I. Não ocorre a nulidade da decisão por omissão de pronúncia sempre que a matéria tida por omissa tenha ficado implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada.
II. O novo art. 878º do CPC – tutela da personalidade – não prevê qualquer regra quanto ao que à legitimidade passiva diz respeito, pelo que a redacção deste artigo se aproximou muito mais, sendo mesmo semelhante, da redacção do nº 2 do art. 70º do CC.
III. Hoje, é possível requerer o decretamento de providências tuteladoras da personalidade contra qualquer pessoa, desde que tal se mostre adequado a evitar, na concreta situação, a consumação de qualquer ameaça ou a atenuar, ou fazer cessar, os efeitos da ofensa já cometida.
IV. Assim, têm os Réus/senhorios legitimidade substantiva na acção em que os Autores os demandam visando a sua condenação, designadamente, “a não emitirem, ou a não permitirem a emissão, a partir do prédio …de que são proprietários” e que deram de arrendamento a terceiros (in casu, por contratos de curta duração, em regra estudantes de Erasmos), “de ruídos que perturbem ou afectem significativamente os direitos de personalidade dos autores, como seja o direito ao sono, à tranquilidade e ao descanso, mormente decorrentes de festas e/ou outros eventos ocorridos no período compreendido entre as 22 horas e as 07 horas” (acção de tutela de personalidade fundada em ruído de vizinhança produzido pelos arrendatários).
V. Uma decisão de condenação numa determinada ação ou omissão deve sempre nortear-se pela necessidade de certeza e segurança jurídicas, de forma a garantir que a parte condenada saiba a que conduta está obrigada e que a parte activa nesta relação saiba o que exigir da parte condenada.
VI. Como tal, a sentença condenatória não pode ser vaga, nem genérica, devendo zelar pela definitividade e certeza da composição de interesses realizada na ação e a efectividade da tutela alcançada pelo demandante.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível
I – RELATÓRIO
AA e BB, instauraram acção especial de tutela da personalidade contra CC e a Herança aberta e indivisa por óbito de DD, sendo nela herdeiros habilitados EE, na qualidade de cabeça-de-casal, FF e GG1.
Pedem que: a) sejam os réus condenados a não emitirem, ou a não permitirem a emissão, a partir do prédio sito na Rua ..., nº 25, de que são proprietários, de ruídos que perturbem ou afectem significativamente os direitos de personalidade dos autores, como seja o direito ao sono, à tranquilidade e ao descanso, mormente decorrentes de festas e/ou outros eventos ocorridos no período compreendido entre as 22 horas e as 07 horas; b) sejam os réus condenados, em conformidade com o previsto no nº 4, in fine, do artº 879º do CPC, no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de 1500 €, sempre que violem a(s) injunção(ões) que venham a ser impostas pela sentença que vier a ser proferida.
Invocaram a excepção de ilegitimidade passiva - que foi julgada improcedente em sede de audiência de julgamento. Alegaram que não são proprietários de qualquer estabelecimento comercial. Não fazem qualquer exploração ilegal do prédio sito no nº 25 da Rua ..., na cidade de ..., descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..19 da freguesia de ...) e inscrito na matriz sob o nº ..79 da referida União de Freguesias de .... Não têm qualquer alojamento local, nem exploram o referido edifício como alojamento local. O imóvel em causa nos autos é a residência da ré EE e do réu/proprietário CC. Todavia, considerando que o mesmo é constituído por divisões susceptíveis de utilização independente, aqueles arrendam o restante espaço a pessoas singulares, maiores, que estejam interessadas em habitar o local, independentemente da nacionalidade, sexo, etnia e/ou profissão. Como tal, tanto residem e/ou residiram no prédio arrendatários portugueses, como estrangeiros, como homens, como mulheres, como estudantes e/ou como trabalhadores. Todos os contratos de arrendamento celebrados são comunicados às entidades competentes, nomeadamente às finanças, cumprindo os réus todas as suas obrigações legais. Neste conspecto, nos termos do nº 3 do artº 4º do Decreto-Lei nº 128/2014, de 29 de Agosto, republicado pela Lei nº 62/2018, de 22 de Agosto, que aprova o regime jurídico da exploração dos estabelecimentos de alojamento local, a existência de contratos de arrendamento devidamente registados - como é o caso - consubstancia precisamente a excepção à existência de um estabelecimento de alojamento local. Pelo que não existe no apontado prédio qualquer estabelecimento de alojamento local, nem os réus exploram qualquer estabelecimento de alojamento local. De facto, a partir da data de celebração dos contratos de arrendamento, os réus estão obrigados a ceder aos arrendatários o gozo do imóvel, o que fazem. Não é alegado qualquer facto que impute aos réus a produção dos alegados barulhos/ruídos que fundamentam o recurso à presente acção. Não existem factos imputados a qualquer pessoa concreta, mas apenas e tão só a estudantes de Erasmus.
