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DENÚNCIA
QUEIXA
PROCEDIMENTO CRIMINAL
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Sumário
I- A denúncia não está sujeita a formalidades especiais podendo ser inclusivamente oralmente transmitida à entidade policial ou ao Ministério Público e depois reduzida a auto (artigos 246º e 95º ambos do Código de Processo Penal). II- De igual modo a queixa pode ser verbalmente transmitida e apenas demanda uma menção ainda que simples de expressão de vontade de agir processualmente contra o responsável pelos factos relatados. III- Estando embora em causa figuras distintas nada impede que as mesmas sejam corporizadas num único auto, sendo, aliás, esse um procedimento habitual dos órgãos de polícia criminal e desde que passaram a ser utilizados formulários de autos de denúncia tal referência surge traduzida num singelo Sim quando é manifestado o desejo de procedimento criminal. IV- Ademais o entendimento perfilhado pelo tribunal recorrido infringe o princípio da confiança pois o que consta do auto é que o denunciante e ofendido se dirigiu a uma esquadra policial, fez um relato concreto dos factos que conhecia imputando-os a quem julgava ser o responsável pelos mesmos e perante um agente policial afirmou quando questionado que desejava procedimento criminal e assinou o respetivo auto. V- Tal atuação não pode gerar no denunciante e ofendido outra expectativa que não seja a legítima expectativa de que naquele dia e lugar perante órgão de polícia criminal manifestou desejo de procedimento criminal. VI- Afirmar o contrário como o faz a decisão recorrida é infringir o princípio da boa fé na sua vertente de princípio da confiança que tutela os cidadãos perante os serviços do Estado e visa salvaguardar os mesmos contra atuações injustificadamente imprevisíveis.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1- RELATÓRIO:
Nos autos de Processo Comum com intervenção de Tribunal Singular nº 345/19.6JAPDL que correm os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, Juízo de Competência Genérica de … foi, em 12 de dezembro de 2024, proferida sentença em que no final se decidiu: Destarte, por não se encontrarem preenchidos os requisitos de procedibilidade referente ao ilícito de que vem a arguida acusada, nos termos expostos, não é o Ministério Público competente para a acção penal, razão pela qual se não se conhecerá da responsabilidade criminal da arguida, declarando-se a extinção do procedimento criminal.
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Inconformado com a decisão dela recorreu o Ministério Público extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem: 1- Por sentença datada de 12.dez.20242024, a Meritíssima Juíza a quo, considerou que a denúncia efetuada por AA, contra o utilizador do perfil de Facebook "BB", não é eficaz em relação à arguida CC, contra quem foi deduzida a acusação. 2- Tal como considerou que "o auto de denúncia não era o indicado para o caso em apreço, consubstanciando os factos relatados um crime de natureza semi-pública, deveria ter sido lavrada uma participação criminal. Para mais, não constando dos factos pelo queixoso relatados qualquer forma de manifestação de vontade em proceder criminalmente contra BB, não cremos que o preenchimento automatizado de um item seja suficiente para o exercício do direito de queixa."E, por outro, não contêm uma expressa manifestação de vontade de desejo de procedimento criminal. 3- Concluindo que, um "click assinalado na quadrícula "Sim” "Desejo Procedimento Criminal?", não é revelador de uma expressa manifestação de vontade de o denunciante desejar procedimento criminal contra os agentes do crime que veio comunicar. 4- Motivando, que perante a inexistência de uma manifestação de vontade expressa do exercício do direito de queixa, o Ministério Público não tem legitimidade para o exercício da ação penal, concluindo pela extinção do procedimento criminal. 5- Salvo o devido respeito, mal andou o Tribunal ad quo ao considerar que a denúncia, por um lado, não é eficaz em relação à arguida CC, por ter sido apresentada especificamente contra "BB". 