Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
LEGITIMIDADE PASSIVA DA SEGURADORA
LEGITIMIDADE SINGULAR
SUPRIMENTO DA ILEGITIMIDADE
Sumário
I. Em ação indemnizatória por invocado acidente culposo de viação, em que o veículo alegadamente sinistrante dispõe de seguro automóvel válido e eficaz e o montante indemnizatório do pedido se contém dentro dos limites mínimos obrigatórios legalmente previstos, a legitimidade passiva cabe, obrigatoriamente, apenas à respetiva seguradora. II. Sendo demandado diretamente e apenas o tomador de seguro existe ilegitimidade do tomador, ilegitimidade singular insuprível.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
*
1. Relatório
Os Autores interpuseram a presente ação declarativa contra a ré EMP01..., S.A., pedindo a condenação desta no pagamento de € 23 976,44 (vinte e três mil, novecentos e setenta e seis euros e quarenta e quatro cêntimos).
Para o efeito alegam, em suma, que, na sequência do acidente descrito nos artigos 1.º a 10.º da petição inicial, para onde se remete por brevidade de exposição, o prédio onde embateu o veículo sofreu danos que impediram o estabelecimento comercial ali instalado de funcionar.
Em particular, dissertam que, desde o dia ../../2021 (dia do evento), o estabelecimento comercial em causa não mais abriu ao público, continuando o prédio no preciso estado em que ficou após o acidente, tendo como consequência a impossibilidade, para os Autores, de obter os valores monetários que poderiam conseguir se nada tivesse ocorrido, computando-os na quantia peticionada.
Regularmente citada, a Ré deduziu contestação, começando por se defender por exceção, mormente, a ilegitimidade passiva.
Notificados para o efeito, os Autores exerceram o direito ao contraditório, por requerimento de 30 de junho de 2024.
*
Na audiência prévia foi proferido o seguinte despacho que se transcreve:
“Cumpre, pois, apreciar e decidir.
Dispõe o artigo 30.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que «O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.», acrescentando o n.º 2 «O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.». Assim, para o apuramento da legitimidade processual releva, apenas, a consideração do concreto pedido e da respetiva causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última e do mérito da causa. Pois bem, analisados os factos articulados na petição inicial, verifica-se que a causa de pedir na presente ação é, grosso modo, o acidente de viação ocorrido no dia 21 de julho de 2021, bem como os restantes factos relacionados com os danos daí resultantes e que os Autores computam em € 23 976,44 (vinte e três mil, novecentos e setenta e seis euros e quarenta e quatro cêntimos). Com interesse para o que importa apreciar, dispõe o artigo 4.º do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, que «Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei.», acrescentando o artigo 12.º do aludido Decreto-lei que «O capital mínimo obrigatoriamente seguro, nos termos e para os efeitos das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo anterior é de (euro) 1 200 000 por acidente para os danos corporais e de (euro) 600 000 por acidente para os danos materiais.». In casu, o veículo identificado no artigo 4.º da petição inicial estava seguro na EMP02..., S.A. (vide doc. 1 junto em anexo à contestação). Aqui chegados, somos imediatamente remetidos para o artigo 64.º do Decreto-lei, donde resulta que «1 - As ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente: a) Só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório; b) Contra a empresa de seguros e o civilmente responsável, quando o pedido formulado ultrapassar o limite referido na alínea anterior.». Revertendo os factos e ensinamentos atrás expostos ao caso concreto, é apodítico que a Ré não tem legitimidade passiva para os presentes autos, pois que o citado artigo 64.