I – O princípio da adesão – consagrado no art.º 71.º do CPP – pressupõe a existência de um concreto processo penal ao qual o lesado possa aderir para o efeito de nele deduzir o pedido de indemnização civil fundado na prática do crime aí em causa;
II – Não existindo, à data da propositura da acção, qualquer processo penal – porque a notícia do crime nem sequer chegou ao Ministério Público – o tribunal cível é o competente para apreciar e julgar o pedido de indemnização aí formulado ainda que ele se funde em factos que constituam ou sejam susceptíveis de constituir crime, sendo, para o efeito, irrelevante a notícia do crime que, após esse momento, venha a ser dada ao Ministério Público.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Adjuntos: Maria João Areias
José Avelino Gonçalves
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I.
Citizens’ Voice – Consumer Advocacy Association, melhor identificada nos autos, veio instaurar acção popular contra A..., S.A., melhor identificada nos autos, formulando uma série de pretensões que, no essencial, correspondem:
- A ver declarado que a Ré, actuando pelo menos com negligência grosseira, especulou nos preços de determinados produtos e publicitou enganosamente os respectivos preços, violando uma série de normas legais (que identifica), lesando gravemente os interesses dos autores populares enquanto consumidores e causando danos aos interesses difusos de protecção do consumo de bens e serviços;
- À condenação da Ré a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados por referidas práticas ilícitas, no que respeita ao sobrepreço, em valor a determinar nos termos do artigo 609 (2), do CPC – ou, subsidiariamente, por equidade – acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
- À condenação da Ré a indemnizar os Autores pelos danos morais sofridos a fixar por equidade (mas nunca inferior a 0,53 euros, 0,5 euros e 0,80 euros por autor popular), acrescido de juros à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento;
- À condenação da Ré a indemnizar os Autores populares (todos os consumidores em geral, medidos por agregados familiares privativos) pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global.
A Ré contestou, invocando – na parte que agora releva – a incompetência material do Tribunal (Cível) onde a acção foi instaurada, alegando, em resumo:
- Que os factos que a Autora imputa à Ré e que servem de fundamento à sua pretensão correspondem a crime de especulação, previsto e punido pelo artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, que é um crime público e, como tal, de denúncia obrigatória (artigo 286.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal) e a contra-ordenação;
- Que, nessas circunstâncias e em face do princípio de adesão obrigatória que vigora no nosso ordenamento jurídico (art.º 71.º do CPP), os pedidos de indemnização formulados pela Autora teriam de ser processados juntamente com a acção penal;
- Que, por essa razão, o tribunal cível é incompetente em razão da matéria para a presente acção, pertencendo essa competência ao tribunal criminal por ser ele o materialmente competente para julgar o crime e contra-ordenações que fundamentam os pedidos de indemnização aqui formulados.
Na sequência dos trâmites legais e após resposta da Autora que se pronunciou pela improcedência da aludida excepção, foi proferida decisão onde se decidiu julgar o Juízo Central Cível de Leiria (onde a acção foi instaurada) incompetente em razão da matéria para preparar e julgar a presente acção.
Inconformada com essa decisão, a Autora veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
A Ré respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
II.
Questões a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir que, na sua essência, consiste em saber se o tribunal cível é (ou não) materialmente competente para julgar a presente acção, decompõe-se nos seguintes pontos:
· A aplicação do princípio da adesão e a verificação (ou não) de alguma das excepções a esse princípio (designadamente pelo facto de não ter sido deduzida acusação contra a Ré nem iniciado qualquer processo penal pelos factos aqui alegados, apesar da notícia do crime datar a 8 meses antes ou pelo facto de, à data da propositura da presente acção, ser impossível identificar todos os lesados e conhecer a total extensão dos danos);
· Inconstitucionalidade da aplicação rígida do princípio da adesão a ações populares (por corresponder a restrição inadmissível ao acesso à justiça e ao direito de ação popular e, consequentemente, a violação dos princípios constitucionais do direito de ação popular e do acesso ao direito e aos tribunais);
· O reenvio para interpretação prejudicial pelo TJUE das questões que importa suscitar.
III.
Considerou-se na decisão recorrida que o Juízo Central Cível de Leiria era incompetente em razão da matéria para preparar e julgar a presente acção, fundamentando-se tal decisão no princípio da adesão consagrado no art.º 71.º do CPP.
