RECONHECIMENTO
OMISSÃO DE FORMALIDADES
INVALIDADE
CONTINUAÇÃO CRIMINOSA
PERTURBAÇÃO
PRISÃO PREVENTIVA
Sumário

I. O reconhecimento presencial previsto no art. 147º do Código de Processo Penal tem por subjacente e como pressuposto a necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, como de forma cristalina se prescreve no seu n.º 1.
II. O n.º 7 desse art. 147º impõe de forma clara a cominação de invalidade como meio probatório a omissão de qualquer das formalidades previstas no mesmo normativo, sem distinção.
III. A omissão no auto de qualquer das menções impostas em tal normativo ou de qualquer dos procedimentos aí prescrito, independentemente da sua maior ou menor aparente relevância, determinará a sua invalidade enquanto meio de prova, redundando inevitavelmente numa proibição absoluta de prova.
IV. O perigo de continuação da actividade criminosa é aferido em função de um juízo de prognose realizado relativamente à continuação da prática de crimes da mesma espécie e natureza dos que se indiciam no processo em que se faz a avaliação de tal perigo.
V. No caso concreto, a indiciada conduta do recorrente demonstra uma personalidade de total indiferença perante as mais basilares regras da convivência social, designadamente perante a vida de outro ser humano, disparando dois tiros na direcção do ofendido, desarmado, sem qualquer provocação conhecida, em dois momentos temporais sucessivos, fazendo-o em plena via pública.
VI. Perante a factualidade fortemente indiciada, é inevitável concluir estarmos perante uma personalidade imbuída de extrema violência e de indiferença perante os valores éticos fundamentais da sociedade. Pela natureza e circunstâncias dos crimes em causa e pelos motivos atrás salientados, afigura-se de perspectivar como plausível de que existe um sério perigo de que poderão ser repetidas condutas de índole similar.
VII. O perigo de perturbação grave da tranquilidade pública encontra-se directamente relacionada e é consequência do perigo de continuação da actividade criminosa já atrás constatado.
VIII. A medida de obrigação de permanência pressupõe que o arguido se comprometa em alguma medida ao seu cumprimento, que seja expectável uma sua auto-responsabilização nesse sentido.
IX. Assentado aqueles perigos em factos fortemente indiciados, que indiciam uma personalidade aparentemente tão desconforme ao dever-ser jurídico-penal, tão violenta e tão insensível aos bens jurídicos fundamentais da sociedade, a permanência na habitação não acautela de forma suficiente aqueles perigos, por ser ineficaz para conter os actos violentos que o arguido já demonstrou ser capaz de empreender e que, se não eficazmente acautelados através de medida de coacção suficientemente eficaz, poderia voltar a cometer.

Texto Integral

Acordam em conferência os Juízes da 9ª secção criminal deste Tribunal da Relação

I. RELATÓRIO
Inconformado com o despacho datado de ...-...-2024, proferido no âmbito dos autos de inquérito com o n.º 256/24.3JDLSB, no Juízo de Instrução Criminal de Sintra - Juiz 2, no qual se decidiu aplicar-lhe a medida de prisão preventiva, veio o arguido
AA, filho de BB e CC, natural de Portugal, nascido em .../.../2006, com residência na Rua ..., ...,
interpor recurso de tal decisão.
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As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões extraídas da motivação do recurso e que em seguida se transcrevem:
1- O reconhecimento do arguido é inválido, por violação do disposto no art.° 147.°, n.° 2, do CPP, não podendo tal meio de prova ser valorado, por força do n.° 7 do mesmo artigo.
2- A norma do n.° 4 do art.° 147.°, do CPP é inconstitucional, quando interpretada no sentido de não ser obrigatória a obtenção de fotografias das pessoas que intervieram no reconhecimento e a sua posterior junção aos autos.
3- Porquanto, o recorrente, foi sujeito a reconhecimento pessoal na Polícia Judiciária de Lisboa, no dia .../.../2024.
4- No entanto, apesar do arguido ser de forte compleição física (quer em altura, quer em largura) e ter rastas até aos ombros, os dois figurantes, sendo afro descendentes, tinham o cabelo curto e no que respeita a compleição física, muito mais magros e baixos que o arguido.
5- Além disso, os ofendidos não explicaram as circunstâncias em que os factos ocorreram, nem como era a pessoa que os abordou, a sua altura, como vestia, assim como também não mencionaram que alguns deles conheciam o AA desde os tempos de escola.
6- O reconhecimento que não obedecer ao disposto no artigo 147° do Código de Processo Penal não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer, pelo que não deveriam ter sido valorizados os reconhecimentos positivos de AA.
7- O auto de reconhecimento começa por uma descrição da pessoa a reconhecer, realizada pela pessoa que procede ao reconhecimento, através da qual ela indica todos os pormenores dessa pessoa de que se recorda. «Em seguida é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação», cff. n° 1 do artigo 147.° do Código de Processo Penal.
8- Ora, nada disto consta dos autos de reconhecimento mencionados, só casualmente se podendo extrair dos depoimentos que indevidamente se inseriram nos autos um ou outro desses elementos.
9- A omissão do interrogatório a que se refere o n.° 1 do artigo 147.° do Código de Processo Penal impede a valoração desses autos - n.° 7 desse mesmo preceito legal (Ac. TRL, Proc. 215/09.6PFSXL.L1-3, de 11/06/2014).
10- Acontece que o Tribunal recorrido fundamentou a aplicação da medida de coação mais gravosa nestes reconhecimentos que se impugnaram e decisão da qual também se recorre.
11- Ao fundamentar a necessidade de prisão com a eventual incumprimento por parte do arguido - e a possibilidade de o mesmo continuar actividade criminosa, perturbação do inquérito e a possibilidade de fugir para a ..., não tem qualquer fundamento!
12- Argumento que não pode - ou não deve ser considerado por partir de uma suspeita não verificada, de uma mera convicção/suposição da instância e ainda porque é certo que estando sujeito a obrigação de permanência na habitação com meios de vigilância eletrónica, todos estes supostos perigos caiem por terra.
13- Por isso - ao conhecer do que não podia ou não devia conhecer - foi cometida, no douto despacho recorrido, a nulidade de excesso de pronúncia - art.° 379.° n.° 1 alínea c) do CPP.
14- O recorrente tem 18 anos, não tem antecedentes criminais e está inserido socialmente e familiarmente.
15- Pela falta de concretização dos perigos apresentados, idade do recorrente, ausência de antecedentes criminais e a sua integração familiar/social/profissional, a medida de coação de Prisão Preventiva é desnecessária, desadequada e desproporcional devendo ser substituída pela Medida de obrigação de obrigação de permanência na habitação, nos termos previstos no artigo 201.° do CPP.
16- A medida de prisão preventiva, mesmo nos casos do artigo 202.° do Código de Processo Penal, só é admissível quando se verificam os pressupostos do artigo 204° do Código de Processo Penal.
17- A aplicação da prisão preventiva está sujeita, não só às condições gerais impostas pelos artigos 191.° a 195.°, do Código de Processo Penal (CPP), em que emergem os princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade, mas também ao preenchimento dos requisitos gerais previstos no artigo 204.° e aos específicos consagrados no artigo 202.°, ambos do CPP.
18- A prisão preventiva, enquanto medida de coação de natureza excepcional e de aplicação subsidiária só pode ser determinada quando as outras medidas se revelem inadequadas ou insuficientes, devendo ser dada prioridade a outras menos gravosas por ordem crescente - cff. o artigo 28.°, n° 2 da CRP, conjugado com o n.° 2 e n, 3 do artigo 193.° do CPP.
19- A manutenção da prisão preventiva viola os princípios e regras que lhe são subjacentes, designadamente, os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e subsidiariedade, o que toma a mesma ilegal, por violação, entre outros, dos arts. 18.°, n.° 2, 28.°, n.° 2 e 32.°, n.° 2 da CRP e dos artigos 191.°, n.° 1, 192.°, n.° 2, 193.°, 202.° e 204.°, do CPP. 
20- O douto despacho recorrido fez incorreta apreciação dos factos, por erro de interpretação e violou os artigos 32.° n.° 2, 27° e 28° da Constituição da República Pública, e os artigos 209.°, 204° e 213.° do Código de Processo Penal, pelo que deve ser revogado, ordenando-se a libertação imediata do Requerente, devendo aguardar os ulteriores trâmites do processo com a medida de coação de obrigação de permanência no domicílio com vigilância eletrónica, cfr. art.° 201.° n.° 1 do Código de Processo Penal.
Nos termos e com os fundamentos expostos, deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que, aplique ao recorrente a medida prevista no art.° 201.° do CPP (Obrigação de Permanência na Habitação) eventualmente com recurso a vigilância eletrónica, Vossas Excelências Venerandos Desembargadores, decidirão de acordo com a mais curial e a acostumada
JUSTIÇA!
(fim de transcrição)
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O recurso foi admitido com subida imediata, em separado, e com efeito devolutivo (despacho de ...-...-2025, com a ref.ª citius ...).
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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo arguido, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
1. O recurso interposto pelo recorrente recai sobre a decisão do Tribunal a quo que, determinou a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva proferida em ...-...-2024, por considerar que se encontrava fortemente indiciada a prática pelo mesmo, em autoria e em concurso efectivo, de 1 (um) crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pela conjugação dos artigos 131.°, 132.°, n.° 1 e 2, alínea e) e 22.° e 23.°, todos do Código Penal, agravado, nos termos do artigo 86.°, n.° 3 e 4 da Lei das Armas (Lei 5/2006, de 23.02) conjugado com alíneas c) e d) do, n.°1 do artigo 86.° do mesmo diploma legal, 1 (um) crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo disposto no artigo 86.°, n.°s 1, alíneas c) e d) e 2 por referência aos artigos 2.°, n.°s 1, da Lei das Armas (Lei 5/2006, de 23.02), 3 (três) crimes de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, previstos e punidos nos termos do artigo 143.°, n.°1 e 145.°, n.°1, alínea a) do Código Penal conjugado com o artigo 132.°, n.°2, alínea h) do Código Penal e artigo 23.° do mesmo diploma legal, 1 (um) crime de ofensa à integridade física, agravado, nos termos do artigo 143.° do Código Penal e o artigo 86.°, n.°1, alínea d) e n.°3 e 4 da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro, 1 (um) crime de detenção de arma proibida, previsto e punido, nos termos artigo 86.°, n.°1, alínea d) e n.°3 e 4 da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro e 1 (um) crime de detenção de arma proibida, previsto e punido, nos termos artigo 86.°, n.°1, alínea d) e n.°3 e 4 da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro.
2. Com efeito, os aludidos ilícitos criminais em apreço se encontram fortemente indiciados com base nos elementos probatórios recolhidos em sede de inquérito, nomeadamente nos depoimentos dos ofendidos, que se apresentam coerentes e objectivos, conjugado com a circunstância do arguido AA ter sido reconhecido e ainda da prova pericial e documental recolhida até ao momento.
3. O reconhecimento pessoal do arguido pelos ofendidos observou todos os formalismos previstos nos termos do artigo 147.° do CPP, não padecendo de qualquer nulidade ou irregularidade.
4. Acresce que no decorrer da diligência de reconhecimento pessoal, não foi suscitada, qualquer vicio processual quanto à regularidade desta, sendo que qualquer irregularidade deveria ter sido suscitada de imediato, no próprio acto, sob pena de ficar sanada, nos termos do artigo 123.° do CPP. 
5. Caso assim não se entenda, sempre se dirá que a alegada ausência de semelhanças dos indivíduos sujeitos ao reconhecimento não toma nula a prova obtida, podendo antes e eventualmente, tratar-se de uma questão de valoração de prova, prova essa que é, consabidamente, apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente (cfr. artigo 127.° do Código de Processo Penal).
6. No que concerne a falta de fotografia do painel do reconhecimento, é nosso entendimento que a norma insista no n.° 4 do artigo 147.° do Código Processo Penal não é inconstitucional se interpretada no sentido de não ser obrigatória a obtenção de fotografias das pessoas que intervieram no reconhecimento e a sua posterior junção aos autos.
7. Com efeito, existem outros bens jurídicos de relevo a salvaguardar, para além dos direitos de defesa do arguido. Um deles é o direito à imagem das pessoas que intervierem no reconhecimento que estão naquele local, como meros colaboradores da realização da justiça e que são estranhos ao processo, não havendo razão para lhes ser imposto uma restrição ao seu direito da personalidade, o direito à imagem.
8. E por tal, o legislador previu que a obtenção de fotografias e a sua junção aos autos apenas quando aquelas pessoas derem o seu consentimento, tornando o procedimento compatível com o disposto no artigo 199.°, n.° 2, do Código Processo Penal.
9. Acresce que o arguido não fica inibido de, por outros meios, no exercício do contraditório, demonstrar a alegada desconformidade traduzida na falta de semelhança entre o suspeito e as pessoas que são colocadas a seu lado para o reconhecimento.
10. Entendemos, pois, que a aludida norma do n.° 4 do artigo 147.°, do CPP, interpretada no sentido em que foi aplicada, é conforme aos preceitos constitucionais, nomeadamente aos que respeitam às garantias de defesa do arguido.
11. No que concerne à alegada omissão do interrogatório prévio a que faz alusão o artigo 147.°, n.° 1 do Código Processo Penal, a mesma não se verifica.
12. Conforme resulta dos autos de reconhecimento de fls. 85 a 88 e 93 a 96, os reconhecimentos pessoais do arguido foram realizados com estrita observância do formalismo imposto pelo referido artigo, resultando do auto de reconhecimento de fls. 85 a 88 que DD fez uma descrição física do suspeito, esclarecendo se já conhecia o mesmo e foi questionado sobre outras circunstâncias que pudessem influenciar na credibilidade da identificação, o qual nada acrescentou. Também resulta do auto de reconhecimento de fls. 93 a 96 que EE fez uma descrição física do suspeito e quando questionado se conhecia o suspeito e sobre outras circunstâncias que pudessem influenciar na credibilidade da identificação, o mesmo nada acrescentou.
13. Pelo exposto, não se verifica a nulidade arguida nem qualquer irregularidade que, a verificar-se, sempre se encontraria sanada por falta de arguição atempada nos termos previstos no artigo 123.° do Código de Processo Penal, podendo antes e eventualmente, tratar-se de uma questão de valoração de prova, prova essa que é, consabidamente, apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente (cff. artigo 127.° do Código de Processo Penal).