º, n.º 1, alínea a) é inequívoco ao atribuir legitimidade passiva, apenas e só, à seguradora, quando o valor peticionado esteja dentro do capital mínimo obrigatório, como se verifica. Com pertinência para o caso em análise, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão datado de 3 de outubro de 2019, proferido no âmbito do processo n.º 257/18.0JABRG.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, que «I. O seguro obrigatório garante o pagamento da indemnização emergente de acidente de viação dolosamente provocado, sem prejuízo do direito de regresso contra o causador do acidente que cabe à seguradora que haja satisfeito o pagamento da indemnização; II. Perante a existência de seguro válido, encontrando-se o pedido dentro do capital mínimo obrigatório, só a seguradora deve ser demandada civilmente no pedido de indemnização civil deduzido em processo penal, devendo a demandada civil ser absolvida da respectiva instância, por ilegitimidade.». Neste mesmo sentido, decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão datado de 2 de maio de 2023, proferido no âmbito do processo n.º 133/22.2T8LSA.C1, disponível em www.dgsi.pt , que «1. - O pressuposto processual da legitimidade – ativa ou passiva – tem de ser aferido pela causa de pedir e respetivo pedido, tal como formulados pelo autor, pelo que não releva, para este efeito, a matéria de impugnação ou de exceção vertida na defesa da contraparte. 2. - Em ação indemnizatória por invocado acidente culposo de viação, em que o veículo alegadamente sinistrante dispõe de seguro automóvel válido e eficaz e o montante indemnizatório do pedido se contém dentro dos limites mínimos obrigatórios legalmente previstos, a legitimidade passiva cabe, obrigatoriamente, apenas à respetiva seguradora. 3. - Sem sequer ter sido apresentada causa de pedir e pedido subsidiários, que pudessem demandar, de algum modo, uma outra equação em termos de legitimidade passiva no âmbito subsidiário, não pode demandar-se, nas circunstâncias aludidas em 2-, o responsável civil (proprietário do veículo sinistrante) ao lado da dita seguradora (paritariamente), ademais em termos de peticionada responsabilidade solidária entre ambos.». Ademais, consigna-se que a ilegitimidade singular não é suscetível de sanação mediante dedução de incidente de intervenção de terceiros, desde logo porque «I. O incidente de intervenção não permite que a demandante substitua o demandado/arguido contra quem, por erro, formulou o seu pedido de indemnização civil. II. A Seguradora é quem, desde o início, tinha que ter sido demandada, inexistindo no caso, atento o valor do pedido, litisconsórcio necessário passivo. III- A ilegitimidade passiva singular é insanável ou insuprível, não podendo ser ultrapassada por via do incidente de intervenção provocada.» (cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 31 de janeiro de 2024, processo n.º 1624/19.8T9PBL-A.C1, disponível em www.dgsi.pt). A ilegitimidade de alguma das partes consubstancia uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso (cf. artigos 577.º, alínea e) e 578.º, ambos do Código de Processo Civil), que determina a absolvição da instância (cf. artigo 576.º, n.º 2 do citado diploma legal). Por todo o exposto e com esses fundamentos, decido julgar procedente a exceção de ilegitimidade passiva arguida pela Ré e, em consequência, decido absolvê-la da instância. A responsabilidade pelo pagamento das custas processuais fica a cargo dos Autores, ao abrigo do disposto no artigo 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil. Notifique e registe.”.
*
Desta decisão foi interposto recurso pelos AA, findo o qual formularam as seguintes conclusões ( que se transcrevem):
[…]
*
A R apresentou contra-alegações e pugnou pela manutenção da decisão recorrida.