6- E, por outro, não contêm uma expressa manifestação de vontade de desejo de procedimento criminal. 7- A recorrente perfilha o entendimento que a denúncia dos autos, configura natureza análoga à daquelas apresentadas contra desconhecidos, na medida em que, muito embora o denunciante tenha identificado "BB" como agente do crime, a verdade é que fá-lo por referência à identificação de um perfil de Facebook, desconhecendo de quem se trate, por não se tratar de indivíduo das suas relações, aliás, os contacto estabelecidos entre si fizeram-se por recurso aos meios digitais e a contactos telefónicos. 8- Tal como entende que, a denúncia constante dos autos a fls. 4 da refª 3275361, na qual consta uma descrição circunstanciada da factualidade pela qual o AA se sente lesado, acompanhada da inscrição "Sim" no campo "Desejo Procedimento Criminal" acrescida da iniciativa em deslocar-se às instalações do órgão de polícia criminal com vista a relatar o sucedido, é manifestação inequívoca do desejo de proceder criminalmente em relação dos agentes dos factos descritos, sendo suficiente para o impulso processual exigido aos crimes de natureza semi-pública como o de burla. 9- E a convicção da Meritíssima Juíza do Tribunal a quo, mostra-se, em sede de decisão ora recorrida, maculada de erro. 10- Portanto, andou mal a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo ao considerar que a queixa não foi validamente exercida em relação à arguida CC e, ademais, não incluía uma manifestação expressa da vontade do denunciante em proceder criminalmente contra o agente do crime, concluindo pela ilegitimidade do Ministério Público e consequentemente declarou a extinção do procedimento criminal. 11- Tal exame errado da lei e da denúncia constante de fls. 4 da refª 3275361, fez tábua rasa no disposto nos artigos 48, n.º 1 e 246 do Código de Processo Penal e artigos 113, n.º 1, 114.º e 115, nº 3 do Código Penal, fazendo uma interpretação errada do direito. 12- A sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que considere válida a denúncia apresentada e eficaz em relação à arguida CC e, consequentemente, reconheça a legitimidade do Ministério Público para o procedimento criminal.
Termina requerendo que seja dado integral provimento ao recurso com a consequente revogação da decisão recorrida.
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Admitido o recurso no tribunal recorrido a arguida apresentou resposta extraindo da mesma as seguintes conclusões: 1º Foi deduzida acusação contra a arguida CC pela prática de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º, do CP, por factos alegadamente ocorridos Em data não concretamente apurada, mas antes de 07/05/2019», tendo como ofendido AA.
2º Sendo a burla um crime de natureza semi-pública, o seu procedimento criminal depende da apresentação de queixa pelo ofendido no prazo de seis meses após o conhecimento dos factos, ficando assim a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal condicionada pela manifestação prévia e inequívoca por parte do ofendido, entendido como o titular dos direitos que a lei quis salvaguardar com a incriminação (artigo 113.º, n.º 1, do CP), da vontade de que sobre aqueles factos haja procedimento criminal. 3º Compulsados os autos, temos que não existiu um auto de participação, mas apenas um auto de denúncia, sem qualquer manifestação expressa da intenção do ofendido de avançar com procedimento criminal contra a arguida.
4º Dado que o prazo para a apresentação da queixa já decorreu, o Ministério Público não tem legitimidade para exercer a ação penal, devendo ser declarada extinta a possibilidade de procedimento criminal contra a arguida, não violando o acórdão os preceitos legais invocados pela recorrente, pelo que o recurso não merece provimento, devendo manter-se, a decisão recorrida por ser de Direito e de JUSTIÇA!
Termina, pois, pugnando pelo não provimento do recurso com a consequente manutenção da decisão recorrida.
