O Administrador da Insolvência não pode, por carecer de legitimidade, desconsiderar qualquer quantia superior ao definido judicialmente como rendimento indisponível. Ele está restringido a cumprir o despacho judicial que define o rendimento indisponível (uma vez o salário mínimo), integrando todo e qualquer valor superior a este o rendimento disponível.
Por sentença proferida em 01.06.2023, a requerente foi declarada insolvente.
Em 24.09.2023, foi proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, o qual determinou que, durante os 3 anos subsequentes ao encerramento do processo, a requerente deveria entregar anualmente, ao fiduciário, as quantias por si auferidas que excedessem o valor correspondente à retribuição mínima mensal garantida por mês.
Em 27.11.2023, a requerente informou o tribunal de que se encontrava a residir e a trabalhar em Angola, descreveu os rendimentos que auferia e as despesas acrescidas que a sua permanência nesse país implicava e pediu que fosse «alterado o rendimento disponível da insolvente, nos termos do disposto no artigo 239.º, n.º 3, do C.I.R.E., para o valor de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) mensais, quantia a ser entregue, mensalmente, ao fiduciário.»
Em 06.02.2024, a requerente desistiu do pedido que formulara em 27.11.2023.
Em 18.10.2024, a requerente informou o tribunal de que se encontrava novamente a residir e a trabalhar em Angola e descreveu os rendimentos que auferia e as despesas acrescidas que a sua permanência nesse país implicava. Não formulou, então, qualquer pedido.
Em 21.10.2024, o fiduciário apresentou o primeiro relatório anual, cujo teor transcrevemos parcialmente:
«(…) A devedora, desde que foi notificada do deferimento da exoneração do passivo restante, em 25-09-2023, informou a sua situação laboral bem como os rendimentos mensais auferidos e enviou ao Fiduciário os documentos suscetíveis de o comprovarem, como lhe foi oportunamente solicitado pelo Fiduciário (doc. 1).
Das informações transmitidas pela ilustre mandatária da devedora e da análise aos referidos documentos, foi possível apurar que, desde 01-10-2023 até 30-09-2024, período que corresponde ao 1.º ano da cessão, a devedora esteve sempre a trabalhar em Angola como docente do ensino secundário e auferiu rendimentos anuais suscetíveis de serem cedidos para a fidúcia no montante de € 29.200,83 porque foram superiores ao valor equivalente a 1SMNx12 meses (€ 9.660,00), que lhe foi fixado a título de rendimento indisponível, como se discrimina no mapa que se anexa (doc. 2).
Constatámos, também, que a devedora depositou na conta da fidúcia o montante de € 3.300,00, a fim de amortizar ao montante de € 29.200,83 que devia ter cedido, ficando no final do 1.º ano da cessão com uma dívida à fidúcia de € 25.900,83.
Concluímos, assim, que a devedora, durante o 1.º ano do período da cessão, cumpriu apenas parcialmente com as obrigações, previstas no n.º 4 do artigo 239.º do CIRE, como se comprometeu, por força da concessão da exoneração do passivo restante, porque não depositou na conta da fidúcia todos os montantes apurados como suscetíveis de serem cedidos, não tendo, assim, dado cumprimento ao constante na alínea c) do artigo 239.º do CIRE.
Mais se informa que, com vista ao cumprimento do n.º 2 do artigo 240.º do CIRE, foi dado conhecimento da presente informação aos credores e à mandatária da devedora (docs. 3 e 4).
(…)»
Por despacho proferido em 13.11.2024, foi ordenada a notificação da requerente «para entregar ao AI o montante em dívida, o qual ascende a € 25.900,83.»
Em 28.11.2024, a requerente pediu a reforma do despacho proferido em 13.11.2024, nos seguintes termos:
«1. A Insolvente encontra-se, tal como no período homólogo do ano transacto, a residir e trabalhar em Luanda (Angola).
2. Com efeito, foi contratada, em Setembro de 2023, para exercer as funções de professora de Filosofia, num estabelecimento de ensino naquela cidade, tendo outorgado contrato de trabalho a termo incerto com a empresa (…) – Gestão de Participações e Investimentos Imobiliários, S.A..
3. Desse mesmo facto, informou o douto tribunal, por requerimento datado de 27.11.2023, sob a referência n.º 11917541.
4. Sucede que, por motivos relacionados com o seu processo de legalização, em Angola, em Janeiro do corrente, a insolvente cessou a relação laboral que mantinha com aquela empresa e outorgou contrato de trabalho com nova entidade, designadamente, com a empresa (…) – Actividades Educativas e Culturais, empresa legalmente conectada com a sua primitiva entidade empregadora – Cfr. Doc. n.º 1, cujo conteúdo se dá por inteiramente reproduzido.
5. Ao abrigo do contrato mencionado em 4 do presente, a insolvente mantém as suas funções de docente do ensino secundário, na área da Filosofia, auferindo uma retribuição mensal de Kw 1.087.500,00, o que equivale, de acordo com a taxa de conversão actual, ao valor aproximado de € 1.087,00 (mil e oitenta e sete euros) mensais – Cfr. Documento n.º 1, ora junto.
6. Nos termos do referido contrato, acresce a este valor mensal base uma compensação por isenção de horário de trabalho, no valor de Kw 141.848,00, o que equivale, com a taxa de conversão actual, a um valor aproximado de € 141,00 (cento e quarenta e um euros) – Cfr. Documento n.º 1, ora junto.
7. Por outro lado, recebe um subsídio de expatriação, de natureza não remuneratória, de montante variável e pago apenas quando verificadas as respectivas condições de atribuição – Cfr. Documento n.º 1, ora junto.
8. Este subsídio de expatriação tem um valor máximo de Kw 1.860.000,00, o que equivale, à taxa de conversão actual, ao montante aproximado de € 1.860,00 (mil oitocentos e sessenta euros) – Cfr. Documento n.º 1, ora junto.
9. A aludida prestação pecuniária tem como propósito exclusivo o de reembolso ou compensação de despesas realizadas pela insolvente, motivadas pela sua deslocação e residência em território não nacional e pela diferença de custo de vida entre Portugal e Angola.
