Os artigos 129.º e 356.º, n.º 7 do Cód. de Processo Penal proíbem testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o artigo 249.º do Cód. de Processo Penal, ainda que nas mesmas tenham os arguidos colaborado por meio de declaração.
O que já não será admissível é a valoração do depoimento de agente da autoridade que reproduz conversas informais (que não foram formalmente reduzidas a auto) mantidas com o arguido, antes da sua constituição como tal (ainda enquanto suspeito) mas já depois de se ter iniciado o processo contra ele (com omissão das regras formais relativas à prestação de declarações).
1 – RELATÓRIO
1.1 Decisão recorrida
A arguida AA, filha de BB e de CC1, nascida a …2003, casada, residente na Rua …, …, foi julgada e condenada, por sentença de 21/03/2024, pela prática, em coautoria, de um crime de furto, p. e p. pelo art. 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), perfazendo o valor global de 840,00€ (oitocentos e quarenta euros).
*
1.2 Recurso
Inconformada com a decisão final, dela interpôs recurso a arguida, pugnando pela revogação da sentença recorrida, com a consequente absolvição ou, em alternativa, redução da pena aplicada, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
«1. De toda a prova produzida, os factos vertidos na acusação s.m.o. não tiveram prova que os consubstanciasse levando assim à condenação da arguida,
2. Da Prova testemunhal: Nenhuma testemunha nos presentes autos viu, presenciou a arguida a furtar os artigos mencionados na acusação.
3. Relativamente aos fotogramas juntos nos presentes autos, e nos quais foi assente como prova do cometimento do crime da arguida, dizer que os mesmos foram extraídos do vídeo da câmera do …, tendo nos mesmos não sido em momento algum visionado a arguida furtar artigos.
4. A questão mencionada acerca do volume da mala, único ponto propriamente falado acerca dos mesmos, por si só não prova o furto dos artigos mencionados na acusação.
5. Havendo câmera seria de esperar prova concreta do furto, isto é, a colocação dos artigos na mala pela arguida e saída do estabelecimento comercial posteriormente, o que não ocorreu.
6. O volume apresentado da mala, s.m.o., não prova que um furto tenha ocorrido por parte da arguida.
7. Mais, a apreensão de artigos feitos à arguida, salientar que a mesma ocorreu na sua residência e não no próprio do estabelecimento comercial, o que não prova que aqueles artigos tenham sido furtados, diferente seria se tivessem artigos sido apreendidos no seguimento da saída da arguida do ….
8. A informação de um possível furto pela prova produzida terá sido transmitida ao … por uma senhora que se encontrava fora do estabelecimento comercial em causa, o que não deixa de ser de estranhar e impossível de perceber como poderia ter assistido a tal não estanod dentro do mesmo, senhora essa que não foi ouvida nem identificada nos presentes autos.
9. Das conversas informais, mencionadas nos presentes autos, salientar que as mesmas deverão ser inamissíveis como valoradas.
10. A questão das conversas informais são aqui salientadas pelo depoimento prestado ao depoimento da testemunha DD – agente da PSP – o mesmo terá dito algumas palavras que foram ditas pelas arguidas a si , de que tinham as arguidas sido confrontadas e confirmaram que tinham estado no … e que tinham saído com os artigos sem os terem pago.
11. As chamadas “conversas informais” são desprovidas de valor probatório.
12. A proibição de valoração das “conversas informais” decorre tanto na situação da pessoa enquanto suspeito , bem como enquanto arguido , veja-se a esse título o Ac. do TRE, de 05.12.2017, processo n.º 210/16.9GAVRS.E1, cujo relator Gilberto Cunha: “(…) II – As chamadas “conversas informais” dos suspeitos, ainda não arguidos, quer ocorram antes quer depois da abertura do inquérito, são desprovidas de valor probatório”.
13. Um arguido, a partir da constituição enquanto tal, assume um estatuto próprio, com deveres e direitos, inserindo-se nestes o direito de não se auto-incriminar. A partir de então, as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas ou quaisquer outras provas recolhidas informalmente pelos órgãos de polícia criminal.
14. O artigo 356.º, n.º 7, veda o aproveitamento, em sede de audiência, do depoimento de um agente de órgão de polícia criminal que verse sobre conversas informais havidas com o suspeito ou arguido depois da prática do crime e fora do inquérito, pois considera que as declarações prestadas na fase de pré-processo estão incluídas no âmbito material da norma em causa, uma vez que ela regula os atos cautelares incorporados no processo, após validação pela autoridade judiciária.
15. Um entendimento contrário à inadmissibilidade, implicaria que pudessem ser tomadas em conta, para efeitos de prova, declarações do arguido que não o poderiam ser se constantes de auto cuja leitura não fosse permitida em audiência nos termos dos arts. 357.º, conjugado com os arts. 355.º e 356.º, n.º 7”, o que “constituiria manifesta ofensa do fim prosseguido pela lei com estas disposições, revelado pelo seu espírito, designadamente a salvaguarda dos princípios da oralidade, da imediação, da publicidade, do contraditório, da concentração.
16. Um acórdão recente a propósito da inadmissibilidade das “conversas informais”:Ac. do TRE, de 18.04.2023, processo n.º 26/21.0PHMTS.E1, cujo relator Beatriz Marques Borges: “(…) II. Os artigos 356.º, n.º 7 e 357.º do CPP visam, pois, impedir a subversão do princípio do direito ao silêncio do arguido e à sua não autoincriminação e como garantia do seu estatuto processual. (…)”
17. Da medida da pena: não tendo sido produzida prova que consubstanciasse a pratica do crime deverá a arguida ser absolvida do crime de que vinha acusada de um crime de furto simples.
18. Por mera cautela de patrocínio, caso V. Exas. entendam pela não absolvição da arguida, deverá a condenação revista no sentido de ser aplicado o regime de jovens atendendo à idade inferior de 21 anos que a arguida tinha à data e ainda ser aplicado o perdão das penas - LEI N.º 38-A/2023, DE 2 DE AGOSTO - visto ter menos de 30 anos e ter sido antes de dia 19 de junho de 2023.
19. Mais se salienta de que o valor de 6€ (seis euros) à taxa diária é excessivo para as condições apresentadas pela arguida que recebe RSI e tendo em conta a composição do agregado familiar e condições de vida em geral, em conta a os parâmetros da situação, não deveria em momento algum ser superior a 120 dias, porém do que resultou a absolvição é a situação possível.»
1.3 O recurso foi admitido por tempestivo e legal, a subir de imediato, nos próprios autos e efeito suspensivo.
1.4 O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pela arguida, pugnando pela respetiva improcedência, sintetizando as suas razões:
«1. O Tribunal a quo deu como provados os factos dos pontos 1. a 13. com base na prova que foi produzida em audiência de julgamento, nomeadamente nos depoimentos prestados pelas testemunhas DD, agente da PSP, EE, operadora de supermercado, FF, funcionária do … e GG, agente da PSP, recorrendo ao notório encadeamento entre todos - ainda que não presencial do furto em si -, conjugados com as imagens de videovigilância, que são reveladoras do sucedido (por permitirem identificar a arguida, o veículo por esta utilizado, a mala que usou para a prática do ilícito e a respectiva diferença de volume à entrada e saída do estabelecimento) e com o resultado da apreensão dos bens subtraídos à arguida, imediatamente após a prática dos factos, ainda dentro do veículo utlizado para se deslocar ao estabelecimento comercial onde estes se deram.
2. As razões pelas quais o fez constam da motivação da sentença;
3. É ao Tribunal a quo que cumpre interpretar a prova produzida, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova;
4. Não se verifica a existência de qualquer erro na apreciação da prova.
5. O Tribunal a quo, ao aplicar à arguida uma pena de 140 dias de multa, à taxa diária de 6, 00 (seis euros), fê-lo fundadamente, em obediência à lei, com justa razão e com o recurso próprio aos ditames do art.º 71º e 47º, n.º 2, do Código Penal.
6. A pena aplicada à arguida encontra-se excluída do perdão concedido pela Lei n.º 38-A, de 2 de Agosto, por via do disposto no respectivo artigo 3º, n.º2, alínea a) e a mesma dispõe já de património autónomo, para efeitos do disposto no artigo 9º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro.
