REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO
LIMITES E ÁREAS DOS PRÉDIOS
CAMINHOS PÚBLICOS
Sumário

I – A presunção decorrente do registo prevista no art. 7º do Cód. Registo Predial não se estende aos limites ou confrontações dos prédios ou à sua área, em suma à sua identificação física, uma vez que estes elementos são suscetíveis de assentar em meras declarações dos interessados, escapando ao controlo da autoridade ou funcionários competentes.
II – O uso imemorial faz presumir a dominialidade do caminho, de modo a salvaguardar-se a prevalência de interesse público sobre o interesse privado.
III – Porém, não deve afastar-se da dominialidade um caminho que, tendo sido construído ou legitimamente apropriado, em data recente – donde estará ausente o requisito da imemorialidade - por pessoa coletiva de Direito Público, foi por ela afetado ao uso público, servindo o interesse coletivo que lhe é inerente.
IV – Impõe-se uma interpretação restritiva do Assento do STJ de 19.4.1989 [“São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público.”], agora com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência, de modo a exigir-se para que um caminho de uso imemorial se possa considerar integrado no domínio público, a sua afetação à utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objeto a satisfação de interesses coletivos de certo grau e relevância.

Texto Integral

Proc. nº 1229/21.3 T8PRD.P1

Comarca de Porto Este – Juízo Local Cível de ... – Juiz 2

Apelação

Recorrentes: AA e BB

Recorrido: Município de ...

Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadores Maria da Luz Teles Meneses de Seabra e Alberto Taveira

Acordam na seção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO[1]

Os autores AA e marido BB, residentes na Travessa ..., ..., ... intentaram contra os réus:

1. CC e DD, casados e residentes na Rua ..., ..., ..., ...;

2. Freguesia ..., representada pelo seu órgão executivo, Junta de Freguesia ..., com sede na Praça ..., ..., ...;

e

3. Município de ..., representado pelo seu órgão executivo, Câmara Municipal ..., com sede no ..., nº. ..., ...,

ação declarativa, na forma de processo comum, na qual, pedem que os réus sejam condenados a:

1. Reconhecer que os autores são donos e legítimos proprietários do prédio descrito no artigo 1º. da petição inicial;

2. Reconhecer que o caminho que atravessa esse prédio, é parte integrante do mesmo e tem natureza privada;

3. Condenar todos os réus a reconhecerem a propriedade dos autores na extensão do reconhecimento anterior e a respeitarem-na, abstendo-se de a turbarem direta ou indiretamente, com atos, ou sugestões toponímicas que atribuam natureza pública ao caminho que a atravessa;

4. Condenar os réus, pessoas singulares, a fecharem retirando do seu prédio o portão ali aberto e a não abrirem janelas ou porta que deite diretamente para o prédio dos autores, sem respeitarem o afastamento de pelo menos metro e meio;

5. Condenar os réus, pessoas singulares, a reconhecerem que não têm qualquer direito de passagem para o seu prédio através do prédio dos autores;

6. Condenar os réus, pessoas singulares, a indemnizar os autores, no montante já liquidado de 1.500,00€ e, no que se vier a liquidar em execução de sentença pelos custos e honorários com as contraordenações em curso.

Nesse sentido alegam o seguinte:

A autora na qualidade de dona e legítima proprietária do prédio urbano composto de casa construída de pedra e cal, telhada, de rés-do-chão e quintal com a área coberta de quarenta metros quadrados e descoberta de cinquenta metros quadrados sita no Lugar ..., Freguesia ..., no concelho ..., a confinar do nascente com EE, do poente com FF, do norte com ... e do sul com GG, descrito na C. R. Predial sob o nº. ...83, a fls. onze verso, do livro ...7 e inscrito na matriz sob o artigo ...82, adquiriu a raiz do supracitado, por doação da falecida HH, conforme escritura pública de ../../1992, no Cartório Notarial ..., tendo levado o título dessa aquisição ao registo predial pela inscrição com a apresentação 116 de 2017/12/22.

Dentro do prédio da autora, no limite da sua confinância sul, atravessando-o de poente a nascente, existe um trato do seu terreno que está afeto a caminho, cuja origem escapa à memória dos vivos, pré-existente à construção efetuada no prédio dos autores e que, desde sempre, constituiu o único acesso àquele prédio e a outros de natureza rústica que lhe ficam a montante.

Este caminho nasce a poente na Rua ..., atravessava o prédio de FF, atravessava e servia o prédio da falecida HH, que estava encravado, e prosseguia para nascente, servindo e atravessando o prédio de II, permitindo que, através dele, outros terrenos de cultivo pudessem ser trabalhados e frutificados.

Por isso, concluem ser juridicamente uma servidão de passagem, servindo o prédio dos autores como dominante e tornando-o serviente em relação aos prédios rústicos a montante, alegando haver um ónus de servidão de passagem, sobre o prédio da autora, que, embora não registado, se reconhece titulado e de boa-fé, a favor de “dois lameiros de maninho” pertencentes em 1977 a JJ.

E, por esse trato de terreno, passavam a JJ, seus familiares e auxiliares, e bem assim os que lhe sucederam na posse das leiras, enquanto interessados, no amanho, cultivo, rega, tratamento e colheita, a pé, com carro de bois e trator agrícola para a exploração desses terrenos, querendo cultivá-los, ou simplesmente dispondo dele para passagem e para o fazer quando lhes aprouvesse.

Ora, desde 1977 até à sua morte, em 7.12.2019, a HH usava como entendia em toda a sua amplitude dos proventos da construção e terreno envolvente, comprou-o, habitou-o, agricultou-o, modificou-o, doou-o e reservou para si o usufruto, praticando todos os atos típicos, de quem é dono, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e sendo por todos reconhecida como dona. E, fora do que é seu, para acesso ao uso e fruição do prédio, à Rua ..., sempre a HH se serviu e utilizou do caminho sobre a propriedade de FF tirando por ele, todas as utilidades do seu prédio urbano, passando por ele, a qualquer hora do dia ou da noite, a pé e ou com qualquer tipo de veículo, como por ele o faziam e fazem ainda, também os seus amigos, familiares e visitas e meios público de assistência e serviço.

Sendo o acesso à via pública exclusivamente feito pelo caminho estabelecido no prédio a nascente, caminho que ainda hoje existe e serve a habitação pelo que a existência do direito de servidão de passagem, para o seu prédio urbano, sobre o prédio sito a poente, existe, constituído pela via da usucapião, face à sua natureza de prédio encravado e pelo decurso de muito mais de vinte anos, por trato marcado e visível, à vista de toda a gente e sem nenhuma oposição de quem quer que fosse e se sentisse lesado em direito próprio e esse prédio da HH tinha a configuração da planta encontrada no seu espólio e a ela sucedeu-lhe a autora e seu marido, na prática de atos idênticos e com a mesma amplitude, agindo também como donos e sucedâneos na servidão e também como tal, por todos respeitados, com suporte derivado no título da doação.

Por outro lado, também é certo que os autores e seus antepassados, sempre respeitaram e reconheceram a existência no trato da sua propriedade, da referida servidão de passagem, para os terrenos agrícolas a nascente do seu, mas nunca o permitiram em proveito de outros prédios e de outros fins, nomeadamente de habitação, comércio ou indústria e também, nunca cederam ao domínio público, nem foram expropriados dessa parcela, para que pudesse ser utilizado pelo público em geral.

Sucede, porém, que os primeiros réus ampliaram para nascente o seu prédio, tendo edificado um armazém, tendo aberto um portão e um painel de janelas, na parede da empena do lado Norte e que tendo por referência o limite da propriedade não cumpre o afastamento legal relativamente ao limite da propriedade dos autores.

Os réus regularmente citados apresentaram as respetivas contestações.

Assim, o Município de ... impugnou toda a factualidade da petição inicial apesar de aceitar que os autores são os donos e legítimos proprietários do prédio urbano, nada reivindicando relativamente ao prédio em questão designadamente do trato de terreno dentro do prédio dos autores alegadamente afeto a caminho de servidão e muito menos praticou qualquer ato do qual possa resultar uma tentativa de apropriação do mesmo para o domínio público. Ou ainda se o mesmo constitui o único acesso ao prédio dos autores, desconhecendo a existência ou não de direito de servidão, sua qualificação jurídica, extensão e quais os prédios onerados com a mesma.

