IN DUBIO PRO REO
VÍCIOS DO ARTº 410º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
PRODUÇÃO DE PROVA
OFICIOSA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário

1 – O princípio in dubio pro reo apenas será de aplicar quando o julgador, finda a produção de prova, tenha ficado com uma dúvida não ultrapassável relativamente a factos relevantes, devendo, unicamente nesse caso, decidir a favor do arguido.
2 - A sua eventual violação tem de resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, só podendo ser sindicada, conformando a sua violação uma autêntica questão de direito, se da decisão resultar que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, perante esse estado de dúvida, decidiu contra o arguido.
3 – Havendo factos não apurados relevantes para a decisão da causa que o tribunal deixou de investigar, como devia e podia, verifica-se uma omissão prejudicial da lógica jurídica subjacente à absolvição, que não se basta na aplicação do princípio in dubio pro reo.
4 – É dever do tribunal, em ordem a poder proferir uma decisão justa, apurar/clarificar o real quadro factual, ao abrigo do disposto no art.º 340.º do CPP, sob pena de desadequada subsunção jurídica.

Texto Integral

Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. No processo comum singular n.º 451/22.0T9AMD do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal da Amadora – Juiz 2, foi proferida sentença a 28.11.2024, que decidiu absolver o arguido AA, melhor identificado nos autos, da prática de um crime de desobediência simples, p. e p. pelo art.º 348.º, n.º 1 do Código Penal.
2. Não se conformando com a decisão absolutória, veio o Ministério Público interpor recurso para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes conclusões:
1. Constitui objecto do presente recurso a sentença que absolveu o arguido da prática do crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
2. Trazemos a decisão absolutória à apreciação de V. Exas. porque entendemos que a mesma enferma de erro de julgamento na apreciação e interpretação da prova produzida, afectando a decisão de facto, assim como de erro na aplicação do princípio in dubio pro reo.
3. Em sede de fundamentação da sentença o tribunal deu como provada toda a factualidade referente aos elementos objectivos do referido crime, nomeadamente que no âmbito do processo n.º 102/21.0PHAMD o arguido foi condenado numa pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, por sentença transitada em julgado, que foi pessoalmente notificado, através da PSP, do teor da referida sentença, na qual se estabeleceu a obrigação de entrega da sua carta de condução na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial no prazo de 10 (dez) dias após o trânsito em julgado, sob pena de incorrer num crime de desobediência, que apesar de ter tomado conhecimento do teor da sentença não entregou a sua carta de condução no prazo estabelecido, que sabia que devia proceder à entrega do seu título de condução e do prazo para o efeito, mas que não actuou com o propósito de faltar à obediência devida à ordem que lhe fora regularmente comunicada e cuja observância lhe era imposta sabendo que tal conduta lhe estava vedada por lei e era penalmente punida.
4. Na motivação da decisão de facto refere o tribunal que sedimentou a sua convicção relativamente à factualidade dada como provada e não provada “no conjunto de prova documental junta aos autos e produzida em audiência de julgamento, apreciada criticamente e com base nas regras da experiência’”, concretamente “(n)o teor da certidão de fls. 2 a 6, informação de fls. 23 e ofício de notificação pessoal, ao arguido, da sentença proferida no processo nº 102/21.0PHAMD, determinado juntar em audiência de julgamento”, “(n)as declarações que o arguido optou por prestar, apreciadas em conjunto com a aludida documentação e à luz das regras da experiência e da lógica”, bem como “teve em conta o Certificado de Registo Criminal junto aos autos”.
5. No nosso entendimento a dimensão fáctica apurada, face aos elementos de prova elencados em confronto com as regras de experiência comum, faz afastar por completo a versão trazida pelo arguido, concretamente que “(...) após ser notificado de que tinha de entregar a sua carta de condução em “30 dias”, ainda tentou proceder à entrega da sua carta de condução em esquadra da PSP, mas a mesma não foi aceite, com a menção, por parte do agente da PSP que o atendeu que deveria aguardar pela recepção de uma carta que lhe determinasse aquela entrega, o que nunca veio a ocorrer”.