Segundo a decisão recorrida, as pretensões formuladas nesta acção assentam na prática de factos que são susceptíveis de integrar a prática de crimes e infracções económicas, nos termos das normas da legislação convocada pela própria Autora, pelo que, por força do princípio da adesão, era no processo penal que esses pedidos tinham que ser formulados por não se verificar, no caso, nenhuma das situações em que é permitida a dedução desses pedidos em separado e no tribunal cível.
Salvo o devido respeito, não poderemos concordar, uma vez que não existe qualquer norma jurídica da qual se retire que os tribunais cíveis são incompetentes para apreciar e julgar pedidos de indemnização fundados em factos que constituam ou sejam susceptíveis de constituir crime e o princípio da adesão (consagrado no art.º 71.º do CPP) não tem o sentido e o alcance que lhe foi dado pela decisão recorrida.
É certo que, no nosso sistema jurídico, vigora o princípio da adesão com consagração no art.º 71.º do CPP onde se dispõe que “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”.
Significa isso, portanto, que, por regra, é no processo penal que tem que ser formulado o pedido de indemnização civil, só podendo esse pedido ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, nas situações previstas no art.º 72.º do mesmo diploma.
Pensamos ser certo, no entanto, que o princípio da adesão tem como pressuposto essencial a existência de um concreto processo penal; sem a verificação desse pressuposto não podemos sequer falar em princípio da adesão, na medida em que não existe qualquer processo penal ao qual o lesado possa aderir para o efeito de nele formular o pedido de indemnização a que entende ter direito. Veja-se que o art.º 71.º diz que o pedido deve ser deduzido no processo penal respectivo, apontando, de forma inequívoca, para um processo que já se encontre pendente e reportado aos factos que fundamentam o pedido de indemnização.
É por isso, aliás, que, em relação aos crimes públicos (no que toca aos crimes particulares e semi-públicos vigora o sistema de adesão optativa em que o lesado é livre de optar pela formulação do pedido no tribunal civil, renunciando, por essa via, ao direito de queixa ou de acusação – cfr. art.º 72.º, n.º 1, c) e n.º 2), todas as excepções ao princípio da adesão consagradas no art.º 72.º pressupõem a existência de um processo penal (esteja ele ainda pendente ou já findo). Tais excepções pressupõem a existência de um processo penal precisamente porque, não existindo tal processo, o princípio da adesão não pode operar e, não operando o princípio, não faz sentido falar em excepções.
Ao contrário do que parece ter sido entendido pela decisão recorrida, o princípio da adesão não se traduz na necessidade de recorrer ao processo penal sempre que os factos em que assenta o pedido de indemnização constituam ou sejam susceptíveis de constituir ilícito de natureza criminal. Não é isso que se preceitua no citado art.º 71.º e não existe qualquer outra norma que o determine. O que se preceitua no art.º 71.º é que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime tem que ser deduzido no processo penal respectivo – ou seja, no processo penal que se encontre pendente em relação a esse crime – e não que o pedido de indemnização tenha que ser necessariamente formulado no âmbito de processo penal que, para o efeito, deva ser aberto se ainda não o tiver sido.
A entender-se – como se entendeu na decisão recorrida – que, estando em causa factos susceptíveis de constituir ilícito criminal, o lesado não podia deduzir o pedido de indemnização perante o tribunal cível ainda que não exista à data qualquer processo penal em curso, isso significaria que o lesado nunca poderia pedir a indemnização a que tem direito sem antes provocar a abertura do processo penal (tendo em conta que as excepções ao referido princípio, no que toca aos crimes públicos, pressupõem a abertura e existência desse processo). Ou seja, o lesado, pretendendo ser indemnizado, estava obrigado a fazer a denúncia do crime ao Ministério Público, provocando, dessa forma, a abertura do processo penal; só depois disso poderia formular o seu pedido nesse processo ou aguardar a verificação de alguma das situações previstas no art.º 72.º para deduzir o pedido perante o tribunal civil. Essa solução seria, no entanto, incoerente com o sistema jurídico, uma vez que, com ressalva das pessoas/entidades mencionadas no art.º 242.º do CPP, a denúncia do crime não é obrigatória, não existindo qualquer norma da qual se possa retirar que o lesado está obrigado a denunciar o crime caso pretenda ser indemnizado pelos danos que tenha sofrido em consequência desse crime.