Também nada tem a ver com o conflito existente entre os autores e os primeiros réus, seus vizinhos, nunca tendo assumido ou praticado qualquer ato suscetível de questionar o direito dos primeiros.

Tão pouco atribuiu qualquer toponímia ao trato de caminho em questão precisamente porque a emissão de parecer sobre a denominação das ruas, praças, localidades e povoações, consubstancia uma atribuição da Junta de Freguesia. Apenas, cabendo à Câmara Municipal, enquanto órgão executivo estabelecer a denominação das ruas, praças, localidades e povoações após parecer da Junta de Freguesia, o que não sucedeu como atestado por certidão.

Confirma, porém, a cedência ao domínio público de parte do terreno do prédio situado junto da Rua ....

Os réus CC e DD impugnam igualmente a presente ação, dizendo, em síntese, que a mesma carece de fundamento legal, referindo serem os donos e legítimos proprietários de dois prédios, sendo um prédio urbano sito na Rua ... com o número de polícia ...90 e um prédio rústico sito na Travessa ... “Campo ...”.

Por outro lado, os autores residem na Travessa ... há pelo menos 30 anos, utilizando na sua correspondência o referido número de polícia cuja toponímia e pavimentação foi efetuada pelo respetivo órgão, no caso concreto, a Junta de Freguesia.

Acrescentam ainda que a Travessa 1... vem referida nas plantas do SIGAP – Sistema de Informação Geográfico da Autarquia de ..., com início na Rua ... e o seu fim no Campo ..., estando devidamente circunscrita e delimitada, sendo visível o escopo público dessa mesma Travessa que constitui o acesso a vários prédios e não exclusivamente ao prédio dos autores.

Por isso, concluem ser abusivo, e revestir contornos de má-fé, os autores virem com a presente ação alegar que aquela Travessa não existe, quando estes se servem da mesma para aceder à sua habitação há mais de 30 anos.

Referem que a ré Freguesia ..., através da respetiva Junta deu início à toponímia na cidade ... em 1989, tendo atribuído nome de ruas, travessas e ruelas existentes na freguesia, pavimentando-as, construindo os passeios ou colocando as placas de identificação e procedendo à limpeza das mesmas. Conclui, assim, pela inexistência de qualquer servidão de passagem, sendo que a aludida Travessa dá acesso a um prédio construído em 2001, à casa dos autores e aos prédios dos réus.

Por conseguinte, entende que os autores litigam de má-fé, por saberem que grande parte dos factos alegados não correspondem à verdade, deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não ignoram ou trazendo mesmo falsas asserções e factos não correspondentes à verdade, fazendo afirmações arredias da realidade, como por demais foi mencionado nesta contestação e, aliás, documentalmente comprovado.

Fazem do processo um uso manifestamente reprovável com o fim de obter a totalidade do pedido que não é devido, pedindo a condenação dos autores no pagamento de uma indemnização em montante a fixar nos termos do previsto no artigo 543º, nº 2 do Cód. Proc. Civil.

Por último, a Freguesia ..., representada pelo seu órgão executivo, veio impugnar, referindo nada ter com a discussão dos interesses privados, limitando-se a tratar dos espaços que são da sua competência e a dar resposta às necessidades da freguesia, sem que tivesse praticado qualquer ato que pusesse em causa os direitos dos privados.

Acontece, porém, que de acordo com os usos e costumes e necessidades da população, foram criadas ao longo dos tempos ruas, ruelas e travessas que eram e são até aos dias de hoje utilizadas pela população em geral, sendo que desde tempos que não há memória que a população do Lugar ... utilizava os caminhos e ruelas para se deslocar ente as habitações e campos de cultivo, passando a apelidar essas ruas e ruelas pelos nomes dos ali residentes.

No ano de 1989, o executivo da Junta de Freguesia quis dar início ao processo toponímico da então ..., tendo em vista a atribuição formal dos nomes às ruas, processo esse que iria levar à assembleia de freguesia para apreciação. Ora, nessa altura eram já existentes as ruas e as travessas, as quais foram apelidadas com os nomes dos familiares ali residentes, designadamente, a Travessa 1... tem o nome do pai da falecida HH e, por isso, a Junta de Freguesia baseada nos usos, costumes e necessidades dos habitantes, arranjou as ruas e ruelas existentes, pavimentando-as, construiu passeios, colocou placas de identificação, procedendo à limpeza dessas ruas e travessas.

Desde há mais de 30 anos que a Rua ... e a Travessa 1... existem e foram desde sempre utilizadas quer pelos proprietários dos terrenos confinantes quer pela população em geral, exatamente por serem considerados caminhos públicos. Designadamente, o prédio que os autores identificam no art. 23 da sua petição inicial, com entrada pela Rua ... e com acesso às garagens através da aludida Travessa 1..., sendo utilizado quer por moradores quer por visitantes, reforçando a conotação de utilidade pública atribuída àquela Travessa 1....

Inclusive, os próprios autores reconhecem que a antepossuidora, quando adquiriu o prédio de que agora são proprietários, já teria a construção e utilização da casa onde vivem desde data anterior a 27.7.1972, tendo sido a mesma a sua última residência.

Aliás, os autores afirmam e reconhecem que a Travessa 1... corresponde à designação da rua onde moram.

Foi realizada audiência prévia, no decurso da qual se efetuou inspeção judicial ao local, proferiu-se despacho saneador, identificou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.

Realizou-se depois audiência de julgamento com observância do legal formalismo.

Por fim, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, por conseguinte, condenou os réus CC e DD, a Freguesia ... e o Município de ... nos seguintes pedidos:

a). Reconhecerem, a aquisição por doação, do direito de propriedade dos autores sobre o prédio urbano, composto de casa construída de pedra e cal, telhada, de rés-do-chão e quintal com a área coberta de 40m2 (quarenta metros quadrados) e descoberta de 50m2 (cinquenta metros quadrados), sita no Lugar ..., Freguesia ..., concelho ..., a confinar do nascente com II, do poente com o prédio edificado no antigo prédio de FF, do norte com ..., e do sul com GG, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº. ...83, a fls. onze verso do livro ...7 e inscrito na matriz sob o artº ...82, constando o título de aquisição, por doação ao registo predial pela inscrição com apresentação 116 de 2017/12/22;

b). Respeitarem, abstendo-se de turbarem direta ou indiretamente, com atos, ou por qualquer forma, o direito descrito em a).

Mais foram absolvidos os réus dos restantes pedidos formulados, designadamente, 2, 3 na parte em que é referente ao caminho/servidão de passagem, 4, 5 e 6.

Inconformados com o decidido, os autores interpuseram recurso, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:

I. Os Tribunais existem para resolver litígios, declarar os direitos, e na sua violação, reporem a situação no Estado Anterior.

II. Os Autores são donos de uma propriedade urbana onde os seus passados edificaram ao tempo em que os caminhos não tinham toponímias, nem as autarquias exigiam regras urbanísticas para as construções.

III. Têm título e registo de aquisição.

IV. O trato do seu chão está onerado com uma servidão de passagem e no espólio da antecessora foi encontrada uma planta com a definição dos limites da sua propriedade.

V. Vieram a Juízo porque a sua propriedade está a ser toldada pelos Réus seus vizinhos com a devassa da abertura na sua propriedade de um portão e janelas e por esse portão tem ocupado o seu espaço.

VI. O Tribunal acaba a concluir que o trato da servidão a caminho que onera o seu prédio para proveito de duas leiras rústicas e rurais é afinal uma travessa de domínio público.

VII. O Município não exibe cadastro de caminhos públicos na rede viária.

VIII. A Junta de freguesia não exibe inventário do seu património imobiliário.

IX. Polícias autuam porque colhem das autarquias informações de dominialidade.

X. E nem a toponímia está ainda aprovada

XI. Na matéria de facto o Tribunal dá como provado o facto nº 33 e não provados factos alegados na petição inicial que demonstram que a entrada existente na Rua ... só é pública no espaço recentemente cedido por promotor imobiliário para por ali servir as garagens do seu imóvel mantendo sem prejudicar o acesso que por ali já era dado a propriedades de terceiras pessoas.

XII. Os Autores não podem aceitar esta decisão na matéria de facto. O contrário é referido nos seus títulos, e nos depoimentos das testemunhas que se podem conferir na prova gravada.

