii), quer em face das declarações do administrador da insolvência e do documento emitido pelo Banco de Portugal, junto com a petição inicial de apresentação à insolvência.
Vejamos. Quanto ao facto provado 15, à data do repúdio da herança, que ocorreu em 02-01-2020, a sociedade “(…), Lda.” estava em incumprimento, desde 24-05-2019, para com o credor “Banco (…), S.A.”, relativamente à quantia de € 31.118,88, sendo o insolvente (…) o fiador e principal pagador dessa dívida (facto provado 4, ii)). Todos os outros incumprimentos surgiram em datas posteriores ao do repúdio, ainda que o incumprimento no montante de € 33.515,17 tenha ocorrido apenas 15 dias após esse repúdio (facto provado 4, i)). Uma vez mais, desconhece-se, por ausência de elementos de prova, qual tenha sido a intenção do insolvente à data do repúdio, bem como qual fosse a sua convicção, à data, relativamente à sua possibilidade de cumprir com as suas obrigações. Uma coisa, porém, é segura, à data do repúdio, o insolvente tinha conhecimento do incumprimento relativamente à quantia de € 31.118,88, uma vez que era o único sócio e gerente da sociedade “(…), Lda.” (facto provado 19), bem como tinha conhecimento de que era fiador e principal pagador dessa dívida, tendo igualmente conhecimento que em 17-01-2022 se vencia uma dívida dessa sociedade no valor de € 33.515,17.
Importa ainda referir que o facto genérico de que o insolvente veio a renegociar os créditos das suas sociedades e formas de pagamento (facto provado 16), por nada concretizar relativamente a que créditos e formas de pagamento houve renegociação, bem como se o insolvente procedeu, ou não, entretanto, a quaisquer pagamentos nos termos renegociados, em nada permite aferir de qual fosse a intenção do insolvente relativamente à sua possibilidade de cumprir com as suas obrigações.
Diga-se, ainda, que, apesar de se ter dado como provado que o Covid 19 agudizou, na segunda metade de 2021, a situação económica de sociedade “(…), Lda.” (facto provado 17), desconhece-se, em concreto, qual fosse a situação económica daquela sociedade antes do Covid 19 (para além dos dois incumprimentos supramencionados) e de que forma é que a pandemia do Covid 19 agudizou essa situação.
Pelo exposto, o facto provado 15 terá de ser dado como não provado.
Relativamente ao facto não provado 3, terá de se dividir este facto em duas partes.
Na primeira, integrar-se-á a parte atinente a “Com a conduta referida o insolvente quis e ocultou o quinhão hereditário supra referido”.
Ora, sobre esta parte, desconhece-se qual tenha sido a intenção do insolvente aquando do repúdio do seu quinhão hereditário. O que se sabe, sem que haja necessidade de ficar a constar dos factos, por se tratar de uma conclusão a retirar dos factos dados como assentes, é que, ao repudiar a herança, a quota hereditária que lhe cabia não integrou o seu património, não sendo, desse modo, utilizada para o pagamento do montante já em dívida, nem para o pagamento do montante que, decorridos 15 dias após o repúdio, se veio a vencer.
Assim, e quanto a esta parte terá a mesma de se manter como não provada.
Na segunda, integrar-se-á a parte atinente a “transferindo-o, sem receber qualquer contrapartida”.
Quanta a esta parte, apesar de a quota hereditária repudiada pelo insolvente não ter sido, em termos técnico-jurídicos “transferida”, antes sim, cedida aos restantes herdeiros, verdade é que a mesma não integrou o património do insolvente, nem este, que se tenha provado (tanto mais que se deu como não provados os factos 12, 13 e 14), recebeu, em troca da mesma, qualquer contrapartida (económica ou outra). Assim, esta segunda parte será eliminada da redação do facto não provado 3.
Nesta conformidade, o facto não provado 3 passará a ter a seguinte redação:
3- Com a conduta referida o insolvente quis e ocultou o quinhão hereditário supra referido.
Pelo exposto, nesta parte, apenas procede parcialmente a pretensão do recorrente.
Com a eliminação do facto provado 15, o facto provado 16, nos moldes em que se encontra redigido, não faz sentido, pelo que se altera o mesmo nos seguintes termos:
16- O insolvente renegociou os créditos das suas sociedades e formas de pagamento.
Em conclusão, procede parcialmente a pretensão do recorrente, pelo que: - Os factos provados 12, 13, 14 e 15 são eliminados do elenco dos factos provados, passando a integrar os factos não provados 4, 5, 6 e 7; - O facto não provado 3 passa a ter a seguinte redação: 3- Com a conduta referida o insolvente quis e ocultou o quinhão hereditário supra referido.
e - Altera-se a redação do facto provado 16, em face da eliminação do facto provado 15, que passa a ter a seguinte redação: 16- O insolvente renegociou os créditos das suas sociedades e formas de pagamento.