6. Com efeito, não se revela coerente nem de acordo com as regras da experiência e da lógica que o arguido se tenha dirigido a uma esquadra da P.S.P. munido da cópia de uma sentença que determina que proceda à entrega do seu título de condução para cumprimento de uma pena acessória em que foi condenado e que aí lhe tenha sido recusada a entrega de tal título, ainda para mais com a alegação que ainda deveria aguardar pela recepção de uma carta que lhe determinasse aquela entrega para o poder fazer.
7. Por outro lado, também não se mostra credível que mesmo que assim fosse, o arguido, pessoa já anteriormente condenada por duas vezes na mesma pena acessória de proibição de conduzir, e portanto perfeitamente sabedor das consequências da falta de entrega do seu título de condução, nomeadamente ao nível da sua responsabilização penal, se tivesse bastado com tal alegação e não tivesse, no mínimo, questionado ou exposto a situação ao processo onde foi condenado, de modo a confirmar a veracidade do que lhe havia sido transmitido e a assegurar-se de que não estaria a incumprir a ordem de entrega da carta que lhe havia sido imposta pelo tribunal, assim como tivesse deixado passar tanto o prazo concedido para a entrega da carta bem como para o recurso da sentença, que não interpôs, sem que tivesse diligenciado por efectivamente proceder à entrega de tal título.
8. A prova produzida nos autos demonstra, com segurança, que o arguido limitou-se a aventar uma versão e que não procedeu à entrega do seu título de condução com consciência de que agiu em desrespeito do que lhe foi ordenado pelo tribunal na sentença condenatória proferida no processo n.º 102/21.0PHAMD, ou pelo menos que agiu conformando-se com tal resultado.
9. O tribunal, porém, justifica que “pese embora tal versão se tivesse mostrado pouco plausível no que atém à referida informação da necessidade do arguido aguardar pela recepção de uma “carta” que lhe impusesse a efectiva entrega do seu título de condução, ainda assim mostrou-se igualmente plausível que, numa eventual deslocação do arguido a esquadra da PSP, munido, aparentemente, apenas, de cópia da notificação da sentença proferida no processo nº 102/21.0PHAMD - e assim se compreendendo a referência do arguido a um prazo de “30 dias”, confundindo o da entrega da carta com o concedido para recurso daquela decisão - perante o desconhecimento de essa decisão se te tornado, ou não, definitiva, algum agente da PSP pudesse informar o arguido de que deveria aguardar pelo trânsito em julgado daquela” e que “nessa medida, constatou-se que não foi produzida prova suficiente e idónea para contrariar a versão dos factos pugnada pelo arguido”, pelo que “fazendo apelo aos critérios da experiência comum, ficou a dúvida, séria e razoável, se o arguido actuou (ou não) com o deliberado propósito de incumprir a ordem que lhe tinha sido transmitida, dúvida que, em obediência ao princípio in dubio pro reo, foi resolvida em seu benefício”.
10. Ora, “para fazer desencadear a aplicação do princípio in dúbio pro reo é necessário, que a versão do arguido seja plausível e demonstrável, pois só uma versão credível subjaz a uma dúvida racional, não bastando a mera plausibilidade e verosimilhança da sua versão para que surja sem mais, a dúvida séria e razoável.”
11. E no presente caso, porém, tal como resulta da fundamentação da sentença, o tribunal bastou-se com a versão apresentada pelo arguido, com uma possibilidade que não foi demonstrada nem esclarecida, e que prescindiu de efectuar diligências possíveis e que poderiam ter sido ordenadas, tendentes a esclarecer a ocorrência da versão apresentada pelo arguido e a ultrapassar a dúvida que diz ter sido criada.
12. É que “a dúvida que fundamenta o princípio in dubio pro reo terá de ser insanável, razoável e objectivável. Assim, a dúvida insanável pressupõe que houve todo o empenho e diligência do tribunal no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza.