*
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo e foi proferido despacho nos termos do art. 617º do CPC que se transcreve:
“ II. Da nulidade suscitada (cf. artigo 617.º e 641.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) Inconformada com a decisão proferida no dia 17-09-2024, na qual decidiu absolver a Ré da instância por ter concluído pela existência de ilegitimidade passiva, veio a Autora dela interpor recurso, arguindo a respetiva nulidade, por entender que o Tribunal não se pronunciou sobre as questões que foram colocadas pela Recorrente, nomeadamente, a circunstância de estarem excluídos da garantia obrigatória do seguro os danos causados em terceiros em consequência de operações de carga e descarga e, bem assim, o artigo 130.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (Decreto-lei n.º 72/2008, de 16 de abril), onde se pode ler que o segurador apenas responde pelos lucros cessantes (sendo este o pedido formulado) se assim for convencionado, convenção essa que não se demonstra no caso sub iudice. Dispõe o artigo 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil que «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; (…)», acrescentando o artigo 615.º, n.º 1, alínea d) que «É nula a sentença quando: (…) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento». No caso dos autos, decidiu-se pela ilegitimidade passiva da Ré com fundamento no artigo 64.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, inexistindo qualquer pronúncia acerca da (in)aplicabilidade do artigo 14.º, n.º 4, alínea c) do citado diploma legal, que tipifica uma causa de exclusão da garantia do seguro, nem sobre a previsão do artigo 130.º, n.º 2 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (Decreto-lei n.º 72/2008, de 16 de abril), pelo que assiste razão à Recorrente quando sustenta que o julgador não se pronunciou sobre questões que deveria apreciar. Nesta decorrência, decido declarar a nulidade do despacho de 17-09-2024, procedendo-se de seguida à sanação de tal invalidade, pronunciando-me quanto às aludidas questões.
*
Na petição inicial e quanto à dinâmica do acidente, alega a Autora que o veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-JB-.. foi estacionado no sentido ascendente da rua ... e, quando AA e BB efetuavam uma operação de descarga da viatura, a mesma deslizou, em marcha-atrás, e embateu no prédio sito nessa mesma rua, com os números de polícia ...4 e ...6. Pois bem, após a análise desta pequena súmula do que se encontra descrito na petição inicial, é entendimento da signatária que não tem aplicação o disposto no artigo 14.º, n.º 4, alínea c) do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, uma vez que o evento em crise nos autos não foi oriundo de uma operação de carga e descarga, mas sim do deslizamento do veículo, em marcha atrás (vide artigo 8.º da petição inicial) – cf., entre outros, acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 25-01-2010, processo n.º 170/05.1TBAFE.P1, do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-03-2015, processo n.º 1533/12.1TBGRD.C1 disponível em www.dgsi.pt. Salvo melhor entendimento, tal exclusão apenas se aplica quando os danos causados em terceiros são diretamente provocados por uma operação de carga e descarga (por exemplo, a queda da mercadoria em cima de um terceiro ou de qualquer outra coisa móvel/imóvel). O mesmo argumento é valido para afastar a aplicação da indicada cláusula quinta, número 4-c) da apólice de seguro n.º ...09. Já no que diz respeito ao alegado quanto ao artigo 130.º, n.º 2 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, é também nosso entendimento que o mesmo não tem aplicação no caso em apreço, pois as únicas exclusões da garantia do seguro obrigatório são aquelas que se encontram tipificadas no Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, o qual não determina o respetivo afastamento quando estejam em causa lucros cessantes . Ante o exposto e com esses fundamentos, mantenho na íntegra a decisão agora recorrida, acrescentando todo o acima exposto quanto aos argumentos aduzidos pela Recorrente. Consigna-se que este despacho será considerado um complemento e parte integrante da decisão de 17-09-2024 (ref.ª citius 40017360). Notifique, sendo as partes nos termos e para os efeitos previstos no artigo 617.º, n.os 3 e 4 do Código de Processo Civil.”
*
O recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Questões a decidir.
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em:
1- Analisar se a decisão recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia;
2- Se deve ou não ser mantida a decisão recorrida.
*
III. Fundamentação de facto.
Os factos que relevam para apreciar a questão que se encontra submetida à apreciação do tribunal ad quem são os que constam do relatório acima elaborado.
*
IV. Do objeto do recurso.
1- Analisar da existência de omissão de pronúncia:
Os recorrentes invocam a alínea d) do art. 615º do CPC e sustentam que é nula a decisão recorrida por omissão de pronúncia, na medida em que não conheceu de duas questões alegadas e suscitadas num requerimento junto aos autos ao abrigo do princípio do contraditório referente à exceção da ilegitimidade passiva deduzida na contestação.
A Mª Juíza a quo pronunciou-se nos termos do art. 617º do CPC e, em síntese, sustentou existir omissão de pronúncia acerca de tais questões e após conhecimento das mesmas, concluiu que atenta a alegação aduzida na petição inicial e em tal requerimento, será de manter a decisão da ilegitimidade singular da ré.