1. Os depoimentos dos polícias KK, LL e MM que responderam aos artºs 57.º a 63.º da petição inicial, demonstram que nem eles conseguiam pela aparência tomar sozinhos uma decisão na autuação por não conseguirem aferir se estavam em zona de intervenção rodoviária.

2. Os depoimentos de NN e OO, que responderam aos factos dos artigos 5.º a 9.º, 11.º, 17.º a 27.º, 28.º, 29.º, 31.º a final da petição inicial, demonstram que o trato de caminho no sítio concreto em causa, nunca serviu mais do que a utilidade de exploração agrícola, sem tráfego rodoviário e apenas utilidades de atravessamento.

3. Os depoimentos das testemunhas PP e QQ, testemunhas dos réus em nada contrariam o anteriormente referido, antes o complementam e justificam.

XIII. Os autores não podem aceitar que a sua propriedade titulada seja reduzida para servir pretenso interesse público, sem a componente de expropriação e indemnização.

XIV. O Tribunal deveria ter atentado na inversão do ónus da prova e que a saída da Rua ... nunca serviu tráfego de interesse público e desde tempos imemoriais apenas serviu para frutar e desfrutar terrenos, uma corte de vaca que deu origem à casa dos 1... e um palheiro à casa dos 2.... 1... são os autores. 2... os Réus e ganham as autarquias que nem sabem o que é seu, para poderem decidir corretamente os atos administrativos.

XV. O facto 33 deveria ter sido dado como não provado e provada a matéria da petição inicial que apontava para a natureza de atravessadouro, que não servia qualquer interesse público relevante.

XVI. Para a decisão escorreita, alicerçada na verdade sobre os factos relevantes e selecionados na causa de pedir, para além da prova documental já dada como relevante na matéria de facto temos os depoimentos das testemunhas NN, OO e até do lado do rol dos Réus PP e QQ.

XVII. Uma carreira para serventia de terrenos agrícolas não serve relevante interesse público.

XVIII. A decisão deveria ter respeitado a propriedade privada dos Autores que a Constituição defende. Deveria ter feito correta interpretação dos artºs 1360º e 1361º.

XIX. Deveria ter julgado a acção totalmente procedente por provada.

Apenas o réu Município de ... respondeu ao recurso, tendo-se pronunciado pela confirmação do decidido.

Formulou as seguintes conclusões:

1. Com a presente ação pretendem os Autores que lhes seja reconhecido que são donos e legítimos proprietários do prédio que identificam no artigo 1º da petição inicial que tem o seguinte teor: “(…)prédio urbano, composto de casa construída de pedra e cal, telhada, de rés-do-chão e quintal com a área coberta de 40m2 e descoberta de 50m2, sita no Lugar ..., Freguesia ..., concelho ..., a confinar do nascente com II, do poente com prédio edificado no antigo prédio de FF, do norte com ..., e do sul com GG, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ...83, a fls. onze verso, do livro ...7 e inscrito na matriz sob o artigo ...82, constando o título de aquisição por doação registada pela inscrição com a Ap. ...16 de 2017/12/12.”

2. Alegam que dentro da sua propriedade existe um trato de terreno, afeto a servidão, que medeia entre a sua habitação e a dos Réus pessoas singulares, o qual tem natureza privada.

3. Pedem ao Tribunal que condene todos os Réus a reconhecer a propriedade dos Autores, a respeitarem-na abstendo-se de a turbarem direta ou indiretamente, com atos, ou sugestões toponímicas que atribuam natureza pública ao caminho que a atravessa.

4. Acusam, sem qualquer prova, o aqui Recorrido de conivência, complacência e usurpação de terreno alheio.

5. Face à prova produzida, ficou demonstrado que o trato de terreno em discussão ainda não tem toponímia aprovada, o que se deve inclusive à existência de litígio acerca da natureza daquela via.

6. Na contestação apresentada pelo Recorrido foi junto o documento n.º1, do qual resulta a área cedida ao domínio público pelo prédio edificado a poente do prédio dos Autores, com frente para a Rua ....

7. O aqui Recorrido deixou bem claro no seu articulado que nada reivindica, nem nunca reivindicou, relativamente à propriedade dos Autores.

8. Não se provou que o aqui Recorrido tenha praticado qualquer atuação material sobre o prédio reivindicado.

9. Os depoimentos dos Guardas KK, LL e MM, confirmaram claramente que o aqui Recorrido não foi a fonte da informação acerca da natureza daquele trato de terreno.

10. Em sede de prova pericial levada a cabo através de levantamento topográfico que procedeu à medição da área e identificação dos limites do prédio que os Autores se arrogam proprietários e conforme declaração prestada pelos mesmos, apurou-se que existe uma diferença colossal de áreas.

11. De facto, como resulta do relatório pericial junto aos autos a fls (…), que aqui se dá por reproduzido, de acordo com os limites indicados pelos Autores, o prédio reivindicado tem a área coberta de 126.50m2 e descoberta de 217.90m2.

12. Constando do mesmo relatório que existe uma diferença entre as áreas declaradas na descrição predial e inscrição matricial e a realidade indicada pelos Autores ao perito de 283%.

13. Perante tal discrepância e face às informações prestadas pelo perito e que constam do aludido relatório pericial, o Tribunal concluiu que o prédio dos Autores passou a integrar área de terreno que inicialmente não estaria afeta à casa telhada e respetivo quintal, como resulta da escritura de compra e venda de fls.20 e seguintes.

14. Retrucam os Autores que apenas lhes competia provar que são donos e legítimos proprietários de um determinado prédio, já que um proprietário adquirente adquire uma propriedade e não metros quadrados.

15.Tal afirmação é falaciosa.

16. É que, não obstante a presunção registral, eram os Autores quem tinha o ónus da prova acerca da composição, confrontações e limites do prédio, em ordem a demonstrar que a parcela de terreno reivindicada nestes autos é parte integrante do prédio de que são proprietários (cf. acórdão supra citado proferido pelo Tribunal da Relação do Porto datado de 18-06-2024, tirado no processo 1176/21.9T8LOU.P1, disponível para consulta em www.dgsi.pt)

17. Depois, como apontou o Tribunal a quo, cabia-lhes ainda provar que o identificado trato de terreno está afeto a caminho de servidão, concretizando a extensão do mesmo, mediante a indicação do seu início, termo e largura.

18. Nada disto fizeram!

19. Não apresentaram qualquer justificação para a diferença colossal de áreas.

20. Nada alegam nos seus articulados quanto a isso, limitando-se a juntar um desenho que apelidam de “planta” encontrada no espólio dos antecessores, a qual nada prova!

21. Perante o resultado da prova pericial - levantamento topográfico - não alteraram o pedido de condenação que dirigiram ao Tribunal.

22. E esperam que o Tribunal, por obra e graça do espírito santo, dê como provado que o prédio dos Autores tem uma área abismalmente superior àquela que os Autores pedem que lhes seja reconhecida!

23. Mas sem que nada disto lhe tenha efetivamente sido pedido.

24. Como decorrência do princípio do dispositivo, continua a vingar na nossa lei adjectiva o princípio do pedido, de acordo com o qual o tribunal não pode resolver qualquer conflito de interesses que a acção pressupõe sem que essa resolução lhe seja pedida (art. 3º, n.º 1 do CPC).

25. Sob pena de a sentença encontrar-se eivada de nulidade.

26. Em virtude do que vem dito, sempre a ação dos Autores haveria que improceder.

27. O facto 33 não merece qualquer censura.

28. Consequentemente, a douta sentença recorrida não merece qualquer juízo de censura, devendo manter-se in totum.

O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Cumpre então apreciar e decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


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As questões a decidir são as seguintes:

I. Reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto;

II. Caracterização do caminho existente na atual “Travessa 1...” como privado e sua integração no prédio dos autores.


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Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos:

Por confissão, mostram-se provados:

1). A autora é dona e legítima proprietária do prédio urbano, composto de casa construída de pedra e cal, telhada, de rés-do-chão e quintal com a área coberta de 40m2 quarenta metros quadrados e descoberta de 50m2 cinquenta metros quadrados, sita no Lugar ..., Freguesia ..., concelho ..., a confinar do nascente com II, do poente com FF, do norte com ..., e do sul com GG, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº. ...83, a fls onze verso do livro ...7 e inscrito na matriz sob o artigo ...82.