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Remetido o recurso a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador Geral-Adjunto emitiu parecer pugnando pela procedência do recurso e, com maior relevo, referindo: Apesar de ser desnecessário, sublinhamos que o denunciante/lesado/ofendido não se queixa diretamente contra “A’ ou “B”. O que ele faz (leia-se o texto) é dar conhecimento de uma situação de facto que, indiciariamente, tem relevância penal. Todavia, mesmo que tivesse apresentado queixa contra “A”, isso não significava que se durante o inquérito fosse apurada a identidade de outros autores dos factos ou que o autor foi outra pessoa que não a inicialmente indicada “A’, tudo iria por água a baixo. O processo seguiria, sempre, para apurar os factos relativamente ao seu autor ou aos seus autores (fosse quem fosse) e levá-lo(s) a julgamento, havendo como há, o prévio exercício do direito de queixa,dada a natureza docrime em causa. Sumariamente, é assim porque: O artigo 114º do Código Penal manda que assim seja. E sendo Portugal um Estado de Direito, o respeito da lei e da defesa da sociedade e do cidadão, faria chegar, necessariamente, a essa conclusão uma vez que as expetativas legítimas do cidadão não podem ficar sem tutela jurídica. Isto é, não pode haver zonas de descontinuidade no Estado de Direito (e não há, no caso). (…) Acompanhamos a motivação de recurso interposto pela magistrada do Ministério Público na primeira instância, Não repetindo argumentos, apenas adiantamos: É verdade que o crime em causa é de natureza semipública. É verdade que o Ministério Público encontra-se legitimado para o exercício da ação penal — cf. artigo 113º nº 1 do C.P. e todo o texto do Auto de Denúncia — e, salvo o devido respeito, não vale a pena estar aqui a demonstrar o óbvio uma vez que a realidade é tangível, material, verificável e está corporizada no auto de denúncia, sendo pois, legível. Não vamos alimentar a semiótica “queixa” versus “denúncia” e vice-versa. Reproduzimos as palavras do Prof. Figueiredo Dias citadas no douto despacho que ora se recorre. «No que toca à forma da queixa (...), devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto.” Ou seja, a queixa reporta-se a factos e são factos o que é investigado e os seus autores, quando passam a ser conhecidos. Mais adiante: “Não se torna necessário, por outro lado, que a queixa seja como tal designada; e é mesmo irrelevante que seja qualificada de outra forma pelo seu autor, v.g., como denúncia, acusação, etc.” E concluindo: “Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona” (sublinhado nosso). Com todo o respeito, bastava a citação desta doutrina para que o douto despacho, objeto de recurso, não pudesse ter lugar. Escreve a Ma Juíza a propósito do Auto de Denúncia: “porém, nada consta no mesmo relativamente ao desejo de o ofendido proceder criminalmente contra a arguida, pelos factos relatados” Face às disposições legais e à doutrina já citada, a afirmação da Mª Juíza não tem suporte legal. No mais, remetemos para a leitura do “Auto. Escreve a Mª Juíza: “Ora, salvo melhor entendimento, a vontade inequívoca do procedimento criminal implica identificar, na medida do possível os denunciados Assim é, de facto. O denunciante/lesado/ofendido identificou o melhor que pôde os factos e referiu os nomes que tinha. Não se vislumbra o mais que pudesse fazer, a menos que tivesse dons de adivinhação. Relembre-se que os factos (indiciariamente, burla), foram praticados através da internet. Quem sabe, quem pode saber, quem pode adivinhar, quem está do outro lado? Em rigor, ninguém. Quem está do outro lado, só a investigação o poderá revelar. Foi o que aconteceu. Escreveu a Ma Juíza no seu douto despacho: “É certo que a queixa pode ser contra desconhecidos, mas nesse caso, há um número indeterminado de pessoas, e quando há uma queixa o queixoso não indica ninguém de forma expressa, antes se refere que não sabe quem cometeu o crime e que deseja procedimento criminal contra quem o fez, deixando em aberto o número de perpetradores. O que não sucede no caso. De facto, o queixoso relata os factos como tendo sido perpetrados por BB, em momento algum referindo como suspeita CC ou, sequer, uma pessoa do sexo feminino” Face a tudo o que escrevemos e às disposições legais aplicáveis e à realidade tal como o denunciante/lesado/ofendido a percecionou, que mais se lhe podia exigir … com humanidade... Diz a Mª Juíza:“Ao deduzir uma queixa contra uma ou mais pessoas, o respectivo titular, ou anuncia logo que existiam outras pessoas envolvidas de que desconhece a sua identidade, ou nada refere sobre esta matéria” É inquebrável o nosso respeito pelas palavras insertas no douto despacho recorrido. Todavia, em nosso entender estas palavras não têm suporte legal. O auto, na base do processo, está como a lei manda que esteja. A Mª Juíza avança ainda que: “Donde, no momento em que, no inquérito, foram recolhidos indícios de que CC seria a autora dos factos, ou da existência de comparticipação, devia o Ministério Público, antes de deduzir acusação, notificar o queixoso para, querendo, apresentar queixa também contra os suspeitos entretanto identificados, sob pena de extinção do procedimento criminal contra todos - cfr. art.