CC e a Herança Aberta e Indivisa por óbito de DD, são donos e legítimos proprietários do prédio sito no nº 25 da Rua ..., na cidade de ... e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..19 da freguesia de ... (..., ... e ...) e inscrito na matriz predial urbana sob o nº ..79 da União de Freguesias de ... (... e ...). Os autores habitam no prédio vizinho, sito no nº 19 e 21 da referida Rua ..., na cidade de .... Sobretudo desde 2020, o autor injustificadamente tem intentado uma verdadeira perseguição aos réus, em especial ao réu CC, perseguição que este réu tem tentado evitar, não obstante sentir-se constantemente prejudicado, inseguro, desassossegado e perturbado, além do mais e sobretudo, no seu sossego e no seu bem-estar físico e intelectual, e bem assim do sossego e bem-estar do seu agregado familiar. Perturbação, desassossego e insegurança que surgem, sobretudo por via do conhecimento que teve da acção intentada no Julgado de Paz de ..., em 11/05/2021, que correu termos sob o processo nº 74/2001, na qual o requerente peticionava contra dois dos réus o encerramento de um estabelecimento inexistente, indemnizações por danos não patrimoniais e que os réus fossem impedidos de propagar ruídos do inexistente estabelecimento - acção da qual o autor acabou por desistir após ser notificado da contestação. Também decorrente do facto de o réu CC, no pretérito dia 04/06/2021, ter visto entrar na sua casa, de rompante, em acção concertada, diversos elementos da Câmara Municipal, da PSP - Polícia de Segurança Pública, do SEF - Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e da Autoridade Tributária e Aduaneira, que foram inspeccionar o local, por via de denúncia infundada do autor. Ainda decorrentes do facto de ver a sua esposa HH ameaçada na rua pelo autor que lhe disse "tenho muito dinheiro, conheço pessoal da máfia, um dia destes pego fogo a isto tudo", dando origem ao inquérito que corre os seus termos no DIAP sob o nº 240/22.1... E, sobretudo decorrentes de no dia 26/03/2022, o próprio réu CC se ter visto perseguido e agredido na rua pelo autor e de ter sido obrigado a apresentar queixa-crime e a realizar exame pericial no IML, processo que corre termos no DIAP sob o processo nº 544/22.3... Há largos meses que o réu é obrigado a conviver, não com o barulho de estudantes de Erasmus, mas com a perseguição do réu, que não obstante todas as respostas das entidades a quem já fez denúncias e queixas, continua a não deixar os réus terem o sossego que também mereciam na própria casa, no caso dos réus CC e EE, também ela na Rua ..., em .... Nem o réu CC nem a referida EE ouvem o barulho ensurdecedor ou o "inferno acústico" referido pelo autor. Não sentem constantemente o seu descanso e/ou repouso afectados. Nunca sentiram necessidade de chamar a polícia, nem qualquer outra autoridade para fazer cessar festas ou ruídos. Não ouvem reiteradamente um barulho incomodativo. Não vivem em constante sobressalto com festas permanentes e actividades extremamente ruidosas. O réu CC, tal como a sua esposa, é enfermeiro e trabalha por turnos, portanto, também se sentiria afectado se correspondesse à verdade a alegada existência de constantes ruídos incomodativos do descanso dos habitantes e/ou vizinhos. Os autores não identificam quem, em concreto, emite os ruídos e/ou faz festas que alegadamente impedem o seu descanso, sendo certo que não pode advir da conduta de terceiros, maiores, qualquer consequência para os réus, sobretudo, quando se desconhecem quem são os terceiros e, por consequência, desconhece-se qualquer relação de dependência com os aqui réus. Acresce que os autores não alegam a concreta frequência com que existem ruídos. Não alegam de que ruídos concretos se trata. Não