Na prática, o entendimento plasmado na decisão recorrida equivale a dizer que o tribunal cível é materialmente incompetente para julgar pedidos de indemnização fundados em factos que constituam ou sejam susceptíveis de constituir crime, pertencendo essa competência aos tribunais criminais. Não existe, no entanto, qualquer norma jurídica que dê cobertura a esse entendimento, sendo certo – reafirma-se – que o princípio da adesão não tem esse alcance, na medida em que se limita a prever a adesão obrigatória do lesado a um processo penal que já se encontre pendente em relação ao crime onde se funda o pedido de indemnização.
Entendemos, portanto, em face do exposto, que o funcionamento do princípio da adesão – com a consequente incompetência do tribunal cível para apreciação do pedido de indemnização – pressupõe que já se encontre pendente um processo penal referente ao “crime” no qual se fundamenta o pedido. Não existindo qualquer processo penal, o lesado não está vinculado a aderir a qualquer processo penal (porque este não existe), podendo formular o pedido de indemnização no tribunal cível.
Revertendo ao caso em análise, diz a Apelante – cfr. conclusão 7 – que, até à data da sentença, não havia sido deduzida acusação contra a Ré nem iniciado qualquer processo penal pelos factos aqui alegados, apesar da notícia do crime datar a 8 meses antes e que esta demora ultrapassa o prazo referido no artigo 72 (1, a) do CPP, configurando uma das exceções ao princípio da adesão obrigatória e justificando a separação dos processos penal e civil.
Ao contrário do que parece entender a Apelante, a “notícia do crime” a que se reporta a alínea a) do n.º 1 do citado art.º 72.º não corresponde ao momento em que os factos foram praticados ou ao momento em que o lesado ou o público em geral deles tomaram conhecimento. Essa expressão tem que ser entendida no seu sentido técnico e jurídico e corresponde ao acto que dá início ao processo e mediante o qual o Ministério Público adquire conhecimento do crime, por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia (cfr. art.º 241.º do CPP).
No caso dos autos, não existia ainda, ao que tudo indica, notícia do crime pelo MP (não existia ainda qualquer processo pendente) e, nessa medida, não se pode ter como verificado o decurso do prazo a que se reporta a alínea a) da citada disposição legal (esse prazo conta-se a partir da notícia do crime e esta, como vimos, ainda não havia ocorrido). O que aquela alegação evidencia é, na verdade, a falta do pressuposto básico para o funcionamento do princípio da adesão; não existia ainda qualquer processo penal pendente (porque nem sequer havia sido dada notícia do crime ao MP) e, portanto, o princípio da adesão não podia funcionar (não havia processo penal ao qual a Autora pudesse aderir para o efeito de nele formular o pedido de indemnização), como, aliás, a Apelante também refere (primeiro parágrafo da pág. 11 das respectivas alegações) quando diz que, não tendo sido instaurado qualquer procedimento, não se podia exigir a adesão da acção popular ao processo penal.
É também por isso que, ao contrário do que sustenta a Apelada (na resposta ao recurso), a Autora não tinha que invocar, na petição inicial, as concretas excepções ao princípio da adesão com fundamento nas quais instaurava a acção no tribunal cível. À data, não existia qualquer processo penal em curso, não podia operar o princípio da adesão e, portanto, a propositura da acção no tribunal cível não tinha que se estribar em qualquer excepção a esse principio.
Temos, como certo, portanto, em face do exposto, que o princípio da adesão não podia aqui operar – por inexistir qualquer processo penal – e que, nessa medida, não havia razões e fundamentos para declarar a incompetência do tribunal cível. Não existindo qualquer processo penal pendente, o tribunal cível é o competente para apreciar e julgar o pedido de indemnização ainda que ele se funde em factos que constituam ou sejam susceptíveis de constituir crime.
E contra isso não vale argumentar com o facto de, entretanto, a notícia do crime ter chegado ao Ministério Público por efeito da certidão que lhe foi enviada por determinação de despacho proferido nestes autos, uma vez que, conforme disposto no n.º 1 do art.º 38.º da LOSJ, a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.