…
2 – Insolvência culposa
Considera o recorrente que os comportamentos enunciados no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, ocorridos nos três anos anteriores ao início do processo, determinam inexoravelmente, a atribuição do carácter culposo à insolvência, porque as presunções aí vertidas, desde que provado o facto que as integra, não admitem a prova da culpa, nem a demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres aí constantes e a situação de insolvência ou o seu agravamento.
Considera ainda que, em face das alterações fácticas pretendidas, mas mesmo sem que haja procedência das mesmas, o repúdio da herança efetuado pelo insolvente no período temporal dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência é passível de integrar a alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
Na parte final, o recorrente reporta-se igualmente à alínea b) do n.º 2 do referido artigo 186.º, porém, sobre essa alínea não invocou qualquer argumentação.
Apreciemos.
Dispõe o artigo 186.º do CIRE que:
1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º.
3 - Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
4 - O disposto nos n.os 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
5 - Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente.
Conforme resulta da análise do citado artigo, para que a insolvência seja culposa é necessário que (i) a sua criação ou agravamento tenha resultado (ii) de uma atuação dolosa ou com culpa grave (iii) do devedor ou dos seus administradores de direito ou de facto, (iv) nos três anos anteriores ao início do processo.
Por sua vez, é notória a distinção entre o n.º 2 e n.º 3 do citado artigo, tendo o legislador feito constar que nas situações do n.º 2 considera-se sempre culposa a insolvência e nas situações do n.º 3 que se presume a existência de culpa grave. Essa é, aliás, a razão pela qual a grande maioria da doutrina[3] e da jurisprudência[4] consideram existir uma presunção juris et de jure nas situações previstas no n.º 2 e uma presunção juris tantum nas situações previstas no n.º 3.
Na primeira das presunções, provado o facto elencado nas diversas alíneas constantes do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, presume-se de forma inilidível, nos termos do artigo 350.º, n.º 2, última parte, do Código Civil, a existência de dolo ou culpa grave, bem como a existência do nexo de causalidade entre esse facto e a criação ou agravamento da insolvência.
Na segunda das presunções, provado o facto elencado nas diversas alíneas constantes do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, presume-se de forma ilidível, nos termos do artigo 350.º, n.º 2, primeira parte, do Código Civil, a existência de culpa grave, sendo necessário a quem pretenda que a insolvência seja qualificada como culposa que alegue e prove o nexo de causalidade entre esses comportamentos e a criação ou agravamento da insolvência. De igual modo, o insolvente pode alegar e provar que, apesar de se verificar a presunção de existência de culpa grave, no caso concreto, não agiu com culpa grave.
Apesar de existir alguma jurisprudência, bastante minoritária, que advoga a necessidade de alegação e prova do nexo de causalidade entre os comportamentos descritos no n.º 2 (ou apenas em alguns desses comportamentos, consoante as alíneas) do artigo 186.º do CIRE e a criação ou agravamento da insolvência[5]; ou que advoga que mesmos nas situações prevista no n.º 3 do artigo 186.º do CIRE existe uma presunção, ainda que ilidível, desse nexo de causalidade[6]; verdade é que nenhuma destas posições é consentânea com a letra da lei, a qual se nos afigura, aliás, bastante clara, visto que, na primeira situação optou por considerar sempre culposa a insolvência (sendo que a qualificação da insolvência como culposa envolve não só a atuação dolosa ou com culpa grave, como também o nexo de causalidade) e na segunda optou por presumir a existência de culpa grave, já não a existência do dolo ou do nexo de causalidade.
Cita-se, pela sua clareza, o acórdão desta Relação, proferido em 23-11-2017:[7]
O n.º 2 descreve comportamentos dos administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja pessoa singular, que determinam sempre a qualificação da insolvência como culposa. Verificada qualquer das situações tipificadas nas diversas alíneas, funciona uma presunção inilidível de que a insolvência é culposa. “Considera-se sempre culposa”, diz a parte inicial do preceito. Logo, não há lugar para indagações sobre a verificação dos pressupostos enunciados na cláusula geral do n.º 1. Ocorrendo qualquer das situações tipificadas, presume-se, sem possibilidade de prova em contrário, que há dolo ou culpa grave e o nexo de causalidade acima referido.