14. Verificam-se assim os pressupostos de aplicação da medida de coacção prisão preventiva ao ora recorrente: em concreto, os perigos de perturbação da ordem e tranquilidade pública e o perigo de continuação da actividade criminosa, em razão da natureza e das circunstâncias do crime e da personalidade do arguido e ainda o perigo de fuga, os quais se encontram devidamente fundamentados na decisão judicial recorrida.
15. O Exmo. Juiz de Instrução Criminal a quo, ao concluir que no caso se verificam os perigos, de continuação da actividade criminosa e o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade pública, tomou em consideração os concretos factos indiciados no processo, partindo de um juízo que encontra o necessário respaldo na prova coligida nos autos e nas regras da experiência.
16. Verifica-se o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade pública, uma vez que os crimes em apreço, são graves e, pela sua natureza e repercussão social, colocam em causa, a tranquilidade e segurança públicas, e são geradores de enorme alarme social na comunidade, passando a comunidade social a não poder andar na via pública sem o receio de que factos semelhantes possam ocorrer.
17. Atenta a facilidade com que o arguido AA se determinou à prática dos factos e o modo de execução dos mesmos, revela uma personalidade violenta e beligerante e ausência de mecanismos inibidores endógenos que o determinem, sem controlo externo, a não praticar crimes, manifestando total desrespeito pelos mais elementares valores que as normas penais violadas pretendem proteger, sendo assim notório o défice de competências pessoais e sociais do ora recorrente que elevam o risco de continuação da actividade criminosa para um nível extremamente elevado.
18. Acresce que cumpre referir que atendendo aos elementos probatórios recolhidos nos autos, também é notório que o meio familiar do arguido AA não se revela minimamente contentor no sentido de afastar o recorrente da prática criminosa, sendo que as condutas do ora recorrente revelam uma personalidade com propensão para a prática de actos ilícitos, pelo que verificamos assim existência de um elevadíssimo perigo de continuação da actividade criminosa (art. 204.º, alínea c), do Código de Processo Penal).
19. Atenta a natureza e as circunstâncias da prática dos factos indiciados, entende-se assim que o recorrente revela uma personalidade violenta, desrespeitadora e indiferente aos valores protegidos pelas normas violadas, verificando-se assim o perigo de continuação da actividade criminosa.
20. Acresce que se verifica um intenso perigo de fuga, o arguido ausentou-se para parte incerta na ... após a prática dos factos, sendo expectável que o mesmo se permanecer liberdade, volte a ausentar-se de Portugal para paradeiro desconhecido como forma de eximir-se à acção da justiça.
21. Atendendo à gravidade dos factos em causa, situação cada vez mais frequente e susceptível de provocar forte insegurança social, bem como pela verificação de todas as circunstâncias de factos, o avultado perigo de continuação da actividade criminosa e do perigo de perturbação da ordem e tranquilidade pública e ainda o perigo de fuga, a prisão preventiva é a única medida de coacção capaz de assegurar as necessidades de natureza cautelar do caso concreto, revelando-se proporcional, necessária e adequada ao caso concreto.
22. Pelo exposto, mostram-se concretamente justificados e concretizados os perigos que motivaram a aplicação de uma medida de coacção de prisão preventiva ao ora recorrente, nos termos do artigo 204.° do Código de Processo Penal, não merecendo a decisão em recurso qualquer reparo, não violando assim o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, 21º, 28.º, n.º 2 e artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e artigos 191.º a 193.º e 204.º, 209.º, 204.º e 213.º todos do Código Processo Penal.
23. Resulta do despacho ora recorrido, que o Exmo. Juiz a quo fez uma ponderação da aplicação das medidas de coacção ao caso concreto, atendendo correctamente aos princípios de proporcionalidade, adequação e necessidade.
24. Atendendo a que o recorrente revela nos factos por que vem indiciado uma personalidade violenta, desrespeitadora e indiferente relativamente aos valores protegidos pelas normas violadas, atenta a natureza e as circunstâncias da prática dos factos já aqui expendidas, vislumbra-se um risco concreto de este continuar a praticar crimes violentos, pelo que uma medida de apresentações periódicas é manifestamente insuficiente pois o contacto com as autoridades policiais e judiciais não o irá desmotivar da prática de crimes violentos.
25. A medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com meios de vigilância, de controlo remoto, revela-se inadequada para a satisfação integral das exigências de prevenção e exigências cautelares verificadas em virtude de não acautelar a intensidade do perigo de continuação da actividade criminosa, já que teria de ser executada num meio familiar que não se apresenta minimamente contentor em face do concreto comportamento do ora recorrente que revela personalidade violenta, não sendo assim possível estabelecer um juízo de prognose favorável relativamente à eficácia desta medida de coacção.
26. Acresce que a proximidade geográfica da fronteira inviabiliza a aplicação de obrigação de permanecia na habitação, atenta à facilidade que o arguido teria em remover a pulseira electrónica e colocar-se em fuga para paradeiro desconhecido, eximindo-se com facilidade à acção da justiça.
27. A medida de coacção de prisão preventiva consubstancia a medida adequada, proporcional à significativa gravidade dos factos ilícitos praticados, bem como necessária e ajustada à concreta natureza e circunstâncias dos factos, bem como à personalidade do arguido, não se vislumbrando qualquer outra medida eficaz e menos gravosa para o ora recorrente.
28. Pelo que, bem andou o Tribunal a quo ao ter determinado a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva (191.°, 192.°, 193.°, 202.°, n.° 1, al. a) e b) e 204.°, alínea c) todos do Código de Processo Penal) ao arguido, decisão que está fundamentada de facto e de direito, não merecendo qualquer censura.
29. Termos em que se conclui pela manutenção da decisão recorrida, devendo assim o presente recurso ser julgado improcedente, devendo manter-se a medida de coacção de prisão preventiva ao ora recorrente.
Face ao exposto, é o nosso entendimento que não assiste assim razão ao recorrente AA, devendo ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se na íntegra o despacho judicial recorrido.
Porém, V. Exas., como sempre, farão melhor Justiça.
(fim de transcrição)
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Neste Tribunal da Relação, pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta foi emitido Parecer nos termos seguintes (transcrição parcial):
(...) Relativamente à invocada invalidada da prova por reconhecimento:
Coloca o recorrente em causa os autos de reconhecimento entendendo, ademais, que os dois indivíduos, que foram colocados em linha com o arguido, tinham compleição física diversa daquele – nomeadamente tinham cabelo curto, eram mais magros e baixos que o arguido, o que seria contrário ao preconizado pelo art.º 147º n.º 2 do CPP.
Conforme se constata do teor dos autos de reconhecimento, nestes é bem patente a chamada fase narrativa preliminar do reconhecimento visual.
Nesta fase cada uma das testemunhas descreveu as características físicas, retidas na sua memória, relativamente ao indivíduo de cujos comportamentos foram alvo.
A testemunha DD na sequência do questionamento efectuado de acordo com o disposto no artigo 417 n.º 1 do CPP descreveu o individuo como “um individuo mulato, alto, com rastas , que aparenta ter cerca de 20 anos de idade”, mais referiu conhecer o individuo em causa à cerca de 10 anos , tendo referido o seu nome e alcunha, logo o reconhecimento pessoal deste redunda numa comprovação, pois dúvidas não restavam da identidade da pessoa em causa, o que se veio a confirmar perante a identificação do arguido, na sequência da visualização deste na diligência de reconhecimento.
Por seu turno, a testemunha FF descreveu o individuo, no âmbito da intervenção prevista no artigo 417 n.º 1 do CPP como sendo mulato, com cerca de 1,90 metros de altura e de compleição física normal.
Nada referiu relativamente à existência ou não de rasta, identificou-o como sendo uma pessoa de compleição física “normal”. Logo a discrepância evidenciada pelo recorrente não tem eco na discrição que aquela testemunha efetuou, prévia à visualização dos três indivíduos a reconhecer.
Constata-se assim, que as diferenças que o recorrente alega existirem entre o arguido e as restantes duas pessoas, não foram determinantes relativamente ao resultado alcançado, na diligência de reconhecimento
Relativamente à invocada inconstitucionalidade do artigo 147 n.º 4 do CPP, acompanha-se também a resposta do Ministério Publico em 1º instância , sendo que, como pressuposto prévio para a apreciação do vicio invocado se deverá atentar na circunstância de o recorrente , em concreto , não ter identificado o principio constitucional e norma da constituição violada o que se lhe impunha.
Sustenta o recorrente, este seu entendimento, na circunstância de os intervenientes, ao não terem permitido ser fotografados nos termos previstos no artigo 147 n.º 4 do CPP, terem obstado à possibilidade de se aquilatar da verosimilhança exigida pelo n.º 2 do art.º 147º do CPP, não obedecendo assim o reconhecimento ao disposto no n.º 2 do artigo 147º do CPP , consequentemente não valendo como meio de prova , “por esta razão entende-se que é inconstitucional a norma do n.º 4º do artigo 147º do CPP quando interpretada no sentido de não ser obrigatório as pessoas que intervieram no reconhecimento serem fotografadas e as fotografias juntas aos autos.” (fim de citação)
Ora, desta argumentação logo salta à vista a não indicação de qualquer norma constitucional violada; não basta alegar um vicio genérico é preciso alegar e demonstrar em concreto em que medida a aplicação em concreto da norma em causa contraria preceitos fundamentais e em que medida. O que de todo foi alegado.
Relativamente à alegada da verificação do vicio de excesso de pronúncia previsto no artigo 379 n.º 1 do CPP, este vicio gizado para a sentença, não tem aplicação normativa relativamente ao despacho sob recurso.
Acompanhando a resposta apresentada, com estes apontamentos que considerámos apresentar, entendemos, dever o recurso improceder.
(fim de transcrição)
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo o arguido apresentado resposta.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
Daí o entendimento unânime de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo que apenas as questões aí resumidas deverão ser apreciadas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente os vícios previstos no n.º 2 do art. 410º do mesmo Código.
Em conformidade, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a questão a decidir no presente recurso reconduz-se essencialmente ao seguinte:
- da nulidade da decisão recorrida;
- se se verificam os pressupostos de facto e de direito da medida de prisão preventiva que aplicada, e se deverá substituir-se tal medida por outra medida de coacção.
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II. DO DESPACHO RECORRIDO
2.1. É o seguinte o teor do despacho recorrido, consignado no auto de interrogatório judicial de ...-...-2024, com a ref.ª citius ... (transcrição):
O arguido foi detido fora de flagrante delito por mandado emitido pelo Ministério Público. Uma vez interrogado judicialmente, negou genericamente os factos e crimes que lhe são imputados, admitindo ter estado presente no tempo e no lugar da primeira situação descrita, sem nada ter feito ou ter acontecido de ilícito, e contrapondo que o denunciante DD e os demais sujeitos que o acompanhavam fazem parte de um grupo que no passado lhe terá feito mal.
Segundo os ofendidos e as testemunhas relataram (DD, EE, FF, GG e HH), por testemunhos que se corroboraram entre si e foram corroborados parcial e substancialmente pelo testemunho de II, pelos relatórios periciais de balística e de avaliação do dano do ofendido DD, bem como do teor de imagens de videovigilância captadas do agente em fuga, os factos imputados ao arguido ocorreram nas circunstâncias de tempo, lugar e modo descritas na douta promoção do Ministério Público.
O teor dos autos de apreensão resultante das buscas autorizadas, corroborados pelas declarações do arguido a admitir a propriedade e posse dos respetivos bens, demonstra os demais factos vertidos nessa promoção a respeito dessas apreensões.
Segundo referido pelo ofendido DD, que aliás foi nessa parte corroborado pelo arguido, ambos se conheciam, o que a par do reconhecimento do arguido pelos ofendidos DD e FF, realizado segundo o formalismo escrito para a prova por reconhecimento, indicia sem margem de duvida que o arguido foi o autor dos crimes cometidos, incluindo aqueles executados contra pessoas mediante o uso de arma de fogo.
Segundo informação policial, devidamente corroborada pelas declarações do arguido, este sujeito não era titular de licença de uso de arma de fogo, pelo que a sua detenção, assim como de respetivas munições, foi ilícita, ilicitude essa que o arguido admitiu conhecer.
Tudo visto e ponderado, julgam-se fortemente indiciados os factos imputados ao arguido, contantes da promoção referida e transcritos em auto da presente diligência, os quais consubstanciam a prática por esse sujeito dos crimes que lhe são imputados, ora se dando por integralmente reproduzido o teor desses factos e do tipo e respetivas normas tipificadoras desses crimes, conforme vertidos na mencionada promoção.
Em causa está criminalidade violenta, cometida pelo uso de arma de fogo na via pública, cuja gravidade, perigosidade e consequente censurabilidade gera sentimento de insegurança e intranquilidade na comunidade, perturbando a ordem pública, sentimentos esses que são exacerbados caso o seu agente viva livremente no seio da comunidade.
Tal criminalidade foi cometida de um modo intensamente obstinado, revelando que o arguido tem personalidade violenta e beligerante que não conhece limites, designadamente éticos, que o demovam de cometer criminalidade violenta, caso permaneça em liberdade.
Por fim, pese embora o arguido o tenha negado, o facto é que, segundo resulta dos próprios autos policiais da marcha do processado, os crimes contra as pessoas remontam a ... do presente ano, o arguido eximiu-se a ser localizado até à sua recente detenção através da emigração para a ..., onde tem familiares, pelo que, sabendo a gravidade das penas em que incorrerá pela condenação nos presentes autos, cuja existência e prova agora conhece em detalhe, tenderá a sair novamente do território nacional para se eximir à justiça penal.
Daí o caso dos autos e do arguido oferecer perigo concreto de fuga, de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas (conforme artigo 204°, n. °1, als a) e c) do CPP), cuja eliminação somente é possível pela privação da sua liberdade pelas razões acima expostas.
A proximidade geográfica e temporal da fronteira inviabiliza a privação da liberdade por mera obrigação de permanecia na habitação, atenta à facilidade que teria o arguido em remover a pulseira eletrónica e colocar-se em fuga sem permitir à justiça penal a atempada localização do seu paradeiro antes da saída para o estrangeiro.
De resto, o crime de detenção de arma proibida foi igualmente cometido pelo arguido no interior da sua residência, o que poderia vir a fazer novamente de futuro, pelo que o seu confinamento domiciliário não eliminaria o perigo de continuação da atividade criminosa.