alegam qual o grau de intensidade dos ruídos, dizendo apenas conclusivamente que existe uma violação ostensiva do Regulamento Geral do Ruído. Nem sequer qual a concreta origem dos mesmos, com identificação de quem o faz, o que sempre seria essencial para verificar a existência de facto ilícito. Não alegam factos susceptíveis de comprovar a existência de quaisquer ruídos e ou barulhos que sejam susceptíveis de afectar o seu direito ao repouso ou ao descanso. Acresce que mesmo que se entendesse que existiam barulhos susceptíveis de perturbar reiteradamente o descanso dos autores, nunca poderia existir discricionariedade na limitação do direito de propriedade dos réus.
“Pelo exposto, julgo a presente acção procedente e, em consequência:
- Condeno os requeridos a não emitirem nem permitirem a emissão, a partir do prédio sito na Rua ..., nº 25, de que são proprietários, de ruídos que perturbem o sono, a tranquilidade e o descanso, designadamente ruídos decorrentes de festas e/ou outros eventos ocorridos no período compreendido entre as 22 horas e as 7 horas;
- Condeno os requeridos, nos termos do nº 4, in fine, do artº 879º do CPC, no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de 1500 €, por cada dia de infracção ao supra determinado.”.
Inconformados, apelaram os Réus, vindo a Relação de ..., em acórdão, a “julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida”.
De novo inconformados, vieram os Réus CC, EE, FF e GG, interpor recurso de revista excepcional, apresentando alegações que rematam com as seguintes
CONCLUSÕES
1) Por sentença proferida nos presentes autos, o tribunal de primeira instância condenou os Réus a não emitirem nem permitirem a emissão, a partir do prédio sito na Rua ..., nº 25, de que são proprietários, de ruídos que perturbem o sono, a tranquilidade e o descanso, designadamente ruídos decorrentes de festas e/ou outros eventos ocorridos no período compreendido entre as 22 horas e as 7 horas, bem como no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de 1500 €, por cada dia de infração ao determinado.
2) Tal sentença foi objeto de recurso invocando-se, além do mais e no que releva para o presente recurso, a nulidade da sentença por omissão de pronúncia por falta de decisão sobre a exceção de ilegitimidade substantiva passiva dos Réus, a nulidade da sentença por falta de fundamentação quanto à fixação da sanção pecuniária compulsória, e ainda a sua inconstitucionalidade por violação do princípio da Proporcionalidade e a sua ilegalidade por violação do art. 70.º do CC, do 829.º-A também do CC e por errada aplicação do direito no que concerne à efetiva ilegitimidade passiva dos Réus.
3) O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, julgou improcedente o recurso defendendo que inexistia omissão de pronúncia, porquanto na decisão de primeira instância alegadamente existia uma decisão implícita de indeferimento da exceção de ilegitimidade invocada; tendo ainda decidido quanto à invocada ilegitimidade substantiva dos Réus que não existia errada aplicação do direito, porquanto efetivamente os Réus, na qualidade de senhorios dos produtores de ruído, mesmo sendo “terceiros inocentes”, eram ainda assim partes legitimas na ação de tutela de personalidade; mais decidindo, conclusivamente, quanto à fixação da sanção pecuniária compulsória que a mesma era equilibrada.
4) É, portanto, de tal decisão e de tais questões citadas que se impõe apresentar o presente recurso excecional de revista, que se entende ser admissível, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 672.º do CPC, tanto por se tratar de matéria cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, como porque em causa estão interesses de particular relevância social.