13. Por todo o exposto, além de entendermos que face à prova produzida o tribunal dispunha de elementos para interpretar os factos como efectivamente ocorreram, temos também que fez uso indevido do princípio do in dubio pro reo para sustentar a sua decisão quanto ao facto dado como não provado, e, consequentemente, para legitimar a absolvição do arguido.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, entendemos que deverá conceder-se provimento ao presente recurso, e, em consequência alterar-se a matéria de facto conforme propugnado e decidir-se da causa condenando o arguido pela prática do crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
3. O arguido não apresentou resposta ao recurso.
4. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, acompanhando o recurso apresentado pelo Ministério Público junto da 1.ª instância e concluindo pela sua procedência.
5. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante designado CPP), foi apresentada resposta pelo arguido, pugnando, em suma, “por nenhum concreto e relevante vício ou erro técnico – jurídico – que importasse expurgar ou reparar – haver sido validamente apontado (ou de conhecimento oficioso se reconhecer) ao referido acto decisório, impor-se-á, apodicticamente, concluir pela manifesta improcedência do avaliando recurso e pela consequente rejeição, cf. artigo 420º, n.º 1, alínea a) do C.P.P.”.
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art.º 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art.º 410.º n.º 2 CPP.
No caso concreto, atendendo às conclusões da motivação de recurso, cumpre apreciar a seguinte questão:
• Do erro de julgamento e uso indevido do princípio in dubio pro reo.
2. Da sentença recorrida
2.1. O tribunal a quo deu como provada e não provada a seguinte factualidade:
FACTOS PROVADOS
a. Por sentença proferida no processo abreviado número 102/21.0PHAMD, que correu termos no Juiz 1 do Juízo Local Criminal da Amadora, Comarca de Lisboa Oeste, o arguido foi condenado na pena de 3 meses e prisão, suspensa na sua execução por 1 ano e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de nove meses, sentença que transitou em julgado no dia 15/10/2021, sendo que posteriormente a supra referida pena de prisão foi declarada extinta pelo cumprimento.
b. No dia 23/07/2021, o arguido foi pessoalmente notificado, através da PSP, do teor da referida sentença, que estabeleceu a obrigação da entrega da sua carta de condução na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial no prazo de 10 (dez) dias após o trânsito em julgado, sob pena de incorrer num crime de desobediência.
c. Contudo, apesar de ter tomado conhecimento do teor da sentença supra referida, o arguido não entregou a sua carta de condução no prazo estabelecido.
d. O arguido sabia que devia proceder à entrega do seu título de condução no prazo de 10 dias a contar da data do trânsito em julgado da referida sentença.
e. O arguido encontra-se a exercer actividade laboral como ..., do que aufere cerca de 900,00 € mensais.
f. Reside com uma companheira e dois filhos, de 9 e 15 anos de idade, em casa cedida pela irmã do arguido.
g. Tem, como habilitações literárias, o 10º ano de escolaridade.
h. Além da condenação supra referida, o arguido possui as demais condenações criminais registadas que constam do seu CRC junto aos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provou que o arguido actuou com o propósito de faltar à obediência devida à ordem que lhe fora regularmente comunicada e cuja observância lhe era imposta sabendo que tal conduta lhe estava vedada por lei e era penalmente punida.
2.2. O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos:
A convicção do Tribunal acerca da matéria de facto ancorou-se no conjunto de prova documental junta aos autos e produzida em audiência de julgamento, apreciada criticamente e com base nas regras da experiência.
Assim, teve-se em conta o teor da certidão de fls. 2 a 6, informação de fls. 23 e ofício de notificação pessoal, ao arguido, da sentença proferida no processo nº 102/21.0PHAMD, determinado juntar em audiência de julgamento.
E, no mais, tiveram-se em conta as declarações que o arguido optou por prestar, apreciadas em conjunto com a aludida documentação e à luz das regras da experiência e da lógica.
O arguido, em síntese, reconheceu ter tomado conhecimento do teor da sentença proferida no referido processo nº 102/21.0PHAMD e da condenação por si sofrida, bem como da notificação dela constante para proceder à entrega da sua carta de condução e as condições e prazo em que o deveria fazer, sendo certo que tal conhecimento apenas ocorreu em data que não sabe precisar.