7. Não incorreu, como tal, o Tribunal na violação dos princípios invocados pelo Recorrente;
8. Não enferma, assim, a sentença de qualquer dos vícios invocados;
9. Deste modo, deverá tal sentença ser mantida nos seus precisos termos.»
1.5 Neste Tribunal, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, subscrevendo a posição assumida pelo Ministério Público na 1ª instância, a que adita:
«1- Ao fixar a matéria de facto nos exatos termos em que o fez, o tribunal a quo valorou correta e criteriosamente, sem dúvidas, a prova produzida à luz das regras da lógica, da experiência comum e da normalidade da vida a que estava vinculado, sem extravasar os poderes/deveres que emergem dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, sem violação, por conseguinte, dos princípios in dubio pro reo e da livre apreciação da prova ofensiva de qualquer preceito constitucional, sem violação das garantias de defesa da arguida.
O tribunal valorou a prova em sentido diferente do entendimento da recorrente, é certo.
Porém, não é suficiente pretender o reexame da convicção alcançada pelo tribunal de primeira instância apenas por via de argumentos que apontem para a possibilidade de uma outra convicção, antes seria necessário demonstrar que as provas indicadas impõem uma diversa convicção, ou, dito de outro modo, é indispensável a demonstração de que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica por violação de regras de experiência comum, o que, manifestamente, a recorrente não logrou fazer.
Uma mera discordância subjetiva quanto a factualidade dada como provada, com base numa análise e valoração da prova diferente da efetuada pelo tribunal a quo e, daí partindo, chegar-se inexoravelmente a uma conclusão diferente, não basta para colocar em crise o fundadamente decidido como no caso.
Não basta que se diga que determinado facto está mal julgado, sendo necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e a que o julgador injustificadamente retirou credibilidade.
A impugnação da matéria de facto não consiste na repetição do julgamento efetuado na 1ª Instância, mas na reapreciação da prova por erro de julgamento, não se destinando ao confronto da mesma com vista à descredibilização da convicção formada pelo Tribunal.
Atente-se que o artº412, nº3, al. b), do C.P.P. fala em provas que imponham decisão diversa.
Por isso entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando, perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente.
A prova produzida em audiência é livremente valorável pelo tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereça.
“(…) a censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão” - cfr. Acórdão do T.C. nº198/2004, de 24/03/04, DR II Série, de 2/06/2004.
E a certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza prática, empírica, moral, histórica crf. Climent Durán, La Prueba Penal, ed. Tirant Blanch, Barcelona, p. 615.
Toda a decisão judicial constitui, precisamente, a superação não só da dúvida metódica, como da “dúvida razoável” sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do acusado. Daí a submissão a um rígido controlo formal e material do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno.
Como bem decidido no Acórdão do TRP de 17/09/2014, Processo nº409/11.4GBTMC.P1, in www.dgsi.pt/jtrp, assim sumariado:
I - O julgamento da causa é o que se realiza em 1ª instância e o recurso visa apenas corrigir erros de procedimento ou de julgamento que nele possam ter resultado, incluindo erros de julgamento da matéria de facto.
II - O recurso, em caso algum pode servir para obter um novo julgamento, agora em 2ª instância: o objeto do recurso é a decisão recorrida e não o julgamento da causa, propriamente dito.
III - Com efeito, a produção da prova decorre perante o tribunal de 1ª instância e no respeito de dois princípios fundamentais: o da oralidade e o da imediação. Com isso visa-se assegurar o princípio basilar do julgamento em processo penal o princípio da livre apreciação da prova por parte do julgador.
IV - O princípio da imediação pressupõe um contacto direto e pessoal entre o Julgador e as pessoas que perante ele depõem (bem como restante prova produzida) cujos depoimentos irá valorar e servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto. É precisamente essa relação de proximidade entre o tribunal do julgamento em 1ª instância e os meios de prova que lhe confere os meios próprios e adequados para valorar a credibilidade dos depoentes o que, de todo em todo, o tribunal de recurso não dispõe.
V - Há que atender e valorar fatores tão diversos como as razões de ciência que os depoentes invocam ou a linguagem que utilizam, verbal e não-verbal, a espontaneidade com que depõem, as hesitações e o tom de voz que manifestam, as emoções que deixam transparecer, quer de inquietude quer de serenidade, através de expressões faciais, movimento repetido e descontrolado de mãos ou de pés, encolher de ombros, as contradições que evidenciam e o contexto em que tal acontece.
VI - Por isso, quando a decisão do julgador se estriba na credibilidade de uma fonte probatória assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a pode censurar se ficar demonstrado que o iter da convicção trilhado pelo tribunal de 1ª instância ofende as regras da experiência comum, da lógica e dos conhecimentos científicos.
VII - O duplo grau de jurisdição na apreciação da decisão da matéria de facto não tem a virtualidade de abalar o princípio da livre apreciação da prova que está conferido ao julgador de 1ª instância.
VIII - A alteração do decidido em 1ª instância só poderá ocorrer, de acordo com a alínea c), do n.º 3, do art. 412.º do CPP, se a reavaliação das provas produzidas impuser diferente decisão, mas já não se tal for uma das soluções possíveis da sua reanálise segundo as regras da experiência comum.
IX - Ou seja, sempre que a convicção do julgador em 1ª instância surja como uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo tribunal de recurso.
X - Não é a circunstância, consabidamente recorrente nos processos judiciais, sejam eles de natureza criminal ou outra, de terem sido apresentadas versões distintas acerca de determinados factos ou até mesmo uma parte inverosímil de certo depoimento que impõem ao julgador ter de os aceitar ou recusar in totum, cabendo-lhe, isso sim, a tarefa de os cotejar para detetar em cada um deles o que lhe merece ou não crédito e em que termos.
In casu o tribunal recorrido valorou de forma exaustiva, minuciosa e conjugada os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objetivos, sendo que, pela conferência do texto da decisão recorrida, não se vislumbra que o julgador tenha tido dúvidas sobre a verificação dos factos que considerou assentes.
Ao invés, a motivação da decisão de facto é bem esclarecedora quer quanto aos meios de prova que sustentaram a convicção formada, quer quanto ao percurso lógico seguido na sua formação, nenhuma falha ou incorreção se detetando no exame crítico da prova.
De facto, aí vêm explicados, de forma inteiramente congruente e plausível, os meios de prova a que conferiu credibilidade e as razões por que a conferiu, não se extraindo minimamente da fundamentação da decisão recorrida que o julgador tenha tido dúvidas sérias e razoáveis sobre a prova de qualquer dos factos que considerou assentes, os quais se encontram sem margem para dúvidas corretamente subsumidos no tipo legal de crime.
No caso inexiste qualquer desconformidade insanável entre a prova produzida em julgamento, na qual o tribunal recorrido fundamentou a sua convicção e os factos que, com base em tal prova, veio a considerar provados, sendo certo que no juízo alcançado pelo tribunal não se vislumbra qualquer atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque a fundamentação do Acórdão tem suporte na regra estabelecida no art.127º do C.P.P., de acordo com a qual o tribunal forma livremente a sua convicção, estando apenas vinculado às regras da experiência comum e aos princípios estruturantes do processo penal, nomeadamente ao princípio da legalidade da prova e ao princípio in dubio pro reo.
Conclui-se, pois, que o tribunal a quo apreciou a prova de modo racional, objetivo e motivado, com respeito pelas regras da experiência comum, não competindo ao tribunal ad quem censurar a decisão recorrida com base na convicção pessoal da recorrente sobre a prova produzida, sob pena de se postergar o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.127º do C.P.P..
2- A pena aplicada estriba-se nos factos provados, que traduzem o grau de ilicitude, o grau de intensidade do dolo, direto, intenso, o grau de culpa, a situação económica da arguida e as necessidades de prevenção geral e especial, não se mostrando que a pena concretamente aplicada extravase a medida da culpa nem ultrapasse os limites dentro dos quais a justiça relativa havia de ser encontrada, não se evidenciando como desajustada por excesso, inexistindo fundamento para alterar a medida em que a pena foi fixada.
Tem vindo a entender a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (cfr. Acs. STJ de 14/02/2007, relator Santos Cabral; de 11/10/2007, relator Carmona da Mota; e de 16/06/2010, relator, Raúl Borges, in www.dgsi.pt), que a sindicabilidade da medida concreta da pena, em sede de recurso, abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respetivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos fatores da medida da pena, mas não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.
Neste sentido, cfr. ainda Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/05/2009, relator Raul Borges, acessível in www.gde.mj.pt, Proc. 090484 “…A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”.
O que, manifestamente, não se verifica no caso sub judice.