2). A raiz do prédio identificado em 1). foi adquirida pela autora por doação de HH, que também usava HH, CF.:...17, solteira, por escritura pública de vinte e cinco de junho de mil novecentos e noventa e dois, no Cartório Notarial ... – doc nº. 1, levando o título dessa aquisição ao registo predial pela inscrição com apresentação 116 de 2017/12/22.

3). A doadora HH faleceu em ../../2019 e a sua última residência foi na Travessa ....

Com relevo dos documentos e da produção de discussão da causa resultaram os seguintes factos provados:

4). Desde 1977 até à sua morte, a HH usava como entendia o prédio descrito em 1), em toda a sua amplitude dos proventos da construção e terreno envolvente, comprou-o, habitou-o, agricultou-o, modificou-o, doou-o e reservou para si o usufruto, praticando todos estes actos típicos de quem é dono, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e sendo por todos reconhecida como dona.

5). O prédio urbano, que a doadora HH, tinha adquirido em 1977, já existia desde data anterior a 27 de junho de 1972, conforme teor da informação certificada junta como documento nº. 5 que aqui se dá por reproduzida.

6). E esse prédio da HH tinha a configuração da planta encontrada no seu espólio – documento nº. 6 cujo teor aqui se dá por integralmente por reproduzido e a ela sucedeu-lhe a autora e seu marido, na prática de actos idênticos e com a mesma amplitude, agindo também como donos e também como tal, por todos respeitados, com suporte derivado no título de doação.

7). No limite da cofinancia Sul, atravessando os prédios que anteriormente pertenceu a FF, dos autores e de II, com origem a Poente na actual Rua ... a Nascente, existe um caminho, cuja origem escapa à memória dos vivos, pré-existente à construção efectuada no prédio dos Autores e que prosseguindo para Nascente, desde sempre constituiu um acesso aos prédios de natureza rústica que lhe ficam a montante, permitindo que através dele outros terrenos a cultivo, pudessem ser trabalhados e frutificados.

8). Os Autores cimentaram o logradouro do seu prédio.

9). A Poente do prédio dos autores e no prédio que outrora foi de FF, no ano 2000 surgiu um edifício, de média dimensão, e vários pisos, destinado a ser constituído em propriedade horizontal e por isso dividido com várias fracções, para comércio, serviços e habitação, e com frente para a dita Rua ....

10). O prédio descrito em 9)., na sua dimensão Poente Nascente confina com o prédio dos Autores e o acesso às garagens do mesmo é feito pela aludida Travessa 1..., sendo utilizada pelos moradores e visitantes.

11). O promotor imobiliário e dono da obra, optou por executar as fracções ou espaços de garagem com acesso no logradouro das traseiras da construção, destinando o trato do seu terreno afecto ao caminho, que beneficiou com pavimentação, a serventia para o logradouro das traseiras.

12). No âmbito do licenciamento para a construção desse edifício, o promotor cedeu ao domínio público quer a zona administrativa de afastamento quer esse espaço a caminho, do terreno onde projectava a obra.

13). A sul desta edificação e do prédio dos Autores fica o prédio dos Réus.

14). A Câmara Municipal, em certidão de 21 de setembro de 2020, declara o seguinte:

a) A Rua indicada pelo requerente como “Travessa 1...” não é reconhecida com esse nome, tendo-lhe sido atribuída desde 4/12/2018, a designação de "Rua ...".

b) O arruamento onde se situa a propriedade dos Autores, não possui toponímia aprovada, tendo a Junta de Freguesia territorialmente competente iniciado os procedimentos necessários à instrução do processo, o qual se encontra em análise.

15). Os primeiros Réus ampliaram para Nascente o seu edifício com frente para a Rua ..., e, no limite da sua propriedade, edificaram uma arrecadação/armazém para fins industriais, mantendo o alinhamento da empena Norte desse edifício e a confinar com a actual Travessa 1..., abrindo, nessa ampliação, e parede da empena, um portão para permitir o acesso ao interior, facilitar as cargas e descargas de veículos que aparquem no exterior e um painel para janelas, ainda não rasgadas, em retângulo, em que ambas as dimensões têm mais de quinze centímetros, passando a utilizar a actual Travessa 1... para acederem a esse armazém.

16). Conforme as imagens do Google de 2013, as construções acabaram assim:

17). Transportando o esquema para imagens do Google de 2019, as construções acabaram assim:

18). Houve participações recíprocas dos autores e primeiros Réus à GNR, por causa do aparcamento indevido de viaturas na actual Travessa 1..., passando a existir naquela via “fiscalizações rodoviárias”.

19). O autor foi autuado e rebocaram-lhe o veículo, com a justificação que o veículo estava estacionado, dentro de localidade e a impedir o acesso à propriedade dos primeiros Réus.

20). Em 22-02-2018, o Senhor Presidente da Junta, afirmava «A Travessa 1... tem início na Rua ... e termina no limite dos terrenos confrontantes; tanto no seu comprimento como na sua largura.»

(Contestação da Câmara Municipal ...):

21). No âmbito do licenciamento do prédio descrito em 9), foi cedido ao domínio público quer a zona administrativa de afastamento, quer o trato de terreno que dá acesso às garagens. - Cfr. doc. n.º 1 que aqui se junta e dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

22). Por deliberação da Câmara Municipal ..., datada de 04-12-2018, foi aprovada a atribuição de toponímia em diversas vias da Freguesia ....

23). O Réu Município tem conhecimento da apresentação quer por parte dos Autores, quer por parte dos primeiros Réus, de pedidos de legalização de construções, os quais se encontram em apreciação pelos serviços competentes.

(contestação dos réus CC e DD)

24). Os primeiros Réus são donos e legítimos proprietários de um prédio urbano sito na Rua ... com o número de polícia ...90.

25). Os Autores residem há pelo menos 30 anos, na Travessa ..., na Freguesia ... designação atribuída pela Junta de Freguesia, para efeitos fiscais e através da qual, acedem à sua habitação, utilizando na sua correspondência e nos demais actos administrativos, judiciais e correntes da vida comum, o referido nome de rua e número de polícia.

26). A Travessa 1... dá ainda acesso ao Campo ..., ao prédio dos Réus e ainda a todos os prédios existentes na referida Travessa.

27). A Ré Junta de Freguesia ... emitiu declaração onde consta que a Travessa 1... se inicia na Rua ... e termina com o Campo ....

28). A Junta de Freguesia pavimentou a Travessa 1..., construiu os passeios existentes, colocou a placa de identificação da referida Travessa bem como procede à limpeza da mesma há mais de 30 anos.

29). Por despacho emitido, a ../../2020 pelo Réu Município de ... é declarado que a Rua ... foi aberta há mais de 30 anos e é o próprio chefe da Divisão de Gestão Urbanística, arquitecto RR, que admite que assistiu à abertura de ruelas, carreiros e acessos a campos, que foi efectivamente o que aconteceu com a Travessa 1....

30). Nas plantas do sistema SIGAP – Sistema de Informação Geográfico da Autarquia de ... - a Travessa 1... está devidamente circunscrita e delimitada, com o seu início na Rua ... e o seu fim no “Campo ...” e dá acesso a vários outros prédios para além do prédio dos Autores.

31). Inexiste toponímia aprovada para a Travessa 1..., mas Ré Freguesia ... foi atribuindo o nome às Ruas, Ruelas e Travessas existentes na Freguesia ..., de acordo com os usos, costumes e necessidades dos habitantes, arranjou ruas e ruelas, pavimentou-as, construiu os passeios, colocou as placas de identificação, procede à limpeza das mesmas, como é o caso da Travessa 1....

32). A Ré, Freguesia ... através do seu competente órgão executivo da Junta de Freguesia deu início a um inquérito à população, visando a toponímia na cidade ... em 1989 – Acta nº. 40, de 23.03.1989, não tendo especificado nome de Ruas ..., mas tal resultou de um levantamento das necessidades da freguesia.

33). A actual Travessa 1... era o antigo caminho que atravessava o Lugar ..., da freguesia em ... e que integrava a actual Travessa ....

(Contestação Ré Freguesia ...)

34). Na Freguesia ... foram, pelos usos e costumes e necessidades da população, criadas ao longo dos tempos ruas, ruelas e travessas que eram e são até aos dias de hoje utilizadas pela população em geral.

35). Em tempos imemoriais a população do Lugar ... utilizava os caminhos e ruelas para se deslocar entre as suas habitações e campos de cultivo e, por isso, passou-se a apelidar essas rua e ruelas pelos nomes dos ali residentes, tendo o nome do pai da doadora (antepossuidora do prédio dos autores) que consta da certidão de óbito, doc. n.º 3, página 2, denominado de SS dado nome à Travessa objecto dos autos.