º 115.º, n.º1, e n.º3, do CP.” Com todo o respeito, este é um entendimento“contra legemcomo resulta das disposições legais citadas. E voltamos a frisar: o direito de queixa foi validamente exercido. Diz-se no despacho recorrido: “... nem no próprio corpo das informações complementares do auto de denúncia decorre a manifestação inequívoca de vontade de proceder criminalmente contra BB, apenas se encontrando um «Sim», em texto automaticamente processado, no item «Deseja Procedimento Criminal? (…)». E mais adiante, “Isto porque se trata de um documento igual para todas as situações, preenchido pelo agente que preenche o auto através de um click na opção «Sim» no item «Deseja Procedimento Criminal?», não sendo sequer datilografado como os factos relatados pelo ofendido, na rúbrica «Informações complementares». E ainda porque, no momento em que o auto de denúncia é dado para assinar ao queixoso, apenas é expectável que este confira os factos por si relatados, bem como os dados pessoais por si fornecidos e não o que aparenta ser “pró-forma”. Com todo o respeito, estamos sem saber o que dizer. Estamos absolutamente certos de que não se tratou de um clique na opção “Sim”, etc. Vejamos: quem lavrou o “Auto de Denúncia” foi o OPC. Ninguém, mas mesmo ninguém pode, sem fundamento, colocar em questão a genuinidade e correção do que dele consta, como se de um ato menor se tratasse. Estamos, já, no núcleo fundamental do Estado de Direito. Não duvidamos, nem por um segundo da genuinidade, correção e legalidade do que consta do “Auto” levantado pelo OPC. E a fé pública que tal ato merece, não pode ser abalada como foi — com todo o respeito. O “Auto de Denúncia” a que se vem aludindo, revela uma manifestação, uma vontade inequívoca de procedimento criminal. Dele consta isso mesmo e está devidamente assinado, etc. Conforme se refere no douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10.07.2014, processo 525/12.5GAAMR.G1, tirado por unanimidade (dgsi.pt) I- Para se apresentar a queixa não são necessários especiais conhecimentos jurídicos, nem a sua validade está dependente de qualquer fórmula sacramental. Mas a lei não dispensa existência de um ato formal em que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que haja procedimento criminal por determinado facto. Esse ato formal consiste em «dar conhecimento do facto» ao Ministério Público ou a entidade com a obrigação legal de o transmitir àquele. II- Não é necessário que o facto seja descrito com todos os pormenores, nem que sejam identificados os seus autores (que podem não ser conhecidos), mas tem de ser identificado o episódio a que a queixa se refere, para que não haja dúvidas sobre o que estava no espírito do queixoso quando tomou a decisão. III- Sendo o crime semipúblico, é o referido ato formal de se “dar conhecimento do facto” que está na origem do processo e desencadeia a investigação, sem o qual esta não pode sequer começar. Não pode merecer qualquer dúvida que o “Auto de Denúncia” está conforme a todos os normativos e merece inteira fé pública, legitimando o Ministério Público ao exercício da ação penal. Outrossim, o douto despacho recorrido está em oposição a todas as normas legais citadas.
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Cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do Código de Processo Penal nada foi aduzido.
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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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Nada obsta ao conhecimento do mérito do recurso interposto pelo Ministério Público cumprindo, assim, apreciar e decidir.
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2- FUNDAMENTAÇÃO:
2.1- DO OBJETO DO RECURSO:
É consabido, em face do preceituado nos artigos 402º, 403º e 412º nº 1 todos do Código de Processo Penal, que o objeto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, devendo, assim, a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por serem obstativas da apreciação do seu mérito, nomeadamente, nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase e previstas no Código de Processo Penal, vícios previstos nos artigos 379º e 410º nº2 ambos do referido diploma legal e mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.1
Destarte e com a ressalva das questões adjetivas referidas são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respetiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar2.
A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva3: “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões”.
Assim, à luz da delimitação das conclusões da motivação do recurso a questão a dirimir é da correção da sentença recorrida em declarar extinto o procedimento criminal por extinção do exercício do direito de queixa e falta de legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal.