As penas têm de ser como tal sentidas, e daí estarem incluídos na finalidade que a norma visa proteger e nos efeitos que com a condenação se pretendem atingir todos os incómodos decorrentes do cumprimento das mesmas, sendo certo que tais consequências negativas têm de se mostrar balizadas por critérios de justiça, adequação e proporcionalidade, observados in casu.
Os custos que daí poderão advir para os arguidos são próprios das penas, que só o são se representarem para os condenados um verdadeiro e justo sacrifício, com vista a encontrarem integral realização as finalidades gerais das sanções criminais, sendo que tais custos nada têm de desproporcionados em face dos perigos que a aplicação da pena pretende prevenir.»
1.6 O recorrente não respondeu ao parecer do Ministério Público.
1.7 Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
*
2. QUESTÕES A DECIDIR NO RECURSO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância, sem prejuízo das questões que forem de conhecimento oficioso (artigos 403.º, 410.º e 412.º, nº 1, do Cód. Processo Penal).
Não se detetando outras questões de conhecimento oficioso, atendendo às conclusões apresentadas cumpre apreciar e decidir:
- Da existência de vícios da decisão quanto à matéria de facto (erro de julgamento; invalidade da prova);
- Da medida da pena, nesta vertente se analisando a aplicabilidade do regime especial para jovens e do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
*
3. DA DECISÃO RECORRIDA
Transcrevem-se os trechos relevantes da decisão recorrida no que concerne à matéria de facto referente ao crime pelo qual a recorrente foi condenada:
«Da acusação
1. No dia 02.dez.2022, pelas 13h42, as arguidas dirigiram-se, ao estabelecimento denominado …, explorada pela HH, sita na Avenida …, desta cidade de …, com o objetivo de se apropriarem de objetos que aí se encontravam expostos para venda.
2. Na execução do plano que previamente traçaram, entraram no estabelecimento, que percorreram e, juntamente, selecionaram e retiraram das prateleiras e expositores num total de 23 (vinte e três) itens que ali se encontravam em exposição para venda.
3. De seguida, em conjugação de esforços, as arguidas colocaram no interior das malas de que cada uma das arguidas carregavam consigo, os aludidos 23 itens, de forma dissimulada e sem que nenhum cliente ou funcionário se apercebesse.
4. A arguida CC colocou de forma dissimulada alguns dos itens identificados em 3., no interior da mala de cor preta e
5. A arguida AA, colocou os restantes, de forma dissimulada, no interior da mala castanha.
6. Cada uma das malas encontrava-se equipada com um revestimento em papel de alumínio, ali colocado com o propósito de inibir a ativação dos alarmes dos itens colocados no interior destas, aquando da sua passagem pela linha de caixa.
7. De seguida, as arguidas deambularam pela loja, pegaram numa embalagem de papel higiénico e ao passarem pela linha de caixa, procedendo apenas ao pagamento de tal bem.
8. Não obstante, ato contínuo, abandonaram o estabelecimento, sem declarar ou liquidar o valor dos bens que abaixo se descrevem, por referências às quantidades e respetivos valores de venda, que transportaram no interior das malas e cujo valor da aquisição era devido,
Item Quantidade Preço Total
… esses Creme Dia Nutri 1 4,49 €
… 1 7,49 €
Toalhitas bebé … 1 1,29 €
Paio … Fatiado 1 1,59 €
Fiambre Fatias Finíssimas 1 1,79 €
Fiambre Frango Finíssimo 1 1,69 €
Presunto Fatiado 4 9,56 €
Hambúrguer Novilho 1 4,69 €
Bife do Lombo de Novilho 4 31,96 €
… Creme Dia 1 10,49 €
… Creme Noite 1 10,49 €
Queijo … 2 1,98 €
… Clean Confort Men 1 2,79 €
… Care Deo Spray 1 2,79 €
… 1 9,89 €
Maionese … 1 1,99 €
Total 23 104,97 €
9. Após, encetaram a fuga, levando consigo os itens acima descritos, fazendo-se transportar na viatura da marca …, modelo …, com a matrícula ….
10. O valor dos itens subtraídos perfazia o total de 104,97€ (cento e quatro euros e noventa e sete cêntimos), pertenciam à HH e embora tenham sido recuperados, apenas foi possível aproveitar os bens não perecíveis.
11. As arguidas, bem sabiam que os itens em questão não lhes pertenciam e que também não tinham autorização para os levar sem saldar o seu valor e, ao apoderarem-se dos mesmos, em conjugação de esforços e intentos, contrariavam a vontade do respetivo proprietário.
12. Tal como sabiam que apenas poderiam levar os itens em questão caso procedessem ao pagamento do seu respetivo valor.
13. Agiram de livre vontade, voluntária e consciente, querendo apossar-se, como apossaram dos itens referidos, com o propósito de obterem um ganho consubstanciado no valor dos itens subtraídos.
Do pedido de indemnização civil:
14. Dos bens subtraídos não foram colocados à venda os perecíveis, em concreto: 1 Paio … Fatiado no valor de 1,59 €, 1 embalagem de fiambre fatias finíssimas no valor de €1,79, 1 embalagem de fiambre de frango Finíssimas no valor de €1,69, 4 embalagens de Presunto Fatiado no valor de €9,56, 1 embalagem de hambúrguer novilho de €4,69, 4 embalagens de bife do lombo de novilho no valor de 31,96 €, 2 embalagens de queijo … no valor de €1,98 e Maionesse . ..no valor de €1,99.
Condições pessoais e económicas:
Da arguida AA:
- AA, de 20 anos de idade, vive com II, de 23 anos, com quem casou civilmente aos 16 anos, mediante autorização dos pais. Do agregado faz parte a sogra, JJ, separada de facto, que tem mais dois filhos de 21 e 11 anos de idade, este último a frequentar o ensino escolar.
- Residem em apartamento de tipologia 3, pertencente à Empresa Municipal de Habitação. Nenhum dos elementos adultos exerce qualquer atividade laboral e a arguida e o marido funcionam como um agregado familiar autónomo para efeitos de Rendimento Social de Inserção, recebendo uma prestação de €403,33.
- Inscrita no Centro de Emprego, no âmbito do contrato de inserção, a arguida salienta ter expetativas de futuramente conseguir integrar formação profissional e atualmente o seu quotidiano passa por realizar algumas tarefas domésticas e conviver com os familiares, num registo que não difere muito do habitual na sua etnia.
- Em termos escolares, AA concluiu o ensino básico com 15 anos e quando casou, deixou de frequentar a escola em …, onde residia com a sua família de origem, não procedendo à transferência de matrícula para a …., revelando ausência de motivação para continuar a frequentar o ensino regular. A arguida tem mais quatro irmãos, que residem na zona de …, assim como os progenitores.
- No meio de residência, onde vivem outras famílias da mesma etnia, o agregado de AA apresenta indicadores de integração
- AA apresenta vários fatores de risco, nomeadamente baixa escolaridade e ausência de qualificação profissional. Verificam-se também fragilidades ao nível ao nível da sua capacidade crítica e de censura das suas condutas criminais, perante as quais assume atitudes de minimização e de legitimação.
(…)
Dos Antecedentes criminais:
A arguida AA não tem antecedentes criminais.
A arguida CC:
1. Processo n.º 139/09.7…, Tribunal Judicial de …, decisão de 16.03.2009, transitada 14.04.2009, factos de 09.03.2009, pela prática de um crime de condução de veiculo sem habilitação legal, na pena de 150 dias de multa à taxa de €5,00. Pena extinta 15.11.2010.
2. Processo n.º 157/10.2…, Tribunal de …, ….º Juízo, decisão de 07.12.2010, transitada 19.01.2011, factos de 01.09.2010, pela prática de um crime de condução de veiculo sem habilitação legal, na pena de 200 dias de multa, à taxa de €5,00. Pena extinta em 25.03.2013.
3. Processo n.º 38/13.8…, Juízo de Competência Genérica de …, decisão de 22.01.2013, transitada 20.11.2014, factos de 21.01.2013, crime de condução sem habilitação legal, pena de 10 meses de prisão suspensa por 1 ano sujeita a regime de prova. Pena extinta em 11.01.2016.
4. Processo n.º 447/15.8…, Juízo Local de Pequena Criminalidade de …, J…, decisão de 30.09.2015, transitada 30.10.2015, factos de 23.09.2015, crime de condução de veiculo sem habilitação legal, na pena de 7 meses suspensa por um ano. Pena extinta em 31.10.2016.