10. Com efeito, Luanda é considerada uma das cidades mais caras do globo, implicando, portanto, um custo de vida muito elevado, que visa ser compensado pela atribuição referida em 7 do presente.
11. Acresce que, o pagamento de tal subsídio não se verifica mensalmente, sendo certo que, quando se encontra em Portugal, em gozo de férias, não lhe é atribuído – o que confirma o seu carácter não remuneratório.
12. Mais se refira que, no que concerne a serviços considerados básicos, existe, na cidade de Luanda, uma oferta muito deficitária, nomeadamente no que respeita a serviços de saúde primários, o que se traduz num recurso regular ao sector privado, importando custos avultados.
13. Também esta questão justifica a atribuição do aludido subsídio de expatriação.
14. O aludido contrato de trabalho renovou-se em Setembro do corrente, mantendo-se em vigor até ao próximo dia 31.08.2025 – Cfr. Documento n.º 2, que ora se junta e cujo conteúdo se dá por inteiramente reproduzido.
15. De tais factos, deu a insolvente conhecimento aos autos, através de requerimento datado de 18.10.2024, sob a referência n.º 12973506.
II -De Direito
16. Entendeu o Exm.º Senhor Administrador de Insolvência nos presentes autos, nos termos do relatório do primeiro ano de cessão elaborado ao abrigo do disposto no artigo 240.º, n.º 2, do C.I.R.E., que a insolvente tinha auferido rendimentos anuais susceptíveis de serem cedidos para a fidúcia, no montante de € 29.200,83 (vinte e nove mil e duzentos euros e oitenta e três cêntimos).
17. Descontado o valor de € 9.660,00 (nove mil e seiscentos e sessenta euros), equivalente a doze vezes o salário mínimo nacional – que havia sido fixado como rendimento indisponível – concluiu o fiduciário que existia uma dívida, no primeiro ano de cessão, à massa insolvente, no valor de € 25.900,83 (vinte e cinco mil e novecentos euros e oitenta e três cêntimos).
18. Sucede que, no entendimento da insolvente, há rendimentos que por si foram recebidos, para além do valor considerado como de rendimento indisponível, que não constituem rendimento disponível, por força da aplicação da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, tendo, no entanto, sido incluídos no cálculo apresentado como rendimento disponível.
19. Com efeito, estipula o dito preceito que se excluem do conceito de rendimento disponível, excepcionalmente, todos os rendimentos que sejam razoavelmente necessários para o exercício pelo devedor da sua actividade profissional.
20. Ora, no caso concreto dos autos, a insolvente recebe um subsídio de expatriação, de natureza não remuneratória, conforme decorre da análise do documento junto como Documento n.º 1.
21. Esse mesmo subsídio de expatriação, que apenas é pago quando se encontra em Luanda (Angola), local onde exerce a sua actividade profissional e onde teve de fixar a sua residência.
22. Tal subsídio tem como função, conforme alegado supra, a compensação das despesas que a insolvente teve com a mudança de residência para aquele país, nomeadamente, a diferença substancial entre o custo de vida em Angola e em Portugal.
23. Nesta conformidade, a atribuição de tal subsídio é indispensável ao exercício da actividade profissional da insolvente, considerando que, sem ele, a mesma não conseguiria, de forma condigna, viver na cidade em que reside.
24. Com efeito, como já aflorado, Luanda é uma das cidades mais caras do mundo, tendo um custo de vida consideravelmente distinto do que se vive em Portugal.
25. Assim, este subsídio, ao abrigo do sobredito preceito legal, enquadra o conceito de rendimento indisponível, para efeitos de cessão, uma vez que é indispensável ao exercício da profissão da insolvente.
26. Na verdade, não fora tal subsídio, a insolvente não poderia trabalhar em Angola e, em consequência, mantinha-se desempregada em Portugal ou, mesmo que empregada, a auferir um rendimento muito inferior e em condições de trabalho muito mais precárias.
27. O que acabaria por prejudicar os próprios credores reconhecidos nos presentes autos, designadamente, beneficiando de um rendimento disponível substancialmente inferior.
28. Na verdade, uma das obrigações impostas à insolvente é a de procurar e manter um emprego, nos termos do disposto no artigo 239.º, n.º 4, alínea b), do C.I.R.E., o que a mesma fez poucos meses após ser decretada a insolvência.
29. Ora, para que possa continuar o cumprimento dessa obrigação – conferindo-lhe, a mesma, possibilidade de amortizar os créditos reconhecidos no âmbito do presente processo – necessita a insolvente do sobredito subsídio de expatriação, indispensavelmente.
30. Neste conspecto, deverá tal valor ser considerado, nos termos do disposto no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), do C.I.R.E. como um rendimento indispensável para o exercício, pela insolvente, da sua actividade profissional, pelo que deverá ser tido como rendimento indisponível para a cessão.
31. Assim sendo, ao valor considerado pelo Ex.º Sr. Administrador de Insolvência como rendimento disponível para cessão, deverá ser deduzido o montante dos subsídios de expatriação percebidos pela insolvente que, no caso concreto, atendendo aos respectivos recibos de vencimento – oportunamente remetidos ao fiduciário – totaliza o valor de € 22.675,51 (vinte e dois mil e seiscentos e setenta e cinco euros e cinquenta e um cêntimos), tendo por base a taxa de conversão actual – Cfr. Documentos n.ºs 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 14, que ora se juntam e cujos conteúdos se dão por inteiramente reproduzidos.
32. Este valor deverá ser, portanto, deduzido do valor em dívida à massa insolvente, no primeiro ano de cessão, por consubstanciar um rendimento indisponível, à luz do supra citado preceito legal.
33. Com efeito, é pacífico na jurisprudência que o rendimento indisponível a ser fixado ao insolvente deverá ser arbitrado de acordo com as circunstâncias particulares do caso concreto, nomeadamente, a sua actividade profissional.