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2.2- DA APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO:
Exara a sentença recorrida na parte que releva para a apreciação do recurso interposto pelo Ministério Público o que a seguir se transcreve: II. Saneamento Foi deduzida acusação contra a arguida CC pela prática de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º, do CP, por factos alegadamente ocorridos «Em data não concretamente apurada, mas antes de 07/05/2019». Nos termos da acusação, os factos terão sido praticados contra AA, identificado como denunciante/ofendido no auto de denúncia de fls. 5. Das disposições conjugadas nos artigos 217.º, n.º 3, 113.º, n.º 1 e 115.º, n.º 1, do Código Penal, o procedimento criminal relativamente ao crime de burla depende de apresentação de queixa pelo ofendido, tendo este o prazo de 6 meses para o fazer, acontar do dia em que teve conhecimento dos factos. Trata-se, pois, de um crime semi-público, ficando assim a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal condicionada pela manifestação prévia e inequívoca por parte do ofendido, entendido como o titular dos direitos que a lei quis salvaguardar com a incriminação (artigo 113.º, n.º 1, do cp), da vontade de que sobre aqueles factos haja procedimento criminal. A queixa distingue-se da denúncia, pois, enquanto a primeira constitui uma declaração de vontade, a segunda reduz-se a uma mera declaração de ciência sobre factos susceptíveis de integrar a prática de um crime. A denúncia é suficiente no caso dos crimes públicos (cfr. artigo 48º do cpp), mas no caso dos crimes semi-públicos e particulares, é sempre necessária essa manifestação de vontade. Aqui chegados, cumpre referir, e como é entendimento jurisprudencial assente, que essa declaração de vontade não está sujeita a qualquer fórmula especial ou sacramental, nem pressupõe a correcta configuração jurídica dos factos relatados (neste sentido, entre outros, Ac. RC de 06.03.2013, da RC de 07.06.17, da RE de 18.09.12, da RE de 14.10.14). No mesmo sentido, na doutrina, Figueiredo Dias, «No que toca à forma da queixa, tanto o Código Penal como o Código de Processo penal são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto. O que só é reforçado pelo disposto no art.º 49.º, n.º 3 do CPP, já acima referido. Não se torna necessário, por outro lado, que a queixa seja como tal designada; e é mesmo irrelevante que seja qualificada de outra forma pelo seu autor, v.g., como denúncia, acusação, etc. Tão-pouco é relevante que os factos nela referidos sejam correctamente qualificados do ponto de vista jurídico-penal. Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona» - in direito penal Português, as consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 675. Todavia, a manifestação da vontade tem que ser inequívoca, seja na sua própria formulação, seja nos termos que a seguirem (cfr. stj de 29.01.07, www.dgsi.pt). Compulsados os autos, temos que não existiu um auto de participação, mas apenas um auto de denúncia. Poder-se-ia aceitar tal documento como uma manifestação expressa da vontade de exercer o direito de queixa, porém, nada consta no mesmo relativamente ao desejo de o ofendido proceder criminalmente contra a arguida, pelos factos relatados. Na verdade, os factos que o mesmo ali declara dizem respeito, na óptica em que o faz, a BB. E nem mesmo quanto a este, conforme melhor se aflorará infra, as suas declarações manifestam uma intenção inequívoca de contra o mesmo proceder criminalmente. Vejamos. Ora, salvo melhor entendimento, a vontade inequívoca do procedimento criminal implica identificar, na medida do possível os denunciados. É certo que a queixa pode ser contra desconhecidos, mas nesse caso, há um número indeterminado de pessoas, e quando há uma queixa o queixoso não indica ninguém de forma expressa, antes se refere que não sabe quem cometeu o crime e que deseja procedimento criminal contra quem o fez, deixando em aberto o número de perpetradores. O que não sucede no caso. De facto, o queixoso relata os factos como tendo sido perpetrados por BB, em momento algum referindo como suspeita CC ou, sequer, uma pessoa do sexo feminino. Sendo inquestionável que a apresentação da queixa contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes, esta norma pressupõe que o titular do direito de queixa desconheça os restantes agentes do crime - cfr. artigo 114.