A prisão preventiva do arguido é admissível atento o tipo de criminalidade violenta e a moldura abstrata das penas aplicáveis, afigurando-se que essa medida de coação mais gravosa é, além de necessária pelas razões acima expostas, proporcional à pena de prisão efetiva que previsivelmente lhe será aplicada em julgamento.
Pelo exposto, nos termos do disposto nos artigos 191°, n.°1, 193°, n°1 e 2, 196°, 200°, n.°1, als a), b), d) e e) e 204°, n.°1, als a) e c), decide-se que o arguido AA aguardará os ulteriores termos do processo sujeito a prisão preventiva.
Emitam-se os competentes mandados de condução a EP, comunique-se ao TEP e aos ofendidos, devolvendo-se os autos aos serviços do Ministério Público. ”
(fim de transcrição)
*
2.2. Os crimes imputados ao arguido no despacho de apresentação, os factos considerados indiciados e os meios de prova indicados, para os quais remete o despacho recorrido, constantes do auto de ...-...-2024 (ref.ª citius ...), são os seguintes (transcrição):
- 1 (um) crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pela conjugação dos artigos 131.°, 132.°, n.° 1 e 2, alínea e) e 22.° e 23.°, todos do Código Penal, agravado, nos termos do artigo 86.°, n.° 3 e 4 da Lei das Armas (Lei 5/2006, de 23.02) conjugado com alíneas c) e d) do, n.° l do artigo 86.° do mesmo diploma legal;
- 1 (um) crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo disposto no artigo 86.°, n.°s 1, alíneas c) e d) e 2 por referência aos artigos 2.°, n.°s 1, da Lei das Armas (Lei 5/2006, de 23.02).
- 3 (três) crimes de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, previstos e punidos nos termos do artigo 143.°, n.° 1 e 145.°, n.° l, alínea a) do Código Penal conjugado com o artigo 132.°, n.° 2, alínea h) do Código Penal e artigo 23.° do mesmo diploma legal;
-1 (um) crime de ofensa à integridade física, agravado, nos termos do artigo 143.° do Código Penal e o artigo 86.°, n.° l, alínea d) e n.°3 e 4 da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro;
-1 (um) crime de detenção de arma proibida, previsto e punido, nos termos artigo 86.°, n.° l, alínea d) e n.°3 e 4 da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro.
-1 (um) crime de detenção de arma proibida, previsto e punido, nos termos artigo 86.°, n.° l, alínea d) e n.°3 e 4 da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro.
*
Factos imputados:
- Processo 256/24.3JDLSB-autos principais:
1. No dia ...-...-2024, entre as 20h00 e as 20h20, junto da ..., na ... ... nas ..., o arguido AA conhecido pela alcunha “...”, munido de um objecto semelhante a uma pistola, apto a disparar projécteis, avistou DD a subir um lance de escadas aí existente.
2. Acto contínuo, o arguido dirigiu-se em direcção de DD que se encontrava de costas voltadas.
3. No momento em que o alcançou pela rectaguarda, o arguido abordou o ofendido, proferindo- lhe a expressão “estás aqui a fazer o quê?”, o qual virou-se, ficando diante do arguido e nada disse.
4. De imediato, o arguido retirou o aludido objecto semelhante a uma pistola da cintura e exibiu- o a DD, e em simultâneo, proferiu-lhe novamente a expressão “estás aqui a fazer o quê”, o qual novamente nada respondeu.
5. Nesse momento, o arguido formulou o propósito de tirar a vida a DD.
6. Em execução de tal propósito, o arguido empunhou o aludido objecto semelhante a uma arma de fogo que havia municiado, apontando-o na direcção do corpo de DD, para a zona do tronco, onde sabia estarem alojados órgãos essenciais à vida do mesmo, que, se atingidos, poderiam causar a morte de DD.
7. Acto contínuo, o arguido efectuou sucessivamente dois disparos na direcção do corpo de DD, para zonas do corpo onde sabia estarem alojados órgãos essenciais à vida do mesmo, o qual se apercebeu e encetou fuga de imediato em passo de corrida, conseguindo esquivar-se.
8. Acto contínuo, enquanto empunhava o referido objecto semelhante a uma pistola na direcção do corpo de DD, o arguido seguiu em passo de corrida no encalce do ofendido, e em simultâneo, proferiu-lhe a expressão “não corre não corre”, o qual não acatou, continuando a encetar fuga em passo de corrida na direcção do ....
9. No momento em que chegaram junto ao aludido Posto de Abastecimento, o arguido apontou o referido objecto semelhante a uma pistola na direcção do corpo de DD que continuava a fugir em passo de corrida e efectuou sucessivamente dois disparos na direcção do corpo do mesmo, porém não o logrou atingir, por circunstâncias alheias à sua vontade.
10. Com a actuação descrita, o arguido previu e quis tirar a vida de DD, com insensibilidade e indiferença pela vida do mesmo, actuando sem aviso prévio, de forma traiçoeira e repentina, aproveitando-se da circunstância da perigosidade do objecto utilizado, tomando impossível a sua defesa quer pela surpresa do ataque, quer pela violência do mesmo, considerando e conhecendo as características do arma/objecto que utilizou, nomeadamente a perigosidade e letalidade da mesma e a sua idoneidade para causar a morte de DD, apontando-o para a zona corporal do ofendido, onde sabia estarem alojados órgãos essenciais à vida, bem sabendo que bem sabendo que a causa de conflito com a vítima era motivo irrisório e insignificante face à vida daquele e que jamais poderia justificar a sua acção.
11. O arguido só não logrou tirar a vida do ofendido DD, por circunstâncias alheias à sua vontade, mormente por o arguido não ter atingido o ofendido com os disparos.
12. Ao agir do modo descrito, o arguido conhecia as características da referida arma e munições, porém agiu com o propósito concretizado de ter em seu poder a mencionada arma e munições, sem que possuísse qualquer licença que o habilitasse ao porte, detenção e uso de tal arma e respectivas munições, bem sabendo que a respectiva detenção apenas era permitida às pessoas que são titulares de licença para o porte de arma a que a mesma se destina.
13. Ao agir do modo descrito, o arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Processo 311/24.0... apensado:
14. No dia ...-...-2024, cerca das 23h50, o arguido, munido de objecto não concretamente apurado, mas semelhante a uma arma de fogo apto a disparar projécteis, avistou os ofendidos EE, HH com a alcunha “Júnior”, FF, com alcunha “Baba” e GG a conviverem em frente à entrada do prédio n.° 10 sito na ..., dirigindo-se em direcção dos mesmos.
15. No momento em que se encontrava a cerca de 10 (dez) metros de distância, o arguido retirou do interior do bolso do casaco que trajava, um objecto não concretamente apurado, mas semelhante a uma arma de fogo apta a disparar projécteis, apontando-o na direcção dos corpos dos ofendidos EE, HH, FF e GG, e efectuou um disparo na direcção dos mesmos, não os logrando atingir, por circunstâncias alheias à sua vontade, os quais se aperceberam a tempo e encetaram fuga de imediato em passo de corrida, conseguindo esquivar-se.
16. Nesse momento, o arguido seguiu no encalce de EE, FF e de HH que se dirigiram em direcção da ..., virando à direita em seguida, porém EE acabou por tropeçar em FF e caiu no solo.
17. Apercebendo-se que EE se encontrava caído no solo, o arguido apontou o objecto semelhante a uma arma de fogo em direcção do corpo do mesmo e efectuou um disparo em direcção das pernas do ofendido, atingindo-o na região posterior da coxa direita com o projéctil disparado.
18. Nessa sequência, EE levantou-se com dificuldade, porém voltou a cair no solo, em frente ao n.° 145 da ..., enquanto FF e de HH continuavam a fugir em passo de corrida.
19. Acto contínuo, o arguido continuou a caminhar em direcção de EE.
20. No momento em que se encontrava a uma distância de três metros de EE, apontou novamente a dita arma de fogo na direcção do mesmo, e efectuou sucessivamente dois disparos, atingindo-o de raspão com um dos projécteis disparados na planta do pé esquerdo do ofendido.
21. Após, o arguido abandonou o local, encetando fuga em direcção da ....
22. Após a prática dos factos, o arguido abandonou o território nacional, viajando para a ..., regressando a Portugal em data não concretamente apurada, mas, em pelo menos, em ... do presente ano.
23. No dia ...-...-2024, pelas 11h00, o arguido foi sujeito a primeiro interrogatório judicial de arguido detido no âmbito do Processo 130/24.3..., cujos termos correram no âmbito do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa, Juiz 9, por se encontrar indiciado pela prática no dia .../.../2024, de um crime de homicídio agravado na forma tentada, p. e p. pelos arts.22° e 131° do Código Penal e art.86° n.°3 da Lei 5/2006, de 23.02 e um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.86° n.°l, c) e d) da Lei 5/2006, de 23.02, na sequência de desacatos perto da discoteca “...”, sita em ..., tendo sido lhe sida aplicada a obrigação de apresentação tri-semanal no posto policial da área da sua residência, às segundas, quartas e sextas-feiras com início no dia ........2024.
24. No dia ...-...-2024, pelas 07h30, no interior da habitação sita na ......, ..., o arguido tinha na sua posse, os seguintes objectos:
• em cima do colchão, um telemóvel da marca ..., modelo ..., com os IMEEs ... e ...;
• no interior da gaveta do móvel, três munições de calibre 6.35 mm. com a inscrição “GECO”;
• 1 (um) casaco de cor azul claro, com capuz, da marca “...” que o arguido trajava aquando da prática dos factos no dia .../.../2024, conforme descrição do ofendido DD.
25. No dia ...-...-2024, pelas 08hl5, o arguido tinha no interior do veículo ligeiro de passageiros, da marca ..., modelo ..., de cor branca, com matricula BF-..-RL, estacionado em frente ao n.° 9 da ..., uma balaclava e um fuste de uma espingarda caçadeira, tendo sido a respectiva arma de fogo apreendida no âmbito do Processo 130/24.3...
26. O arguido não detinha licença de uso e porte de arma, trazendo consigo as referidas munições sem se encontrar autorizado, por autoridade legalmente competente.
27. Em virtude das lesões que foram causadas, EE foi conduzido no ... por II, tendo sido sujeito a intervenção cirúrgica, tendo- lhe sido removido projéctil do membro inferior direito.
28. Em consequência directa e necessária dos disparos, o ofendido EE sofreu dores e lesões nas zonas atingidas, apresentando traumatismo de natureza contusoperfurante, nomeadamente:
• membro inferior direito: porta de entrada na face posterior da coxa, sem porta de saída, com palpação de projéctil na região interna do joelho que foi extraído;
• membro inferior esquerdo: porta de entrada na planta do pé, sem porta de saída.
29. Em consequência directa e necessária dos disparos, o ofendido EE ficou com as seguintes sequelas:
• Membro inferior direito: cicatriz ovalada, acastanhada, no terço médio da face posterior da coxa, com 2 (dois) centímetros de diâmetro [porta de entrada]; cicatriz cirúrgica, nacarada, na face interna do joelho, com 2 (dois) centímetros de comprimento [local da extracção cirúrgica]; 2 (duas) cicatrizes rosadas na face anterior do joelho, com 3 (três) centímetros de diâmetro cada [referida a queda no chão, tipo gravilha]; sem limitação da mobilidade do joelho;
• Membro inferior esquerdo: área cicatricial rosada, em toda a face anterior do joelho [referida a queda no chão, tipo gravilha]; cicatriz acastanhada na região posterior da arcada plantar, com 2 (dois) cm de diâmetro [porta de entrada e saída]; sem limitação da mobilidade do joelho ou do pé.
30. Tais lesões determinaram 30 (trinta) dias para consolidação médico-legal.
31. Ao agir do modo descrito, o arguido actuou sem aviso prévio, com o propósito concretizado de lesar o corpo e a saúde dos ofendidos EE, HH, FF e GG, bem como causar-lhe dores e lesões, utilizando para o efeito, arma de fogo com munições por forma a tomar impossível a defesa por parte dos ofendidos, quer pela surpresa do ataque, considerando e conhecendo as características do instrumento que utilizava.
32. Ao agir do modo descrito de 14 a 21, o arguido conhecia as características da arma de fogo e munições que detinha e usou, bem sabendo que são objectos cuja detenção, transporte e uso não lhes eram permitidos por não ser titular de licença de uso e porte de arma.
33. Ao actuar do modo descrito a 24, o arguido agiu com o propósito concretizado de ter em seu poder as referidas munições, sem que possuísse qualquer licença que o habilitasse ao porte, detenção e uso de tais munições, bem sabendo que a respectiva detenção apenas era permitida às pessoas que são titulares de licença para o porte de arma a que a mesma se destina.
34. Ao agir do modo descrito, o arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
Os factos resultam indiciados dos seguintes meios de prova:
PROVA:
TESTEMUNHAL:
- Processo 256/24.3JDLSB:
• DD, melhor identificado a fls. 9.
- Processo 311/24.0... apensado:
• EE, melhor identificado a fls. 35 a 38.
• II, melhor identificada a fls. 41 a 42.
• FF, melhor identificado a fls. 55 a 58.
• GG, melhor identificado a fls. 61 a 63.
• HH, melhor identificado a fls. 76 a 78.
• DD, melhor identificado a fls. 81.
PROVA POR RECONHECIMENTO:
- Processo 256/24.3JDLSB:
• auto de reconhecimento de pessoas de fls. 85 a 88.
• auto de reconhecimento de pessoas de fls. 93 a 96.
PERICIAL:
- Processo 311/24.0... apensado:
• Relatório de exame pericial de fls. 73 a 74.
• Relatório de exame pericial de fls. 115 a 117.
• Informação da PSP de fls. 118.
• Expediente de fls. 120 a 123.
DOCUMENTAL:
- Processo 256/24.3JDLSB:
• Auto de denúncia de fls. 9 a 12.
• Perfil de Instagram de fls. 15 a 16.
• Auto de informação de fls. 19 a 20.
• Informação do T-Menu de fls. 21.
• certificado do registo criminal de fls. 28.
• Informação da Segurança Social de fls. 29.
• Auto de diligência de fls. 52.
• Auto de diligência de fls. 56 a 57.
• Auto de busca e apreensão de fls. 60.
• Reportagem fotográfica de fls. 61 a 63.
• Auto de busca e apreensão de fls. 66 a 67.
• Reportagem fotográfica de fls. 68 a 69.