34. A título de exemplo, cita-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07.12.2023, Processo n.º: 2107/23.7T8VNF.G1, em cujo sumário se pode ler: “ (…) II – O montante concreto do rendimento indisponível a ser fixado ao devedor terá de ser arbitrado tendo em consideração as particulares do caso concreto, designadamente, idade, saúde, necessidades especiais daquele, incluindo as decorrentes da sua actividade profissional, pessoal e académica, número de pessoas que integram o seu agregado familiar, idade, saúde, necessidades especiais dessas pessoas, (…)” – Cfr. Ac. Tribunal da Relação de Guimarães de 07.12.2023, Processo n.º: 2107/23.7T8VNF.G1, Relator: José Alberto Martins Moreira Dias, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
35. Ora, no caso concreto dos autos, sempre terá de considerar-se como rendimento indisponível aquele obtido a título de subsídio de expatriação, a acrescer ao valor do salário mínimo nacional, por, conforme anteriormente alegado, se tratar de uma quantia monetária destinada a compensar os custos com a expatriação da devedora insolvente, cuja necessidade surgiu para cumprimento de uma das suas obrigações – a de procurar e manter emprego.
36. Assim, salvo melhor entendimento, não poderia o valor de tais subsídios ser incluído no rendimento disponível da insolvente, o que altera substancialmente o seu valor.
37. Na verdade, deverá, na fixação do rendimento indisponível a considerar, no caso concreto, ter-se em consideração os princípios da adequação, proporcionalidade e equilíbrio entre os interesses contrapostos dos credores e da insolvente, norteados pela imperiosa exigência de se assegurar uma existência condigna a esta última.
38. E, no caso concreto dos autos, afigura-se adequada e proporcional, salvo melhor entendimento, a exclusão dos subsídios de expatriação percebidos pela insolvente, porque necessários e indispensáveis à manutenção do seu vínculo de emprego, atendendo ao custo de vida no país onde teve de fixar a sua residência e demais despesas comprovadas nos autos.
39. Nesta conformidade, deverá a decisão ínsita no despacho de que ora se reclama – no sentido do reconhecimento de uma dívida de € 25.900,00 (vinte e cinco mil e novecentos euros) à massa insolvente – ser reformada, excluindo-se desse valor o montante de € 22.675,51 (vinte e dois mil e seiscentos e setenta e cinco euros e cinquenta e um cêntimos), porquanto se trata de subsídios de expatriação que devem ser tidos como rendimento indisponível da insolvente.
Termos em que:
E nos melhores de Direito, que V.ª Ex.ª, doutamente, suprirá, requer-se seja o douto despacho antecedente reformado, no sentido de ser excluído do valor reconhecido em dívida à massa insolvente, o montante de € 22.675,51 (vinte e dois mil e seiscentos e setenta e cinco euros e cinquenta e um cêntimos), referente a subsídios de expatriação recebidos pela insolvente, por consubstanciarem rendimento indisponível, ao abrigo do disposto no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), do C.I.R.E.»
Em 05.02.2025, foi proferido o seguinte despacho:
«(…)
Requerimento datado de 28/11/2024, com a referência 13125683:
A requerente veio reclamar do despacho datado 13/11/2024, pretendendo a sua reforma, no que respeita à determinação do valor a entregar à fidúcia – € 25.900,83.
Do objeto:
Admissibilidade da presente reclamação e, suas, consequências se for analisada e decidida.
Cumpre apreciar e decidir:
Nos termos do disposto no artigo 613.º do CPC com a epigrafe “extinção do poder jurisdicional e suas limitações”, “1 – Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
2 – É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes;
3 – O disposto nos números anteriores bem como nos artigos subsequentes aplica-se com as necessárias adaptações aos despachos.”
Por sua vez estabelece o artigo 616.º, n.º 2, do CPC “Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:
a) tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;
b) constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa.”
As sentenças ou os despachos assim que proferidos fica esgotado o poder jurisdicional relativamente a eles, significa isto que o juiz que os proferiu ou com a mesma hierarquia não os pode alterar, exceto nos casos especificamente previstos, por a tal impor o princípio da segurança jurídica. De facto, não pode uma mesma questão ter uma ou mais decisões contraditórias entre si, em sucessivos despachos, sob pena da própria validade, autoridade e segurança da sentença ou despacho ficar em crise, pois a todo o tempo, podia vir uma nova decisão do mesmo juiz que seguisse rumo diferenciado. Os despachos e sentenças apenas podem ser alterados por via do recurso, por ser o meio próprio da sua impugnação. Esta é a regra, que se compreende, mas tem exceções, para o que agora interessa – reforma do despacho-, ela pode acontecer de forma muito excecional, sempre que tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, bem como constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa.
Salvo o devido respeito, nenhuma dessas situações está contemplada, no caso vertente, pois as normas em que se estriba o despacho e a reclamação são exatamente as mesmas, ou seja o disposto no artigo 239.º do CIRE, se bem que com interpretações ou olhares diferentes sobre a mesma.
Com efeito, a requerente pretende que depois de fixado por despacho o rendimento indisponível em uma vez o ordenado mínimo, que se cristalizou por não ter sido impugnado, pretende alargar esse rendimento a quantias superiores. Dito de outra maneira, após a prolação do despacho que fixou o rendimento indisponível, pretende que o AI e o Tribunal o desconsidere, sem qualquer alteração judicial posterior, passando também quantias recebidas em montante superior a esse salário mínimo mensal também sejam desconsideradas, mormente a quantia a que se apelida de subsídio de expatriação no valor de € 1.860,00, curiosamente valor superior ao próprio salário, que se refere de natureza não remuneratória, alegadamente destinada ao reembolso ou compensação de despesas da trabalhadora.
Ora, em primeiro lugar, o AI não pode, por carecer de legitimidade, desconsiderar qualquer quantia superior ao definido judicialmente como rendimento indisponível. Ele está restringido a cumprir o despacho judicial que define o rendimento indisponível (uma vez o salário mínimo), integrando todo e qualquer valor superior a este o rendimento disponível. Na verdade, qualquer alteração a tal fixação, tem de ser determinada judicialmente, em sede de alteração do rendimento indisponível, por mudança das circunstâncias, sendo a partir de tal despacho de alteração que a obrigação de entrega se modifica, retroagindo os seus efeitos à data do pedido de alteração formulado, caso venha a ser deferido, não tendo efeitos retroativos a datas anteriores – cfr. Ac. do Trib. da Relação de Guimarães, de 22/6/2023, proferido no processo n.º 1824/20.8T8GMR.G1, in www.dgsi.pt..