º do CP. Ao deduzir uma queixa contra uma ou mais pessoas, o respectivo titular, ou anuncia logo que existiam outras pessoas envolvidas de que desconhece a sua identidade, ou nada refere sobre esta matéria. Donde, no momento em que, no inquérito, foram recolhidos indícios de que CC seria a autora dos factos, ou da existência de comparticipação, devia o Ministério Público, antes de deduzir acusação, notificar o queixoso para, querendo, apresentarqueixa também contra os suspeitos entretanto identificados, sob pena de extinção do procedimento criminal contra todos - cfr. art.º 115.º, n.º 1, e n.º 3, do cp. Pelo exposto, não se pode considerar que o direito de queixa foi validamente exercido contra CC, enquanto eventual autora dos factos ilícitos. Acresce ainda que nem no próprio corpo das informações complementares do auto de denúncia decorre a manifestação inequívoca de vontade de proceder criminalmente contra BB, apenas se encontrando um «Sim», em texto automaticamente processado, no item «Deseja Procedimento Criminal?». Ora, como se referiu supra, o auto de denúncia não era o indicado para o caso em apreço, consubstanciando os factos relatados um crime de natureza semi-pública, deveria ter sido lavrada uma participação criminal. Para mais, não constando dos factos pelo queixoso relatados qualquer forma de manifestação de vontade em proceder criminalmente contra BB, não cremos que o preenchimento automatizado de um item seja suficiente para o exercício do direito de queixa. Isto porque se trata de um documento igual para todas as situações, preenchido pelo agente que preenche o auto através de um click na opção «Sim» no item «Deseja Procedimento Criminal?», não sendo sequer datilografado como os factos relatados pelo ofendido, na rúbrica «Informações complementares». E ainda porque, no momento em que o auto de denúncia é dado para assinar ao queixoso, apenas é expectável que este confira os factos por si relatados, bem como os dados pessoais por si fornecidos e não o que aparenta ser “pró-forma. Dito de outro modo, o preenchimento de um auto em que se dá conta factos que possam constituir um crime e presenciado por parte dos órgãos de polícia criminal é sempre obrigatório, sob a forma de auto de notícia, assim como nos casos em que o procedimento criminal dependa de queixa ou de acusação particular, não basta a mera denúncia, ainda que o ofendido seja um agente que o presenciou, sendo necessária a participação, não bastando o mero relato de factos - cfr. artigos 242º, 243º e 244º, do cpp. É que o auto de notícia lavrado por imposição legal e no exercício das suas funções só por si não releva uma manifestação inequívoca de que se deseja procedimento criminal. O que, mutatis mutandis, se aplica ao caso dos autos, pois que inexiste uma manifestação de vontade expressa do exercício do direito de queixa, não bastando o relato de denúncia dos factos. No mesmo sentido, o facto de não haver uma renúncia ao direito de queixa, também não importa uma manifestação da vontade da queixa - cfr. Ac. rg de 26.09.2016, disponível em www.dgsi.pt. De todo o exposto, temos que o Ministério Público não tinha legitimidade para o exercício da acção penal, nomeadamente, para deduzir acusação - cfr. artigos 48º e 49.º, n.º 1 do Código de Processo Penal. Tendo os factos ocorrido antes de 07/05/2019, nos termos da acusação, o exercício do direito de queixa encontra-se extinto. Destarte, por não se encontrarem preenchidos os requisitos de procedibilidade referente ao ilícito de que vem a arguida acusada, nos termos expostos, não é o Ministério Público competente para a acção penal, razão pela qual se não se conhecerá da responsabilidade criminal da arguida, declarando-se a extinção do procedimento criminal. (…)
O auto a que se refere a decisão recorrida consta destes autos. E do mesmo resulta com relevo para o objeto do recurso o seguinte:
Em ... de ... de 2019 foi lavrado em formulário próprio auto de denúncia na Esquadra de ... pelo agente da PSP DD - matrícula nº....
No que se reporta ao campo referente à comunicação de ocorrência o referido agente aí assinalou que a comunicação ocorreu na unidade policial e foi feita pelo lesado/ofendido pelas 18H00 do referido dia.
No campo referente ao denunciante o mesmo é aí identificado como o ofendido/lesado constando o nome (AA) indicação do documento de identificação, que a identificação não foi feita verbalmente, data de nascimento, estado civil, nacionalidade, naturalidade, profissão, morada e contactos.
No campo referente a outros dados em frente à pergunta: Deseja procedimento criminal está aposta a palavra Sim.