Vejamos.
Dispõe o artigo 615º, nº1, alínea d), do Código de Processo Civil que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Ora, a apreciação da questão suscitada da nulidade deixa de ter utilidade porquanto o tribunal a quo, no âmbito do despacho proferido ao abrigo do disposto no art. 617º do CPC, assentiu na existência de nulidade e suprindo a mesma, apreciou as questões suscitadas pelos recorrentes em requerimento autónomo.
Destarte, não há dúvidas sequer que, bem ou mal, houve pronúncia do tribunal a quo sobre todas as questões suscitadas.
Agora, a não concordância da parte com a subsunção efetuada às normas jurídicas de modo algum configura causa de nulidade da decisão recorrida.
A ser assim, como sem dúvida resulta que é, temos que a decisão recorrida não deixou de conhecer qualquer questão que devesse conhecer. Improcede, pois, a invocada nulidade.
*
2. E será que tal decisão padece de erro de julgamento?
Vejamos.
Na decisão recorrida expendeu-se [tendo em conta o disposto no «art.º 64.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, de 21.08, que aprova o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, sob a epígrafe da ilegitimidade passiva (…)»]:
“ verifica-se que a causa de pedir na presente ação é, grosso modo, o acidente de viação ocorrido no dia 21 de julho de 2021, bem como os restantes factos relacionados com os danos daí resultantes (…) In casu, o veículo identificado no artigo 4.º da petição inicial estava seguro na EMP02..., S.A. (…) Revertendo os factos e ensinamentos atrás expostos ao caso concreto, é apodítico que a Ré não tem legitimidade passiva para os presentes autos, pois que o citado artigo 64.º, n.º 1, alínea a) é inequívoco ao atribuir legitimidade passiva, apenas e só, à seguradora, quando o valor peticionado esteja dentro do capital mínimo obrigatório, como se verifica….”
No despacho proferido ao abrigo do disposto no art. 617º do CPC ainda como complemento daquela decisão considerou-se que não foi alegada qualquer situação que exclua a seguradora da sua responsabilidade, seja legalmente ( e nos termos do artigo 130.º, n.º 2 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, quer das exclusões previstas no Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto), seja porque não foi alegado que o evento foi oriundo de uma operação de carga e descarga, mas sim de um deslizamento do veículo, em marcha atrás, concluindo, assim, e à luz do artigo 64º,nº1, al.a), do DL 291/2007, de 21 de agosto, que existindo, como existe no caso vertente, contrato de seguro, o que os AA não desconheciam, e contendo-se o montante por si peticionado dentro do capital mínimo do seguro obrigatório, o pedido formulado, fundado em acidente de viação, tinha de ter sido obrigatoriamente deduzido contra a Companhia de Seguros, e unicamente contra esta, a única que possuía legitimidade para ser demandada.
Mas tal não aconteceu.
Os AA demandaram a Ré sociedade por, conforme, alegam nos art.s 96º e ssgs da p.i., ser “ a ré, proprietária do veículo automóvel causador do acidente em questão, e dos Senhores AA e BB, respetivamente, na altura do acidente, motorista e ajudante de motorista, de tal veículo automóvel, estar em juízo”.
Por conseguinte, o que se discute no presente recurso é da possibilidade de se demandar, em ação de indemnização por acidente de viação, apenas o segurado, por ser proprietário do veículo que causou o acidente, quando existe seguro válido e pedido ainda se contém dentro dos limites do seguro.
Vejamos. Prima facie, importa salientar que uma coisa é a legitimidade processual, constituindo um pressuposto processual relativo às partes, que se afere, na falta de indicação da lei em contrário, face à relação material controvertida tal como configurada pelo A., e cuja falta, determina a verificação da correspondente exceção dilatória, dando lugar à absolvição do Réu da instância, cfr. artigos 576º, n.º 2 e 577º, alínea e), ambos do Código de Processo Civil.