Esta é a nossa visão sobre a aplicabilidade do artigo 239.º, do CIRE. O rendimento indisponível e, por consequência, o disponível, é fixado por despacho judicial, que tem em consideração os elementos que demonstrem as necessidades básicas do agregado familiar do insolvente, laborais e outras despesas que se considerem essenciais, nos termos do disposto no artigo 239.º, n.º 3, b) i. / ii. e iii do CIRE. Ponderado e fixado esse valor, será o que tem efeitos no processo, até à sua alteração posterior, não servindo essa alteração para retificar períodos anteriores à entrada do requerimento nesse sentido, isentando-o de entregas anteriores. Com efeito, qualquer alteração para produzir efeitos deve ser pedida e devidamente fundamentada. No caso vertente, a requerente pretende que o valor entretanto apurado, o qual se acha conforme ao apurado de acordo com despacho em vigor sobre o rendimento indisponível, seja reduzido com efeitos retroativos, sem que exista um despacho determinativo dessa alteração, o que se vislumbra não ser legalmente possível. Até porque qualquer alteração deve ser devidamente comprovada e ponderada. Não podemos reformar o despacho, porquanto o montante apurado está conforme ao despacho vigente relativo ao valor que fixou o rendimento indisponível, o qual transitou em julgado e não foi entretanto sujeito a qualquer modificação.
De outra banda, mesmo a considerar o alegado para efeitos futuros, temos que para além do contrato de trabalho junto e dos recibos de vencimento (que apenas demonstram o que está a ser entregue à requerente, mas não provam que aqueles montantes sejam ajudas de custo ou que não façam parte do seu vencimento), mesmo, em tese, considerando tal alegado subsídio de expatriamento ajudas de custo, tinha de estar alegado e demonstrado que o recebido se destinou a custear efetivamente as despesas inerentes ao exercício das funções. Tem sido entendido pacificamente na jurisprudência que as ajudas de custo apenas não integram a retribuição na medida em que efetivamente se destinem a ressarcir o trabalhador por gastos efetuados no exercício da atividade laboral. “Quando essas compensações excedem as despesas suportadas, as mesmas devem ser consideradas retribuição, nos termos resultantes do preceituado no mencionado artigo 260.º, n.º 1, do Código do Trabalho” – vide Ac. do STJ de 13/4/2011 e Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 15 de dezembro de 2016, proferido no processo n.º 1270/12.7TBFAF-B.G1, in www.jurisprudência.pt. No caso, não foi demonstrado quais as despesas efetivamente suportadas para o exercício da sua profissão, pelo que desconhecemos em que montante elas se situam ou mesmo se foram feitas. Aliás, temos muitas reservas a que este suplemento integre o conceito de ajudas de custo, abono de viagem, despesas de transporte, abonos motivado por deslocalização das instalações da entidade empregadora e outras equivalentes, devidas por deslocações, novas instalações ou despesas feitas em serviço do empregador, primeiro porque não houve deslocalização ou novas instalações do empregadora, não se tratam de despesas de transporte em serviço, não são abonos de viagem e, principalmente a quantia é fixa e regular e, inclusive superior ao próprio salário, pelo que a vimos como forma de retribuição. Por outro lado, o que se alega é que esta prestação é para suportar o custo de vida em Angola, que se aponta superior (tal facto alegado, também tinha de ser demonstrado, pois não basta assim o referir. Na verdade, desconhecemos em concreto qual o nível de vida lá enfrentado, pois nunca lá vivemos ou estivemos, nem mesmo sabemos o salário mínimo vigente em Angola, o qual refletirá os inerentes custos de vida). Ora, se é para esse efeito – suportar custo de vida -, não nos parece que estejamos perante ajudas de custo, mas sim uma tentativa de equilibrar o salário ao alegado elevado custo de vida. Ora, os salários e os seus aumentos devem acompanhar o aumento do custo de vida, não é por isso que deixam de ter caráter de retribuição e não ajudas de custo.
Por via disso, não temos documento ou prova plena que motive uma reforma do despacho anterior.
Se a requerente pretender uma alteração do valor do rendimento indisponível, por motivos de morar e trabalhar em País estrangeiro deve apresentar requerimento nesse sentido e provar que as suas despesas aumentaram, num dos diferentes fatores a considerar. Não é a primeira vez que alteramos o valor do rendimento indisponível fruto da emigração para outro País (onde não raras vezes o custo de vida é superior e, por essa via, os salários mínimos também o serem. Nessa circunstância, não faz sentido manter como critério norteador o salário mínimo Português, quando a pessoa passa a estar sujeita a outro custo de vida superior. Há que efetivamente ajustar para o salário mínimo de tal País de destino, por ser aquele que oferece o mínimo indispensável para a sobrevivência condigna do trabalhador naquele País), ajustando o rendimento indisponível ao salário mínimo desses países, já que esse salário é o critério norteador para que as pessoas desses países possam viver neles com o mínimo de dignidade.
Termos em que improcede a reforma pretendida.
(…)»
A requerente interpôs recurso de apelação deste despacho, tendo formulado as seguintes conclusões:
«A. A ora Recorrente requereu a reforma do despacho datado de 13.11.2024, sob a referência n.º 134203864, que fixou, na sequência do relatório do primeiro ano de cessão apresentado pelo senhor administrador de insolvência, como estando em dívida à massa insolvente e, portanto, a entregar por aquela primeira, à fidúcia, a quantia de € 25.900,83 (vinte e cinco mil e novecentos euros e oitenta e três cêntimos).
B. Tal reclamação e pedido de reforma foram feitos, nos termos do disposto no artigo 616.º, n.º 2, do C.P.C, com fundamento na existência de elementos no processo que, só por si, implicariam necessariamente decisão diversa da tomada, assim como por erro na qualificação jurídica dos factos.
C. Com efeito, entende a Recorrente existirem nos autos provas que não foram tidas em consideração pelo julgador, aquando da prolação de tal despacho, nomeadamente vários documentos que justificam, por si, as despesas tidas pela insolvente e, bem assim, os seus rendimentos.
D. E que, se tais provas houvessem sido correctamente consideradas e ajuizadas pelo douto tribunal a quo, implicariam, necessariamente, decisão diversa da tomada, ou seja, que não fosse reconhecido tal montante em dívida, a entregar à fidúcia.