5. Processo n.º 37/08.1…, ….º Juízo do Tribunal Judicial das …, decisão de 24.10.2011, transitada 15.11.2011, factos de 30.04.2008, crime de condução sem habilitação legal, pena de 3 meses de prisão substituída por 90 horas de trabalho a favor da comunidade. Extinta 20.02.2014.
6. Processo n.º 6741/18.9…, Juízo Local Criminal de …, J…, decisão de 27.10.2020, transitada 30.11.2020, factos de 26.08.2018, pena de 6 meses de prisão suspensa na sua execução por um ano, sujeita a regime de prova.
7. Processo n.º 1004/22.8…, JLCriminal, J…, decisão de 31.03.2023, transitada 09.05.2023, factos de 2022/12/26, pela prática de um crime de condução de veiculo sem habilitação legal, na pena de 7 meses de prisão em regime de permanência na habitação, sob vigilância eletrónica.
Matéria de facto não Provada
Da acusação
Não resultam factos não provados.
Do pedido de indemnização Civil:
A. Os artigos que foram retirados já não foram colocados à venda.
*
Motivação da Decisão de Facto
Da acusação:
O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica e valoração da prova produzida e examinada em audiência de julgamento.
As arguidas não compareceram na audiência de julgamento.
A testemunha DD, Agente da PSP, contou que, no dia 2 de Dezembro de 2022, estava de serviço com KK, e receberam uma comunicação via rádio, de que tinha ocorrido um furto, no interior da loja … em …, por duas pessoas do sexo feminino que se colocaram em fuga, numa viatura, e deram a matricula. Questionaram a central rádio para apurar onde estava registada, e apuraram que estava registada na …. Ao chegarem ao cruzamento com a …, depararam com a viatura a circular, e mandaram parar. No interior da viatura estavam 3 ocupantes. Um menor a conduzir, ao lado uma senhora do sexo feminino e atrás também, que mais tarde vieram a apurar que era mãe dos ocupantes. Ao lado desta estava uma mala de senhora, preta, aberta cheia de artigos, sendo visível que tinha sido alterado o seu interior, com uma pelicula de alumínio ( o forro). Estava ao lado da CC. Foram confrontadas e confirmaram que tinham estado no … e que tinham saído com os artigos sem os terem pago. Os artigos eram vários, charcutaria, produtos de mesa e outros. No que respeita à identificação das senhoras, foi feita com o cartão de cidadão. Foi feita a apreensão da viatura, havia outra mala castanha, não tinha nada no interior, estava no banco da frente do passageiro, também com o interior alterado, com alumínio. Os artigos foram restituídos à loja, acha que o total era de €107,00. Foram passar os artigos pelo código de barras na caixa e chegaram ao valor, que vem descriminado no auto de apreensão. O talão que retiraram da máquina foi junto ao processo.
Ainda confrontado com o auto de noticia de fls. 3 e auto de apreensão de fls. 11, confirma a sua elaboração. Mais disse que, o que lhe foi dito na altura é que os bens perecíveis, não iam ser colocados à venda.
Prestou também depoimento a testemunha EE, operadora de supermercado, que referiu que, não viu nada. Estava no armazém. Porém contou que, havia uma senhora sempre sentada na porta da loja e viu as senhoras a sair com os sacos. Tirou a matricula e avisou a funcionária FF. Foi chamada a PSP. Os artigos foram restituídos, mas entre eles havia carne, sendo que a colega lhe falou em cento e tal euros.
Acrescentou que, as carnes não foram colocados à venda, os outros não sabe. Acha que usaram, sempre que estão em condições colocam à venda.
A testemunha FF, funcionária no … referiu que, estava na caixa e uma cidadã … veio ter consigo e disse que tinham saído pela porta duas pessoas com artigos. Comunicou à EE. A senhora disse qual era o carro e registou a matricula, que ainda conseguiu ver no vidro, e depois indicou à chefia.
Por fim a testemunha GG, Agente da PSP, referiu que fez diligencias, que se tratou de um furto de alimentos no …, e confrontado com o auto de visionamento das imagens de videovigilância, confirmou que procedeu à extração dos fotogramas.
Apreciando, cumpre-nos dizer o seguinte:
No que respeita ao dia dos factos, releva o depoimento da testemunha DD, que referiu que ocorreram no dia 02 de Dezembro de 2022.
Por outro lado, dos depoimentos prestados pelas testemunhas EE e FF, resulta que, o alerta foi dado por uma senhora que se encontrava no exterior do estabelecimento, junto da porta, tendo sido esta que veio comunicar que duas senhoras tinham saído com artigos e, como o disse a testemunha FF, a tal senhora indicou o veiculo, tendo sido a própria - a testemunha FF - que viu a matricula e que comunicou à chefia. Por sua vez, a testemunha EE, referiu que recebeu a comunicação e informou as autoridades.
Nesta parte releva o depoimento da testemunha DD que de forma clara e precisa, esclareceu que, ao receberem a comunicação, de que duas senhoras tinham saído do … sem pagar, com a matricula do veiculo, conseguiram - por pesquisas realizadas - apurar de onde era, e dirigiram-se ao respetivo local, referindo-se à …. E continuou a testemunha, referindo que, chegado a este local, abordaram o tal veiculo, sendo que, no interior do mesmo estavam as arguidas, e pelo menos uma mala aberta com produtos de supermercado. Sobre a identificação destas duas senhoras, resultou claro deste depoimento que recorreram ao cartão de cidadão, tratando-se efetivamente das arguidas.
É notório o encadeamento destes depoimentos.
Começou por um alerta, por parte de uma senhora que estava na porta do supermercado, que fez com que a funcionária apontasse a matrícula, que esta fosse comunicada às autoridades, que por sua vez, vieram a intercetar o veiculo, com a referida matricula, estando no interior do mesmo, como comunicado, duas senhoras, que se veio a apurar tratar-se das arguidas, e mais que isto, com produtos do ….
Em complemento, releva considerar o auto de apreensão do veículo, onde seguiam as arguidas, identificado como …, com matricula … - cf. fls. 10. Por sua vez do auto de visionamento das imagens de videovigilância, é possível visualizar esta viatura a chegar ao estacionamento do hipermercado, pelas 13h41, as duas senhoras a dirigirem-se para o interior e a entrarem pelas 13h42, do dia 02.12.2022 - cf. fls. 172 a 183. Ainda, desta imagens, em concreto dos fotogramas 8 e 9, verifica-se que os únicos produtos que são colocados por estas duas senhoras no tapete são: um conjunto de rolos de papel higiénico, uma caixa de iogurtes e uma pasta de dentes. E são estes os únicos que são pagos. Aliás, no próprio vídeo, cuja pen se encontra a fls. 184, correspondente à câmara dois, são perfeitamente visíveis estes produtos em cima do tapete e o pagamento realizado, pela senhora mais velha. De seguida saem do hipermercado, e de novo o referido veiculo, sai do estacionamento - cf. fls. 181.
Sobre o que estava no veiculo, referiu a testemunha DD a existência de duas malas, estando uma cheia de produtos. E mais que isto, concretizou a testemunha que atrás, ao lado da arguida CC - que como disse é a mãe da outra arguida - estava uma mala de senhora, preta, aberta cheia de artigos, sendo visível que tinha sido alterado o seu interior, com uma pelicula de alumínio ( o forro). A outra mala, castanha, encontrava-se à frente, junto da outra arguida, também com o interior alterado, mas sem nada dentro. Relativamente a este pormenor da folha de alumínio, releva a folha de suporte de fls. 25 e 26, na qual se encontram fotografias das malas, e do interior das mesmas com o referido alumínio, que naturalmente e como resulta da experiencia comum, permite a saída do estabelecimento sem acionar o alarme, como sucedeu.
Também a propósito das malas, retomando às imagens de videovigilância, e em concreto aos fotogramas 6, 9, 10 e 11, a fls. 176, 178 e 179 verifica-se que, no interior do hipermercado, a mala preta estava com a arguida CC, e a castanha com a arguida AA, sendo esta também a posição das mesmas no veículo. Acresce que, nos referidos fotogramas, e de forma mais percetível no próprio vídeo de videovigilância, cuja pen como referimos se encontra a fls. 184, é visível que a arguida CC entra no hipermercado com a mala preta completamente vazia, aliás, inclusivamente leva-a na mão a bater nas pernas, e quando sai, vem com a mesma ao ombro, e manifestamente volumosa - fotogramas 11 e 12. Aliás, é notório pela forma como agarra na mala, que coloca ao ombro, com o braço por cima e a mão com força na abertura, que tenta que a mesma se mantenha fechada. Atitude completamente contrária ao momento em que entra. O que explica que a mesma, no veiculo e no momento da interceção, estivesse cheia de produtos. A questão do volume e da necessidade de trazer a mala fechada é também percetível na mala castanha, que tinha a arguida AA, sendo notória a descontração quando entra - cf. fls. 182 - e a necessidade de a fechar, quando sai - cf. fls. 182. O que nos permite concluir que também nesta mala foram colocados produtos.