36). Em finais de 2018, o executivo da Freguesia ..., aqui Ré remeteu à Câmara Municipal ... um pedido de aprovação da toponímia de várias Ruas e Travessas de ..., incluindo a Travessa 1..., vindo o Pelouro do Planeamento e urbanismo a dar resposta pelo ofício n.º ...19... em 26/02/2019, dizendo que, relativamente à toponímia da Travessa 1...: “informa-se que, tratando-se de uma via cuja dominialidade está a ser acompanhada pelo tribunal, deverá essa Junta apresentar a decisão final. Mais se informa que, até essa data, o presente processo ficará suspenso”.

Mais resultou provado:

37). O prédio designado “Campo ...” é da titularidade da filha dos autores como resultou reconhecida em processo comum que correu termos como Proc. 191/18.4T8PRD que correu termos neste juízo local.


*

Factos Não Provados:

Nenhuma outra factualidade com interesse para a presente causa, por estar em manifesta contradição com os factos provados acima elencados, constituírem expressões de teor conclusivo ou de direito, nomeadamente:

Petição Inicial: 5 parte final; 8 conclusivo; 9; 11; 13; 14 parte final; 15; 16; 18 apenas sucedâneos na servidão; 20; 21; 22; 27; 29 parte final; 32 primeira parte; 33 conclusivo; 34 a partir de incluso até final; 36; 37; 39 conclusivo; 40 conclusivo; 41; 42; 43; 45 conclusivo a partir de teriam de fazer; 46; 48; 49 parte final; 50; 52; 53; 54; 55; 56; 57; 58; 59; 62; 63; 65; 66; 67; 68; 69; 70.

Contestações:

1ª. contestação (Município de ...): 15; 16 e 17 conclusivo; 18; 19; 20; 21;32; 33; 34; 35, 36 e 37.

2ª. contestação (primeiros Réus): 11 e 13 na parte em que refere que o “Campo ...” pertence aos primeiros Réus”; 19; 20 a 30.

3ª. contestação (Freguesia ...): 5; 15; 16; 17; 18; 24, 25.


*

Passemos à apreciação do mérito do recurso.

I. Reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto

1. Os autores, no seu recurso, insurgem-se contra o facto provado nº 33 [A actual Travessa 1... era o antigo caminho que atravessava o Lugar ..., da freguesia em ... e que integrava a actual Travessa ...], pretendendo que o mesmo seja dado como não provado, indicando, nesse sentido, com referência horária, passagens dos depoimentos das testemunhas NN e OO.[2]

Por seu turno, o réu/recorrido Município de ..., na sua resposta, também com referência horária, aludiu a passagens dos depoimentos das testemunhas TT, KK, LL e MM e ainda aos documentos nº 8 junto com a petição inicial e também ao que foi junto com o requerimento com a Ref.ª 41678359.

Uma vez que no tocante ao facto nº 33 os autores/recorrentes cumpriram, de forma mínima, os ónus previstos no art. 640º do Cód. Proc. Civil ir-se-á proceder à sua reapreciação.

2. Procedemos assim à audição integral dos depoimentos de que foram indicadas passagens pelos recorrentes e pelo recorrido.

NN é amiga e vizinha dos autores, conhecendo o local desde pequena. Disse que há 2/3 anos foi lá colocada pela Junta uma tabuleta a dizer “Travessa 1...”, mas a rua não é pública, nem tem saída. Havia lá um caminho estreito e depois referiu que quem pavimentou o caminho no acesso à sua casa foi o próprio autor (Sr. AA). Esclareceu que os autores não cederam qualquer terreno à Junta, acrescentando que quem faz a sua limpeza são também os autores. Nunca viu lá qualquer empregado da Junta a limpar.

OO conhece o local, dá-se bem com os autores e é primo dos réus. Disse que aquilo era um caminho de servidão para os campos, duas vezes por ano, de “frutar e desfrutar”. Depois houve a construção do prédio e o caminho tornou-se público para dar acesso às suas garagens. Referiu também que passava nessa servidão para ir para o “Campo ...”, que foi sua propriedade durante 15 anos e vendeu para não ter “problemas”.

TT é vereador da Câmara Municipal ... e teve a seu cargo o pelouro do urbanismo entre 2017 e 2021. Disse que quanto a este caso foram apresentadas por ambas as partes queixas por obras ilegais. A toponímia é aprovada pela Câmara Municipal, na sequência de proposta da Junta de Freguesia. Neste caso, o processo relativo à toponímia ainda não terminou por causa dos processos existentes sobre a natureza pública ou privada da “rua”. Os processos relativos à toponímia iniciam-se pela Junta de Freguesia que indica o que considera público, podendo até estar em terra. Salientou que muitas das ruas do concelho em 2017 ainda não tinham toponímia aprovada, o que fez com que das Juntas de Freguesia surgissem pedidos nesse sentido.

KK é cabo da GNR em .... Disse que, na sequência de queixas de ambas as partes, foi por várias vezes à Travessa 1... por causa da saída de veículos, referindo ainda que têm um ofício da Junta de Freguesia, que é a entidade gestora da via, a dizer que aquilo é público.

LL é militar da GNR, tendo prestado serviço no posto territorial de .... Disse que esteve várias vezes no local por causa de situações de obstrução de veículos, tendo sido dada a informação, através de ofício da Junta de Freguesia, que é a gestora das vias, no sentido de que se tratava de um caminho público. Procedeu a autuações.

MM é também militar da GNR, tendo prestado serviço no posto territorial de .... Foi ao local mais do que uma vez, por causa de desentendimentos relativos a um terreno. Constatou de uma das vezes a presença de um veículo a obstruir a passagem.

Quanto ao documento nº 8 junto com a petição inicial corresponde este à certidão nº ...0 emitida pela Divisão de Planeamento do Pelouro do Planeamento e Urbanismo da Câmara Municipal ..., em 21.9.2020, assinada pelo Vereador TT [ouvido como testemunha], da qual consta o seguinte:

“ … certifica no processo com o nº ..., requerimento nº ...0, com base na informação técnica emitida em 2020/09/18, que a via demarcada “a sombreado” na planta fornecida pelo requerente e delimitada a azul na planta anexa não possui toponímia aprovada, tendo a Junta de Freguesia territorialmente competente iniciado os procedimentos necessários à instrução do processo, o que se encontra em análise.

Mais certifica que a via indicada nos elementos instrutórios como sendo a “Travessa 1...”, e demarcada a amarelo na planta anexa é, de acordo com a toponímia aprovada em reunião do Executivo datada de 4/12/2018, designada de “Rua ...”.

(…)”[3]

3. Ao abrigo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal [art. 640º, nº 1, 1ª parte do Cód. Proc. Civil], procedemos ainda à audição dos depoimentos prestados pelo Presidente da Junta de Freguesia ..., UU, e pelas testemunhas VV, PP, WW, XX e RR.

UU exerce o cargo de Presidente da Junta de Freguesia ... desde 2013. Disse que os problemas existentes se reportam ao arruamento designado por “Travessa 1...”. Este tem um pavimento em betuminoso fresado colocado pela Junta de Freguesia e constitui o acesso para as garagens de um prédio com andares que aí existe. Antes da edificação deste prédio o caminho servia os proprietários dos terrenos respetivos. Disse também que a Rua ..., construída há cerca de 30 anos, é estruturante na freguesia e atravessou todos os caminhos antigos que aí existiam, entre eles a “Travessa ...” e a “Travessa 1...”, sendo que estas integravam o mesmo caminho. A “Rua ...” é noutro local.

VV, que conhece o local e foi membro da Junta de Freguesia, disse que a atual “Travessa 1...” é continuação da atual “Travessa ...”, que constituíam antes um só caminho, tendo este sido cortado pela Rua .... A “Travessa 1...” termina nos campos que aí existem. Julga que nesse caminho passava qualquer pessoa. Disse também que a designação “Travessa 1...” foi atribuída no tempo em que era presidente da Junta de Freguesia ..., porque esse era o nome de uma pessoa que vivia nesse local e era aí muito conhecida. Os caminhos aí estavam todos “emaranhados”. O pavimento da “Travessa 1...” é com fresado proveniente da A...2. Tencionavam alcatroar, mas por falta de verba, não o fizeram. A limpeza da travessa é feita pela Junta de Freguesia.