E. Por outro lado, da análise da dita prova documental, resulta que a insolvente, ora Recorrente, aufere um subsídio que não constitui natureza remuneratória e, portanto, não deveria ter sido entendido – como foi, pelo douto tribunal de primeira instância – como seu rendimento disponível, a entregar à fidúcia.
F. Em bom rigor, aufere a Recorrente um subsídio de expatriação – assim denominado no contrato de trabalho que outorgou e nos respectivos recibos de vencimento, que constam dos autos – que entende não dever ser considerado rendimento disponível, por não constituir retribuição, devendo, portanto, ser excluído do montante global a entregar à fidúcia, nos termos do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), do CIRE.
G. Tendo sido, porém, a consideração de tal subsídio de expatriação como rendimento disponível – e, portanto, passível de ser entregue à fidúcia - que levou à fixação do montante referido em 1, despacho do qual a ora Recorrente reclamou.
H. Sucede que, entendeu o douto tribunal a quo, em suma, que: a) por um lado, a decisão reclamada não se inseria em nenhuma das situações previstas no artigo 616.º, n.º 2, do CPC – pelo que não seria uma decisão susceptível de reclamação / reforma; b) por outro lado, que, mesmo que se inserisse, seria sempre de manter, pois não constam quaisquer provas do processo que implicassem decisão diversa.
I. Conclui o douto despacho ora recorrido pela manutenção do despacho de que a insolvente reclamou.
J. Inconformada com tal decisão, interpõe a Recorrente o presente recurso de apelação, pretendendo a revogação do despacho datado de 05.02.2025 (que decide pela improcedência da reforma do despacho datado de 13.11.2024), sendo substituído por outro que reforme o anterior despacho (13.11.2024), no sentido peticionado.
Senão, vejamos:
K. Salvo o devido respeito, entende a Recorrente que andou mal o douto tribunal a quo ao decidir no sentido da inaplicabilidade ao despacho, do qual se reclamou, do artigo 616.º, n.º 2, do C.P.C..
L. Isto porque, conforme se deixou antevisto, para além de constar dos autos prova documental, apresentada junto de vários requerimentos realizados pela insolvente, que determinaria uma decisão diversa da tomada, é certo que ocorreu um erro evidente, salvo o devido respeito, na qualificação jurídica dos factos demonstrados.
M. Na verdade, foram juntos aos autos, com os requerimentos sob as referências n.º 11917541 e 12973506, recibos de vencimento da insolvente, bem como vários documentos comprovativos de despesas mensais da mesma, desde que residia em Angola, que, se analisados de forma crítica pelo julgador, imporiam, salvo melhor e mais fundamentada opinião, uma decisão diversa da plasmada no despacho de 13.11.2024.
N. Uma vez que as despesas apresentadas pela ora Recorrente – e que, contrariamente ao afirmado no despacho de que ora se recorre, se encontram demonstradas por documento – são bastante superiores àquelas que a mesma teria caso residisse e trabalhasse em território nacional.
O. Razão de ser da atribuição que lhe é feita, em Angola, de um subsídio de expatriação – assim denominado no contrato de trabalho da insolvente e, bem assim, nos respectivos recibos de vencimento, juntos aos autos – que não poderá ser considerado, para efeitos de obtenção do rendimento disponível da recorrente.
P. Do próprio contrato de trabalho da Recorrente – junto como Documento n.º 1 com o requerimento datado de 18.10.2024 – consta que tal subsídio não reveste uma natureza remuneratória.
Q. Ora, também aqui andou mal o douto tribunal a quo ao, corroborando o entendimento do senhor administrador de insolvência, entender que tal subsídio de expatriação deveria constituir rendimento disponível da insolvente, susceptível de ser entregue à fidúcia.
R. E entende-se que andou mal, por um lado, por ter desconsiderado as provas carreadas para os autos que impunham uma decisão diversa – designadamente, os documentos juntos pela insolvente com os seus requerimentos; por outro, por ter qualificado tal factualidade, à luz do disposto no artigo 239.º do CIRE, como rendimento disponível da ora Recorrente, incorrendo, salvo o devido respeito, em manifesto erro.
S. Assim, aplica-se ao despacho reclamado o disposto no n.º 2 do artigo 616.º do Código de Processo Civil, sendo o mesmo digno de reforma.
T. Efectivamente, reitere-se que andou mal o douto decisor ao, concordando com a interpretação apresentada pelo senhor administrador de insolvência, no seu relatório do primeiro ano de cessão, fixar como valor em dívida à fidúcia aquele que fixou.
U. Isto porque, a Recorrente foi contratada, em Setembro de 2023, para exercer as funções de professora de Filosofia, num estabelecimento de ensino na cidade de Luanda (Angola), tendo outorgado contrato de trabalho a termo incerto com a empresa (…) – Gestão de Participações e Investimentos Imobiliários, S.A..
V. Desse mesmo facto, informou o douto tribunal, por requerimento datado de 27.11.2023, sob a referência n.º 11917541.
W. Sucede que, por motivos relacionados com o seu processo de legalização, em Angola, em Janeiro de 2024, a Recorrente cessou a relação laboral que mantinha com aquela empresa e outorgou contrato de trabalho com nova entidade, designadamente, com a empresa (…) – Actividades Educativas e Culturais, empresa legalmente conectada com a sua primitiva entidade empregadora – Cfr. Documento n.º 1 junto com o requerimento datado de 18.10.2024.
X. Ao abrigo do aludido contrato, a Recorrente mantém as suas funções de docente do ensino secundário, na área da Filosofia, auferindo uma retribuição mensal de Kw 1.087.500,00, o que equivale, de acordo com a taxa de conversão actual, ao valor aproximado de € 1.087,00 (mil e oitenta e sete euros) mensais – Cfr. Documento n.º 1 junto com o requerimento datado de 18.10.2024.
Y. Acresce a este valor mensal base uma compensação por isenção de horário de trabalho, no valor de Kw 141.848,00, o que equivale, com a taxa de conversão actual, a um valor aproximado de € 141,00 (cento e quarenta e um euros) – Cfr. Documento n.º 1 junto ao requerimento apresentado em 18.10.2024.