Ainda e relativamente ao depoimento da testemunha DD, releva considerar que referiu que, os produtos foram apreendidos e que foram ao …, tendo os mesmos sido passados na caixa. Em concreto no auto de apreensão constante de fls. 11 a 13, assinado pelas arguidas, encontram-se descritos todos os bens apreendidos, que são naturalmente mais que, os rolos de papel higiénico. Concluindo-se porém, que os outros dois produtos que foram comprados, não se encontram nesta descrição. Acresce que, pela testemunha DD foi dito que, depois foram ao … e os produtos passaram na caixa, tendo sido emitido o respetivo talão, que se encontra a fls. 24 dos autos, e que totaliza o valor de €107,26, que retirado o valor dos rolos de papel higiénico totaliza €104,97.
Desta apreciação resulta que, o alerta da tal senhora que estava na porta do supermercado, veio a confirmar-se com a fiscalização e com as imagens de videovigilância, tendo sido de facto as arguidas que foram ao hipermercado, e que apesar de terem pago apenas um rolo de papel higiénico, uma caixa de iogurtes e uma pasta dentes, retiraram do interior do referido estabelecimento, os demais produtos que foram apreendidos.
Como resultou também do depoimento da testemunha DD, e é corroborado pelo termo de entrega de fls. 28, os produtos foram restituídos ao …, tendo explicado a testemunha EE, que inclusivamente assinou o termo de entrega, que as carnes não foram colocadas à venda. Quanto aos outros produtos, disse que acha que usaram.
Portanto, com conhecimento direto, justificado pela atividade que desenvolve, podemos concluir que, as carnes e os demais produtos alimentares, no valor total de €55,25, não foi possível aproveitar, não sucedendo o mesmo com os bens não perecíveis.
Pelo que, desta apreciação resultam provados os factos dos pontos 1 a 10 e 14 e não provados os do ponto A.
No que respeita aos factos dos pontos 11 a 13, estes resultam provados do próprio comportamento das arguidas. As arguidas dirigem-se as duas ao hipermercado, entram as duas, fazem ambas uso da mala com alumínio no interior, passam as duas a linha de caixa, pagando apenas o que entendem, e saem do estabelecimento com os referidos produtos. É este comportamento revelador de que agiram de comum acordo, sabendo ambas o que uma e outra estavam a fazer, e com o mesmo objetivo. Sabiam as arguidas que os produtos não lhes pertenciam e ainda assim não realizaram o pagamento, não obstante saberem que o comportamento que se encontravam a assumir era proibido e punido por lei.
Condições pessoais e económicas:
A prova destes factos resulta dos relatórios sociais juntos aos autos a que correspondem as referências … e …. Relativamente à arguida CC, como resulta do respetivo relatório, esta não compareceu o que inviabilizou a realização de entrevista. Assim, os dados para a elaboração do Relatório Social foram recolhidos através de consulta de dossiê individual da DGRSP referente à arguida, onde constam dados desde janeiro de 2021, contactos telefónicos com LL, técnica da Equipa do RSI, responsável pelo acompanhamento da arguida e sua família, e o Cabo Chefe MM, da GNR de ….
Sobre os antecedentes criminais:
No que tange aos antecedentes criminais, o Tribunal atendeu ao teor dos Certificados de Registo Criminal juntos aos autos, emitidos em 05.02.2024.»
*
4. FUNDAMENTAÇÃO
4.1 Vícios da decisão quanto à matéria de facto
§ Erro de julgamento - rejeição (formal) do recurso
Dispõe o artigo 412.º, n.º 2 do Cód. Processo Penal que as conclusões do recurso, versando este sobre matéria de direito, indicam as normas jurídicas violadas (al. a), o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada (a. b) e, em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada (al. c).
Já o n.º 3 da mesma norma legal determina que, em caso de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (al. a), as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) e as provas que devem ser renovadas (al. c).
De acordo com o art. 428.º do Cód. Processo Penal, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito, mas os seus poderes de cognição são limitados.
Por isso, o mecanismo de impugnação da matéria de facto ali previsto visa corrigir erros manifestos, ostensivos de julgamento, por apelo à prova produzida e que se extraíam do registo da mesma, não legitimando a repetição do julgamento pelo tribunal ad quem.
Para operar eficazmente, com vista a detetar erros de julgamento de facto, esta reapreciação é limitada aos pontos de facto concretos que o recorrente considera julgados de forma incorreta e às razões concretas invocadas para sustentar essa discordância.
Aqui, ao contrário do que ocorre com os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2 do Cód. Processo Penal, a apreciação da matéria de facto não se restringe ao texto da decisão, alargando-se ao que se pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas com as balizas delimitadas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de tríplice especificação imposto pelo n.º 3, do artigo 412.º do Cód. Processo Penal.
Para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente de especificar, nas conclusões, quais os pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados, quais as provas (específicas, concretas) que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir (por transcrição ou indicação da gravação áudio) os concretos segmentos, excertos que, no seu entender, obrigam (e não apenas permitem) à alteração da matéria de facto.
O devido cumprimento do ónus de especificação na impugnação ampla da matéria de facto importa não só a individualização das passagens que alicerçam a impugnação, mas também relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova suscetível de impor essa decisão diversa com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.
E esta concretização mostra-se essencial, por a intervenção do Tribunal de recurso em sede de fixação da matéria de facto ser necessariamente cirúrgica, com possibilidade de corrigir erros notórios e flagrantes do julgador de primeira instância, mas não equivalendo essa intervenção a um novo julgamento.
E julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida, a demonstração desta imposição compete ao recorrente.
Na presente situação, a recorrente enuncia a intenção de recorrer da matéria de facto, mas não observa o ónus de impugnação especificada.
Alude inespecificamente à ausência de prova que consubstancie a sua condenação e contém observações genéricas sobre a valoração da prova efetuada pelo Tribunal a quo, mas não indica, especificadamente, quais os concretos pontos de factos que considera incorretamente julgados ou os concretos meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida. Muitos menos se estabelece qualquer relação entre estes.
A recorrente não só não enumera quais os factos concretos que pretende que este Tribunal de recurso reaprecie, como convoca, em globo, todos os meios de prova, convidando este Tribunal superior a proceder à sua reapreciação, sem que se depreenda o motivo pelo qual se impõe uma distinta decisão no que concerne à matéria de facto, salvaguardada a divergente interpretação que tem dos mesmos.
Na verdade, a recorrente limita-se a referir as respetivas razões de discordância quanto ao entendimento do Tribunal na valoração dos elementos probatórios, sem que indique qual o erro concreto em que o Tribunal possa ter incorrido naquela valoração.
E por o recurso não se destinar à reapreciação global da causa, mas sim à intervenção cirúrgica em situações de manifesta desconformidade com os elementos probatórios recolhidos no processo, é que se impõe ao recorrente o ónus de individualizar os pontos concretos que considera incorretamente julgados (o que não foi observado) bem como os elementos de prova que impõem (e não apenas que sustentam) a versão alternativa proposta (o que também a recorrente não fez).
É certo que o artigo 417.º, n.º 3 do Cód. de Processo Penal, prevê que “Se das conclusões do recurso não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos ns. 2 a 5 do artigo 412.º, o relator convida o recorrente a completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afetada”.
Porém, o n.º 4 da mesma disposição legal estabelece que “O aperfeiçoamento previsto no número anterior não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação”.
E, no caso concreto, na motivação apresentada pela recorrente, nada mais se alega, não contendo, igualmente, nenhum dos elementos legalmente exigidos para que o recurso possa, nesta parte, ser conhecido.
Assim, revela-se inútil promover a correção formal das conclusões.
Como anota PEREIRA MADEIRA2, «A falta de motivação não se confunde com falta ou insuficiência de conclusões. Na verdade, aquelas podem ser corrigidas a convite do relator (art. 417º, nºs 3 e 4). Porém, a motivação não pode deixar de existir, sendo portanto insusceptível de correcção, (sob pena de nunca estar determinado o objecto do recurso) até porque é por ela que se afere o limite da legalidade de correcção ou aditamento das conclusões em falta.».