• Auto de exame directo de fls. 77 a 84.
• Autos de interrogatório judicial no âmbito do Processo 130/24.3... de fls.
- Processo 311/24.0... apensado:
• Auto de notícia de fls. 4.
• Aditamento n.° 5.
• Comunicação de notícia de crime de fls. 9 a 11.
• Ficha de identificação civil de fls. 12.
• Auto de diligências iniciais de fls. 13 a 16.
• Auto de apreensão de fls. 18.
• CD de fls.51.
• Auto de visionamento de imagens de fls. 52 a 54.
• 3 DVD de fls. 66 a 67.
• Auto de visionamento de imagens de fls. 68 a 71.
• Perfil de Instagram de fls. 84 a 85.
• Auto de informação de fls. 86 a 87.
• Pesquisa do T-Menu de fls. 88 a 89.
• Auto de informação de fls. 90 a 92.
• Resposta de fls. 94 a 96.
(fim de transcrição)
**
Resulta ainda dos autos que:
- Em ...-...-2024 o arguido apresentou requerimento nos autos (ref.ª citius 26867894), dirigido ao Ex.mo Senhor Procurador, com o seguinte teor:
No dia .../.../2024, o arguido foi sujeito a reconhecimento pessoal na Polícia Judiciária-Directoria de Lisboa.
Nos termos do artº. 147º Código de Processo Penal, “chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento.”
Ora, o arguido tem rastas até ao ombros, no entanto os dois figurantes, apesar de afro descendentes tinham o cabelo curto e no que respeita a compleição física, muito mais magros que o arguido.
Além disso, não foi dado cumprimento ao nº 1 do mencionado artigo que consagra: “solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação.”
Os ofendidos não explicaram as circunstâncias em que os factos ocorreram, nem
como era a pessoa que os abordou, a sua altura, como vestia, assim como também não mencionaram que alguns deles conheciam o AA desde os tempos de escola.
O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer, termos em que não pode ser valorizado os reconhecimentos positivos de AA.
- Tal requerimento foi apreciado pela Ex.ma Magistrada do Ministério Público através do despacho de ...-...-2024 (ref.ª citius ...), que ora se transcreve:
Requerimento constante da referência electronica 26867894 de ...-...-2024:
O arguido veio invocar que os reconhecimentos pessoais efectuados não foram realizados com observância do artigo 147.º, n,1 e 2 do CPP, nomeadamente os mencionados no n.º 1 e 2, do Art.º 147.º, do CPP, uma vez que as pessoas apresentadas não constituem semelhanças físicas ao arguido/suspeito e, por conseguinte, não tem valor como meio de prova, não podendo ser valorizado.
Como resulta dos autos de reconhecimento de fls.85 a 88 e 93 a 96 e por confronto com o artigo 147.º do Código de Processo Penal, os reconhecimentos pessoais do arguido foram realizados com estrita observância do formalismo imposto pelo referido artigo.
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 147.º, nº1 do Código Processo Penal.
No que concerne à alegada violação do disposto no artigo 147.º, nº 2 do CPP, cumpre salientar que a ausência das maiores semelhanças possíveis entre o arguido e os figurantes da linha de reconhecimento que o arguido invoca para concluir pela nulidade ou, em bom rigor, pela ausência de valor dos reconhecimentos pessoais efectuados não se verifica.
A exigência da existência das maiores semelhanças possíveis entre os participantes no reconhecimento visa garantir, por um lado, que entre eles não existam assimetrias acentuadas, mormente em razão do género, da raça e mesmo da sua aparência externa, como seja em relação ao vestuário, que viciem esse reconhecimento presencial.
E visa garantir, por outro lado, que não sejam criadas ou induzidas circunstâncias, tanto no início como no decurso desse reconhecimento, que possam falsear essa identificação individual.
A exigência das "maiores semelhanças possíveis", respeita àqueles traços que permitem uma maior correspondência em razão do género, da raça, da compleição ou da estrutura física, como também do vestuário, e que sejam naturalmente exequíveis.
Tal referência significa apenas que as pessoas colocadas juntamente com o suspeito devem apresentar algumas semelhanças físicas com este, de molde a garantir que o escolhido ou identificado - se o houver - corresponda ao verdadeiro autor dos factos.
Para isso, terá a pessoa que faz o reconhecimento de estar verdadeiramente consciente da responsabilidade do acto, só devendo apontar o dedo quando está de facto convencido, com base nas características que reteve do autor do crime, que este está entre as pessoas a identificar e é a pessoa que concretamente identifica. Caso contrário, terá de dizer claramente que não reconhece o autor dos factos entre os presentes, ou, tendo dúvidas, deverá manifestá-las e tal menção deverá constar do auto respectivo.
Nos reconhecimentos postos em causa existe a exigida correspondência de género e raça.
Verifica-se, pois, que nos reconhecimentos pessoais realizados foram respeitadas todas as formalidades exigidas, designadamente no que respeita à existência das "maiores semelhanças possíveis" entre o arguido e os figurantes.
A este propósito, conforme mencionado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, sendo relator o Exm.º Senhor Juiz Conselheiro Santos Carvalho, disponível em www.dgsi.com “a semelhança dos indivíduos sujeitos ao ato de identificação não é um requisito essencial da validade do ato, pois o que se pede é que as pessoas (duas, pelo menos) que se chamam ao ato apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive no vestuário, com a pessoa a identificar (art.º 147.º, n.º 2, do CPP). I - Assim, para além de se poder dizer que a “semelhança” nem sempre é objectivável, também nem sempre são possíveis as condições necessárias para a obter. E, por isso, a alegada ausência de semelhança dos indivíduos sujeitos ao reconhecimento não torna nula a prova obtida, de resto só existente quando se usam os meios proibidos de prova enunciados no art.º 126.º do CPP, antes acarreta uma maior fragilidade na livre apreciação que o julgador deve fazer das provas obtidas, nos termos do art.º 127.º do CPP, a ponto de poder nem ter qualquer valor (art.º 147.º, n.º 4).”
Alega o arguido as dissemelhanças: o tamanho do cabelo e a corpulência.
Conforme consta dos autos de reconhecimento de fls. de fls. 85 a 88 e 93 a 96, os intervenientes não autorizaram ser fotografados, ao abrigo do disposto no n.º 4 pelo que as características quanto ao cabelo e corpulência não podem ser aqui apreciadas.
Não obstante, ainda que existisse essa diferença, tal não invalida o reconhecimento efectuado ao arguido, o qual foi realizado com observância de todos os formalismos legais enunciados no art.º 147.º do Código de Processo Penal, não padecendo de qualquer nulidade ou irregularidade.
Por outro lado, caso no decurso da diligência de reconhecimento seja cometida qualquer irregularidade terá a mesma de ser suscitada de imediato, no próprio acto, sob pena de ficar sanada (artigo 123.º do Código de Processo Penal), ou se for detectada alguma desconformidade no respectivo auto.
A falta de verificação dos requisitos legais que estipulam a realização da diligência de reconhecimento não se trata de nulidade. Ainda que se entendesse que se trataria de uma nulidade, sempre teria a mesma de ser arguida antes de o acto estar terminado, uma vez que o arguido e o seu Defensor no mesmo estavam presentes. Do que resulta dos autos de reconhecimento, o arguido foi sujeito a tal diligência de prova acompanhado do seu Defensor.
Dos mencionados reconhecimentos foram lavrados os respectivos autos, que constam do processo, em que o ilustre defensor do arguido esteve presente, não constando que tenha sido suscitada qualquer nulidade ou irregularidade do referido acto processual.
Aqueles autos devem dar a conhecer o que realmente se passou e, se foram lavrados com determinado conteúdo, em que os intervenientes nada suscitaram, é porque estes aceitaram que as coisas se passaram como neles se descreve.
A desconformidade do conteúdo do auto podia e devia ter sido invocada pelo ilustre defensor na própria diligência. Desse modo afigura-se que não tendo sido arguida essa desconformidade no próprio acto, é agora a mesma insusceptível de ser sindicada porquanto o Ministério Público não esteve presente na referida diligência, devendo dar por bom o conteúdo do auto.
Pelo exposto, não se verifica a nulidade arguida nem qualquer irregularidade que, a verificar-se, sempre se encontraria sanada por falta de arguição atempada nos termos previstos no artigo 123.º do Código de Processo Penal.
***
III. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
3.1. Da nulidade da decisão recorrida
Argumenta o recorrente que: Não existem, em concreto, os perigos de fuga, de perturbação do inquérito ou de aquisição da prova, não são indicados factos concretos pelo que, sob o art.° 204.° CPP, o Despacho é nulo, cff. art.°s 202.° e 205.° da Lei Fundamental e 97.° n.° 5 do CPP.
Com relevância para tal questão, dispõe o n.º 6 do art. 194º do Código de Processo Penal que:
6 - A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade:
a) A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo;
b) A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime;
c) A qualificação jurídica dos factos imputados;
d) A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204.º
Contudo, a nulidade decorrente do incumprimento de tal normativo legal no despacho que aplica a medida de coacção, consubstancia uma nulidade dependente de arguição, na medida em que não elenca nenhuma das invalidades insanáveis previstas no art. 119º do mesmo Código.
Ora, de acordo com o art. 120º do Código de Processo Penal:
Nulidades dependentes de arguição
1 - Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.
2 - Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:
a) O emprego de uma forma de processo quando a lei determinar a utilização de outra, sem prejuízo do disposto na alínea f) do artigo anterior;
b) A ausência, por falta de notificação, do assistente e das partes civis, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;
c) A falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória;
d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.
3 - As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas:
a) Tratando-se de nulidade de acto a que o interessado assista, antes que o acto esteja terminado;
b) Tratando-se da nulidade referida na alínea b) do número anterior, até cinco dias após a notificação do despacho que designar dia para a audiência;
c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito;
d) Logo no início da audiência nas formas de processo especiais.
Consequentemente, a existir falta ou insuficiência de fundamentação no despacho recorrido, susceptível de gerar a sua nulidade, tal nulidade deveria ter sido arguida pelo ora recorrente antes de terminar o acto no qual tal despacho foi proferido nos termos da alínea a) do n.º 3 do citado art. 120º, como vem decidindo de forma pacífica a jurisprudência das Relações, o que não sucedeu [(v. entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02-05-2024, no Processo n.º 7/24.2JBLSB-A.L1-9 (Relatora: FERNANDA SINTRA AMARAL), o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-04-2023, no Processo n.º 4202/20.5JAPRT-A.P1 (Relator: JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO), Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20-10-2020, no Processo n.º 185/17.7JDLSB-B.E1 (Relator: GILBERTO DA CUNHA), Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-12-2022, no Processo n.º 106/21.2PILRS-A.L1-5 (Relatora: CARLA FRANCISCO; e ainda o acórdão de 19-12-2024, desta mesma 9ª secção, relatado pela aqui relatora no processo n.º 519/23.5JELSB-B.L1, todos disponíveis em www.dgsi.pt, assim como os demais infra citados].
Sempre se dirá, contudo, que não se detecta no despacho recorrido a invocada falta de fundamentação, pois nele são indicados os factos indiciados, os elementos de prova indiciária considerados e valorados, a qualificação jurídica dos factos, bem como constam do mesmo despacho as conclusões de facto extraídas dos factos indiciados, para fundamentar a existência dos perigos em concreto tidos por verificados, e bem assim as razões de facto e de direito que fundamentam a aplicação da prisão preventiva em detrimento de uma qualquer outra medida de coacção.
Se as razões de facto apontadas são ou não suficientes para alicerçar a decisão, tal traduz um juízo que respeita já a um erro de direito e não à sua falta de fundamentação.
De qualquer modo, pelos motivos acima expostos, ainda que alguma nulidade se verificasse, a mesma integraria uma invalidade dependente de arguição, a qual não foi arguida pelo recorrente tempestivamente no acto de diligência em que o despacho recorrido foi proferido, pelo que a mesma sempre deveria considerar-se sanada.
Consequentemente, improcede quanto a esta questão o recurso.
*
Não obstante ausente da motivação, invoca o recorrente a nulidade do despacho recorrido por excesso de pronúncia, ao concluir que:
- Ao fundamentar a necessidade de prisão com a eventual incumprimento por parte do arguido - e a possibilidade de o mesmo continuar actividade criminosa, perturbação do inquérito e a possibilidade de fugir para a ..., não tem qualquer fundamento!
- Argumento que não pode - ou não deve ser considerado por partir de uma suspeita não verificada, de uma mera convicção/suposição da instância e ainda porque é certo que estando sujeito a obrigação de permanência na habitação com meios de vigilância eletrónica, todos estes supostos perigos caiem por terra.
- Por isso - ao conhecer do que não podia ou não devia conhecer - foi cometida, no douto despacho recorrido, a nulidade de excesso de pronúncia - art.° 379.° n.° 1 alínea c) do CPP..
Para o que aqui releva, preceitua o art. 379º do Código de Processo Penal que:
Nulidade da sentença
1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Tal normativo legal reporta-se de forma cristalina apenas à sentença e não aos simples despachos.
Ora, face ao que dispõe o art. 97º/1 do Código de Processo Penal, a decisão recorrida consubstancia um simples despacho, pois que não conheceu a final do mérito da causa, pelo que a nulidade a que alude o citado normativo não lhe é aplicável, tal como evidencia a Ex.ma Senhora Procuradora Geral Adjunta no seu douto Parecer.
De qualquer modo, sempre se dirá que o excesso de pronúncia, quando reportado a um simples despacho e atento o disposto nos art.s 118º e 123º do mesmo Código, traduziria uma simples irregularidade, a ser arguida nos termos e prazo previstos neste último dispositivo legal, o que não sucedeu.
Consequentemente, ainda que se tivesse verificado excesso de pronúncia, tal vício sempre deveria considerar-se sanado, sendo insusceptível de ser arguido, como foi, apenas em sede de recurso.
Termos em que improcede manifestamente a arguida nulidade por excesso de pronúncia.
*
3.2. Se se verificam os pressupostos de facto e de direito da medida de prisão preventiva aplicada, e se deverá substituir-se tal medida por outra medida de coacção
A aplicação da prisão preventiva encontra-se sujeita a critérios de legalidade, sendo a sua natureza excepcional e subsidiária expressamente estatuída no n.º 2 do art. 28º da Constituição da República Portuguesa.
Tal subsidiariedade e excepcionalidade mostra-se densificada na lei processual penal.