Z. Por outro lado, recebe um subsídio de expatriação, de natureza não remuneratória, de montante variável e pago apenas quando verificadas as respectivas condições de atribuição – Cfr. Documento n.º 1 junto ao requerimento apresentado em 18.10.2024.
AA. Este subsídio de expatriação tem um valor máximo de Kw 1.860.000,00, o que equivale, à taxa de conversão actual, ao montante aproximado de € 1.860,00 (mil e oitocentos e sessenta euros) – Cfr. Documento n.º 1 junto ao requerimento apresentado em 18.10.2024.
BB. A aludida prestação pecuniária tem como propósito exclusivo o de reembolso ou compensação de despesas realizadas pela insolvente, motivadas pela sua deslocação e residência em território não nacional e pela diferença de custo de vida entre Portugal e Angola, como bem refere o contrato de trabalho outorgado.
CC. Com efeito, Luanda é considerada, consabidamente, como uma das cidades mais caras do globo, implicando, portanto, um custo de vida muito elevado.
DD. Acresce que, o pagamento de tal subsídio não se verifica mensalmente, sendo certo que, quando se encontra em Portugal, em gozo de férias, não lhe é atribuído – o que confirma o seu carácter não remuneratório.
EE. Mais se refira que, no que concerne a serviços considerados básicos, existe, na cidade de Luanda, uma oferta muito deficitária, nomeadamente no que respeita a serviços de saúde primários, o que se traduz num recurso regular ao sector privado, importando custos avultados.
FF. Também esta questão justifica a atribuição do aludido subsídio de expatriação.
GG. Nesta conformidade, por todos os elementos supra referidos constantes dos autos, sempre o montante a entregar à fidúcia, pela ora Recorrente, teria de ser fixado em valor substancialmente inferior, devendo do mesmo ser excluídos os valores atinentes ao aludido subsídio de expatriação.
HH. Assim, existiam elementos nos autos que implicavam uma decisão diversa da tomada pelo douto tribunal a quo, pelo que se aplicava ao despacho reclamado o disposto no artigo 616.º, n.º 2, alínea b), do C.P.C..
II. Acresce, ainda, que, em face de tais elementos, também se impunha uma interpretação jurídica diferente, por parte do tribunal de primeira instância.
JJ. Com efeito, atendendo à prova documental junta aos autos, nomeadamente, referente aos rendimentos da insolvente, ora Recorrente, seria imperativo, salvo o devido respeito, que o douto tribunal de primeira instância não considerasse o subsídio de expatriação, subsumindo-o ao previsto no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), do CIRE.
KK. Pelo que, também é ao caso dos autos aplicável o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 616.º do C.P.C., devendo o despacho reclamado ter sido reformado em conformidade com o requerido.
LL. Finalmente, em face de tudo o exposto, fácil será concluir, salvo o devido respeito e mais fundamentada opinião, que o douto tribunal a quo laborou num verdadeiro erro de julgamento na aplicação do direito aos factos, ao proferir o despacho de que ora se recorre.
MM. Destarte, ocorrerá erro de julgamento, nomeadamente na aplicação do direito, quando, dos factos constantes dos autos se retiram conclusões jurídicas distintas das que se deveriam retirar e, portanto, se lhes aplica erradamente, o Direito.
NN. Com efeito, mantendo a decisão reclamada, no despacho de que ora se recorre, não restam dúvidas – salvo o devido respeito – que o tribunal de primeira instância não aplicou a norma ínsita no artigo 616.º, n.º 2, do CPC, por considerar que a mesma não seria aplicável ao despacho reclamado, violando-a pela sua não aplicação.
OO. Ora, atendendo à ausência de consideração dos elementos probatórios das despesas e rendimentos da ora Recorrente, bem como à errada qualificação jurídica dos mesmos – através da inclusão do subsídio de expatriação no rendimento a ceder à fidúcia – bom será de ver que aquela era uma norma a ser aplicada ao caso dos autos, impondo a reforma peticionada do despacho reclamado.
PP. Por outro lado, entendeu o Exm.º Senhor Administrador de Insolvência nos presentes autos, nos termos do relatório do primeiro ano de cessão elaborado ao abrigo do disposto no artigo 240.º, n.º 2, do CIRE, que a Recorrente tinha auferido rendimentos anuais susceptíveis de serem cedidos para a fidúcia, no montante de € 29.200,83 (vinte e nove mil e duzentos euros e oitenta e três cêntimos), existindo uma dívida à massa insolvente no valor de € 25.900,83 (vinte e cinco mil e novecentos euros e oitenta e três cêntimos).
QQ. Sucede que, salvo melhor entendimento, há rendimentos que foram recebidos pela insolvente, ora Recorrente, para além do valor considerado como de rendimento indisponível, que não constituem rendimento disponível, por força da aplicação da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do C.I.R.E, tendo, no entanto, sido incluídos, no cálculo apresentado, como rendimento disponível.
RR. Com efeito, estipula o dito preceito que se excluem do conceito de rendimento disponível, excepcionalmente, todos os rendimentos que sejam razoavelmente necessários para o exercício pelo devedor da sua actividade profissional.
SS. Ora, no caso concreto dos autos, a Recorrente recebe um subsídio de expatriação, de natureza não remuneratória, conforme decorre da análise do documento junto como Documento n.º 1 junto com o requerimento de 18.10.2024.
TT. Esse mesmo subsídio de expatriação, que apenas é pago quando se encontra em Luanda (Angola) – local onde exerce a sua actividade profissional e onde teve de fixar a sua residência – tem como função, conforme alegado supra, a compensação das despesas que a insolvente teve com a mudança de residência para aquele país, nomeadamente, a diferença substancial entre o custo de vida em Angola e em Portugal.
UU. Assim, deve ser entendido como indispensável ao exercício da actividade profissional da insolvente, considerando que, sem ele, a mesma não conseguiria, de forma condigna, viver na cidade em que exerce funções laborais.
VV. Destarte, este subsídio, ao abrigo do disposto no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), do CIRE, enquadra o conceito de rendimento indisponível, para efeitos de cessão, uma vez que é indispensável ao exercício da profissão da Recorrente.
WW. Pois, não fora tal subsídio, a Recorrente não poderia trabalhar em Angola e, em consequência, mantinha-se desempregada em Portugal ou, mesmo que empregada, a auferir um rendimento muito inferior e em condições de trabalho muito mais precárias.