No mesmo sentido, também, SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES, Recursos Penais, 9ª edição, Rei dos Livros, 2020, pág.114.
Trata-se, no caso dos autos, de uma deficiência da estrutura da motivação, equivalente a uma falta de motivação, que coloca até em crise a delimitação do âmbito do recurso. Conferir-se possibilidade de correção das conclusões, nestas condições, equivaleria, na verdade, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não se pode considerar compreendido no próprio direito ao recurso.
Este entendimento é também sufragado pelo Tribunal Constitucional (designadamente, nos acórdãos nos 259/2002, 140/2004, 322/04, 357/2006, 529/03 e 685/2020, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), que distingue a deficiência resultante da omissão na motivação das especificações previstas na lei - caso em que o vício será insanável-, da omissão de levar as especificações constantes da motivação às conclusões – caso em que se impõe o convite à correção.
Pelo exposto, não contendo, quer a motivação, quer as conclusões apresentadas pela recorrente, os elementos legalmente impostos para que se possa conhecer do recurso interposto - por não ter indicado nenhum dos elementos que permitiriam a este Tribunal ad quem sindicar a prova – impõe-se decidir pela rejeição formal do recurso, na parte em que se questiona a convicção do Tribunal sobre a matéria de facto, nos termos do disposto nos artigos 412.º, nsº 2 e 3 , 414.º, n.º 2, 417.º, nos 3 e 6, alínea b) e 420.º, n.º 1, alíneas b) e c), todos do Cód. Processo Penal.
§ Da invalidade da prova – “Conversas informais”
Invoca a recorrente que a sentença recorrida padece de vício por violação do art. 356.º, n.º 7 do Cód. Processo Penal, na medida em que a testemunha DD terá dito que as arguidas, quando por si intercetadas, lhe confirmaram que tinham estado no … e que tinham saído com os artigos sem os terem pago.
Está em causa, na perspetiva da recorrente, o aproveitamento indevido das chamadas “conversas informais”.
Apreciando a questão suscitada, cumpre ter presente que, nos termos do estatuído no art. 125.º do Cód. Processo Penal, são admitidas no processo penal todas as provas que não forem proibidas por lei. São admitidos, por conseguinte, todos os meios de prova legalmente previstos, não só os tipificados na lei, mas todos os possíveis, ainda que atípicos, desde que não sejam proibidos.
A prova visa a reconstituição dos factos com vista à decisão, que não será uma reconstituição histórica, mas judicial, declarando-se o que é verosímil que tenha sido ocorrido. Em processo penal a verdade é o que for mais verosímil, plausível, em face das provas que forem carreadas para o processo e de que o julgador disponha.
Mas nesta reconstrução da realidade, devem ser respeitadas as proibições de prova determinadas pela lei processual penal.
Concretamente, determina o artigo 356.º, n.º 7 do Cód. Processo Penal que os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.
A jurisprudência tem-se debruçado sobre o âmbito e extensão desta proibição.
Fê-lo, nomeadamente, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.12.20133, referindo, a propósito do depoimento do órgão de polícia criminal que “ouviu dizer ao arguido”, que «O mesmo depoimento pode assumir conformação diversa consoante o momento e as circunstâncias a que se reporta, ou seja, as denominadas conversas “informais” mantidas com o arguido reconduzem-se a três campos distintos: a) em primeiro lugar situam-se aqueles casos que dizem respeito às afirmações percepcionadas pelo órgão de policia criminal, enquanto cidadão comum, em momentos da vida quotidiana e nas exactas circunstâncias em que qualquer cidadão pode escutar tais declarações (porventura, sem saber do crime cometido ou em preparação e sem suspeita prévia do seu “interlocutor”); b) no outro extremo surgem as afirmações proferidas por ocasião ou por causa de actos processuais de recolha de declarações (maxime, a saída, no decurso ou antes do interrogatório); c) por último surgem aqueles casos, de índole intermédia, relativos a conversas (indicações de localização de produto do crime ou de outros suspeitos, explicações do facto, etc.) tidas com os membros de um órgão de polícia criminal no decurso de certos actos processuais de ordem material ou de investigação “no terreno” (buscas, vigilâncias, resgate de sequestrados, socorro às vítimas, etc.), bem como em acções de prevenção e manutenção da ordem pública e são aqueles confrontados com a ocorrência de um crime, em flagrante ou não.
Quanto ao primeiro leque de situações, não se vislumbra qualquer razão para não se considerar como válidos os argumentos expendidos a propósito da generalidade dos testemunhos indirectos em que se conclui pela inaplicabilidade da norma do art. 129º quando a “pessoa-fonte” seja o arguido, valorando-se o depoimento “indirecto” do órgão de polícia criminal, despojado dessa qualidade, como de qualquer testemunha.
Tal convicção é, aliás, reforçada em relação às declarações e conduta percepcionadas ao arguido numa fase prévia à sua constituição como tal.(…)
Na verdade, só a partir do momento em que a suspeita passa a ser razoavelmente fundada se impõe a suspensão imediata do acto e a constituição formal como arguido nos termos do artigo 59º nº1 do Código Penal. Até esse momento o processo de obtenção de diversas declarações, incluindo as do então suspeito, e posterior arguido, logra cobertura legal nos termos dos artigos 55º nº 2 e 249º nº 1 e 2, als. a) e b) do mesmo diploma.
A constituição de arguido constitui, assim, um momento, uma linha de fronteira na admissibilidade das denominadas “conversas informais”, pois que é a partir daí que as suas declarações só podem ser recolhidas, e valoradas, nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas, ou quaisquer outras provas, recolhidas informalmente. Consequentemente, não é admissível o depoimento que se reporte ao contacto entre a autoridade policial e o arguido durante o inquérito, quando há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio, mantido em auto de declarações, por depoimentos de agentes policiais, testemunhando a “confissão” informal, ou qualquer outro tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual, para os actos a realizar no inquérito.
Precisa-se, assim, que a proibição do artigo 129º do Código Penal visa os testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, mas não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o art. 249º do CPP. Na verdade, nestas providências a autoridade policial procede a diligências investigatórias, no âmbito do inquérito, em relação à infracção de que teve notícia.
Sobre a mesma incumbe o dever de, nos termos do art. 249º do CPP, praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime. Estas “providências cautelares” são fundamentais para investigar a infracção, para que essa investigação tenha sucesso. E daí que a autoridade policial deva praticá-las mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária para investigar (art. 249º, nº 1).
Nessa fase não há ainda inquérito instaurado, não há ainda arguidos constituídos.
É uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto. As informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito.(…)
Relativamente às restantes situações de intervenção de órgãos de polícia criminal importa precisar que a admissibilidade do testemunho do agente do órgão de polícia criminal está directamente conexionada com o nº 7 do artigo 357º do Código de Processo Penal. Consequentemente, importa que se convoquem os conceitos de “declarações formais” e “conversas informais” como termos da equação a formular.
Como refere Damião da Cunha (Revista Portuguesa de Ciência Criminal ano 7 fasc. 3 pág. 426 e seg.) não parece ser possível conceber a existência processual de “conversas informais” entre o arguido e qualquer entidade processual. A função dos órgãos de polícia criminal é o de importar para o processo todos os elementos que lhes advenham de declarações do arguido – além de que vale aqui o princípio “quod non est in auto, non est in mundo”; pela especial posição processual do arguido não pode, no que toca às suas declarações, subsistir qualquer diferenciação de importância e, por isso, as “conversas” serão sempre formais.
Efectivamente só podem ser consideradas as declarações do arguido prestadas no âmbito e decurso de certo processo, em acto próprio para o efeito, de resto, redigidas em auto, de onde se possa extrair ilações sobre a regularidade do procedimento (v.g. se o arguido foi advertido de que tem, entre outros, o direito ao silêncio, se foi assistido por defensor; se lhe foram comunicados os motivos da detenção e os factos que se lhe imputam, etc.) e a versão dos factos que melhor se ajusta a sua defesa, naquela altura.
Decorre do exposto que o agente de órgão de polícia criminal que tiver recebido declarações, e tais declarações são aquelas a que se reporta o procedimento formal e processual adequado, não pode ser inquirido como testemunhas sobre o seu conteúdo - artigo 356º nº 7 do CPP. Porém, e aqui reside uma destrinça essencial na proibição em causa, falamos das declarações formais que estão no processo, ou das declarações informais, que, devendo estar no processo por imposição processual legal, efectivamente não estão e, como tal, inexistem.