Assim, dispõe do art. 193º do Código de Processo Penal, na parte que aqui releva, que:
Princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade
1 - As medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
2 - A prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção.
3 - Quando couber ao caso medida de coacção privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares.
Os casos de admissibilidade da prisão preventiva encontram-se estabelecidos no art. 202º do Código de Processo Penal, dependendo a sua aplicação da inadequação e insuficiência das demais medidas de coacção previstas na lei processual penal, devendo ser aplicada apenas como ultima ratio.
Assim, ainda que ao caso deva ser aplicada medida de coacção privativa da liberdade, sempre deverá ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação quando esta medida se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares que no caso se façam sentir (cfr. n.º 3 do art. 193º supra transcrito).
Para além disso, como resulta expressamente do disposto no art. 202º/1 do Código de Processo Penal, a prisão preventiva pressupõe a verificação da existência de fortes indícios da prática do crime imputado e que este se enquadre no elenco daqueles aí previstos.
Os fortes indícios a que se reporta tal normativo reconduzem-se, similarmente, ainda que em fases processuais distintas e em que os elementos probatórios recolhidos serão necessariamente de dimensão diferente, aos indícios suficientes susceptíveis de sustentar uma acusação ou uma pronúncia (v. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15-12-2016, proferido no processo n.º 799/16.2PAOLH-A.E1; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-02-2023, proferido no processo n.º 1142/22.7JACBR-B.C1, disponível em www.dgsi.pt, assim como os demais infra citados).
A aplicação da medida de coacção numa fase embrionária do processo, ainda em investigação, não exige obviamente a formulação de um juízo de certeza quanto à culpabilidade do arguido nos mesmos termos em que este é exigível na fase de julgamento.
Contudo, a aplicação de uma medida restritiva da liberdade não poderá fundar-se em meras suspeitas ou num juízo de mera probabilidade: forçoso será, para que seja legalmente permitida a imposição de tal medida de coacção, que a prova recolhida seja suficiente para permitir uma convicção de uma muito provável condenação do arguido.
Ou seja, que em face dos elementos de prova indiciários já disponíveis, seja legítimo concluir, com razoabilidade e com um alto grau de probabilidade, que o arguido praticou os factos que lhe são imputados.
Na formulação exarada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-08-2018, proferido no processo n.º 142/17.3JBLSB-A.S1, que aqui, com a devida vénia, transcrevemos: Quando na fase de inquérito, para a fixação da medida de coacção da prisão preventiva, se alude, como no art. 202.º, n.º 1, als. a) a e) a fortes indícios, o que se pretende é inculcar a ideia de que o legislador não permite que se decrete a medida com base em meras suspeitas mas exige que haja já sobre a prática de determinado crime uma «base de sustentação segura» quanto aos factos e aos seus autores que permita inferir que o arguido poderá por eles vir a ser condenado e que, por conseguinte, essa base de sustentação deverá ser constituída por «provas sérias», provas que deixem uma impressão já nítida da responsabilidade do arguido objectivadas a partir dos elementos recolhidos. Sendo diferente o contexto probatório em relação ao (primeiro) momento da aplicação da medida de coacção e ao momento da acusação, poderá então afirmar-se que de certo modo se equivalem o conceito de «fortes indícios» usado no art. 202.º e o de «indícios suficientes» explicitado no art. 283.º, n.º 2 CPP: aqueles como estes pressupõem a possibilidade de ao arguido vir a ser aplicada em julgamento uma pena, devendo ter idoneidade bastante para tal. Mas aferida essa idoneidade pela circunstância de serem usados perante realidades processuais distintas. “Fortes indícios” tendo em conta que a medida de coacção é fixada ainda numa fase de aquisição da prova configurando-se esse conceito como uma exigência de que ela não se apoie numa débil consistência probatória mas antes em elementos probatórios já de solidez suficiente embora porventura não bastantes ainda para deduzir uma acusação. “Indícios suficientes” no sentido em que, finda essa fase de investigação e aquisição da prova eles terão então de possuir, força necessária e solidez vincada, para deles resultar uma possibilidade razoável de em julgamento ser aplicada uma pena ao arguido.
No caso em análise, o recorrente invoca, em síntese, o seguinte:
- O reconhecimento que não obedecer ao disposto no artigo 147° do Código de Processo Penal não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer, pelo que não deveriam ter sido valorizados os reconhecimentos positivos de AA;
- Não se prevendo a presença do Juiz na diligência de reconhecimento e tendo este o dever de averiguar se a prova foi validamente adquirida, a junção de fotografias ao processo não deveria ser facultativa e sim, obrigatória, na medida em que consiste na única possibilidade do tribunal controlar o cumprimento dos requisitos do artigo 147.° n.° 2 CPP, tanto no aspeto do número de intervenientes, como no aspeto das semelhanças;
- O reconhecimento realizado nos autos viola as regras estabelecidas no art.° 147.°, n.° 2 do CPP, uma vez que as pessoas que intervieram no reconhecimento não apresentavam semelhanças com a pessoa a identificar;
- Entende-se que é inconstitucional a norma do n.° 4 do art.° 147° do CPP quando interpretada no sentido de não ser obrigatório as pessoas que intervieram no reconhecimento serem fotografadas e as fotografias juntas aos autos;
- O ato de reconhecimento começa por uma descrição da pessoa a reconhecer, realizada pela pessoa que procede ao reconhecimento, através da qual ela indica todos os pormenores dessa pessoa de que se recorda;
- Ora, nada disto consta dos autos de reconhecimento mencionados, só casualmente se podendo extrair dos depoimentos que indevidamente se inseriram nos autos um ou outro desses elementos;
- Mesmo admitindo, no limite interpretativo, a existência de indícios quanto á prática, pelo arguido dos crimes imputados, a medida de coação a aplicar deveria ser a de obrigação de permanência na habitação sob vigilância eletrónica (art.° 201.° do CPP) dado o arguido encontrar-se inserido socialmente, ser primário e ser ainda muito jovem.
O recorrente insurge-se assim relativamente à existência de fortes indícios quanto aos crimes que lhe foram imputados, alicerçando a sua argumentação, essencialmente, na arguida invalidade da prova por reconhecimento produzida nos autos.
Vejamos então.
Relativamente aos factos indiciariamente ocorridos no dia ...-...-2024, dos quais foi vítima o ofendido DD, na análise dos meios de prova indiciários recolhidos e expressamente mencionados na decisão recorrida, inexistem dúvidas sobre a sua suficiência, sendo os mesmos inequívocos quanto à imputação ao aqui recorrente dos factos indiciados que lhe correspondem.
Com efeito, recorde-se que se consignou na decisão recorrida, além do mais, que:
(…) Segundo referido pelo ofendido DD, que aliás foi nessa parte corroborado pelo arguido, ambos se conheciam, o que a par do reconhecimento do arguido pelos ofendidos DD e FF, realizado segundo o formalismo escrito para a prova por reconhecimento, indicia sem margem de duvida que o arguido foi o autor dos crimes cometidos, incluindo aqueles executados contra pessoas mediante o uso de arma de fogo.
Vista a prova indiciária indicada, terá de conclui-se como concluiu o tribunal a quo, quanto à manifesta existência de fortes indícios quanto aos factos ocorridos no mencionado dia ...-...-2024.
Acrescenta-se que, sendo o arguido pessoa conhecida daquele ofendido, e tendo este identificado ab initio o aqui recorrente como o autor daqueles, inexiste qualquer dúvida sobre a sua identificação por parte do ofendido.
Recorde-se que no seu depoimento, realizado em ...-...-2024, declarou além do mais o ofendido DD que:
(…) Quando chegaram perto do ..., o depoente conseguiu ver melhor o suspeito que o perseguia, uma vez que o local estava mais bem iluminado. Percebeu que se tratava de um jovem de nome AA, mais conhecido pela alcunha de “...”, o qual conhece há mais de 10 anos, uma vez que este em tempos viveu nas ... (…).
Quanto ao suspeito, de nome AA, mais conhecido pela alcunha de “...”, descreve-o como sendo um indivíduo mulato, alto, com rastas, com cerca de 20 anos de idade. No dia dos factos, trajava um fato de treino de cor preta, com um casaco por cima, da marca ... e de cor azul clara. Trazia uma bolsa à cintura, de cor preta e com o símbolo da ... a branco. Usava uns ténis também da marca ..., modelo ..., de cor preta .
Sabe que o ... em tempos viveu nas ... juntamente com o pai, que, entretanto, faleceu, talvez há dois ou três anos. Depois da morte do pai, o ... esteve preso num “colégio” ou mesmo em estabelecimento prisional, não sabe ao certo. Atualmente residirá no ..., com familiares, julga que com uma tia.
Face a tal depoimento, é inequívoco que o ofendido conhecia o arguido e desde logo o identificou, previamente à realização da prova por reconhecimento prevista no art. 147º do Código de Processo Penal que veio posteriormente a efectivar-se no dia ...-...-2024.
Por outro lado, do auto de reconhecimento consta além do mais que:
Na sequência das declarações prestadas a fls. 9-12, foi solicitado à testemunha que descrevesse a pessoa a identificar, com indicação de todos os pormenores que se recorda, tendo dito que: era um indivíduo mulato, alto, com rastas, que aparenta ter cerca de 20 anos de idade.
Perguntada sobre se já conhecia a pessoa ou se já a tinha visto antes ou depois do crime, quando e em que condições, a mesma disse que: o conhece há mais de 10 anos, uma vez que durante um período da sua vida essa pessoa residiu nas ..., tal como o ofendido. Sabe que se chama AA, sendo mais conhecido pela alcunha de "...".
Interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação, disse: Nada ter a acrescentar.
(…)
Colocada a testemunha perante a fila assim constituída, foi-lhe pedido que observasse bem as pessoas que se encontravam perante si e que dissesse se reconhecia alguma delas e qual.
Após observação cuidada, disse: Que reconhecia, para além de toda a dúvida, o indivíduo identificado com o n.° 1 correspondente a AA, como autor do crime de que foi vítima, o indivíduo que efetuou vários disparos de arma de fogo contra si.
Sucede que o reconhecimento assim efectuado, apenas confirma o que já decorria do depoimento prestado anteriormente pelo ofendido.
Em bom rigor, a prova por reconhecimento prevista no art. 147º do Código de Processo Penal mostrava-se em concreto desnecessária com vista à identificação do autor dos factos em questão.
Com efeito, o art. 147º do Código de Processo Penal dispõe que:
Reconhecimento de pessoas
1 - Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação.
2 - Se a identificação não for cabal, afasta-se quem dever proceder a ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual.
3 - Se houver razão para crer que a pessoa chamada a fazer a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento e este não tiver lugar em audiência, deve o mesmo efectuar-se, se possível, sem que aquela pessoa seja vista pelo identificando.
4 - As pessoas que intervierem no processo de reconhecimento previsto no n.º 2 são, se nisso consentirem, fotografadas, sendo as fotografias juntas ao auto.
5 - O reconhecimento por fotografia, filme ou gravação realizado no âmbito da investigação criminal só pode valer como meio de prova quando for seguido de reconhecimento efectuado nos termos do n.º 2.
6 - As fotografias, filmes ou gravações que se refiram apenas a pessoas que não tiverem sido reconhecidas podem ser juntas ao auto, mediante o respectivo consentimento.
7 - O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer.
O reconhecimento presencial previsto em tal normativo tem por subjacente e como pressuposto a necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, como de forma cristalina se prescreve no n.º 1 do dispositivo legal citado.
Tal necessidade só surge quando a pessoa a identificar é desconhecida da pessoa que irá proceder à identificação, ou seja, sempre que a pessoa a identificar é conhecida, por ter alguma relação de parentesco ou amizade com a pessoa que vai proceder à identificação, ou quando, por qualquer outra razão, a pessoa a identificar é perfeitamente conhecida, não há que proceder a este meio de prova específico, pois, nesse caso, o reconhecimento reconduz-se apenas em afirmar que a pessoa identificada é aquela, inexistindo para quem a identifica qualquer dúvida sobre quem é a pessoa em causa, ainda que não lhe conheça o nome ou outros elementos de identificação, ocupação ou morada.
O meio de prova em questão apenas deverá ter lugar quando a pessoa a identificar é de todo desconhecida da pessoa que irá realizar a identificação, ou seja, quando esta nunca a haja anteriormente visto e apenas tenha com ela contactado ou a visualizado na ocasião em que os factos criminosos ocorreram, sendo então necessário identificar quem sejam os autores de tais factos.
Nestas circunstâncias, quem haja sido vítima ou tenha presenciado os factos sob investigação, tendo visualizado o seu autor ou autores, terá de proceder ao seu reconhecimento, recorrendo apenas à sua memória visual, com vista a tentar identificar o possível agente ou agentes dos factos cometidos.
É apenas nestas peculiares circunstâncias que este específico meio de prova assume a sua relevância, muitas vezes determinante, para a identificação dos autores dos factos em investigação.
Em suma, sempre que o autor ou autores dos factos ilícitos sejam conhecidos da vítima, porque esta já os viu anteriormente e sabe perfeitamente quem são, não há lugar, porque desnecessário, ao reconhecimento presencial formal a que se reporta o citado normativo.
Como se elucida no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º , disponível em www.tribunalconstitucional.pt : este meio de prova não pode confundir-se, na sua essência, com a prova testemunhal e com o juízo de imputação subjectiva que neste domínio seja efectuado.
Não há dúvida de que entre a "prova por reconhecimento" e a "prova testemunhal" existem diversos "pontos de contacto" (cf. JJ, "La ricognizione personale: struttura ed efficacia", cit., p. 775 e Massimo Ceresa Gastaldo, "La ricognizione personale "attiva" all’esame della Corte Costituzionale: facoltà di astenzione o incompatibilità del coimputato", in Rivista italiana di diritto e procedura penale, 1, ..., p. 264).
Desde logo, pode dizer-se que um testemunho, enquanto "juízo" de imputação fáctica, implica sempre um "reconhecimento" de um determinado sujeito – recte, uma individualização concretizadora ou um acto de identificação directa [cf. JJ, "La ricognizione personale: struttura ed efficacia", cit., p. 773, n. 173; v. também Daniela Vigoni, "La ricognizione personale", cit., p. 183; KK/Vittorio Grevi, Commentario breve al Nuovo Codice di Procedura Penale, Pádua, ..., pp. 213 e ss.; Tommaso Rafaraci, "Ricognizione informale dell'imputato e (pretesa) fungibilità delle forme probatorie" – nota a Cass. sez. II pen. 28 febbraio 1997 – in Cassazione Penale, n.º 6, ..., pp. 1739-1747].