Mais referiu que, após ser notificado de que tinha de entregar a sua carta de condução em "30 dias", ainda tentou proceder à entrega da sua carta de condução em esquadra da PSP, mas a mesma não foi aceite, com a menção, por parte do agente da PSP que o atendeu, que deveria aguardar pela recepção de uma carta que lhe determinasse aquela entrega, o que nunca veio a ocorrer até que se ausentou para o estrangeiro em Fevereiro de 2022, apenas retornando a território nacional em 2023.
E mais declarou que acabou por não proceder à entrega devida até à presente data, dado desconhecer se o deveria fazer.
Ora, pese embora tal versão se tivesse mostrado pouco plausível no que atém à referida informação da necessidade do arguido aguardar pela recepção de uma "carta" que lhe impusesse a efectiva entrega do seu título de condução, ainda assim mostrou-se igualmente plausível que, numa eventual deslocação do arguido a esquadra da PSP, munido, aparentemente, apenas, de cópia da notificação da sentença proferida no processo nº 102/21.0PHAMD - e assim se compreendendo a referência do arguido a um prazo de "30 dias", confundindo o da entrega da carta com o concedido para recurso daquela decisão - perante o desconhecimento de essa decisão se te tornado, ou não, definitiva, algum agente da PSP pudesse informar o arguido de que deveria aguardar pelo trânsito em julgado daquela.
E, nessa medida, constatou-se que não foi produzida prova suficiente e idónea para contrariar a versão dos factos pugnada pelo arguido.
Ou seja, fazendo apelo aos critérios da experiência comum, ficou a dúvida, séria e razoável, se o arguido actuou (ou não) com o deliberado propósito de incumprir a ordem que lhe tinha sido transmitida, dúvida que, em obediência ao princípio in dubio pro reo, foi resolvida em seu benefício.
Já no que concerne à factualidade atinente às actuais condições pessoais, familiares e económicas do arguido, a respectiva prova resultou das declarações que prestou nesse âmbito.
Quanto aos registos criminais do arguido, o Tribunal teve em conta o Certificado de Registo Criminal junto aos autos.
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3. Apreciando
Como é sabido, e resulta do disposto no art.º 368.º aplicável ex vi art.º 424.º n.º 2, ambos do CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer, em primeiro lugar das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão e só após das que a este respeitem, começando pelas relativas à matéria de facto, e, dentro destas, dos vícios previstos no art.º 410.º n.º 2 do CPP e depois pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada. Finalmente, e sendo o caso, debruçar- -se-á sobre os assuntos respeitantes à matéria de direito.
Nessa medida, independentemente da ordem pela qual o recorrente suscita as questões, na sua apreciação o tribunal de recurso deve seguir uma ordem de precedência lógica que atende ao efeito do conhecimento de umas em relação às outras, tendo por referência a ordem indicada na disposição legal citada.
Desta feita, e no que importa à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, temos que a mesma pode ser impugnada por duas vias:
- com fundamento no próprio texto da decisão, por ocorrência dos vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 do CPP (impugnação em sentido estrito, no que se denomina de «revista alargada»).
- mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP (impugnação em sentido lato).
O Digno recorrente não aponta à decisão nenhum dos vícios elencados no art.º 410.º, n.º 2 do CPP, antes assentando o seu “protesto” em termos amplos, ou seja, com base num alegado erro de julgamento, questionando a avaliação que o tribunal fez das declarações do arguido, porquanto, na sua perspetiva, houve lugar a uma inconsistente aplicação do princípio in dubio pro reo.
O princípio em questão tem efetiva relevância e aplicação no domínio da apreciação da prova. Porém, refletindo-se nos contornos da decisão de facto, apenas será de aplicar quando o julgador, finda a produção de prova, tenha ficado com uma dúvida não ultrapassável relativamente a factos relevantes, devendo, apenas nesse caso, decidir a favor do arguido.
Assim considerando, a violação desse princípio apenas tem lugar quando, num estado de dúvida insanável, o tribunal opte por decidir de forma desfavorável ao arguido.
Sem prejuízo, a sua eventual violação tem de resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, só podendo ser sindicada, conformando a sua violação uma autêntica questão de direito, se da decisão resultar que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, perante esse estado de dúvida, decidiu contra o arguido.