XX. O que acabaria por prejudicar os próprios credores reconhecidos nos presentes autos, designadamente, beneficiando de um rendimento disponível substancialmente inferior.
YY. Na verdade, uma das obrigações impostas à insolvente é a de procurar e manter um emprego, nos termos do disposto no artigo 239.º, n.º 4, alínea b), do C.I.R.E., o que a mesma fez poucos meses após ser decretada a insolvência.
ZZ. Ora, para que possa continuar o cumprimento dessa obrigação – conferindo-lhe, a mesma, possibilidade de amortizar os créditos reconhecidos no âmbito do presente processo – necessita a Recorrente do sobredito subsídio de expatriação, indispensavelmente.
AAA. Neste conspecto, andou mal o douto tribunal a quo ao não ter considerado o aludido subsídio, nos termos do disposto no artigo 239.º, n.º 3, alínea b) do CIRE, como um rendimento indispensável para o exercício, pela Recorrente, da sua actividade profissional.
BBB. Assim sendo, ao valor considerado pelo Sr. Administrador de Insolvência como rendimento disponível para cessão, deveria ter sido deduzido o montante dos subsídios de expatriação percebidos pela insolvente que, no caso concreto, atendendo aos respectivos recibos de vencimento – oportunamente remetidos ao fiduciário – totaliza o valor de € 22.675,51 (vinte e dois mil e seiscentos e setenta e cinco euros e cinquenta e um cêntimos), tendo por base a taxa de conversão actual – Cfr. Documentos n.ºs 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 14 juntos com a reclamação/reforma.
CCC. Com efeito, é pacífico na jurisprudência que o rendimento indisponível a ser fixado ao insolvente deverá ser arbitrado de acordo com as circunstâncias particulares do caso concreto, nomeadamente, a sua actividade profissional.
DDD. Assim, salvo melhor entendimento, não poderia o valor de tais subsídios ser incluído no rendimento disponível da insolvente (sendo subsumido ao disposto no artigo 240.º do CIRE), pelo que laborou o douto tribunal de primeira instância em erro de julgamento, ao tê-lo feito.
EEE. Na verdade, deveria o julgador, na fixação do rendimento indisponível a considerar, no caso concreto, ter tido em consideração os princípios da adequação, proporcionalidade e equilíbrio entre os interesses contrapostos dos credores e da insolvente, norteados pela imperiosa exigência de se assegurar uma existência condigna a esta última.
FFF. E, no caso concreto dos autos, afigura-se adequada e proporcional, salvo melhor entendimento, a exclusão dos subsídios de expatriação percebidos pela insolvente, porque necessários e indispensáveis à manutenção do seu vínculo de emprego, atendendo ao custo de vida no país onde teve de fixar a sua residência e demais despesas comprovadas nos autos.
GGG. Nesta conformidade, atendendo ao erro na interpretação e aplicação do artigo 239.º, n.º 2, do CIRE, que se consubstanciou na não subsunção do subsídio de expatriação auferido pela Recorrente como rendimento indisponível, nos termos daquele preceito, incorreu o douto tribunal a quo num verdadeiro erro de julgamento.
HHH. Em suma, violou o douto tribunal a quo o artigo 616.º, n.º 2, do CPC, pela sua não aplicação ao caso concreto dos autos – mormente, ao despacho do qual se reclamou e cuja reforma não foi procedente – assim como violou o artigo 239.º, n.º 3, alínea b), do CIRE, também pela sua não aplicação ao caso concreto que, pelos motivos invocados supra, se impunha.
III. Tal violação culminou na tomada de uma decisão injusta, desproporcional e que, salvo o devido respeito, merece a censura da Recorrente e do Direito.
JJJ. Pelo que deverá o douto despacho recorrido ser revogado, reformando-se o despacho anterior e excluindo-se do valor da dívida à massa insolvente o montante de € 22.675,51 (vinte e dois mil e seiscentos e setenta e cinco euros e cinquenta um cêntimos), porquanto constitui a soma dos subsídios de expatriação pagos à Recorrente, que devem ser tidos como seu rendimento indisponível.
Termos em que:
E nos melhores de Direito, que V.ªs Ex.ªs, Venerandos Desembargadores, doutamente, suprirão, requer-se seja dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido e sendo o despacho datado de 13.11.2024 reformado, no sentido de ser excluído do valor reconhecido em dívida à massa insolvente, o montante de € 22.675,51 (vinte e dois mil e seiscentos e setenta e cinco euros e cinquenta e um cêntimos), referente a subsídios de expatriação recebidos pela insolvente, por consubstanciarem rendimento indisponível, ao abrigo do disposto no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), do C.I.R.E.»
1. Resulta do artigo 239.º do CIRE (diploma ao qual pertencem as normas legais doravante referenciadas sem menção da sua origem) que é no despacho inicial de exoneração do passivo restante que o tribunal fixa a parte do rendimento do devedor que fica excluída da cessão prevista no n.º 2.
Feita essa fixação, a mesma vigorará ao longo de todo o período da cessão. Só assim não acontecerá se, em momento ulterior do período da cessão e com fundamento numa alteração relevante das circunstâncias em que a parte do rendimento do devedor excluída da cessão foi fixada, for proferida decisão que modifique a anterior. Esta eventual decisão ulterior terá de ser requerida por quem para o efeito tenha legitimidade e será proferida na sequência de um incidente em que se ofereça, discuta e valore meios de prova da alteração de circunstâncias que tiver sido alegada. A eventual alteração da parte do rendimento do devedor que fica excluída da cessão não terá efeito retroactivo, ou seja, não poderá afectar o que por aquele for devido à fidúcia até ao momento da prolação da decisão modificativa, sob pena de, por via da atribuição desse efeito, o tribunal estar a contrariar a sua decisão anterior, em violação do disposto no artigo 613.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil.
Se e enquanto não for proferida decisão modificativa do despacho inicial, é este que vigora. Em consequência disso, é com referência aos termos em que tal fixação foi feita que se afere se o devedor está a cumprir o dever, previsto no artigo 239.º, n.º 4, alínea c), de entrega da parte dos seus rendimentos objecto da cessão.