Contudo, não podem olvidar-se as diferenças qualitativo-funcionais entre estes dois domínios probatórios.
Desde logo, importa ter presente o pressuposto específico – que autonomiza o reconhecimento e o erige como meio de prova – traduzido num inequívoco juízo de necessidade, direccionado, como se disse, ao esclarecimento de uma situação de incerteza subjectiva, em termos de a ele se recorrer apenas "quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa" (v. Alberto Medina de Seiça, "Legalidade da prova e reconhecimentos "atípicos" em processo penal..., cit., p. 1413).
E se este juízo permite distinguir a valoração autónoma deste meio de prova daqueloutra relativa à prova testemunhal qua tale, também não é menos verdade que, por ele, se devem circunscrever à esfera da prova testemunhal os "reconhecimentos testemunhais", onde não se autonomize e onde não releve a necessidade de esclarecimento de uma qualquer situação de incerteza quanto à autoria dos factos e à identificação do agente.
De facto, a identificação subjacente a um depoimento testemunhal esgota a sua eficácia – e a possibilidade de o juiz o valorar – no âmbito de um meio probatório não direccionado ao reconhecimento de uma pessoa e, assim, qualquer "individualização" ou "reconhecimento" – em sentido impróprio, diga-se – que aí se faça não pode deixar de ter como pressuposto uma situação de determinação subjectiva, e, por isso, só poderá ser valorada dentro da esfera probatória de onde emerge – a prova testemunhal –, não lhe podendo ser reconhecido um valor probatório autónomo e separado.
Ou seja, por outras palavras, não estando implicada na produção e valoração deste meio de prova uma necessidade de se afastar uma situação de incerteza quanto à identificação de um sujeito, a funcionalidade e a finalidade inerentes a um acto de "reconhecimento" – de imputação – que se produza neste contexto terá sempre uma função exógena da que é cumprida pelo reconhecimento em sentido próprio – v. g. aferir da credibilidade e consistência do depoimento –, não podendo aquele ser autonomamente valorado para responder às situações onde se justifique a autonomização de um verdadeiro acto de reconhecimento. (negritos nossos)
No caso concreto, como evidencia o depoimento prestado pelo ofendido e atrás parcialmente transcrito, nenhuma incerteza subjectiva se verificava quanto à identidade e identificação do autor dos factos.
Assim sendo, o reconhecimento a que se procedeu consubstancia um acto processual meramente confirmatório da identificação previamente efectivada.
Porém, sempre se dirá que não se detecta no auto de reconhecimento a ausência de qualquer menção obrigatória nos termos previstos no citado art. 147º.
No que concerne à alegada falta de semelhança entre as pessoas que integraram a linha de reconhecimento, como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-03-2013, no processo nº 1886.11.9JAPRT.P1 (Relator Joaquim Gomes), disponível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/:
(…) a exigência das “maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário”, não significa uma completa homogeneidade física ou mesmo uma completa parecença, porquanto isso seria completamente impossível ou mesmo de difícil exequibilidade. De tal modo que já se decidiu que “A semelhança dos indivíduos sujeitos ao acto de identificação não é um requisito essencial da validade do acto, pois o que se pede é que as pessoas (duas, pelo menos) que se chamam ao acto apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive no vestuário, com a pessoa a identificar”(Ac. STJ de 2007/Mar./15, www.dgsi.pt).
Assim e tentando salvaguardar a autenticidade do reconhecimento pessoal, no âmbito de um processo justo e equitativo, haverá que fazer duas exigências essenciais. A primeira é que entre os participantes no reconhecimento não existam assimetrias acentuadas, mormente em razão do género, da raça e mesmo da sua aparência externa, como seja em relação ao vestuário, que viciem esse reconhecimento presencial. A segunda é que não sejam criadas ou induzidas circunstâncias, tanto no início como no decurso desse reconhecimento, que possam falsear essa identificação individual. Em suma e tentando objectivar e concretizar os traços dessas “maiores semelhanças possíveis”, os mesmos devem corresponder àqueles que permitem uma maior correspondência em razão do género, da raça, da compleição ou da estrutura física, como também do vestuário, e que sejam naturalmente exequíveis.
E como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13-09-2016, no Processo n.º 590/16.6PSLSB-A.L1-5 (Relator: José Adriano): A referência a semelhanças “possíveis”, significa apenas que as pessoas colocadas juntamente com o suspeito devem apresentar algumas semelhanças físicas com este, de molde a garantir que o escolhido ou identificado - se o houver - corresponda ao verdadeiro autor dos factos. Para isso, terá a pessoa que faz o reconhecimento de estar verdadeiramente consciente da responsabilidade do acto, só devendo apontar o dedo quando está de facto convencido, com base nas características que reteve do autor do crime, que este está entre as pessoas a identificar e é a pessoa que concretamente identifica. Caso contrário, terá de dizer claramente que não reconhece o autor dos factos entre os presentes, ou, tendo dúvidas, deverá manifestá-las e tal menção deverá constar do auto respectivo. (…)
A impugnação da validade daquele meio de prova exige que se produza prova em sentido contrário. O recorrente só conseguirá abalar o reconhecimento efectuado se demonstrar, como alega, que, apesar do conteúdo do auto, não foi cumprida uma formalidade essencial: “as pessoas colocadas ao lado do arguido não apresentavam com este qualquer semelhança”. Todavia, só lhe será possível fazer tal demonstração quando puder exercer o contraditório, seja em instrução, seja em julgamento, nunca na fase de inquérito. Muito menos em sede de recurso, o qual não admite a produção de prova suplementar de quaisquer factos, estando o tribunal de recurso vinculado a decidir em função do que existia nos autos no momento em que foi proferida a decisão recorrida, que aplicou a medida de coacção.
Argumenta-se na motivação de recurso que: a defensora do ora recorrente, confrontada com a composição da linha de reconhecimento, de imediato, manifestou a sua discordância, não assinando os respectivos autos.
Sucede que nada consta no auto a esse propósito.
Consequentemente, aquela alegação mostra-se em concreto inócua, porque necessariamente deverá ser tida como indemonstrada.
Efectivamente, a ilustre defensora do arguido não assinou o auto de reconhecimento ora em análise.
Contudo, estipula o art. 95º do Código de Processo Penal que:
Assinatura
1 - O escrito a que houver de reduzir-se um acto processual é no final, e ainda que este deva continuar-se em momento posterior, assinado por quem a ele presidir, por aquelas pessoas que nele tiverem participado e pelo funcionário de justiça que tiver feito a redacção, sendo as folhas que não contiverem assinatura rubricadas pelos que tiverem assinado.
2 - As assinaturas e as rubricas são feitas pelo próprio punho, sendo, para o efeito, proibido o uso de quaisquer meios de reprodução.
3 - No caso de qualquer das pessoas cuja assinatura for obrigatória não puder ou se recusar a prestá-la, a autoridade ou o funcionário presentes declaram no auto essa impossibilidade ou recusa e os motivos que para elas tenham sido dados.
No caso concreto, nada constando do auto a respeito do ora alegado em sede de motivação, deveria ter sido arguida a alegada irregularidade formal no próprio acto a que respeita nos termos previstos no já citado art. 123º do Código de Processo Penal, o que não ocorreu.
Limitou-se o recorrente a dirigir-se ao Ministério Público posteriormente, nos termos que constam do requerimento atrás transcrito.
Afirma ainda o recorrente que: é inconstitucional a norma do n.° 4 do art.° 147° do CPP quando interpretada no sentido de não ser obrigatório as pessoas que intervieram no reconhecimento serem fotografadas e as fotografias juntas aos autos.
Contudo, não esclarece o recorrente qual será a norma ou o princípio constitucional beliscado pela norma em causa, que prevê como meramente facultativa a junção das fotografias dos cidadãos ou cidadãs que integram voluntariamente o painel de reconhecimento.
No entanto, sempre se dirá que caso existam dúvidas sobre a regularidade do reconhecimento nessa fase, poderá o tribunal determinar a comparência daqueles cidadãos, de forma a aquilatar presencialmente da sua suficiente semelhança ou não com o arguido.
Porém, tendo o arguido sido em concreto reconhecido de forma inequívoca pelo ofendido logo no momento da prática dos factos em questão, não se oferecem quaisquer dúvidas quanto à sua identificação.
Ao que acresce, como se referiu, que no seu depoimento o ofendido afirmou que o autor dos factos trajava um fato de treino de cor preta, com um casaco por cima, da marca ... e de cor azul clara.
Ora, conforme resulta do auto de apreensão junto aos autos e consta do ponto 24. do elenco dos factos fortemente indiciados:
24. No dia ...-...-2024, pelas 07h30, no interior da habitação sita na Rua ......., ..., o arguido tinha na sua posse, os seguintes objectos:
• em cima do colchão, um telemóvel da marca ..., modelo ..., com os IMEEs ... e ...;
• no interior da gaveta do móvel, três munições de calibre 6.35 mm. com a inscrição “GECO”;
• 1 (um) casaco de cor azul claro, com capuz, da marca “...” (…).
Consequentemente, perante o conjunto da prova indiciária recolhida em sede de inquérito, não poderá deixar de sufragar-se a conclusão vertida na decisão recorrida quanto à existência de fortes indícios de que o aqui recorrente é o autor dos factos ocorridos em ... de ... de 2024, nos quais é ofendido DD.
*
Analisemos agora a prova indiciária recolhida relativamente aos factos alegadamente ocorridos no dia ...-...-2024, em que são ofendidos EE, HH, FF e GG, designadamente a prova por reconhecimento efectivada no âmbito do inquérito, única à qual o recorrente se reporta expressa e especificamente na sua motivação de recurso.
Relativamente a tais factos procedeu-se à efectivação de um único acto de reconhecimento em ...-...-2024, no qual interveio como reconhecedor o ofendido FF.
De tal auto consta designadamente o seguinte:
Na sequência das declarações prestadas a fls. 55-58 (NUIPC 311/24.0... - inquérito apensado aos presentes autos), foi solicitado à testemunha que descrevesse a pessoa a identificar, com indicação de todos os pormenores que se recorda, tendo dito que: era mulato, com cerca de 1,90m de altura, de compleição física normal.
Perguntada sobre se já conhecia a pessoa ou se já a tinha visto antes ou depois do crime, quando e em que condições, a mesma disse que: -
Interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação, disse: Nada ter a acrescentar.
(…)
Após observação cuidada, disse: Que reconhecia, para além de toda a dúvida, o indivíduo identificado com o n.° 1 correspondente a AA, como autor do crime de que foi vítima, isto é, o indivíduo que disparou contra si e os seus amigos. 
Como resulta do auto junto aos presentes autos de recurso por certidão e atrás parcialmente transcrito, o mesmo é de todo omisso quanto à pergunta sobre se já conhecia a pessoa ou se já a tinha visto antes ou depois do crime, quando e em que condições
Ora, como preceitua de forma expressa o n.º 7 do citado art. 147º do Código de Processo Penal: O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer.
Tal normativo impõe de forma clara a cominação de invalidade como meio probatório a omissão de qualquer das formalidades previstas no mesmo normativo, sem distinção.
É certo que o n.º 1 de tal normativo legal prevê a designada identificação meramente descritiva, como vem salientando a nossa jurisprudência (v. o Ac. TRP de 13-03-2013, no processo nº 1886.11.9JAPRT.P1; no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-11-2011, no Processo n.º 464/10.4PEAMD.L1-5 [Relator: JORGE GONÇALVES], o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-09-2017, no Processo n.º 433/15.8PBSNT.L1-9 [Relatora: FILIPA COSTA LOURENÇO], e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16-03-2022, no Processo n.º 9106/18.9T9PRT.P1 [Relator: PEDRO AFONSO LUCAS]).
É certo de igual modo, que o denominado reconhecimento propriamente dito só se seguirá caso não seja cabal o reconhecimento descritivo, tal como expressamente se prevê no n.º 2 do mesmo normativo legal.
Contudo, como igualmente vem sendo entendimento jurisprudencial uniforme, o reconhecimento de uma pessoa é uma operação procedimental de identificação que comporta uma estrutura complexa, de modo a garantir um elevado grau de atendibilidade dessa identificação pessoal e, por outro lado, a desprender a mesma de influências sugestivas que podem viciar a sua integridade. Trata-se de um meio de prova formalmente vinculado, porquanto a inobservância das respectivas formalidades essenciais do reconhecimento pessoal conduzem à sua indisponibilidade probatória, tendo as mesmas consequências que a prova proibida. (in Ac. TRP de 13-03-2013, no processo n.º 1886.11.9JAPRT.P1 atrás citado).
Como se enfatiza no também atrás citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-11-2011, no Processo n.º 464/10.4PEAMD-5: Como ensina Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, II, 4.ª ed., 2008, p. 211), o reconhecimento consiste na confirmação de uma percepção sensorial anterior, ou seja, consiste em estabelecer a identidade entre uma percepção sensorial anterior e outra actual da pessoa que procede ao acto. E, como refere o mesmo autor, o cuidado que o legislador pôs na regulamentação do acto de reconhecimento evidencia a importância e falibilidade deste meio de prova, quando não forem tomadas as devidas precauções.
Na verdade, é precisamente dada a falibilidade da prova por reconhecimento e a circunstância de a mesma ser frequentemente decisiva para determinar o autor do facto ilícito típico, que tal meio de prova vem regulado de forma rigorosa e minuciosa no art. 147º do Código de Processo Penal.
Por outro lado, como decorre do n.º 7 do mesmo normativo legal, neste não se distinguem formalidades mais ou menos essenciais à afirmação da validade deste meio de prova, pelo que, com todo o respeito que nos merece entendimento contrário e defendido em alguns arestos (v.g. o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19-03-2013 no Processo: 460/07.9PEAMD.L1-5 e o já citado Ac. TRP de 13-03-2013, no processo nº 1886.11.9JAPRT.P1), é nosso entendimento que onde o legislador não distingue, o intérprete não poderá nem deverá distinguir.
Consequentemente, a omissão no auto de qualquer das menções impostas em tal normativo ou de qualquer dos procedimentos aí prescrito, independentemente da sua maior ou menor aparente relevância, determinará a sua invalidade enquanto meio de prova, redundando inevitavelmente numa proibição absoluta de prova.