Ora, da análise da peça processual colocada em crise não se vislumbra a ocorrência de qualquer erro notório, ou seja, qualquer “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum (…) de onde resulta que o “tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das lege artis” (Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, “Recursos Penais”, 9.ª ed. 2020, Editora Rei dos Livros, p. 81).
Ao invés, vislumbra-se, no texto da decisão recorrida, a verificação do vício a que se refere a alínea a), do n.º 2 do art.º 410.º do CPP – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ou seja, uma efetiva “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão do de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher” (in op. cit. p. 75).
Com efeito, as declarações do arguido “impressionaram” o tribunal a quo, que se “escudou”, de modo a justificar o seu juízo absolutório, na aplicação do princípio in dubio pro reo.
Melhor dizendo, o tribunal recorrido apelou a uma “eventual deslocação do arguido a esquadra da PSP, munido, aparentemente, apenas, de cópia da notificação da sentença (…)” para sedimentar uma incerteza, que reputou “séria e razoável”, justamente a de saber se “o arguido atuou (ou não) com o deliberado propósito de incumprir a ordem que lhe tinha sido transmitida”.
Todavia, a matéria de facto provada não esclarece essa impossibilidade, ou sequer, nos termos residualmente pretendidos pelo Digno recorrente que, no limite, tivesse o arguido atuado conformando-se com tal resultado.
Deveras, foram de facto omitidas pelo tribunal recorrido diligências também por nós tidas como relevantes.
Com efeito, e nos termos alegados pelo Digno recorrente “impunha-se desde logo que o tribunal lograsse indagar em que dia e a que esquadra o arguido se deslocou, para depois tentar aferir quem estaria de serviço e pudesse ter dado tal informação ou confundido o arguido. Só depois de pelo menos efectuadas estas diligências, esgotadas as tendentes a demonstrar a ocorrência da versão apresentada pelo arguido e a ultrapassar a dúvida que diz ter sido criada, e consoante o seu resultado, é que poderia eventualmente afirmar a existência de uma dúvida “séria e razoável” e de fazer operar o princípio in dubio pro reo”.
O “salto” dado pelo tribunal a quo, bastando-se nas declarações do arguido para concluir pelo não preenchimento do tipo subjetivo correspondente ao crime de desobediência, pode e deve ser preenchido através das diligências de prova apontadas pelo Digno recorrente.
É para esta realidade que também nós chamamos a atenção, ou seja, o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa materialidade não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do tribunal.
Em suma: há factos não apurados, referentes ao preenchimento do tipo subjetivo correspondente ao ilícito criminal em apreciação, que são relevantes para a decisão da causa e que o tribunal deixou de investigar, como devia e podia, sendo, por isso, a matéria de facto insuscetível de adequada subsunção jurídica.
O suprimento deste vício, subsumível à alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, pese embora de conhecimento oficioso, não pode ser realizado por este Tribunal da Relação, pois implica a produção da prova necessária à decisão da questão, como seja, a de indagar em que dia e a que esquadra o arguido se deslocou, para depois tentar aferir quem estaria de serviço e pudesse ter ou não confundido o arguido, omissão prejudicial da lógica jurídica subjacente à absolvição, sendo dever do tribunal a quo apurar/clarificar o real quadro factual, ao abrigo do disposto no art.º 340.º do CPP, em ordem a poder proferir uma decisão justa.
A questão de facto é da competência do Tribunal do Julgamento, com necessária procedência do recurso.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em, nos termos dos artigos 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1 al. c), 410.º, n.º 2, alínea a), e 428.º do CPP, oficiosamente declarar a insuficiência da matéria de facto para a decisão e determinar, conforme o disposto no artigo 426.º do CPP, o reenvio do processo para novo julgamento, mas unicamente quanto aos aspetos atrás mencionados, valendo o critério estabelecido no artigo 426.º-A, nºs 1 e 2, do mesmo código.
Sem custas.
Notifique.
*
Lisboa, 8 de abril de 2025
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)
Ester Pacheco dos Santos
Rui Poças
Sandra Oliveira Pinto