À data em que a acção foi proposta, não existia qualquer processo penal e, portanto, à luz das considerações efectuadas, não havia razões para chamar à colação o princípio da adesão e para, com base nele, afastar a competência do tribunal cível. Em face da situação que existia à data da propositura da acção, a competência pertencia ao tribunal cível e essa competência não se altera ainda que, após esse momento e na sequência da notícia do crime que veio a ocorrer no âmbito destes autos e por força de despacho neles proferido, venha a ser iniciado qualquer processo penal.
Impõe-se, portanto, revogar a decisão recorrida, ficando, assim, prejudicada a apreciação das restantes questões que haviam sido suscitadas no recurso.
SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):
(…).
IV.
Pelo exposto, concedendo-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se que o Juízo Central Cível de Leiria detém competência em razão da matéria para preparar e julgar a presente acção que, nessa medida, deve prosseguir os seus trâmites.
Custas a cargo da Apelada.
Notifique.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves)
(Maria João Areias)
(José Avelino Gonçalves) – vencido nos termos da declaração que segue.
Voto de vencido
O artigo 52.º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa estabelece que “É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para: a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural; b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.”
Como emerge deste preceito a acção popular, que integra o direito de acção judicial previsto no artigo 20.º da Lei Fundamental, constitui uma importante via de (…) defesa de bens constitucionalmente protegidos de âmbito transindividual (…) - Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Edição, reimpressão, pág. 693.
Nessa medida, a previsão constitucional (…) expressa uma verdadeiro direito fundamental que permite a quem não é titular de um interesse pessoal e directo o acesso visando a defesa de certos interesses de toda a colectividade (…) - Paulo Otero, A Acção Popular: configuração e valor no actual Direito português, in R.O.A., ano 59, vol. III, pág. 878.
Sendo essencialmente vocacionada para a defesa de determinados interesses difusos, a acção popular assegura também a defesa de interesses individuais homogéneos os quais (…) representam todos aqueles casos em que os membros da classe são titulares de direitos diversos, mas dependentes de uma única questão de facto ou de direito, pedindo-se para todos eles um provimento jurisdicional de conteúdo idêntico. (…) - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de setembro de 1997, B.M.J. n.º 469, pág. 432.
A tutela dos direitos dos consumidores insere-se precisamente neste último domínio – veja-se, por ex. o acórdão citado na nota precedente e Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pág. 698. 5, constituindo um dos direitos fundamentais que integra o (…) núcleo de proteção reforçada.
Estabelecido este enquadramento geral, importa relembrar que o mesmo dispositivo aponta claramente no sentido de existir uma garantia do direito de ação popular, pelo que os seus limites são apenas aqueles que figuram na lei para cuja regulamentação aquele preceito constitucional remete – por ex. , o Acórdão do STJ de 26.11.2024, pesquisável em www.dgsi.pt - .
Aqui chegados, tenhamos como seguro que um mesmo facto praticado pelo mesmo agente pode desencadear diversas ilicitudes - civil, penal, contraordenacional, etc.-, a que corresponderão diferentes reações do ordenamento jurídico nos diferentes planos em que tal ocorrência revista relevância. E esta constatação assume particular relevância no domínio da defesa do consumidor, a qual (…) pode ser considerada como um princípio jurídico, que corresponde a um pensamento jurídico geral, e, por isso, é mesmo comum a vários ramos do direito (…) - Luís Menezes Leitão, Estudos do Instituto do Direito do Consumo, vol. I, Almedina, págs. 22.
O direito de acção popular penal previsto no artigo 25.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, tem como conteúdo útil a viabilização do direito de denúncia, queixa ou participação ao Ministério Público quanto a factos - dotados de relevância criminal - que atentem contra os interesses da colectividade a que se refere o artigo 52.º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e a consequente admissão da constituição como assistente - cfr. ainda a parte final do artigo 68.º n.º 1 do Código de Processo Penal.
À acção popular aplicam-se os princípios processuais que regem a jurisdição penal e civil, nomeadamente, normas especiais dos art.ºs 71º a 73º do Código de Processo Penal, sobre a competência material dos tribunais penais para conhecerem de pedido de indemnização civil por factos que integrem um ilícito criminal/contrordenacional.