Outra, a legitimidade substancial ou substantiva, que tem que ver com a efetividade da tal relação material, interessando já ao mérito da causa.
A aferição da legitimidade processual deverá ser achada de acordo com as regras gerais do art.30º do C. P. Civil, que prescreve: «1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer. 2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha. 3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.».
Distingue-se, assim, legitimidade das condições da ação.
A legitimidade, enquanto pressuposto processual, respeita às condições impostas ao exercício de uma situação subjetiva em juízo e as condições da ação referem-se aos aspetos dos quais depende a obtenção da tutela jurisdicional requerida (cfr. Ac. do STJ de 4-2-97, BMJ 464 - 545).
No ensinamento de Antunes Varela, "uma coisa é saber se as partes são sujeitos da pretensão formulada, admitindo que a pretensão exista. Outra coisa, essencialmente distinta, é apurar se a pretensão na verdade existe, por se verificarem os requisitos de facto e de direito que condicionam o seu nascimento, o seu objeto e a sua perduração. A primeira indagação interessa à legitimidade das partes; a segunda à procedência da ação."(in Manual, 2ª ed., pág. 134).
Em conclusão, à legitimidade, tal como hoje a lei adjetiva a concebe, interessa saber quem são os sujeitos da relação material controvertida, tal como o A. a configura, pertencendo ao mérito da causa saber se essa relação existe ou não existe.
“ Assim avaliado tal pressuposto por um critério formal, o autor é parte legítima se, atenta a relação jurídica que invoca, surgir nela como sujeito suscetível de beneficiar diretamente do efeito jurídico pretendido; já o réu terá legitimidade passiva se for diretamente prejudicado com a procedência da ação. A exigência de um “interesse” emergente da pronúncia judicial, reconduz-nos a um interesse direto e indica que é irrelevante para o efeito um mero interesse indireto, reflexo ou mediato, ou ainda mais um interesse diletante ou de ordem moral ou académica” ( in CPC Anotado, de G.P.S., p. 63, 2ªed.).
Para além das situações de legitimidade direta, existem, igualmente, situações de legitimidade indireta ou extraordinária, com inscrição no 1º segmento do n.º 3 do mesmo art. 30º do CPC, nomeadamente quando se referencia “na falta de indicação da lei em contrário”.
“ Casos há ainda em que é a própria lei que identifica o detentor da legitimidade ativa ou passiva, prevalecendo tal indicação sobre a eventual alegação do autor em sentido inverso, como ocorre, em situações de legitimidade indireta ou extraordinária que é atribuída ao cabeça de casal ou administrador do condomínio” ( in CPC Anotado de G.P.S., p. 64).
Um dos variados casos em que a lei consagra um regime especial no tocante à legitimidade passiva é justamente o das ações destinadas à efetivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, nos termos previstos no art. 64º, n.º 1, al. a), do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21/08.
Conforme resulta do citado normativo de cariz processual, se o pedido formulado não ultrapassar o valor do capital mínimo obrigatório, o civilmente responsável é parte ilegítima, só podendo intervir na demanda através da figura da intervenção principal provocada, da iniciativa da seguradora.
Sendo demandado diretamente o tomador de seguro ou ambos (tomador e seguradora) existe ilegitimidade do tomador.
Só quando o pedido formulado ultrapassar o montante do capital mínimo obrigatório é que a ação deve ser proposta contra a seguradora e o civilmente responsável (cfr. al. b) do citado dispositivo legal), verificando-se, então, um litisconsórcio necessário passivo, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 30º, 33º, 35º e 577º, al. e) do CPC.