Sendo assim, violaria as normas legais que acima referimos uma decisão judicial que avaliasse o cumprimento do dever previsto no artigo 239.º, n.º 4, alínea c), em função de um critério diferente daquele que tivesse sido ficado no despacho inicial, ou noutro que tivesse procedido à alteração deste no que concerne à fixação da parte do rendimento do devedor que fica excluída da cessão. O referido despacho de avaliação do cumprimento do dever previsto no artigo 239.º, n.º 4, alínea c), tem natureza meramente executiva do despacho que fixou os termos desse dever, pelo que tem de se conformar com aquilo que nele foi estabelecido. Não pode afastar-se do despacho executado, seja em sentido favorável, seja em sentido desfavorável ao devedor.
2. O despacho inicial de exoneração do passivo restante determinou que, durante o período da cessão, a recorrente deveria entregar anualmente, ao fiduciário, as quantias por si auferidas que excedessem o valor correspondente à retribuição mínima mensal garantida por mês. Este valor constitui a única parcela dos rendimentos que a recorrente viesse a auferir durante o período da cessão que ficou excluída do rendimento disponível. Todos os restantes rendimentos que a recorrente viesse a auferir durante o período da cessão, fosse a que título fosse (cfr. o n.º 3 do artigo 239.º), integrariam o rendimento disponível, ou seja, seriam objecto da cessão.
Em face disto, o relatório que o fiduciário apresentou em 21.10.2024, de acordo com o qual, durante o primeiro ano da cessão, a recorrente auferiu rendimentos objecto da cessão no montante de € 29.200,83, pelo que, ao entregar apenas € 3.300, ficou a dever € 25.900,83 à fidúcia, está correcto. É precisamente isso que resulta do critério estabelecido no despacho inicial sobre a forma de cálculo do rendimento disponível.
Pela mesma razão, o despacho proferido pelo tribunal a quo em 13.11.2024 também está correcto. Ao ordenar a notificação da recorrente «para entregar ao AI o montante em dívida, o qual ascende a € 25.900,83», limitou-se esse despacho a cumprir o decidido no despacho inicial. Não podia ser outra a decisão. Consequentemente, carece de fundamento a pretensão da recorrente de que o mesmo seja reformado.
3. A recorrente argumenta que parte do rendimento que foi notificada para entregar ao fiduciário provém de um «subsídio de expatriação», que não tem natureza remuneratória e, por isso, deve ser excluído do montante a entregar à fidúcia, nos termos do artigo 239.º, n.º 3, alínea b).
Este argumento não procede, por duas razões.
Por um lado, a discussão sobre se determinada parcela do rendimento do devedor deve, ou não, integrar o rendimento disponível, tem a sua sede própria no despacho inicial de exoneração do passivo restante. Eventualmente, tal discussão renovar-se-á em incidente que tenha por objecto a alteração do montante excluído do rendimento disponível no despacho inicial, nos termos que referimos em 1. Porém, não poderá ter lugar a propósito do mero acompanhamento da execução do dever constante da alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º. Nesta sede, o único juízo a fazer incidirá sobre a conformidade da conduta do devedor com aquilo a que ele se encontra obrigado em matéria de entrega de rendimentos ao fiduciário, não havendo lugar para a discussão da bondade daquilo que ficou decidido no despacho inicial ou em eventual despacho ulterior que o tenha modificado.
Com o argumento que agora analisamos, a recorrente pretende suscitar precisamente esta última discussão. Não poderá a mesma ter lugar, pelas razões apontadas.
Por outro lado, a discussão da questão da natureza remuneratória ou não do «subsídio de expatriação», seria inútil, porquanto, nos termos do n.º 3 do artigo 239.º, integram o rendimento disponível e, portanto, constituem objecto da cessão, todos os rendimentos que advenham ao devedor «a qualquer título» (entenda-se, remuneratório ou não), com a única excepção daqueles que sejam expressamente excluídos nos termos das diversas alíneas daquele número.
4. A recorrente argumenta que existem, nos autos, meios de prova que não foram tidos em consideração pelo tribunal a quo, nomeadamente vários documentos que justificam, por si, os seus rendimentos e despesas. Considera a recorrente que, se esses meios de prova tivessem sido correctamente considerados e ajuizados pelo tribunal a quo, necessariamente a decisão teria sido diversa da tomada.
Não é assim.
Como referimos nos pontos anteriores, o despacho cuja reforma foi requerida tinha exclusivamente por objecto verificar se a recorrente cumprira o dever previsto na alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º e, concluindo-se negativamente, tomar as providências necessárias para que tal cumprimento ocorresse. O critério de decisão resumia-se à conformidade ou desconformidade das entregas de rendimento efectuadas pela recorrente com aquilo que ficara estabelecido no despacho inicial. Não estava em discussão que parte dos rendimentos da recorrente integram o rendimento disponível, nem para o futuro, nem, obviamente, com efeito retroactivo, como aquela parece pretender. Neste quadro, os meios de prova que a recorrente refere não tinham qualquer relevância para a prolação do despacho cuja reforma foi requerida.
5. A recorrente argumenta que o «subsídio de expatriação» enquadra o conceito de «rendimento indisponível», para efeitos de cessão, nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º, por ser indispensável para o exercício da sua profissão.
Este argumento poderia relevar se estivesse em discussão a fixação da parte do seu rendimento que fica excluída da cessão. Porém, como anteriormente referimos, não era isso que estava em causa aquando da prolação do despacho cuja reforma foi requerida, pelo que aquela discussão não poderia ter lugar. Tratava-se, simplesmente, de ajuizar da conformidade das entregas de rendimento efectuadas pela recorrente com o que, a esse propósito, fora decidido no despacho inicial.
6. Concluindo:
- Ao ordenar a notificação da recorrente para entregar, ao fiduciário, o montante que, de acordo com o critério estabelecido no despacho inicial, se encontrava em dívida, o tribunal a quo decidiu bem;
- Daí que o mesmo tribunal também tenha decidido bem ao indeferir o pedido de reforma daquele despacho;
- Pelo que o recurso terá de ser julgado improcedente.
Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas a cargo da recorrente.
Notifique.
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
Eduarda Branquinho (1.ª adjunta)
Cristina Dá Mesquita (2.ª adjunta)