Ora, o artigo 71.º do Código de Processo Penal, dispõe que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei, permitindo a norma seguinte (artigo 72.º) do mesmo código que se faça o pedido de indemnização em separado nos seguintes casos:
a) O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo;
b) O processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o procedimento se tiver extinguido antes do julgamento;
c) O procedimento depender de queixa ou de acusação particular;
d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão;
e) A sentença penal não se tiver pronunciado sobre o pedido de indemnização civil, nos termos do n.º 3 do artigo 82.º;
f) For deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou somente contra estas haja sido provocada, nessa ação, a intervenção principal do arguido;
g) O valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal coletivo, devendo o processo penal correr perante tribunal singular;
h) O processo penal correr sob a forma sumária ou sumaríssima;
i) O lesado não tiver sido informado da possibilidade de deduzir o pedido civil no processo penal ou notificado para o fazer, nos termos do n.º 1 do artigo 75.º e do n.º 2 do artigo 77.º.
Ou seja, o pedido de indemnização formulado pela Autora tem de ser apresentado, obrigatoriamente, no âmbito do processo penal, se não forem alegadas/verificadas quaisquer uma das excepções previstas na citada norma.
Ora, desde logo, conforme alega o Apelado, “4. Ao propor a presente ação popular, a Autora não invocou qualquer uma das excepções que defende nesta instância, como deveria (cf. artigos 3.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, alínea d) do CPC), pelo que não pode vir em recurso pugnar pela verificação de tais exceções que oportunamente não invocou/alegou. Por conseguinte, não pode o Venerando Tribunal ad quem conhecer desta questão.
De facto, constitui uma regra geral do regime dos recursos que estes não podem ter como objecto a decisão de questões novas, que não tenham sido especificamente tratadas na decisão de que se recorre, mas apenas a reapreciação, em outro grau, de questões decididas pela instância inferior - a reapreciação constitui um julgamento parcelar sobre a validade dos fundamentos da decisão recorrida, como remédio contra erros de julgamento, e não um julgamento sobre matéria nova que não tenha sido objecto da decisão de que se recorre.
Mas, constituindo, ou não, ónus da Apelante/Autora a alegação/prova de excepções à norma do artigo 71.º - o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo – e descritas na norma do artigo 72.º - só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei -, o certo é que tal questão foi abertamente discutida nos autos e, por isso, não constitui novidade processual.
Ora esmiuçando os autos e quanto às alegadas excepções ao princípio da adesão obrigatória, diz a Apelante/Autora:
“6. Embora o princípio da adesão obrigatória ao processo penal esteja previsto no artigo 71 do CPP, existem exceções significativas elencadas no artigo 72 (1) do mesmo código, as quais permitem a dedução de pedido de indemnização civil em separado, perante o tribunal civil. Este caso particular enquadra-se em várias dessas exceções, justificando a tramitação da ação civil independente do processo penal. Vejamos quais:
7.Até à data da sentença, não foi deduzida acusação contra a ré nem iniciado qualquer processo penal pelos factos aqui alegados, apesar da notícia do crime datar a 8 meses antes. Esta demora ultrapassa o prazo referido no artigo 72 (1, a) do CPP, configurando uma das exceções ao princípio da adesão obrigatória e justificando a separação dos processos penal e civil.
8.À data da propositura da presente ação era impossível identificar todos os lesados e conhecer a total extensão dos danos, especialmente os indiretos, como os que afetam a equidade concorrencial. Tal situação configura mais uma exceção ao princípio da adesão obrigatória, conforme previsto no artigo 72 (1, d, i) do CPP.
9.O princípio da adesão, tal como estruturado no artigo 71 do CPP, não se coaduna com a natureza das ações populares, que possuem uma dimensão coletiva e visam tutelar interesses individuais homogéneos com base numaorigem fáctica comum. Assim, aplicar rigidamente este princípio a ações populares poderia resultar numa restrição inadmissível ao acesso à justiça e ao direito de ação popular, contrariando tanto o direito constitucional de acesso aos tribunais quanto o princípio da efetividade no âmbito do private enforcement das regras da União Europeia em matéria de concorrência.
10. A aplicação estrita do artigo 71 do CPP às ações populares, sem considerar as exceções do artigo 72 (1,d,i), constituiria uma dupla inconstitucionalidade material, por violar os princípios constitucionais do direito de ação popular e do acesso ao direito e aos tribunais. Tal interpretação poderia impedir indevidamente o exercício da ação popular em defesa de interesses coletivos, em casos onde os lesados, apesar de determináveis, não estão individualmente identificados”.