No campo correspondente a informações complementares consta: Por à data e hora acima mencionadas quando me encontrava no exercício das minhas funções compareceu nesta Esquadra o lesado a informar que havia sido alvo de Burla através de uma falsa venda de uma viatura. O lesado, referiu que o senhor BB, utilizou a página de internet "..., para colocar um falso anúncio com a venda de uma viatura, a qual, alegadamente, encontrar-se-ia à venda na .... Segundo o lesado, ficou acordado entre ambos, que após o lesado efectuar o pagamento, através de uma transferência bancária, no valor de 600 (seiscentos) euros, correspondente ao valor total, a pagar pela viatura, para uma conta em nome da esposa do suspeito, CC, com o NIB: ..., o suspeito lhe iria endereçar a viatura, pelo que o lesado, com a melhor das intenções, efectuou a transferência através de multibanco, conforme comprovativo, cuja cópia se anexa, estando a aguardar há 17 (dezassete) dias a ressecção da viatura. O denunciante acrescentou que após o sucedido, não conseguiu comunicar novamente com suspeito, tendo inclusivamente, já sido bloqueado na referida rede social, pelo que não lhe é possível indicar mais qualquer informação acerca do anúncio de venda. Acrescentou que todos os contactos realizados, foram efectuados por chamada telefónica, para o n.º de contacto ..., propriedade do suspeito, o qual já não lhe atende as chamadas. Face ao exposto, o lesado sente-se burlado.
No referido auto está aposta a assinatura do denunciante (AA) e do autuante DD.
Aqui chegados cumpre apreciar a concreta pretensão recursiva do recorrente Ministério Público.
É consabido que o Ministério Público tem legitimidade para promover a ação penal (artigo 48º do Código de Processo Penal) e que a mesma tem restrições (artigos 49º a 52º do mesmo diploma legal) quando estão em causa crimes de natureza semipública (os que demandam a apresentação de queixa por a promoção da ação penal da mesma depender) ou particular (os que exigem para além da queixa, a constituição como assistente do ofendido e a dedução pelo mesmo de uma acusação particular).
Dentre as atribuições do Ministério Público insere-se a de receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar-lhes como decorre do estatuído no artigo 53º nº2 do Código de Processo Penal.
Assim, o nosso processo penal distingue claramente e, ao que nos interessa, a denúncia da queixa, decorrendo do ensinamento de Germano Marques da Silva4: “A denúncia é uma mera manifestação de ciência- transmissão ao Mº Pº do conhecimento da prática de um crime- na queixa para além desta declaração de ciência exige-se ainda uma manifestação de vontade de que seja instaurado um processo para averiguação da notícia e procedimento contra o agente responsável”.
A denúncia não está sujeita a formalidades especiais podendo ser inclusivamente oralmente transmitida à entidade policial ou ao Ministério Público e depois reduzida a auto (artigos 246º e 95º ambos do Código de Processo Penal).
De igual modo a queixa pode ser verbalmente transmitida e apenas demanda uma menção ainda que simples de expressão de vontade de agir processualmente contra o responsável pelos factos relatados.
Estando embora em causa figuras distintas nada impede que as mesmas sejam corporizadas num único auto, sendo, aliás, esse um procedimento habitual dos órgãos de polícia criminal e desde que passaram a ser utilizados formulários de autos de denúncia tal referência surge traduzida num singelo Sim quando é manifestado o desejo de procedimento criminal.
A tese da decisão recorrida é, por um lado, que tal referência não basta, ou seja, que um «Sim», em texto automaticamente processado, no item «Deseja Procedimento Criminal?» por ser o preenchimento automatizado de um item seja suficiente para o exercício do direito de queixa. Isto porque se trata de um documento igual para todas as situações, preenchido pelo agente que preenche o auto através de um click na opção «Sim» no item «Deseja Procedimento Criminal?», não sendo sequer datilografado como os factos relatados pelo ofendido, na rúbrica «Informações complementares». E ainda porque, no momento em que o auto de denúncia é dado para assinar ao queixoso, apenas é expectável que este confira os factos por si relatados, bem como os dados pessoais por si fornecidos e não o que aparenta ser “pró-forma e, por outro lado, que nada consta no mesmo relativamente ao desejo de o ofendido proceder criminalmente contra a arguida, pelos factos relatados uma vez que os factos que o mesmo ali declara dizem respeito, na óptica em que o faz, a BB, em momento algum referindo como suspeita CC ou, sequer, uma pessoa do sexo feminino.