Todavia, para além destas situações existe uma ampla probabilidade de situações e realidades extra processuais em que a colaboração do arguido por actos, e palavras, surge como instrumento adequado da investigação criminal e, muitas vezes integrado num acto processual válido e relevante. Para Damião da Cunha (ibidem) a proibição de reprodução de afirmações do arguido tem um conteúdo amplo que exclui todas as situações de declaração formal, ou informal, (No mesmo sentido Eurico Balbino Duarte-Prova Criminal e Direito de Defesa, estudos sobre a Teoria da Prova e Garantias de Defesa em Processo Criminal pág. 58 e seg).
É outra a perspectiva de Adérito Teixeira (Depoimento Indirecto e arguido Revista do CEJ 2005 pág. 135 e seg sequente) para quem, e contrariamente à presunção de inocência que tem uma dimensão endoprocessual e outra extra-processual, o direito ao silêncio (e seus efeitos) vale apenas no âmbito do processo. Fora deste e dos seus actos, o silêncio ou a declaração não tem aquela tutela pois que rege a liberdade de expressão e inerente responsabilidade do que se afirma, ou deixa de afirmar, para todas as pessoas quer estejam quer não estejam constituídas arguidas.
Adianta o mesmo Autor que, de outro modo, a prática de um crime transformar-se-ia num acto constitutivo de direitos (de liberdade de expressão) em escala a que os demais cidadãos só poderiam aspirar colocando-se em situação idêntica; e, no plano da investigação criminal, quaisquer afirmações – do tipo “matei” e “vou queimar o corpo”, ou “roubei”, ou “vendi droga”, etc. – deveriam ser tomadas como declarações não sérias, porquanto, no limite, não poderiam inserir-se processualmente como princípio de prova que conduz a outras provas e se transmitem umas e outras às fases posteriores do processo (à luz de princípios da conservação da prova ou de força consumptiva de decisões da autoridade judiciária).
Nesta perspectiva não se vislumbra, assim, qualquer impedimento, ou proibição de depoimento que incide sobre aspectos, orais ou materiais, descritivos ou impressivos, narrativos ou conclusivos, que a lei não obriga a estar registados em auto ou, ainda, relativamente a diligências ou meios de obtenção de prova que tenham autonomia material e jurídica, quer quanto ao meio de prova que geram (v.g. escuta telefónica de declarações de arguido, transcritas, cuja leitura do auto e permitida, não obstante no original da declaração estar a oralidade), bem como quanto a afirmações não retratáveis em auto que o arguido tenha proferido na ocasião da realização de diligências e meios de obtenção de prova (e que contextualizam ou explicitam uma infinitude de pormenores, aparentemente, de ínfima relevância).
(…)
Conclui-se, assim, que o relato de agentes dos órgãos de policia criminal sobre afirmações e contribuições informatórias do arguido - tal como de factos, gestos, silêncios, reacções, etc - de que tomaram conhecimento fora do âmbito de diligências de prova produzidas sob a égide da oralidade (interrogatórios, acareações etc.) e que não o devessem ser sobre tal formalismo, bem como no âmbito das demais diligências, actos de investigação e meios de obtenção de prova (actos de investigação proactiva, buscas e revistas, exames ao lugar do crime, reconstituição do crime, reconhecimentos presenciais, entregas controladas, etc) que tenham autonomia técnico-jurídica constituem depoimento válido e eficaz por se mostrarem alheias ao âmbito de tutela dos artigos 129º e 357º do Código.»
Neste mesmo sentido, entre outros, também se pronunciaram os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.02.20074, do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.05.20125, de 08.03.20176 e de 22.06.20177, do Tribunal da Relação de Coimbra de 09.07.20088, de 09.05.20129, de 18.06.201410 e de 21/06/202311, do Tribunal da Relação de Évora de 26/09/202312, do Tribunal da Relação do Porto de 21.03.201313, e de 17.06.201514, de 31/05/202315, do Tribunal da Relação de Guimarães de 25.05.200916, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
E seguimos, também, esta orientação jurisprudencial que considera que os artigos 129.º e 356.º, n.º 7 do Cód. de Processo Penal proíbem testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o artigo 249.º do Cód. de Processo Penal, ainda que nas mesmas tenham os arguidos colaborado por meio de declaração.
O que já não será admissível, em nosso entender, é a valoração do depoimento de agente da autoridade que reproduz conversas informais (que não foram formalmente reduzidas a auto) mantidas com o arguido, antes da sua constituição como tal (ainda enquanto suspeito) mas já depois de se ter iniciado o processo contra ele (com omissão das regras formais relativas à prestação de declarações).
Revertendo ao caso dos autos, vemos que a testemunha DD, agente da PSP, relatou que, após ter recebido comunicação dando conta da ocorrência, intercetou o veículo suspeito, no interior do qual circulavam as arguidas, transportando mala de senhora cheia de artigos. Mais relatou que as arguidas, ainda suspeitas, foram confrontadas e confirmaram que tinham estado no … e que tinham saído com os artigos sem os terem pago. Esta referência consta também do auto de notícia por detenção.
O relatado pela referida testemunha, no que diz respeito às diligências que empreenderam para intercetar e deter as suspeitas e que correspondem ao vertido no respetivo auto são plenamente valoráveis.
Mas já não o são, em nosso entender, as declarações das arguidas confessórias dos factos, quando confrontadas pelo agente de autoridade. Não só por as diligências se direcionarem diretamente às duas suspeitas já perfeitamente identificadas (por corresponderem às características que lhes haviam sido comunicadas via rádio), logo depois constituídas arguidas, como as declarações terão surgido na sequência de interpelação direta do agente de autoridade.
Mas também assim o entendeu o Tribunal recorrido, pois que, como se alcança da motivação (tal referência apenas surge quando se reproduz o depoimento da testemunha), não valorou na formação da convicção, nesta parte, aquelas declarações, justificando exaustivamente e com recurso aos demais meios de prova como alcançou a respetiva certeza quanto à autoria dos factos.
Não se verifica, por isso, qualquer invalidade na apreciação da prova.
*
Não subsistindo qualquer uma das questões suscitadas e atinentes à matéria de facto, resta dar a mesma como assente.
Não vindo questionada a operação de subsunção jurídica dos factos no crime pelo qual a recorrente foi condenada, nem se detetando erro que imponha a intervenção deste Tribunal Superior, resta apreciar as demais questões jurídicas invocadas.
*
4.2 Da medida da pena:
A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa, aferindo-se por esta, o patamar máximo da pena concreta a aplicar (art. 40.º do Código Penal).
A determinação da medida concreta da pena deve ser efetuada com recurso aos critérios gerais estabelecidos nos arts. 70.º e 71º, do Código Penal, isto é, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
À recorrente foi aplicada a pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), perfazendo o valor global de 840,00€ (oitocentos e quarenta euros).
A recorrente reclama pela aplicação do regime especial para jovens por ter, à data dos factos, idade inferior a 21 anos, bem como pela aplicação do perdão de penas da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
Mais sustenta que os dias de multa e taxa diária fixados se revelam excessivos.
Quanto à medida da pena aplicada à recorrente, refere a sentença recorrida que:
«(…) No caso sub júdice as necessidades de prevenção geral, estas situam-se num grau muito alto, quer atendendo ao elevado numero de crimes desta natureza praticados no nosso país quer pela necessidade de proteger o direito de todos à segurança no seu estabelecimento e, portanto, na sua atividade comercial, preservando a integridade dos bens.
No que concerne à prevenção especial, considera-se, no que respeita à arguida Clara, que a exigência é considerada diminuta. Para o efeito releva considerar que a arguida não tem antecedentes criminais,
encontra-se social e familiarmente inserida. Pelo que, entendemos que satisfaz as necessidades de punição, a aplicação de uma pena de MULTA.
(…)
Quanto à determinação da medida concreta da pena:
Ao crime de furto é aplicável uma pena de prisão de 1 mês a 3 anos e de multa de 10 a 360 dias - cf. art.º 41.º, 47.º, n.º 1 e 203.º do CP
Será então dentro destes limites que se fixará a pena de multa a aplicar à arguida AA e a pena de prisão a aplicar à arguida CC.
Tal como já se referiu, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa do arguido – cf. art. 40º, n.º 2, do C. Penal – princípio esse que norteia o nosso ordenamento jurídico -criminal.
A culpa enquanto pressuposto da pena, definirá, pois, o limite máximo, dentro do qual as exigências de prevenção lhe fixarão a medida.
Por sua vez, determina o n.º 2 do art. 71 do C. Penal que: “na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele,... “.