Sem razão, adiantamos desde já – ressalvando sempre o devido respeito por interpretação contrária.
No que respeita à al. a) – O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo – verifica-se que quando a presente acção foi instaurada ainda não tinham decorrido estes 8 meses – pela simples razão de que a noticia do crime ainda não chegou ao conhecimento das autoridades criminais/ O termo a quo para o cômputo daquele prazo é, pois, o da notícia do crime, ou seja, aquele prazo de oito meses apenas começa a correr a partir do momento em que o Ministério Público adquire notícia do crime por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia (artigo 241.º do CPP).
As als. b), c), e), f), g) e h) não têm aplicação ao caso.
Quanto à al. d) - Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão - verifica-se que ainda não se chegou à fase da acusação.
Relativamente à al. i), - O lesado não tiver sido informado da possibilidade de deduzir o pedido civil no processo penal ou notificado para o fazer, nos termos do n.º 1 do artigo 75.º e do n.º 2 do artigo 77.º. Esta norma aplica-se aos lesados que, como tais, devem ser informados e não o foram não sendo este o caso da Autora, pois não é lesada.
Nos termos do n.º 1 do artigo 74.º do Código de Processo Penal, lesado é a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime.
Verifica-se que os lesados são inúmeros, tantos quantos as diversas pessoas que, no período temporal de 11.07.2023 a 19.07.2023 adquiriram os produtos com um preço no letreiro colocado na prateleira e cuja cobrança, na caixa, foi superior ao preço anunciado.
No caso, esta norma não se aplica à Autora porquanto a Autora, como já se disse, não é lesada e, por conseguinte, não é, nem será informada pelo Ministério Público para deduzir o pedido de indemnização cível, salvo se, nos termos do n.º 2 do artigo 75.º do Código de Processo Penal, informar o Ministério Público de que pretende deduzir pedido de indemnização cível, caso em que será oportunamente notificada para o fazer.
Por conseguinte, muito embora não seja lesada, nem por isso está desobrigada de apresentar o pedido de indenização no processo penal, porque isso é obrigatório nos termos do indicado artigo 71.º do Código de Processo Penal.
Como escreve o Apelado:
“Como acima se referiu, na douta sentença recorrida considerou o Tribunal recorrido que a conduta assacada pela Autora à Ré é susceptível de integrar a prática de crimes e infrações económicas, nos termos das normas da legislação convocada pela própria Autora para sustentar o seu pedido indemnizatório.
Aliás, logo na p.i. a Autora enquadrou aquela conduta da Ré como consubstanciando a especulação de preços, como publicidade enganosa ou prática comercial desleal e restritiva da concorrência (vide, em especial, os artigos 57.º a 113.º da p.i., dedicados a estes ilícitos).
É também facto público e notório, porque divulgado no site e nas redes sociais da Autora e pela Comunicação Social7, que a Autora imputou sistematicamente à Ré a prática de crimes de especulação “e de publicidade enganosa”, tendo sido condenada em providência cautelar que determinou a retirada dessas publicações (cf. Acórdão da Relação do Porto, de 08.02.2024, publicado e acessível nesta ligação).
A Apelante não se insurge quanto àquele enquadramento jurídico-penal, ou sequer quanto ao primeiro segmento da decisão recorrida, de acordo com o qual o Juízo Central Cível de Leiria é materialmente incompetente, mas sim quanto à não verificação das excepções ao princípio da adesão: se, por um lado, o tribunal recorrido entendeu que não se verificam os pressupostos que a Autora invoca para justificar a dedução em separado dos pedidos indemnizatórios que formula, a Apelante, por outro lado, entende que, “mesmo que se aceite que o artigo 71, do CPP, tem aplicação nas ações populares (sem que se coloque a questão da sua inconstitucionalidade), em que os autores apesar de identificáveis, não estão individualmente identificados, necessariamente tem de se sujeitar às exceções previstas no artigo 72 (1, d, i)”.