Conclui o tribunal recorrido em conformidade com tal tese que não há queixa validamente apresentada e que estando em causa um crime semipúblico o Ministério Público não tinha legitimidade.
Ora, não se pode concordar com a decisão recorrida na medida em que não existe (para além de uma mera suposição) qualquer elemento materializado nos autos que contrarie que o denunciante/ofendido expressou verbalmente/ manifestou junto do agente policial que elaborou o auto desejo de procedimento criminal.
Ademais o entendimento perfilhado pelo tribunal recorrido infringe o princípio da confiança pois o que consta do auto é que o denunciante e ofendido se dirigiu a uma esquadra policial, fez um relato concreto dos factos que conhecia imputando-os a quem julgava ser o responsável pelos mesmos e perante um agente policial afirmou quando questionado que desejava procedimento criminal e assinou o respetivo auto.
Tal atuação não pode gerar no denunciante e ofendido outra expectativa que não seja a legítima expectativa de que naquele dia e lugar perante órgão de polícia criminal manifestou desejo de procedimento criminal.
Afirmar o contrário como o faz a decisão recorrida é infringir o princípio da boa fé na sua vertente de princípio da confiança que tutela os cidadãos perante os serviços do Estado e visa salvaguardar os mesmos contra atuações injustificadamente imprevisíveis.
Assim, em face do teor do auto de denúncia elaborado por agente da PSP em que está exarada uma manifestação de desejo de procedimento criminal por parte do denunciante/ofendido e estando tal auto assinado inclusivamente assinado pelo mesmo o tribunal recorrido deveria ter concluído pela apresentação de queixa.
Todavia, não só não o fez como, ainda, entendeu que uma interpretação em tal sentido atenta a descrição factual vertida em tal auto não seria suficiente para se poder concluir por uma manifestação por parte do ofendido de desejo de procedimento criminal relativamente à arguida, uma vez que os factos que o mesmo ali declara dizem respeito, na óptica em que o faz, a BB, em momento algum referindo como suspeita CC ou, sequer, uma pessoa do sexo feminino.
Ora, também aqui a decisão recorrida merece censura porquanto quem apresenta uma denúncia ou queixa apenas pode relatar factos de que tem conhecimento, o apuramento dos factos concretos integradores de ilícito criminal e sua autoria cabe ao Ministério Público no âmbito do inquérito como decorre expressamente do teor do artigo 262º do Código de Processo Penal.
E sempre se dirá que, ao contrário, do indicado na decisão recorrida existe uma referência em tal descrição factual contida em tal auto relativamente à pessoa que veio a ser constituída arguida, acusada e julgada, pois, que a mesma é aí indicada como a titular da conta bancária para onde foi transferida a quantia monetária pelo ofendido.
Assim, é de concluir que evidenciam os autos a apresentação de queixa tempestiva (atenta a descrição dos factos contida em tal auto porque ocorridos cerca de 17 dias antes) por quem de direito- o ofendido dos factos relatados- e que o Ministério Público mercê de tal queixa estava e está legitimado para o exercício da ação penal inexistindo fundamento para se ter declarado a extinção do procedimento criminal nos termos em que o fez a decisão recorrida.
Destarte procede o recurso do Ministério Público impondo-se a revogação da sentença proferida.
3- DECISÓRIO:
Nestes termos e em face do exposto acordam os Juízes Desembargadores desta 3ª Secção em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e consequentemente revogar a sentença determinando que seja proferida outra que se pronuncie sobre o objeto do processo uma vez que foi já realizada audiência de julgamento.
Sem custas.
Notifique.
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Nos termos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal exara-se que o presente Acórdão foi pela 1ª signatária elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários e sendo as suas assinaturas bem como a data certificadas supra.
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Tribunal da Relação de Lisboa, 30 de abril de 2025.
Ana Rita Loja
Maria da Graça dos Santos Silva
Mário Pedro M.A. Seixas Meireles
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1. vide Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995.
2. – Artigos 403º, 412º e 417º do Código de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 proferido no processo 91/14.7YFLSB.S1 e de 30/06/2016 proferido no processo 370/13.0PEVFX.L1. S1.
3. Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335
4. Curso de Processo Penal, III, p.59