Como se lê no AC deste TRG de 13-07-2021 ( relator: Alcides Rodrigues, in dgsi) “ Com o regime instituído pela al. a) do n.º 1 do art. 64º do Dec. Lei n.º 291/2007 (15) visou-se evitar que o responsável civil esteja sujeito a ter de suportar os encargos e incómodos de uma acção quando exista, por virtude do contrato de seguro, uma entidade contratualmente responsável pela indemnização (16). Isto porque a dedução da ação, na prática, não trará consequências diretas ao lesante, na medida em que será a seguradora quem vai satisfazer a pretensão do lesado. O aludido regime “implica, dentro dos capitais garantidos pelo seguro obrigatório, uma verdadeira limitação ao direito de acção judicial do lesado contra o lesante. Este, apesar de ser sujeito passivo do dever de indemnizar, carece de legitimidade passiva para ser inicialmente demandado pelo lesado sempre que a acção, pelo seu montante, se confine nos limites do seguro obrigatório (...)” (17). O mesmo é dizer que o segurado adquire, com esta norma, uma certa “imunidade” perante o terceiro lesado (18). Em suma, o regime estabelece a legitimidade processual passiva da seguradora, em prejuízo da legitimidade do próprio lesante, tomador do seguro, ou segurado. No âmbito dos acidentes de viação, não temos a possibilidade de o lesado demandar diretamente a seguradora, temos antes uma obrigatoriedade (19).”.
Ora revertendo aqueles considerandos para o caso vertente, constatamos que estamos perante ação indemnizatória, em cujo âmbito se pretende a efetivação de responsabilidade civil por facto ilícito, em consequência de acidente de viação e dos danos daí decorrentes, que importa sejam indemnizados aos AA.
Ou seja, temos o seguinte quadro: os AA alegaram a existência de um acidente de viação, alegadamente culposo e gerador de danos por parte do veículo de que é proprietária a ré, e, por outro lado, a existência de seguro obrigatório automóvel de que beneficiava o veículo lesante, assim determinando a transferência de responsabilidade civil, quanto ao dever de indemnizar, para a R. seguradora, razão pela qual veio a decisão recorrida, por seu lado, a aplicar a norma plasmada no dito art.º 64.º, n.º 1, do DLei n.º 291/2007, de 21-08, diploma que aprova o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (no concernente à legitimidade das partes), mormente o respetivo n.º 1, al.ª a), de que resulta que as ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente «Só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório”.
Mais concretamente, no caso em apreço, foi alegado um sinistro com deslizamento da viatura em marcha-atrás e inequivocamente consubstanciador de um acidente de viação, embatendo o veículo contra um prédio e causando danos, e os valores peticionados contêm-se naqueles montantes mínimos.
Logo, tal como se concluiu na decisão recorrida, atenta a existência de seguro obrigatório e os valores dos pedidos, é manifesta a ilegitimidade passiva da pessoa civilmente responsável (segurado ré).
Não se ignora, todavia, o normativo do art.º 39.º do C.P.C., referente a situações – possíveis – de «pluralidade subjetiva subsidiária», dispondo que:
«É admitida a dedução subsidiária do mesmo pedido, ou a dedução de pedido subsidiário, por autor ou contra réu diverso do que demanda ou é demandado a título principal, no caso de dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida.».
Como referem Abrantes Geraldes e outros a este respeito (in ob. cit.p.75):
«(…) nem sempre é percetível para o autor a verdadeira titularidade da relação jurídica litigada. Circunstâncias existem que podem justificar uma opção pela pluralidade subjetiva subsidiária que tanto pode respeitar ao titular do direito invocado, como ao sujeito passivo da relação controvertida. Esta é uma solução pragmática (…). Tal mecanismo dependerá, contudo, da verificação de uma situação de fundada dúvida sobre o elemento subjetivo, justificando (…) que o autor demande um determinado réu e, precavendo-se quanto à sua legitimidade, demande subsidiariamente outro réu. Pode envolver mesmo a dedução de um pedido por um autor ou contra um determinado réu e outro pedido subsidiário por autor ou contra réu diverso.».
Sem embargo, no caso dos autos, não foi caraterizada – e teria de sê-lo, no campo da legitimidade processual – a mencionada «pluralidade subjetiva subsidiária», visto nada ter sido indicado em termos de subsidiariedade, seja de causas de pedir, seja de pedidos.