PP é morador no local. Disse que o caminho antigamente era mais estreito e de terra. Agora tem outras condições, em virtude da construção de um prédio. O caminho servia os proprietários que tinham aí terrenos, nomeadamente através da utilização de carros de bois para os irem lavrar. Por isso, a testemunha utilizava esse caminho para ir ao seu terreno lavrá-lo. Sublinhou que nunca pediu autorização a ninguém para passar por tal caminho, o mesmo sucedendo com outras pessoas que aí tinham terrenos. Atualmente esse caminho, que corresponde à “Travessa 1...”, está “asfaltado”, tem luz pública e passeios.

WW é técnico superior da Câmara Municipal ... e morador no local. Disse que quando se abriu a Rua ..., o caminho foi cortado e ficou dividido em dois: a “Travessa ...” e a “Travessa 1...”. Salientou ainda que a atual “Travessa 1...” sempre foi vista pela testemunha e pela população como um caminho público e não como um “caminho de servidão”.

XX é amiga dos autores. Num depoimento marcado pela imprecisão e pelo pouco conhecimento da zona, referiu a existência no local de um caminho por onde se passava para ir aos campos, tendo dito também que os autores vivem na Rua ....

RR é arquiteto e trabalha na Câmara Municipal ... desde 1986. Disse que o Lugar ..., na Freguesia ..., era servido por uma rede de caminhos rurais estreitos e antigos (“quelhos”). A Estrada ... foi aberta em finais dos anos 70, inícios de 80, para melhorar as acessibilidades no local, tendo cortado anteriores caminhos rurais. Neste caso particular surgiu uma situação de extrema hostilidade em termos de vizinhança. A testemunha disse ter licenciado o prédio de andares construído no local, cujas garagens têm acesso pela “Travessa 1...”, tendo dado a esta travessa o tratamento de caminho público, donde resultava também para todos os moradores uma melhor acessibilidade aos terrenos rurais aí existentes. Aliás, realçou que os indícios relativos ao anterior caminho apontavam no sentido do acesso público. Referiu também que a “Travessa 1...” tem o seu início na Rua ..., mas não sabe bem onde a mesma termina.

4. Em sede de convicção do Tribunal escreveu o seguinte a Mmª Juíza “a quo” na sentença recorrida:

“A convicção do Tribunal quanto aos factos acima dados como provados e não provados resultou fundamentalmente da análise crítica conforme as regras da experiência comum e os juízos de normalidade da prova produzida, em concreto, dos documentos juntos aos autos que foram conjugados com a observação directa realizada pelo Tribunal e que melhor se mostra consignada nos autos e ainda com a restante prova produzida pericial, por confissão e testemunhal.

E, desde logo, uma conclusão logrou o Tribunal retirar que a Travessa 1... existe no Lugar ... há mais de 30 anos, encontrando-se pavimentada com um tapete e permite o acesso a pé, em veículos motorizados e ou outros às garagens logradouro do prédio construído no antigo terreno de FF e com entrada pela Rua ..., à casa dos Autores, ao “Campo ...”, aos armazéns anexos à casa dos primeiros réus e outros terrenos agrícolas, designadamente, o “Campo ...”. Também, nesta Travessa é usual estarem estacionados carros ou outras viaturas.

Igualmente todas as entradas para edifícios ou suas dependências estão devidamente numeradas com os números de polícia atribuídos pela respectiva Junta de Freguesia.

Finalmente, apesar da toponímia no Lugar ... maxime Freguesia ... não estar aprovada, com meridiana segurança e certeza resultou ainda que as ruas, travessas e ruelas têm os nomes das pessoas da freguesia que habitavam aqueles Lugares, nomeadamente, “a Travessa ...”; “Rua ...”; “Travessa 1...”; etc.

Por outro lado, da conjugação dos documentos juntos aos autos – doc. nº. 12 (planta simples), fls.63, fls. 65, 72 e o ortogofotomapa - com a inspecção judicial realizada pelo Tribunal (ref. nº. 88149092), em termos objectivos foi verificado que, na Freguesia ..., no Lugar ... existem ambas as travessas do 1... e a Rua ... (planta simples de 2011 – fls. 78 verso) que se podem caracterizar como sendo duas artérias autónomas, independentes e perfeitamente delimitadas.

Ambas têm o seu início na actual Rua ..., com a qual entroncam paralelamente pelo lado direito quem sobe a mesma, não sendo confundíveis. E, por todas estas concretas características não logra alcançar o sentido e o alcance do exarado na certidão nº ...0, do Pelouro do Planeamento e Urbanismo da Câmara Municipal ... que não tem qualquer correspondência com a realidade daquele Lugar, referindo e passo a transcrever: “…que a via identificada nos elementos instrutórios como sendo a “Travessa 1...”, e demarcada a amarelo na planta anexa é, de acordo com a toponímia aprovada em reunião do Executivo datada de 04.12.2018, designada de “Rua ...”. Ora, da análise dos demais elementos designadamente das plantas topográficas do ... facilmente verificamos estarem delineadas, assinaladas quanto aos limites, trajectória e orientação as referidas travessa/rua e que o declarado naquela não corresponde à verdade apesar do facto provado em 14), por se tratar de uma certidão dada aos autores.

Para além do mais importa realçar que pelo menos a Travessa 1... tem a sua origem ancestral nos antigos caminhos que existiam naquele Lugar ... e que, por via do desenvolvimento demográfico, económico e rodoviário foram alargados, interceptados, pavimentados por vias rodoviárias que visaram facilitar acessos e mobilidade das populações, como por exemplo a Rua ....

Ainda a propósito da confusão entre a Travessa 1... com a Rua ... importa salientar que as informações exaradas na página do motor de buscas Google como resulta de fls. 164 a 167 – situa a Travessa 1... na actual Rua ... - não são exactas e fidedignas como lograram demonstrar os demais meios de prova, a saber a prova por inspecção ao local, pericial e testemunhal.

Há ainda uma característica física essencial que permite distinguir a Travessa ... que é o facto desta última não estar pavimentada.

Importa ainda realçar que, no âmbito da prova pericial realizada, em concreto das respostas aos quesitos formulados pelas rés Freguesia ... é possível constatar que o prédio dos autores reconhecidamente tem descrita na Conservatória do Registo Predial uma área total, abrangendo as áreas coberta e descoberta, inferior à efectivamente existente, tendo inclusivamente o Sr. Perito esclarecido, quanto aos indícios da ampliação, não conseguir objectivamente clarificar este ponto, mas, conforme as áreas apresentadas existe uma diferença colossal entre o registo e a realidade, aproximadamente de 283%. E, tendo o mesmo mais acrescentado relativamente, quer à planta de localização de fls. 128, quer à planta topográfica de fls. 129 que os limites dos autores foram definidos pelas informações recolhidas no local, nos termos consignados nas respostas nºs. 5 e seguintes que aqui se dão por reproduzidas. E, precisamente, atendendo a que o sr. Perito concluiu que aparentemente a construção dos autores sofreu uma alteração significativa conforme as áreas descritas no ponto nº.1 necessariamente temos que admitir que o mesmo passou a integrar área de terreno que não estaria inicialmente afecta à casa telhada e respectivo quintal como resulta da escritura de compra e venda de fls. 20 e seguintes.

Posteriormente, a fls. 149 e 153 foram ainda dados os esclarecimentos juntos e que aqui se dão por reproduzidos. (…)”

E mais adiante a propósito do facto impugnado – nº 33 -, que conjugou com o facto nº 28, a Mmª Juíza “a quo” escreveu o seguinte:

“Em concreto, a factualidade provada nas alíneas 28 e 33 resultou da articulação e apreciação crítica [do] depoimento de parte do Presidente da Junta de ... UU que de forma clara, directa afirmou que a pavimentação com betuminoso fresado da mesma e os passeios existentes foram feitos pelo órgão executivo da 2ª. ré, mais esclarecendo ser a mesma o único acesso aos moradores daquela Travessa e que ainda não dispõe a mesma de outras infra-estruturas como sejam o saneamento.

Com uma espontânea naturalidade afirmou não ter memória da construção do prédio de andares cujo acesso às garagens é feito pela Travessa 1..., nem das eventuais cedências ao domínio público.

Com assertividade confirmou que os autores sempre acederam à sua casa através da Travessa 1... que, enquanto, caminho público por aí passar qualquer pessoa.