É completamente diferente o regime estabelecido no n.º 3. Essa diferença não reside apenas na natureza ilidível da presunção que estabelece, resultante da sua conjugação com o artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil, mas também no âmbito da presunção. A presunção do n.º 2 reporta-se à natureza culposa da insolvência, ao passo que a do n.º 3 se restringe à verificação do pressuposto subjectivo da mesma, ou seja, à existência de culpa grave. É, pois, errado afirmar-se que os n.ºs 2 e 3 do artigo 186.º se distinguem apenas pela diversa natureza das presunções que estabelecem. Distinguem-se por isso, mas também porque a presunção do n.º 2 se reporta à qualificação da insolvência como culposa e a do n.º 3 se reporta apenas à verificação de um dos pressupostos dessa qualificação. Daí que, ao contrário do que acontece quando se verifique qualquer das hipóteses tipificadas pelo n.º 2, a ocorrência de uma hipótese tipificada pelo n.º 3 dispense a prova do pressuposto subjectivo da insolvência culposa (sem prejuízo da ilisão da presunção através de prova em contrário), mas não a do nexo de causalidade entre a actuação do devedor e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
Por sua vez, quando estamos perante um insolvente que é uma pessoa singular o disposto nos nºs. 2 e 3 do artigo 186.º do CIRE aplica-se, com as necessárias adaptações e onde não se opuser a diversidade das situações (n.º 4 do citado artigo).
Relativamente à alínea d) aplicável a uma pessoa singular, citamos o acórdão do STJ proferido em 15-02-2018:[8]
A circunstância dos Insolventes, pessoas singulares, não serem uma empresa nem serem comerciantes não os afasta das consequências legais da insolvência, como, de resto, não os afastou da própria declaração de insolvência. Isto porque estão legalmente sujeitos a insolvência e às suas consequências tanto os empresários e comerciantes como os não empresários e não comerciantes, sendo para o caso indiferente que sejam pessoas coletivas ou pessoas singulares.
E por isso o n.º 4 do citado artigo manda aplicar a norma do n.º 2, com as necessárias adaptações, à pessoa singular insolvente, onde a isso se não opuser a diversidade de situações. Ora, nada se vislumbra na letra ou no espírito da alínea d) do referido n.º 2 do artigo 186.º que sugira a ideia de que a sua aplicação deva ser restrita a pessoas não singulares, não empresárias e não comerciantes. Como nos diz Menezes Leitão (ob. cit., pág. 284) “(…) com excepção da situação referida na alínea e) (…), todos os restantes factos mencionados podem facilmente ser aplicáveis à insolvência de pessoas singulares (…)”.
Posto isto, atendamos ao caso concreto.
Resultou provado que, desde 24-05-2019, a sociedade “(…), Lda.”, da qual (…) era o único sócio e gerente, estava em incumprimento para com o “Banco (…), SA”, relativamente à quantia de € 31.118,88, quantia essa da qual (…) era fiador e principal pagador.
Resultou também provado que (…), por escritura pública de 02-01-2020, lavrada no Cartório Notarial de Alcobaça, declarou ser filho de (…), falecido no dia 04-07-2019, e declarou repudiar a herança aberta por óbito deste.
Resultou ainda provado que a sociedade “(…), Lda.” entrou em incumprimento, em 17-01-2020, da quantia de € 33.515,17, para com o credor “Banco (…) Português, S.A”.
De igual modo se provou que a sociedade “(…), Lda.” foi apresentada à insolvência, por (…), em 12-11-2021, sendo declarada insolvente por sentença de 15-11-2021, transitada em julgado, tido sido encerrado tal processo por insolvência da massa insolvente; e o próprio (…) se apresentou à insolvência em 11-01-2022, sendo declarado insolvente por sentença de 25-01-2022, transitada em julgado.
Provou-se igualmente que no processo de verificação e graduação de créditos, relativamente à insolvência de (…), foram reconhecidos créditos sobre este, no valor total de € 400.883,98, onde se incluem os referidos créditos já vencidos e ainda créditos pessoais ou das empresas “(…), Lda.”, “(…), Lda.” e “(…), Unipessoal, Lda.” (mas relativamente aos quais … é igualmente devedor), que se venceram em 12-06-2020, 11-10-2021, 13-10-2021, 11-02-2022 e no ano de 2021 (quanto aos créditos da Autoridade Tributária e Aduaneira).
Por fim, resultou provado que o valor da quota hereditária que (…) repudiou é no montante de € 22.528,51 (em face da aplicação aos factos provados das regras do direito matrimonial e sucessório) e que, após a declaração da insolvência, apenas foi apurado pelo administrador da insolvência como constituindo o património do insolvente uma quota, no valor nominal de € 5.000,00, referente à sociedade “(…), Unipessoal, Lda.”.