E o que dizer sobre a alegação aduzida pelos AA quando foram notificados no âmbito do princípio do contraditório acerca da exceção da ilegitimidade invocada na contestação?
Com efeito, os apelantes, perante a invocação pela apelada da exceção da ilegitimidade passiva, na sequência da notificação que lhes foi dirigida pela 1ª Instância para que se pronunciassem, querendo, quanto a essa exceção deduzida na contestação, vieram, no requerimento que juntaram, tentar suprir eventual falha de alegação, procurando alegar facticidade donde eventualmente se pudesse concluir pela não aplicabilidade das regras do seguro automóvel por se verificarem causas de exclusão, como seja a alegada operação de carga e descarga, quando na petição inicial se alega que a causa do acidente foi diferente- art. 8º a 14º da p.i.- “o veículo começou a deslizar, em marcha atrás, desgovernada, pois que sem condutor…estacionaram, na cidade ..., na Rua ..., não terem travado, engrenado e calçado, tal viatura, o que é também exigido pelas regras gerais de segurança no estacionamento de veículos automóveis, principalmente pesados, e em ruas inclinadas, regras essas constantes de diversas normas legais, designadamente o Código da Estrada.”.
Além do mais, consideramos que com a alegação dessa facticidade, o apelante pretende ampliar a causa de pedir que inicialmente tinha alegado na petição inicial, com vista a que se desconsiderasse a inclusão da situação como garantida pelo contrato de seguro automóvel.
Fê-lo, porém, ilegalmente, dado que, é consabido, os factos essenciais da causa de pedir em que os apelantes estribaram o seu pedido tinham de ser por eles alegados na petição inicial, pelo que aquela facticidade ampliada naquele requerimento jamais poderia ser considerada pelo tribunal nos presentes autos.
Porque assim é, bem andou a 1ª Instância em julgar procedente a exceção dilatória da ilegitimidade passiva da Ré/apelada para a presente causa e ao absolvê-la da instância.
Ainda que assim se não entendesse, e ainda que se ponderasse aquela alegação aduzida pelos AA, conforme se lê na decisão recorrida e no que concordamos “ não tem aplicação o disposto no artigo 14.º, n.º 4, alínea c) do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, uma vez que o evento em crise nos autos não foi oriundo de uma operação de carga e descarga, mas sim do deslizamento do veículo, em marcha atrás (vide artigo 8.º da petição inicial) – cf., entre outros, acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 25-01-2010, processo n.º 170/05.1TBAFE.P1, do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-03-2015, processo n.º 1533/12.1TBGRD.C1 disponível em www.dgsi.pt. Salvo melhor entendimento, tal exclusão apenas se aplica quando os danos causados em terceiros são diretamente provocados por uma operação de carga e descarga (por exemplo, a queda da mercadoria em cima de um terceiro ou de qualquer outra coisa móvel/imóvel). O mesmo argumento é valido para afastar a aplicação da indicada cláusula quinta, número 4-c) da apólice de seguro n.º ...09. Já no que diz respeito ao alegado quanto ao artigo 130.º, n.º 2 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, é também nosso entendimento que o mesmo não tem aplicação no caso em apreço, pois as únicas exclusões da garantia do seguro obrigatório são aquelas que se encontram tipificadas no Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, o qual não determina o respetivo afastamento quando estejam em causa lucros cessantes”.
Por isso, se conclui pela improcedência da apelação e consequente manutenção da decisão recorrida que julgou verificada a exceção de ilegitimidade passiva da ré, ilegitimidade passiva singular insanável ou insuprível, não podendo ser ultrapassada por via do incidente de intervenção provocada que tinha sido pedido por ambas as partes ( questão que nem sequer foi ventilada no recurso, não fazendo parte do objeto do mesmo e daí não ser alvo de apreciação autónoma, por não ser de conhecimento oficioso).
*
As custas do recurso, mercê do princípio da causalidade, são integralmente da responsabilidade dos recorrentes, atento o seu integral decaimento (art. 527º do CPC).
*
V. Decisão:
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam as Juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelos AA/recorrentes.
Notifique.