Neste sentido pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 12 de outubro de 2023, pesquisável em www.dgsi.pt - com a nota de que com os factos trazidos a estes autos, ainda não foi instaurado o respectivo procedimento criminal/contraordenacional pelo M.º P.º/mas foi já ordenada a extracção de certidão (Extraia certidão da petição inicial e dos documentos que a acompanham, bem como do presente despacho e remeta ao DIAP de Leiria, para os efeitos tidos por convenientes):
I - O juízo central cível é incompetente em razão da matéria para julgar uma acção popular em que se imputa à ré a prática de ilícitos penais e contraordenacionais, relativamente aos quais o Ministério Público já instaurou o competente procedimento;
II - Por força do princípio da adesão obrigatória fixado no art. 71º do CPPenal, o pedido de indemnização cível fundado na alegada prática de crimes deve ser deduzido no processo crime;
III - A violação do princípio da adesão obrigatória acarreta a incompetência material do tribunal cível”.
Como se escreve no Acórdão desta Relação de Coimbra de 10.9.2024, pesquisável em www.dgsi.pt:
Por um lado, porque a ação popular é uma ação como qualquer outra, porquanto, nos termos do nº 2 do artigo 12º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, Direito de Participação Procedimental e de Acção Popular (DPPAP), «A ação popular civil pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil.»
Por outro, o facto de ser deduzida no processo penal não retira ao respetivo autor qualquer garantia processual.
Por fim, o sistema judicial beneficia da economia processual que se obtém com apenas um julgamento da matéria factual comum ao processo criminal e ao cível e evita possíveis contradições entre poderiam ocorrer entre os factos apurados no processo penal e a factualidade declarada provada ou não provada na ação cível autónoma”.
O julgamento conjunto das questões criminais e cíveis com aquelas relacionadas por um tribunal criminal é uma decorrência lógica do princípio da adesão, estabelecido pelo legislador com o intuito de resolver, no processo penal, a generalidade das questões que envolvem o facto criminoso em qualquer uma das suas vertentes, sem necessidade de recorrer a mecanismos autónomos
A consagração de tal princípio, a que o tribunal está, por princípio, vinculado, traduz-se em manifesta economia de meios, sem que se dispersem custos, quando a final o tribunal a quem se atribui competência para conhecer do crime oferece as mesmas garantias quanto ao conhecimento de matéria cível a ele associada, ligando-se à economia processual as vantagens que resultam do recurso a uma única jurisdição, para a vítima do crime ou seus familiares, em tempo e custos; obsta também à existência de julgados contraditórios, com as nefastas consequências que daí resultam, nomeadamente em termos de prestígio institucional.
Na decisão da 1.ª instância:
(…)
Como supra se disse, o thema decidendum nos presentes autos consiste em decidir se no período temporal de 11.07.2023 a 19.07.2023, a ré tinha afixados preços no letreiro colocado na prateleira, onde se encontravam colocadas embalagens de leite creme com bolacha, marca ... 500 g(4x125 g), tiras de snack de galinha de marca ... 60 g e torta de ovo marca ... 350 g, em valor inferior ao que foi cobrado na caixa.
Tal conduta é susceptível de integrar a prática de crimes e infracções económicas, nos termos das normas da legislação convocada pela própria autora para sustentar o seu pedido indemnizatório, não sendo, por isso este Juízo Central Cível competente para a sua apreciação.
Com efeito, nos termos do disposto no artº 117º nº 1 da Lei Orgânica do Sistema Judiciário, compete aos juízos centrais cíveis:
a) A preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50 000;
b) Exercer, no âmbito das acções executivas de natureza cível de valor superior a € 50 000, as competências previstas no Código de Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;
c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam acções da sua competência;
d) Exercer as demais competências conferidas por lei.
Por outro lado, e ao contrário do defendido pela autora não se verificam os pressupostos que invoca para justificar a dedução em separado dos pedidos de indemnizatórios que formula. Com efeito, por estes factos poderia a autora ter participado criminalmente dos mesmos não o tendo feito, motivo pelo qual não existe inquérito, sendo que de todo o modo, a final, será ordenada extracção de certidão para o efeito.
Por outro lado, os danos já se mostram verificados, estando apenas dependentes de liquidação, a notificação para os efeitos de dedução do pedido cível ainda é prematura e ainda que tenha existido pedido de intervenção de terceiros, a mesma ainda não ocorre, sendo quanto a nós manifestamente improcedente esse chamamento por não se tratar de seguro obrigatório de responsabilidade civil.