Este artigo enumera depois algumas destas circunstâncias a que se deve atender na fixação em concreto da medida da pena.
Apreciando então o caso concreto:
No que respeita à arguida AA:
» O grau de ilicitude dos factos afigura-se-nos mediano, considerando a quantidade de produtos retirados, os produtos em causa, sendo que além de alimentares retiraram outros que não servem sequer para satisfazer necessidades básicas e valor dos mesmos. O que traduz uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever ser jurídico-penal, valendo tudo, em proveito próprio.
» Modo de execução: ao esconder os produtos na mala, revela uma total destreza por parte da arguida, uma total ausência de limites, e um desprezo por aquilo que é alheio.
» Apenas os bens não perecíveis foram aproveitados, sendo o prejuízo de €55,25
» A arguida agiu com dolo direto, com uma intensidade que se afigura alta.
» Milita a favor da arguida o facto de não ter antecedentes criminais e de ser encontrar social e familiarmente inserida.
Como supra referimos, as exigências de prevenção especial são diminutas, sendo elevadas as exigências de prevenção geral.
Dessa forma, atendendo à culpa, à ilicitude e modo de execução do crime, aliadas às significativas exigências de prevenção especial e geral que se impõem, entendemos ser proporcional e adequado condenar o arguido numa pena de multa de 140 dias de multa.
***
No que respeita ao montante diário da mesma, mais uma vez necessário se torna recorrer ao disposto no art. 47.º do C. Penal, mas desta vez ao seu n.º 2.
Estabelece este artigo que a pena é fixada considerando a situação económico-financeira do arguido e os seus encargos pessoais, correspondendo a cada dia de multa o montante de 5,00€ a 500,00€.
Ora, considerando o nível médio de vida do cidadão comum, e tomando por referencia o salário mínimo, fixa-se a taxa diária da multa em €6,00 (seis euros euros).»
E não podemos, senão, subscrever os parâmetros pelos quais a decisão recorrida balizou a penalidade imposta.
Apreciando as questões suscitadas em recurso, vemos que, considerando a data dos factos e a data de nascimento da arguida, a mesma tinha 19 anos aquando da respetica prática.
Mas o D.L. n.º 401/82, de 23/9, que instituiu regime aplicável em matéria penal aos jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, não sendo de aplicação automática, apenas prescreve que, em caso de opção pela pena de multa (o que não vem questionado), serão aplicáveis os princípios da lei geral, devendo tanto quanto possível procurar afetar-se unicamente o património do jovem (art. 9.º).
No que concerne às condições pessoais da recorrente, resulta provado que a mesma vive com o companheiro, com quem casou civilmente aos 16 anos, mediante autorização dos pais. Do agregado faz parte a sogra, que tem mais dois filhos de 21 e 11 anos de idade, este último a frequentar o ensino escolar.
Residem em apartamento de tipologia 3, pertencente à Empresa Municipal de Habitação. Nenhum dos elementos adultos exerce qualquer atividade laboral e a arguida e o marido funcionam como um agregado familiar autónomo para efeitos de Rendimento Social de Inserção, recebendo uma prestação de €403,33.
A pena concreta foi graduada tendo por base os critérios previstos no art. 71.º do Código Penal, pouco acima do primeiro terço da moldura abstrata, sendo que, em concreto, não aponta a recorrente qualquer circunstância que não tenha sido valorada pelo Tribunal recorrido e que possa justificar a redução, nem este Tribunal a detecta.
De igual forma, a fixação do montante diário observa os critérios enunciados no art. 47.º, n.º 2 do Código Penal. Não se provaram encargos significativos e a recorrente, sendo de condição humilde, não é, ainda assim, indigente, recebendo subsídios estatais. O montante diário foi fixado muito perto do limite mínimo, não se justificando a respetiva redução, pois que é pressuposto das penas aportarem sacrifício a quem as suporta, só assim se alcançando as finalidades subjacentes à sua aplicação.
Por último, pretende a recorrente a aplicação do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023 de 2 de agosto, o que não colhe em face da previsão do art. 3.º, n.º 2, al. a) do mencionado diploma, que apenas prevê a aplicação da medida de clemência a penas de multa aplicadas a título principal que não excedam os 120 dias, o que não é o caso.
Assim, nenhuma censura merece a decisão recorrida na graduação da pena aplicada, pelo que também aqui improcede o recurso.
*
Improcedendo, na totalidade, o recurso interposto, as custas correm pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) Uc’s (cfr. arts. 513.º, n.º 1 e 2 do Cód. Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa).
*
5. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em rejeitar o recurso interposto pela arguida AA no que concerne à matéria de facto, julgando-o no demais improcedente, confirmando, em consequência, a sentença recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 Uc’s.
Notifique.
*
Évora, 25 de fevereiro de 2025
Mafalda Sequinho dos Santos
Artur Vargues
Declaração de voto
No acórdão decidiu-se rejeitar o recurso pela arguida interposto, ao abrigo do estabelecido nos artigos 414º, nº 2, 417º, nºs 3 e 6, alínea b) e 420º, nº 1, alíneas b) e c), do CPP, na parte concerne à impugnação da matéria de facto dada como provada na decisão recorrida, por, nem no corpo da motivação, nem nas conclusões desta, se terem cumprido as exigências do artigo 412º, nºs 2 e 3, do mesmo Código.
Estando de acordo em que não foi dado cumprimento pela recorrente ao legalmente imposto, não podemos, porém, deixar de dissentir quanto às suas consequências.
Entendemos que o recurso não deveria ter sido rejeitado nessa parte.
Com efeito, estando inviabilizado o conhecimento do recurso da matéria de facto nesta modalidade ampla de erro de julgamento, como está, por o referido ónus não ter sido satisfeito, ainda assim restava o rastreio da sentença para verificar da presença, que ressaltasse do seu texto, de algum dos vícios elencados nas alíneas do nº 2, do artigo 410º, do CPP, particularmente do erro notório na apreciação da prova, mormente por obliteração das regras da experiência comum ou de juízos lógicos, não se podendo olvidar que estes vícios - que a jurisprudência de forma consolidada tem entendido que são do conhecimento oficioso, vd. por todos o Ac. do STJ de 23/01/2025, Proc. nº 227/22.4PBMTS.P1.S1227/22.4PBMTS.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt – se reportam à matéria de facto, como elucidam, entre outros, os Acs. do STJ de 20/06/2002, Proc. nº 01P4250, 24/04/2008, Proc. nº 06P3057 e de 14/04/2011, Proc. nº 117/08.3PEFUN.L1.S1, que podem ser lidos no mesmo sítio.
E, concluindo-se pela não presença de vício algum, o recurso teria então de ser julgado improcedente.
De qualquer modo, como da análise do texto da sentença recorrida não resulta a verificação de qualquer dos vícios, o efeito útil da nossa dissensão no caso em apreço não contende com o do entendimento de rejeição parcial do recurso, pelo que votei a decisão.
Edgar Gouveia Valente
..............................................................................................................
1 Também julgada e condenada neste processo pela prática, em coautoria, de um crime de furto, p. e p. pelo art. 203.º, n.º 1, do CP, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão efetiva.
2 Código de Processo Penal Comentado, 4ª ed. revista, Almedina, 2022, pág. 1397.
3 No processo nº 292/11.0JAFAR.E1.S1, Relator Santos Cabral, acessível em www.dgsi.pt.
4 No processo nº 06P4593, Relator Maia Costa.
5 No processo nº 53/09.6PHLSB.L1-5, Relator Artur Vargues.
6 No processo nº 716/15.7PCAMD.L1-3, Relatora Maria Graça Santos Silva.
7 No processo nº 320/14.7GCMTJ.L1-9, Relatora Filipa Costa Lourenço.
8 No processo nº 601/07.6GBCNT.C1, Relator Jorge Dias.
9 No processo nº 118/11.4PBCTB.C2, Relator Alberto Mira.
10 No processo nº 356/12.2SAGRD.C1, Relator Jorge Dias.
11 No processo n.º 16/23.9GBCLD.C1, Relatora Rosa Pinto.
12 No processo nº 25/17.7GBRDD.E1, Relator João Gomes de Sousa.
13 No processo nº 183/10.1GTVRL.P1, Relator José Carreto.
14 No processo nº 543/12.3PDPRT.P1, Relator Artur Oliveira.
15 No processo n.º 124/19.0EAPRT.P1, Relatora Liliana de Páris Dias
16 No processo nº 359/06GVCRM.G1, Relator Anselmo Lopes.