O tribunal a quo entendeu que o referido repúdio da herança não integrava o disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, por tal repúdio não se ter traduzido na outorga de um benefício para terceiros sem uma justa ou legítima correspondência prestacional, visto que se existir “correspondência prestacional do terceiro, não há proveito deste, mas sim o recebimento do que lhe compete, justa e legitimamente receber”.[9]
Acontece, porém, que os factos em que o tribunal a quo alicerçou a existência da correspondência prestacional de terceiro foram dados por não provados, sendo que, mesmo a manterem-se no acervo dos factos provados, por inexistir quaisquer valores relativamente aos alegados recebimentos por parte do insolvente, quer do falecido pai, quer da mãe e da irmã, sempre tais factos seriam insuficientes para, por si só, aferir se tais recebimentos por parte do insolvente, em troca do repúdio da sua quota hereditária, se revelavam justos e proporcionais.
Assim, não só a quota hereditária que o insolvente repudiou constituía a parte mais significativa do seu património, como este, à data, não podia deixar de saber que era responsável pelo pagamento da quantia de € 31.118,88 , vencida desde 24-05-2019, e que no dia 17-01-2020, ou seja, 15 dias após tal renúncia, se venceria o montante de € 33.515,17, do qual também era responsável pelo respetivo pagamento. Ora, com tal comportamento, independentemente da intenção que o norteou, o insolvente não podia desconhecer que estava a beneficiar, de forma injustificada e ilegítima, a sua mãe e a sua irmã, agravando a sua situação de insolvência, em manifesto prejuízo dos seus credores.
Assim, é manifesto que o insolvente, no prazo previsto no n.º 1 do artigo 186.º do CIRE, dispôs de bens a que tinha direito, na qualidade de herdeiro, em proveito de terceiros, ou seja, preencheu com o seu comportamento a alínea d) do n.º 2 do citado artigo 186.º, pelo que se presume, de forma inilidível, que o insolvente, com tal comportamento, atuou com dolo ou culpa grave, bem como se presume, de forma inilidível, a existência do nexo de causalidade entre esse facto e a criação ou agravamento da insolvência.
Nesta conformidade, a presente insolvência de (…) deve ser qualificada como culposa, dando-se integral provimento ao recurso interposto, revogando-se, em consequência, a sentença proferida. Porém, como a qualificação da insolvência como culposa, nos termos do artigo 189.º, n.ºs 2 a 4, do CIRE, implica a fixação de determinados efeitos, os quais já não competem aos Tribunais da Relação, sob pena de violação da garantia do duplo grau de jurisdição, deverão baixar os autos à 1.ª instância, a fim de nela serem fixados tais efeitos.[10]
…
Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…)
♣
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar totalmente procedente o recurso e, em consequência, revogar a sentença recorrida, julgando-se a insolvência de (…) como culposa, cujos efeitos serão fixados pelo tribunal da 1.ª instância, após remessa.
Custas a cargo do Apelado (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Notifique.
♣
Évora, 9 de abril de 2025
Emília Ramos Costa (relatora)
Vítor Sequinho dos Santos
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
__________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Vítor Sequinho dos Santos; 2.ª Adjunta: Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite.
[2] Doravante (…).
[3] Cita-se, a este propósito, Luís Menezes Leitão em Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 270; Carvalho Fernandes e João Labareda em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, Lisboa, págs. 680/681; Maria do Rosário Epifânio em Manual do Direito da Insolvência, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 132; e Alexandre de Soveral Martins em Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2015, pág. 363.
[4] Citam-se, designadamente, os acórdãos proferidos pelo STJ em 15-02-2018, no âmbito do processo n.º 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1; pelo TRP em 16-04-2013, no âmbito do processo n.º 1709/06.0TBPNF-T.P2; pelo TRE em 10-10-2019, no âmbito do processo n.º 167/16.6T8STR-C.E1; pelo TRE, proferido em 14-07-2020, no âmbito do processo n.º 505/15.9T8OLH-C.E1; pelo TRE em 14-3-2019, no âmbito do processo n.º 494/14.7TBLLE-E.E1; pelo TRL em 23-03-2021, no âmbito do proc. n.º 1396/11.4TYLSB-B.L1-1; e pelo TRG em 28-03-2019, no âmbito do proc. n.º 1266/17.2T8GMR-B.G1; todos consultáveis em www.dgsi.pt.
[5] Conforme acórdão do TRP, proferido em 10-02-2011, no âmbito do processo n.º 1283/07.0TJPRT-AG.P1, consultável em www.dgsi.pt.
[6] Conforme acórdão do TRC proferido em 22-11-2016 no âmbito do processo n.º 2675/13.1TBLRA-E.C1, consultável em www.dgsi.pt.
[7] No âmbito do proc. n.º 926/14.4TBTNV-B.E1, consultável em www.dgsi.pt.
[8] No âmbito do proc. 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[9] Do já citado acórdão do STJ proferido em 15-02-2018.
[10] No mesmo sentido, acórdão do TRP, proferido em 09-02-2021, no âmbito do processo n.º 807/17.0T8STS-B.P1, consultável em www.dgsi.pt.