É que a identificação descritiva e demais menções previstas no n.º 1 do art. 147º são desde logo relevantes para aferir das características físicas das pessoas a seleccionar que deverão integrar a linha de reconhecimento, caso seja necessária a efectivação do reconhecimento previsto no seu n.º 2.
Por outro lado, tais menções revelar-se-ão sempre como essenciais à avaliação da credibilidade do reconhecimento propriamente dito que se lhes siga, podendo mesmo reputar-se como fulcrais para valoração de tal meio de prova, quando conjugado com outros meios probatórios, em especial com o depoimento que venha ulteriormente a ser prestado pelo reconhecedor, nomeadamente em sede de audiência de julgamento.
Assim, sendo o auto de reconhecimento em questão parcialmente omisso quanto às menções previstas no n.º 1 do art. 147º do Código de Processo Penal, é inevitável concluir que o mesmo não poderá valer como meio de prova, estando, pois, a sua valoração proibida para aferição dos indícios da prática dos factos a que se reporta.
No entanto, ainda que fosse outro o entendimento, sempre em concreto o reconhecimento efectivado pelo ofendido FF teria de reputar-se como manifestamente insuficiente para alicerçar um juízo fundado quanto à autoria dos factos ocorridos em ...-...-2024, dos quais foi vítima este ofendido, juntamente com os ofendidos EE, HH e GG.
Com efeito, inquirido em ...-...-2024, afirmou o ofendido FF, além do mais, que:
Instado a descrever o suspeito, refere que era mulato, com cerca de 1,90m de altura, de compleição física normal. Trajava um casaco da marca ..., de cor preta e tinha o capuz colocado. Usava um passa-montanhas ou um lenço a cobrir a face, de cor preta e com inscrições a branco. Não consegue descrever as calças ou o calçado.
Por lhe ter sido perguntado, refere talvez ser capaz de reconhecer o suspeito, pelos olhos e pela sua fisionomia
Instado, diz que, durante os factos o suspeito não proferiu qualquer palavra.
Não tem nenhuma inimizade ou conflito que pudesse ter motivado esta situação.
Não tem quaisquer suspeitas relativamente a quem possa ter sido o autor.
Como se vê de tal depoimento, o ofendido em momento algum viu o rosto descoberto do autor dos factos de que foi vítima, antes resultando que apenas lhe terá visto os olhos.
Nem sequer o seu cabelo pôde visionar, porquanto a cabeça se encontrava igualmente encoberta com um capuz.
Ao que acresce que o avistamento do autor dos factos se realizou num quadro de fuga do autor dos disparos e não num ambiente de serenidade, pelo que não é consentâneo com as regras da experiência que o ofendido tenha tido condições bastantes para observar devidamente a parte do rosto que lhe era visível (os olhos) e, por essa forma, a reter na sua memória.
Ora, não é minimamente plausível que seja possível a efectivação de um reconhecimento, com um mínimo de segurança e fiabilidade, de alguém cuja face nunca se observou por inteiro.
A não ser que os olhos do autor dos factos apresentassem alguma particularidade que os tornassem inconfundíveis, o que não consta dos autos, nem é visível qualquer particularidade nos olhos do aqui arguido nos fotogramas juntos aos autos (conforme auto de informação de fls. 35, do qual constam a fotografia do CC de ... e fotografias retiradas do Instagram de 2024), terá de considerar-se em absoluto contrário às mais elementares regras da experiência comum, que nestas circunstâncias seja possível ao ofendido reconhecer o autor dos factos com a assertividade e a certeza que no caso se impõem.
Por outro lado, nos respectivos depoimentos, os demais ofendidos igualmente nada de relevante puderam afirmar quanto à identidade do autor dos factos em causa.
Assim, inquirido em ...-...-2024, o ofendido EE, quanto ao suspeito da autoria dos factos, afirmou que:
(…) Instado a descrever o suspeito, refere que era negro, de tez mulata, com cerca de 1,87m de altura, de compleição física normal. Trajava um casaco da marca ..., de cor preta, algo volumoso, e tinha o capuz colocado. Usava uma máscara ou um lenço preto a cobrir a face, “só se viam os olhos”. Não consegue descrever as calças ou o calçado.
Por lhe ter sido perguntado, refere talvez: ser capaz de reconhecer o suspeito, pelos olhos e pela sua fisionomia.
Instado, diz que, durante os factos o suspeito não disse qualquer palavra.
Não tem nenhuma inimizade ou conflito que pudesse ter motivado esta situação.
Não tem quaisquer suspeitas relativamente a quem possa ter sido o autor. Acredita que estava no sítio errado à hora errada, não consegue imaginar uma razão para alguém ter querido disparar sobre si.
Por seu turno, inquirido em ...-...-2024, o ofendido GG, quanto ao suspeito da autoria dos factos, declarou que:
(…) Instado a descrever o suspeito, refere que era mulato, com cerca de 1,90m de altura, de compleição física normal, algo “cheinha”. Trajava roupa toda de cor escura. Usava um lenço ou uma camisa a cobrir a face, de cor preta e com inscrições a branco.
Por lhe ter sido perguntado, refere não ser capaz de reconhecer o suspeito se o voltar a ver, acrescentando que tem miopia e que apenas o viu ao longe.
Instado, diz que, durante os factos o suspeito não proferiu qualquer palavra.
Não tem nenhuma inimizade ou conflito que pudesse ter motivado esta situação.
Finalmente, o ofendido HH, inquirido em ...-...-2024, quanto ao autor dos factos, afirmou o seguinte:
(…) Instado a descrever o suspeito, refere que era mulato, com cerca de 1,90m de altura. Trajava um casaco da marca ..., de cor preta e tinha o capuz colocado. Usava uma máscara a cobrir a face, de cor preta. Não consegue descrever as calças ou o calçado.
Por lhe ter sido perguntado, refere que talvez seja capaz de reconhecer o suspeito, sobretudo pessoalmente.
Instado, diz que, durante os factos o suspeito não proferiu qualquer palavra.
Confrontado com os fotogramas constantes dos autos a fls. 52 a 54, não tem quaisquer dúvidas que o indivíduo aí representado é o suspeito que efetuou os disparos de arma de fogo na sua direção.
Não tem nenhuma inimizade ou conflito que pudesse ter motivado esta situação. Reitera que não tem quaisquer suspeitas relativamente a quem possa ter sido o autor.
Por outro lado, os fotogramas de fls. 52 a 54 mencionados por esta testemunha demonstram que, efectivamente, apenas é possível visualizar os olhos, a testa e, parcialmente, o nariz do suspeito.
Ao que acresce que nada foi apreendido ao ora arguido que se mostre relacionado com os factos ocorridos no dia ...-...-2024.
Das considerações expostas resulta a inevitável conclusão de que não se mostram reunidos indícios probatórios bastantes que permitam imputar ao ora arguido a prática dos factos de ...-...-2024 a que respeita o Processo 311/24.0... apensado.
Assim, neste segmento, procede parcialmente a argumentação do recorrente.
Em conformidade, conclui-se que apenas existem fortes indícios de que o arguido foi autor dos factos do dia ...-...-2024 a que respeita o Processo 256/24.3JDLSB (autos principais), dos quais foi vítima o ofendido DD.
Consequentemente, considera-se fortemente indiciado, nos termos exigidos no citado art. 202º do Código de Processo Penal, que o aqui recorrente se constituiu autor dos seguintes crimes:
- um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pela conjugação dos artigos 131.°, 132.°, n.° 1 e 2, alínea e) e 22.° e 23.°, todos do Código Penal, agravado, nos termos do artigo 86.°, n.° 3 e 4 da Lei das Armas (Lei 5/2006, de 23.02) conjugado com alíneas c) e d) do, n.° 1 do artigo 86.° do mesmo diploma legal;
- um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo disposto no artigo 86.°, n.°s 1, alíneas c) e d) e 2 por referência aos artigos 2.°, n.°s 1, da Lei das Armas (Lei 5/2006, de 23.02).
Com efeito, os elementos de prova indiciários são manifestamente idóneos a sustentar a convicção de que o arguido praticou os factos que integram os crimes atrás enunciados, nos termos que concluiu o despacho recorrido, sendo legítimo inferir com razoável probabilidade uma sua futura eventual condenação pela prática de tais crimes.
*
O recorrente insurge-se ainda contra a verificação dos perigos assinalados na decisão recorrida: de fuga, de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
O art. 204º do Código de Processo Penal estabelece como condição da aplicação de qualquer das medidas de coacção legalmente previstas a verificação de pelo menos de um dos perigos nele elencados, estabelecendo tal normativo que:
1 - Nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196.º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida:
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
Invoca o recorrente não se verificar nenhum dos perigos aludidos
Se é certo que os perigos enunciados no citado art. 204º deverão afigurar-se como concretos e actuais, é uma evidência que um perigo constitui, por definição, uma mera ameaça ou um risco, uma possibilidade.
Não há, assim, na avaliação da existência de algum desses perigos, uma qualquer certeza, apenas se exigindo que os mesmos se afigurem como plausíveis, designadamente que, nas circunstâncias dos factos já indiciados e atenta a personalidade neles revelada pelos seu autor, se afigura como provável que o agente venha a praticar actos que consubstanciem a consumação do perigo presumido.
O que é exigível é que, no juízo de avaliação desse perigo, este seja sustentado e não meramente subjectivo, nem arbitrário, ou seja, que existam factos concretos que tornem legítimo inferir a existência do perigo.
Passemos agora a analisar cada um dos perigos a que se alude no despacho recorrido.
O recorrente insurge-se quanto à verificação do perigo de fuga.
Para que se considere tal perigo como verificado, não é necessário que o agente se encontre prestes a ausentar-se e que existam provas directas de que o vai fazer.
Recorde-se o que a respeito de tal perigo se exarou no despacho recorrido:
(…) pese embora o arguido o tenha negado, o facto é que, segundo resulta dos próprios autos policiais da marcha do processado, os crimes contra as pessoas remontam a ... do presente ano, o arguido eximiu-se a ser localizado até à sua recente detenção através da emigração para a ..., onde tem familiares, pelo que, sabendo a gravidade das penas em que incorrerá pela condenação nos presentes autos, cuja existência e prova agora conhece em detalhe, tenderá a sair novamente do território nacional para se eximir à justiça penal.
O despacho recorrido assenta a existência de perigo de fuga fundamentalmente na probabilidade de condenação do arguido e na circunstância de o mesmo se ter ausentado para a ..., onde terá familiares.
No entanto, a situação de fuga não se basta com uma mera ausência no estrangeiro, mas sim numa ausência em parte incerta, em local desconhecido e em que dificilmente o agente poderá ser encontrado.
Com efeito, esse é o objectivo da fuga, é o seu significado, escapar à acção da justiça, deslocando-se para local incerto, numa tentativa de se furtar aos subsequentes termos processuais, nomeadamente ao julgamento e eventualmente ao cumprimento de uma pena de prisão.
Por outro lado, como se elucida no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26-09-2023, proferido no Processo n.º 123/23.8JAPTM-B.E1 (Relator: Edgar Valente): A mera possibilidade de futura condenação em pena de prisão não permite concluir pela existência de um concreto perigo de fuga, na mesma medida em que nem mesmo a ocorrência dessa condenação o permite, sendo que a condenação em pena de prisão efectiva, ainda que previsivelmente elevada (ou até muito elevada), não integra, por si só e sem mais, o perigo de fuga, como a jurisprudência de forma ao que cremos uniforme entende. Os conceitos de fuga e de perigo de fuga traduzem “desaparecimento, debandada, desconhecimento de paradeiro, e devem estar associados ao incumprimento das obrigações de disponibilidade e comparência impostas pela lei processual penal” (acórdão do TRL de 19.09.2007 Carlos Almeida). Na ausência de qualquer outro facto que indicie em concreto que o detido se pretenda furtar à acção da justiça deve concluir-se pela inexistência do invocado perigo de fuga.
No caso, o arguido tem nacionalidade portuguesa e ter-se-á ausentado para a ... após os factos indiciados nos autos.
Sucede que evidenciam os autos que o arguido regressou a Portugal, pois na data em que foram realizadas as buscas (...-...-2024), o mesmo encontrava-se na sua residência, como consta do auto de busca que o arguido assinou.
Assim, a circunstância de anteriormente se ter ausentado para a ..., por si só, não se mostra suficiente para daí se extrapolar que o mesmo pretenderá eximir-se à acção da justiça em Portugal.
Nestas circunstâncias, afigura-se-nos que a factualidade concretamente indiciada não permite a conclusão segura de que existe um efectivo perigo de fuga, ou seja, de que o arguido seria tentado a ausentar-se para lugar incerto, assim se eximindo à acção da Justiça em Portugal.
Deste modo, entende-se não se verificar um concreto perigo de fuga, pelo que nesta parte assiste razão ao recorrente.
*
Insurge-se ainda o recorrente quanto à existência do perigo de continuação da actividade criminosa.
O perigo de continuação da actividade criminosa é aferido em função de um juízo de prognose realizado relativamente à continuação da prática de crimes da mesma espécie e natureza dos que se indiciam no processo em que se faz a avaliação de tal perigo. Em tal juízo de prognose deverão valorizar-se a natureza e as circunstâncias relativas aos crimes que se investigam e avaliar a probabilidade da sua conexão com a actividade futura do arguido (v. Ac. Relação de Évora de 23-11-2021, proferido no processo n.º 96/20.9GFELV-A.E1).
Deverão, assim, ser analisadas as circunstâncias concretas do caso e, em função delas, aquilatar se a mesmas permitem inferir com razoabilidade que o arguido, em liberdade, voltaria a prática de factos da mesma natureza.
Ou seja, tal perigo existirá quando seja possível formular, a partir da análise do circunstancialismo fáctico indiciado, um juízo de elevada probabilidade da existência de um risco sério e efectivo de que a actividade criminosa poderá vir a ser prosseguida caso esse risco não seja obstaculizado pela adequada medida cautelar.
Argumenta o recorrente essencialmente o seguinte:
- O recorrente é ainda muito jovem, tem 18 anos, não tem antecedentes criminais e não existe, manifestamente, perigo de continuação da atividade criminosa.