Cabe ainda dizer, que atentos os contornos da acção, mais do que qualquer interesse difuso ou interesse particular homogéneo de que se pudesse falar, está em causa o interesse público na salutar concorrência dos agentes mercantis, no combate a actividades especulativas e a práticas comerciais restritivas e a proteção dos consumidores, como estabelecido no artº 99º da Constituição da República Portuguesa, incumbindo por isso ao Ministério Público, em primeira mão, a sua salvaguarda.
Deste modo, e como decidido no AC.STJ 12.10.20236, em caso similar ao presente, fundando-se os pedidos de indemnização na alegada prática de crimes, é nesse processo criminal que os lesados civis devem deduzir a sua pretensão indemnizatória, solução justificada não só por razões de economia de meios como também de modo a evitar contradição de julgados.
Assim, está-se perante uma situação de incompetência absoluta, em razão da matéria (cf. artº 96º do CPC), a qual é também de conhecimento oficioso (artºs 97º, 577º al. a) e 578º, todos do CPC), sendo este o momento próprio para dela conhecer (artºs 98º e 99º do CPC), o que implica a absolvição da ré da instância (artºs 99º nº 1, 278º nº 1 al. a), 576º, 577º al. a), todos no CPC).
O dito art.º 71.º consagra o princípio da adesão da acção civil ao processo penal, fazendo jus ao princípio da suficiência do processo penal (art. 7.º do CPP), de acordo com o qual a indemnização pelos danos causados pela prática de um crime (calculados nos termos da lei civil – art. 129.º do CP) devem ser pedidos no processo-crime, só podendo sê-lo em separado (na jurisdição/ tribunal normalmente competente) nos casos expressos lei.
No caso de crime semipúblico ou particular, as pessoas com direito de queixa e o lesado podem formular, desde logo, o pedido de indemnização no tribunal civil, renunciando assim ao direito de queixa. Nestes casos, o lesado tem duas opções: se opta, antes da queixa, pela acção cível em separado, impede o exercício da acção penal através da renúncia; ou se opta pela acção penal, então a acção civil, fora dos casos das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 72, terá que ser deduzida por dependência, vigorando a regra da adesão obrigatória -porquanto deduzido procedimento criminal, com a instauração da acção criminal nos crimes semipúblicos e particulares, uma possível acção cível em separado contemplando o pedido cível, daria lugar a uma duplicação de processos, contrariando frontalmente o princípio da adesão, o que não se evidencia que o legislador tenha pretendido.
E nos delitos públicos? Aqui nunca poderá haver renúncia ao procedimento criminal/contraordenacional, pelo que, chegado ao conhecimento do Ministério Público os factos levados à petição inicial – a 1.ª instância já mandou extrair certidão – será instaurado, obrigatoriamente, o competente processo penal/contraordenacional.
Como escreve o Apelado “como acima se referiu, na douta sentença recorrida considerou o Tribunal recorrido que a conduta assacada pela Autora à Ré é susceptível de integrar a prática de crimes e infrações económicas, nos termos das normas da legislação convocada pela própria Autora para sustentar o seu pedido indemnizatório.
Aliás, logo na p.i. a Autora enquadrou aquela conduta da Ré como consubstanciando a especulação de preços, como publicidade enganosa ou prática comercial desleal e restritiva da concorrência (vide, em especial, os artigos 57.º a 113.º da p.i., dedicados a estes ilícitos).
É também facto público e notório, porque divulgado no site e nas redes sociais da Autora e pela Comunicação Social7, que a Autora imputou sistematicamente à Ré a prática de crimes de especulação “e de publicidade enganosa”, tendo sido condenada em providência cautelar que determinou a retirada dessas publicações (cf. Acórdão da Relação do Porto, de 08.02.2024, publicado e acessível nesta ligação).
Logo, não poderá o autor lançar mão do pedido indemnizatório em separado, que daria lugar a uma duplicação de processos, contrariando frontalmente o princípio da adesão, o que não se evidencia que o legislador tenha pretendido.
Concluímos, pois, que o tribunal recorrido é incompetente em razão da matéria para julgar a presente acção, tal como foi decidido da decisão sob recurso.
(José Avelino Gonçalves)