Precisou ainda que a Rua ... enquanto via estruturante da freguesia foi construída há 30 anos, atravessa todos os antigos caminhos ali existentes”

5. O art. 662º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil diz-nos que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»

A Relação, nesta reapreciação, goza de autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre os meios de prova sujeitos a livre apreciação, sem exclusão do uso de presunções judiciais.

Como tal, a livre convicção da Relação deve ser assumida em face dos meios de prova que estão disponíveis, impondo-se que o tribunal de recurso sustente a sua decisão nesses mesmos meios de prova, descrevendo os motivos que o levam a confirmar ou infirmar o resultado fixado em 1ª instância.[4]

6. Sucede que avaliada a prova produzida em audiência, que ouvimos na sua totalidade, conjugada com os elementos documentais e periciais constantes do processo, onde se incluem também os decorrentes da inspeção judicial realizada ao local e ainda os cartográficos e fotográficos, entendemos não existirem motivos que nos permitam dissentir da convicção probatória formada pela 1ª Instância e que levou a que se considerasse como provado sob o nº 33 que “a atual Travessa 1... era o antigo caminho que atravessava o Lugar ..., da freguesia em ... e que integrava a actual Travessa ....”

Com efeito, sempre haverá a referir que os depoimentos em que se sustentou a versão dos autores/recorrentes no sentido de que naquele local existia um caminho particular, de servidão, prestados pelas testemunhas NN e OO, não se nos afiguraram convincentes.

O que, realmente, decorre do conjunto da prova produzida é que a atual Travessa 1... corresponde a um caminho antigo que aí existia, no qual se integrava também a atual Travessa .... A ..., onde nos situamos, era um lugar da Freguesia ... atravessado por numerosos caminhos, muito antigos, que por via do desenvolvimento urbano ocorrido nas últimas décadas, foram profundamente modificados, com o seu alargamento, a sua pavimentação e a sua interceção por vias rodoviárias entretanto abertas para facilitar a mobilidade das populações, onde se destaca a denominada Rua ....

Assim sendo, entendemos que o referido nº 33 se deverá manter na factualidade assente sem qualquer alteração de redação.

7. Os autores/recorrentes, para além de se insurgirem quanto a este facto nº 33, vieram também referir que não aceitam a decisão da matéria de facto, por se ter dado como não provados factos alegados na petição inicial que demonstram que a entrada existente na Rua ... só é pública no espaço recentemente cedido por promotor imobiliário para por ali servir as garagens do seu imóvel mantendo sem prejudicar o acesso que por ali já era dado a propriedades de terceiras pessoas.

Referiram igualmente que deveria ter sido dada como provada a matéria da petição inicial que apontava para a natureza de atravessadouro, por não ser servido qualquer interesse público relevante.

O art. 640º do Cód. Proc. Civil dispõe o seguinte no seu nº 1:

«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.»

Depois, na alínea a) do nº 2 desta mesma norma, estatui-se ainda o seguinte:

«Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

(…)»

Constata-se assim que, no respeitante à impugnação da matéria de facto, o recorrente tem em quaisquer circunstâncias que indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida e ainda a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Não sendo cumpridos estes ónus, a que se reportam as alíneas a), b) e c) do nº 1 do art. 640º do Cód. Proc. Civil, impõe-se a rejeição do recurso interposto quanto à impugnação da matéria de facto, não sendo processualmente admissível despacho de aperfeiçoamento.

ABRANTES GERALDES (in “Recursos em Processo Civil”, Almedina, 7ª ed., pág. 208) entende haver sérios motivos para rejeição do recurso sobre a matéria de facto quando o recorrente se insurja genericamente contra a decisão sem indicação dos pontos de facto, quando não indique de forma clara nem os pontos de facto impugnados nem os meios de prova em que criticamente se baseia ou quando nem sequer tome posição clara sobre a resposta alternativa pretendida.

Ora, lendo o recurso interposto pelos autores, tanto a sua motivação como as suas conclusões, logo se verifica que no tocante à matéria alegada na petição inicial dada como não provada que estes pretendem ver provada não foi esta minimamente concretizada.

Desconhecem-se assim quais os específicos pontos factuais constantes da petição inicial que se querem ver como assentes, de tal forma que, nesta parte, nos confrontamos com uma impugnação genérica.

A tal acresce ainda a circunstância de, nesta parte, não terem sido indicados com clareza os meios probatórios em que se fundaria tal segmento da impugnação fáctica, constatando-se ainda que os recorrentes nem sequer especificaram, de forma percetível, quais as respostas alternativas que pretendiam.

Deste modo, nesta parte, referente a matéria da petição inicial não provada que deveria ter sido dada como provada, rejeita-se a impugnação factual efetuada pelos autores, o que, circunscrevendo-se a este segmento, não impede a reapreciação da factualidade que foi impugnada de forma considerada como processualmente correta, como já atrás se fez em relação ao facto provado nº 33.[5]


*

II. Caracterização do caminho existente na atual “Travessa 1...” como privado e sua integração no prédio dos autores

1. Em primeiro lugar, há a referir que em relação ao pedido formulado pelos autores no sentido de ser reconhecida da existência de um caminho de natureza privada que atravessa o seu prédio e nele se integra cabia a estes o ónus da prova dos respetivos factos constitutivos, nos termos do art. 342º, nº 1 do Cód. Civil, sucedendo que não lograram fazer essa prova.

Com efeito, está apenas demonstrado o direito de propriedade dos autores sobre o prédio identificado no nº 1 da factualidade assente, devendo-se salientar, como se fez na sentença recorrida, que a presunção resultante do art. 7º do Cód. Registo Predial[6] não abrange os elementos de identificação do prédio constantes da sua descrição física.

Apenas se faz presumir que o direito de propriedade existe e pertence às pessoas em cujo nome se encontra inscrito, mas essa presunção não se estende aos limites ou confrontações dos prédios ou à sua área, em suma à sua identificação física, uma vez que estes elementos são suscetíveis de assentar em meras declarações dos interessados, escapando ao controlo do Conservador do Registo Predial.[7]

É que nenhum destes elementos é atestado pela autoridade ou funcionários competentes com base nas suas perceções.

Acontece que relativamente ao caminho que se discute no presente processo não se provou que fizesse parte integrante do prédio que é propriedade dos autores, inexistindo elementos factuais que permitam qualificá-lo como caminho privado, como estes pretendem.

Aliás, este encontra-se pavimentado pela Junta de Freguesia, que procede à sua limpeza e lá colocou passeios bem como uma placa de identificação, constituindo o mesmo acesso a vários proprietários e seus prédios.

2. Conforme escreve MARCELLO CAETANO (in “Manual de Direito Administrativo”, vol. II, Almedina, reimpressão da 10ª ed., págs. 921/923) “[a] atribuição do caráter dominial depende de um, ou vários, dos seguintes requisitos:

a) existência de preceito legal que inclua toda uma classe de coisas na categoria do domínio público;

b) declaração de que certa e determinada coisa pertence a essa classe;

c) afetação dessa coisa à utilidade pública.

Não é forçoso que concorram estes três requisitos: um só pode bastar, é frequente verificar-se a existência de dois, algumas vezes existem os três. Na verdade:

- há bens cuja dominialidade depende apenas da genérica disposição da lei, completada, ou não, por meras operações de delimitação da parte sobre a qual se exercerão os direitos dominiais (ar atmosférico, águas marítimas…);

- há coisas que entram no domínio depois de se verificar, por lei ou acto administrativo, possuírem o atributo típico da classe genericamente considerada dominial (classificação de uma via férrea como de interesse público, de uma água como mineromedicinal, de um museu como nacional, etc.);

- finalmente, quanto a outras coisas pertencentes a uma categoria que a lei considera do domínio público, a integração em cada caso concreto depende de um acto especial de afetação, isto é, de aplicação do imóvel ao fim de utilidade pública justificativo da dominialidade (abertura ao público do uso de uma estrada ou de uma linha telegráfica).

A afectação não é incompatível com a classificação: muitas vezes à classificação segue-se, completadas as obras necessárias, a afetação ao uso público, por acto administrativo ou por mero facto, dos bens classificados.

(…)

A afectação é o acto ou prática que consagra a coisa à produção efectiva de utilidade pública.