Ora, no caso concreto, a indiciada conduta do recorrente demonstra uma personalidade de total indiferença perante as mais basilares regras da convivência social, designadamente perante a vida de outro ser humano, disparando dois tiros na direcção do ofendido, desarmado, sem qualquer provocação conhecida, em dois momentos temporais sucessivos, fazendo-o em plena via pública, primeiro junto da ... e depois junto ao ....
Não obstante o ofendido tenha encetado a fuga, o arguido perseguiu-o, assim evidenciando uma vontade firme, férrea e inabalável de atingir o seu objectivo de lhe tirar a vida.
Além disso, encontra-se fortemente indiciado que:
23. No dia ...-...-2024, pelas 11h00, o arguido foi sujeito a primeiro interrogatório judicial de arguido detido no âmbito do Processo 130/24.3..., cujos termos correram no âmbito do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa, Juiz 9, por se encontrar indiciado pela prática no dia .../.../2024, de um crime de homicídio agravado na forma tentada, p. e p. pelos arts.22° e 131° do Código Penal e art.86° n.°3 da Lei 5/2006, de 23.02 e um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.86° n.°1, c) e d) da Lei 5/2006, de 23.02, na sequência de desacatos perto da discoteca “...”, sita em ..., tendo sido lhe sida aplicada a obrigação de apresentação tri-semanal no posto policial da área da sua residência, às segundas, quartas e sextas-feiras com início no dia ........2024. (destacado nosso)
Perante a factualidade fortemente indiciada, é inevitável concluir estarmos perante uma personalidade imbuída de extrema violência e de indiferença perante os valores éticos fundamentais da sociedade, tal como se concluiu no despacho recorrido: Em causa está criminalidade violenta, cometida pelo uso de arma de fogo na via pública, cuja gravidade, perigosidade e consequente censurabilidade gera sentimento de insegurança e intranquilidade na comunidade, perturbando a ordem pública, sentimentos esses que são exacerbados caso o seu agente viva livremente no seio da comunidade. Tal criminalidade foi cometida de um modo intensamente obstinado, revelando que o arguido tem personalidade violenta e beligerante que não conhece limites, designadamente éticos, que o demovam de cometer criminalidade violenta, caso permaneça em liberdade.
Pela natureza e circunstâncias dos crimes em causa e pelos motivos atrás salientados, afigura-se de perspectivar como plausível de que existe um sério perigo de que poderão ser repetidas condutas de índole similar.
E não é a juventude do arguido que o impede, como não impediu, de assim actuar, como não é a ausência de antecedentes criminais, natural para quem tem apenas 18 anos de idade, que constitui obstáculo a tal conclusão.
Assim, neste segmento, a decisão recorrida não nos merece qualquer censura, sendo de concluir como verificado o perigo de continuação da actividade criminosa.
*
Insurge-se ainda o recorrente relativamente ao crime de perturbação da tranquilidade pública constatado na decisão recorrida.
Porém, a factualidade indiciada e não obstante a ausência de antecedentes criminais, aponta em sentido contrário ao pugnado pelo recorrente.
É certo que o perigo de perturbação grave da tranquilidade pública não se confunde com o alarme social causado pelo crime.
Subjacente a tal perigo não poderão estar questões ligadas à prevenção geral positiva, que se reconduzem às finalidades própria das penas, o que redundaria na atribuição às medidas de coação em geral, e à prisão preventiva em particular, de finalidades próprias das penas e não finalidades estritamente processuais, como exige o artigo 191º do Código de Processo Penal (in Ac. da Relação de Évora de 5-04-2022, proferido no processo n.º 523/21.8GHSTC-A.E1).
No mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-02-2023, proferido no processo n.º 1142/22.7JACBR-B.C1: O perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas deve ser reportado a previsível comportamento no futuro imediato do arguido, resultante da sua postura ou actividade, e não ao crime por ele indiciariamente cometido e à reacção que pode gerar na comunidade, pois não é a gravidade do crime indiciado e o consequente alarme social gerado que aqui estão em causa.
O perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas tem de resultar da natureza e circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, relevando para o mesmo a alteração negativa que prejudique ou cause dano à ordem pública e não apenas a mera alteração ou inquietação gerada no meio social. (in Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-03-2023, proferido no processo n.º 1070/22.6PBFIG-A.C1; no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23-11-2021, proferido no processo n.º 96/20.9GFELV-A.E1).
No caso em apreço, a verificação de tal perigo encontra-se directamente relacionada e é consequência do perigo de continuação da actividade criminosa já atrás constatado.
Com efeito, perante a gravidade das condutas indiciadas nos autos, patenteada na moldura penal abstracta aplicável aos crimes em causa e a personalidade violenta neles demonstrada, justifica-se a conclusão de que em concreto é de recear que o arguido possa, num momento futuro, vir a perigar a ordem e a tranquilidade públicas, reiterando condutas de índole similar.
Em conformidade, igualmente neste segmento não nos merece censura a decisão recorrida.
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Em conformidade, atentos os perigos suficiente e fortemente verificados atrás enunciados, encontram-se reunidos os pressupostos da aplicação de uma medida de coacção para além do TIR, pelo que importa agora apreciar os demais fundamentos aduzidos pelo recorrente.
Argumenta ainda o recorrente que:
- Ao decretar, sem mais, a mais grave das medidas de coação para o recorrente, sem percorrer todo o "catálogo" de medidas não privativas da liberdade constantes da lei, o douto despacho recorrido violou o disposto no art.° 30, n.° 2 do CPP, bem como, o princípio da adequação e da proporcionalidade que lhe está ínsito, violando ainda o art.° 204.° e 202.° do CPP, tendo ainda violado o disposto no art.° 28 n.° 2 da CRP e o princípio nele consignado;
- Sem conceder, mesmo admitindo, no limite interpretativo, a existência de indícios quanto á prática, pelo arguido dos crimes imputados, a medida de coação a aplicar deveria ser a de obrigação de permanência na habitação sob vigilância eletrónica (art.° 201.° do CPP) dado o arguido encontrar-se inserido socialmente, ser primário e ser ainda muito jovem;
- Dispondo os artigos 193°, n.° 2 e 204°, n.° 1, ambos do CPP, que a prisão preventiva é subsidiária, e só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação - e nada disto sucede - segue-se que, na interpretação que deles é feita no douto despacho recorrido, estão aqueles preceitos feridos de vício de inconstitucionalidade material por violação do princípio da legalidade e subsidiariedade previstos no artigo 28°, n.° 2 da CRP.
Como atrás se referiu, a aplicação das medidas de coacção encontra-se subordinada à observância dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, expressamente consignados no art. 193º do Código de Processo Penal.
Ora, no caso em apreço, entende-se que a medida de coacção aplicada se mostra em concreto proporcional à gravidade dos crimes indiciados e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
Perante a gravidade dos factos praticados, avaliados no seu conjunto, a sua elevada ilicitude, causadora de compreensível, inquestionável e acentuado alarme e danosidade sociais, as exigências de prevenção geral, no sentido de revalidação das normas jurídico-penais violadas, fazem-se sentir com assinalável intensidade.
Consequentemente, é de considerar que tais exigências desaconselharão a aplicação de penas de natureza não detentiva, sob pena de resultarem frustrados os fins da aplicação das penas consignados no art. 40º do Código Penal, mormente a protecção dos bens jurídicos protegidos com a incriminação.
Ainda que o recorrente não tenha antecedentes criminais, o certo é que o cometimento dos factos indiciados em causa evidencia uma personalidade acentuadamente contrária ao Direito, uma personalidade violenta como atrás se assinalou, própria de quem despreza profundamente a vida, a saúde e a integridade física de terceiros.
Trata-se de actos que demonstram uma vontade criminosa firme e perseverante, pois que foram cometidos em dois momentos sucessivos, como atrás se ressaltou.
Inexistem, assim, factos que permitam presumir que não virá a ser aplicada ao recorrente uma pena detentiva, antes as circunstâncias factuais fortemente indiciadas apontam no sentido contrário.
*
Pretende o recorrente que lhe seja aplicada a medida de obrigação de permanência na habitação, eventualmente com recurso a vigilância eletrónica.
Contudo, no circunstancialismo do caso concreto e a natureza dos crimes fortemente indiciados, apenas a medida de prisão preventiva responde de forma eficaz e suficiente às exigências cautelares que o caso requer, pois apenas ela é susceptível de prevenir e evitar de forma eficiente a concretização dos perigos apontados.
Afigura-se-nos que a medida de obrigação de permanência na habitação não acautela em concreto de forma eficiente os perigos de continuação da actividade criminosa e de grave perturbação da tranquilidade pública assinalados.
Por um lado, a vigilância electrónica apenas controla os movimentos da pessoa quando esta pretenda ausentar-se do domicílio, sendo ineficaz quanto ao controlo das actividades que empreenda dentro da habitação, não obstando ao uso do telemóvel por parte do recorrente, nem ao uso de qualquer outro meio electrónico, nem o contacto com terceiros em casa ou a partir de casa.
Consequentemente, o confinamento na habitação não obstaria à aquisição e à detenção de armas proibidas, como se assinala na decisão recorrida: pelo que o seu confinamento domiciliário não eliminaria o perigo de continuação da atividade criminosa.
Por outro lado, também não obstaria a que o arguido viesse a sair da habitação em violação da medida imposta e reiterasse a prática de actos de natureza similar, na medida em que tal medida não representa um obstáculo físico a uma possível ausência ilegítima da habitação e a vigilância electrónica permite apenas detectar a ausência já após a sua verificação.
É de acrescentar que, tendo-se procedido à audição das declarações do arguido em sede de primeiro interrogatório judicial, o mesmo referiu, sinteticamente, quanto à situação pessoal, que: que canta e faz músicas, que faz biscates nas obras, que vive com a mãe e com o padrasto e a namorada, que concluiu o 9º ano, e que presta ajuda à mãe.
Face a tais declarações, inexistem quaisquer elementos probatórios que permitam aferir da natureza da relação que o arguido mantém com a mãe e padrasto, se algum deles tem ascendente sobre ele de modo a poder exercer um papel protector e contentor de condutas semelhantes às indiciadas.
Os elementos constantes dos autos revelam-se escassos para permitir a conclusão de que o arguido se encontra inserido familiarmente de forma efectiva e que pode contar com o apoio da família e, sobretudo, que esta possa para ele constituir um factor de contenção.
A medida de obrigação de permanência pressupõe que o arguido se comprometa em alguma medida ao seu cumprimento, que seja expectável uma sua auto-responsabilização nesse sentido.
A mesma assenta num juízo de prognose de que virá a ser estritamente respeitada e cumprida, uma expectativa positiva de confiança no seu cumprimento, ou seja, de que a personalidade revelada pelo arguido nos factos indiciados, conjugada com as condições de que dispõe na habitação a que ficaria confinado, permite supor que a permanência na habitação será adequada a suficiente para acautelar os perigos verificados em concreto (v. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-01-2022, no Processo n.º 39/21.2JBLSB-A.L1-3 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9-01-2024, no Processo n.º 20/22.4SWLSB-A.L1-5).
No caso, a aplicação de tal medida pressuporia que a mesma se apresentasse como suficiente para acautelar o perigo de continuação da actividade criminosa e de grave perturbação da tranquilidade pública.
Ora, assentado tais perigos em factos fortemente indiciados que indiciam uma personalidade aparentemente tão desconforme ao dever-ser jurídico-penal, tão violenta e tão insensível aos bens jurídicos fundamentais da sociedade, a permanência na habitação não acautela de forma suficiente aqueles perigos, por ser ineficaz para conter os actos violentos que o arguido já demonstrou ser capaz de empreender e que, se não eficazmente acautelados através de medida de coacção suficientemente eficaz, poderia voltar a cometer.
Efectivamente, apresentando-se os factos fortemente indiciados como actos de tal ordem incompreensíveis, porque inusitados, despropositados e imbuídos de extrema violência e atentatórios do bem jurídico mais precioso, a vida humana, não é de excluir que o arguido possa ter o ímpeto de levar a cabo nova conduta similar, ausentando-se ilicitamente da habitação para o perpetrar, face ao comportamento impulsivo e violento já fortemente indiciado.
No entanto, tendo presente a idade do arguido, de apenas 18 anos, e o que consta do Print junto aos autos em ...-...-2024 respeitante a processos pendentes, a anormalidade e violência da conduta fortemente indiciada nos autos, carecida de qualquer contexto minimamente justificativo para tal actuação, aconselhariam a uma maior indagação sobre as suas condições pessoais e familiares, mediante relatório social ou mesmo a realização de uma perícia nos termos expressamente previstos no art. 160º/1 do Código de Processo Penal, o qual preceitua que: Para efeito de avaliação da personalidade e da perigosidade do arguido pode haver lugar a perícia sobre as suas características psíquicas independentes de causas patológicas, bem como sobre o seu grau de socialização. A perícia pode relevar, nomeadamente para a decisão sobre a revogação da prisão preventiva, a culpa do agente e a determinação da sanção. (destacado nosso)
Preceitua ainda o art. 213º/4 do mesmo Código:
4 - A fim de fundamentar as decisões sobre a manutenção, substituição ou revogação da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, o juiz, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido, pode solicitar a elaboração de perícia sobre a personalidade e de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, desde que o arguido consinta na sua realização. (destacado nosso)
Porém, atentos os elementos disponíveis à data em que foi proferido o despacho sob escrutínio, conclui-se que no condicionalismo fáctico fortemente indiciado acima descrito, apenas a medida de prisão preventiva se mostra suficiente para acautelar os perigos em concreto constatados, sendo a mesma necessária, adequada e proporcional, face a tais perigos e à gravidade dos factos fortemente indiciados.
Não se verifica, assim, a violação de quaisquer normas ou princípios legais ou constitucionais, nos termos pugnados pelo recorrente.
Em conformidade, não nos merece censura a decisão recorrida quando decidiu sujeitar o recorrente a tal medida de coacção, pelo que deverá improceder o recurso interposto.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, ainda que com fundamentos não inteiramente coincidentes, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando o despacho recorrido.
Custas do recurso a cargo do recorrente, fixando-se em três U.C.s a taxa de justiça (art. 513º/1 do Código de Processo Penal).
Notifique.

Lisboa, 8 de Maio de 2025
(anterior ortografia, salvo as transcrições ou citações, em que é respeitado o original)
Elaborado e integralmente revisto pela Relatora (art.º 94.º n.º2 do C. P. Penal)
Assinado digitalmente pela Relatora e pelos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos
Paula Cristina Bizarro
Ivo Nelson Caires B. Rosa
Ana Marisa Arnedo