(…)

A afectação pode resultar de um acto administrativo (decreto ou ordem que determine a abertura, utilização ou inauguração) ou traduzir-se num mero facto (a inauguração) ou numa prática consentida pela Administração em termos de manifestar a intenção de consagração ao uso público.”

Por isso, tal como se afirma na sentença recorrida, não há afetação, propriamente dita, mesmo tácita, senão onde se exerça a jurisdição administrativa e portanto se possa provar o destino ao uso público com consentimento do Poder.

Entende MARCELLO CAETANO (in ob. cit., pág. 924) que “para que um caminho outrora particular se converta em público é necessário que pelo abandono do proprietário este deixe prescrever os seus direitos e que o Estado ou outra pessoa colectiva de direito público pratiquem actos ou factos que representem, através da conservação, reparação, regulamentação do trânsito, etc., a intenção ou o animus sem o qual não há posse jurídica.”

Prosseguindo, relativamente aos caminhos públicos, há que ter em atenção o assento do STJ de 19.04.1989, publicado no DR I-A de 02.06.1989[8], atualmente com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência, com o seguinte texto:

São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público.”

Nele se escreveu o seguinte:
“(…) quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente.
É suficiente para que uma coisa seja pública o seu uso directo e imediato pelo público, não sendo necessária a sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa colectiva de direito público.
Assim, um caminho é público desde que seja utilizado livremente por todas as pessoas, sendo irrelevante a qualidade da pessoa que o construiu e prove a sua manutenção.”
Em sintonia com este Assento, o uso imemorial faz presumir a dominialidade do caminho, de modo a salvaguardar-se a prevalência do interesse público sobre o interesse privado.
Porém, o Assento não pode interpretar-se de modo a que se exclua a dominialidade de um caminho que tendo sido construído ou legitimamente apropriado, em data recente [de onde esteja afastada a imemorialidade], por pessoa coletiva de direito público – Município ou Freguesia –, foi por esta afetado ao uso público, servindo o correspondente interesse coletivo - cfr. Ac. Rel. Coimbra de 7.3.2017, proc. n.º 20/15.0T8SPS.C1, relator PIRES ROBALO, disponível em www.dgsi.pt.
Sobre as questões interpretativas colocadas pelo Assento de 19.4.1989, referiremos ainda o Ac. STJ de 15.6.2000 (p. 00B429, relator MIRANDA GUSMÃO, disponível in www.dgsi.pt.), onde se entendeu que este deve ser, por um lado, interpretado restritivamente – no sentido da publicidade dos caminhos exigir ainda a sua afetação à utilidade pública (o uso do caminho visar a satisfação de interesses coletivos de certo grau ou relevância) – e, por outro lado, de forma extensiva quando nele se afirma que deixou de subsistir, em alternativa, o critério segundo o qual é público um caminho pertencente à entidade pública e estar afeto à utilidade pública.
Por conseguinte, nele se considerou que um caminho no uso direto e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular, será público se estiver afetado à utilidade pública e atravessadouro se lhe faltar esta afetação e, em especial, quando se destine a fazer a ligação entre dois caminhos públicos, por prédio particular, com vista ao encurtamento de distâncias.
Na mesma linha se colocou o já referido Ac. Rel. Coimbra de 7.3.2017, onde se consignou no respetivo sumário que “o STJ vem defendendo, de forma persistente, uma interpretação restritiva do dito acórdão uniformizador, exigindo, para que um caminho de uso imemorial se possa considerar integrado no domínio público, a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objeto a satisfação de interesses coletivos de certo grau e relevância.”[9]
Assim, o uso imemorial faz presumir a dominialidade do caminho, de modo a salvaguardar-se a prevalência de interesse público sobre o interesse privado, não devendo, porém, afastar-se da dominialidade um caminho que, tendo sido construído ou legitimamente apropriado, em data recente – donde estará ausente o requisito da imemorialidade - por pessoa coletiva de Direito Público, foi por ela afetado ao uso público, servindo o interesse coletivo que lhe é inerente.
Por isso, conforme se afirma na sentença recorrida, a suficiência do uso imemorial não exclui outras vias de aquisição da dominialidade, como acontecerá quando a lei diretamente integra determinada coisa na categoria do domínio público, ou quando uma pessoa coletiva de direito público, depois de a construir, produzir ou dela se apropriar, a afeta à utilidade pública.
O uso direto e imediato pelo público é apenas um índice que evidência a publicidade da coisa, no caso do caminho, e quando imemorial, faz presumir a sua dominialidade, e assim, a sua pertença a uma pessoa de direito público, uma vez que não se concebe sequer a dominialidade em relação a coisas pertencentes a particulares.
De qualquer modo, o referido Assento de 19.4.1989 sempre deverá ser interpretado de forma restritiva, de modo a que não se qualifiquem como caminhos públicos simples atravessadouros, como poderia suceder se se fizesse do Assento uma leitura em termos literais.
3. Regressando ao caso concreto, a propósito da natureza do caminho, sublinha-se estar provada a seguinte factualidade:
- Os autores residem há pelo menos 30 anos, na Travessa ..., na Freguesia ..., designação atribuída pela Junta de Freguesia, para efeitos fiscais e através da qual, acedem à sua habitação, utilizando na sua correspondência e nos demais atos administrativos, judiciais e correntes da vida comum, o referido nome de rua e número de polícia [25];

- A Travessa 1... dá ainda acesso ao Campo ..., ao prédio dos Réus e ainda a todos os prédios existentes na referida Travessa [26];

- A ré Junta de Freguesia ... emitiu declaração onde consta que a Travessa 1... se inicia na Rua ... e termina com o Campo de Fora [27];

- A Junta de Freguesia pavimentou a Travessa 1..., construiu os passeios existentes, colocou a placa de identificação da referida Travessa bem como procede à limpeza da mesma há mais de 30 anos [28];
- Nas plantas do sistema SIGAP – Sistema de Informação Geográfico da Autarquia de ... - a Travessa 1... está devidamente circunscrita e delimitada, com o seu início na Rua ... e o seu fim no “Campo ...” e dá acesso a vários outros prédios para além do prédio dos Autores [30];

- A actual Travessa 1... era o antigo caminho que atravessava o Lugar ..., da Freguesia ... e que integrava a actual Travessa do 2... [33]
Neste contexto fáctico, independentemente de se considerar, ou não, que o caminho que aqui se discute, o qual deu origem à atual Travessa 1..., tem natureza pública, sempre terá que se concluir, em consonância com a 1ª Instância, pela inexistência de um caminho privado integrado no prédio dos autores, uma vez que estes não lograram fazer prova nesse sentido.
Como tal, sem necessidade de outras considerações, improcede o recurso interposto, o que implica a confirmação da sentença recorrida.

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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. Proc. Civil):
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DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos autores AA e BB e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas a cargo dos autores/recorrentes, pelo seu decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário que lhes foi concedido.

Porto, 25.2.2025

Eduardo Rodrigues Pires

Maria da Luz Teles Meneses de Seabra

Alberto Taveira


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[1] Seguiu-se, de forma próxima, o relatório constante da sentença recorrida. 
[2] Os autores/recorrentes aludiram ainda a outros depoimentos nas suas alegações de recurso, sem que, no entanto, dos mesmos tivessem feito qualquer transcrição ou referenciado qualquer passagem com indicação horária.
[3] Este documento foi também junto aos autos pelo réu Município de ..., em 18.3.2022, através de requerimento com a referência 41678359.
[4] Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., págs. 823 e 825.
[5] Cfr. ABRANTES GERALDES, ob. e loc. cit.
[6] Diz-se neste preceito que «o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.»
[7] Cfr., por ex., Ac. STJ de 18.1.2018, p. 668/15.3 T8FAR.P1 (JOSÉ RAINHO), Ac. Rel. Porto de 18.6.2024, p. 1176/21.9 T8LOU.P1 (ALEXANDRA PELAYO), Ac. Rel. Coimbra de 3.12.2013, p. 149/09.0 TBPBL.C1 (JOSÉ AVELINO GONÇALVES, Ac. Rel. Lisboa de 2.2.2020, p. 602/17.6 T8MFR.L1-7 (PIRES DE SOUSA), todos disponíveis in www.dgsi.pt. 
[8] Relator SOLANO VIANA.
[9] Referenciou-se nesse sentido, o Ac. STJ de 28.5.2009, p. 08B2450, relatora MARIA PRAZERES BELEZA, disponível in www.dgsi.pt.