5) De facto, e quanto à relevância jurídica, no que concerne à responsabilização do senhorio por atos dos arrendatários, causadores de ruído, é de notar que estamos perante uma matéria que ainda não foi alvo de intensa jurisprudência, e que portanto, entende-se merecer uma melhor análise para boa aplicação do direito.
6) Sendo ainda de referir que em causa estão matérias essenciais ao comércio jurídico e merecedoras de ampla tutela, incluindo constitucional, previstas entre outros no n.º 1 do art. 8.º do Código Civil, no n.º 1 do art. 152.º, no art. 154.º ambos do CPC, no n.º 2 do art. 608.º ainda do CPC, nas alíneas d) e b) do n.º 1 do art. 615.º também do CPC, e no n.º 1 do art. 205.º da CRP, normas legais que a decisão sub judice viola quando admite a possibilidade de se decidirem implicitamente e, portanto, sem fundamentação, exceções perentórias essenciais para decidir o mérito da causa, olvidando princípios fundamentais de direito como o princípio da proibição do non liquet, o dever de decisão e de fundamentação de decisões judiciais e a não aplicação de cominações legais, como seja a nulidade.
7) Ademais, tais matérias não podem deixar de representar interesses de particular relevância social, considerando que, entre as questões que se apresentam a revista, está em causa os particulares serem confrontados com decisões implícitas e infundadas que não conseguem percecionar, nem sindicar, sobre matérias e temas essenciais ao comércio jurídico, como o são o arrendamento urbano, o direito à propriedade e o direito ao descanso, sendo certo que a interpretação postulada no acórdão sub judice que admite a responsabilização do senhorio inocente pelos atos dos arrendatários e admite a existência de decisões judiciais implícitas e infundadas não pode deixar de gerar expectativa, intranquilidade e angústia na sociedade civil, sendo por isso merecedoras de uma melhor análise jurídica;
8) Posto isto, no que concerne à questão levantada quanto à admissibilidade e validade legal de decisões implícitas de indeferimento de exceções perentórias, considerando que efetivamente não existiu qualquer decisão sobre a exceção de ilegitimidade substantiva passiva dos Réus, invocada em sede de contestação, decidiu o acórdão sub judice que a decisão final ao decretar medidas de tutela da personalidade continha implícita uma decisão de indeferimento da arguida exceção.
9) Com o devido respeito que estes assuntos nos merecem, olvida o acórdão recorrido que uma exceção perentória tem a virtualidade de decidir o mérito da causa, considerando que pode importar uma absolvição dos Réus do pedido, e, neste conspecto, é uma questão de fundo suscitada pelas partes que o tribunal tem obrigatoriamente, explicitamente e fundadamente que decidir, nos termos previstos nos no n.º 1 do art. 8.º do CC, no n.º 1 do art. 152.º do CPC e ainda na alínea d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC que comina com nulidade as decisões judiciais que não se pronunciem sobre questões suscitadas pelas partes, como aconteceu no caso concreto, com vista a poderem ser percebidas e sindicadas pelas partes processuais, sendo certo que tal interpretação que admite a existência de uma decisão judicial implícita sobre uma exceção perentória, põe em causa os mais basilares princípios de um Estado de Direito, que prevê constitucionalmente, além do mais, o direito dos particulares à tutela jurisdicional efetiva e o direito à fundamentação das decisões judiciais, este nos termos do n.º 1 do art. 205.º da CRP.
10) De resto, uma decisão implícita sempre seria – como a existir (que não se concede) é – infundada, e portanto, nula por violação do citado n.º 1 do art. 205.º da CRP, por violação do n.º 1 do art. 154.º do CPC e por violação da alínea b) do n.º 1 do art. 615.º do CPC que comina com nulidade a ausência absoluta de fundamentação como ocorre no caso em apreço, devendo neste conspecto o acórdão recorrido ser revogado.
11) Por sua vez, no que concerne à (i)legitimidade substantiva dos senhorios, em ação de tutela de personalidade fundada em ruído de vizinhança produzido pelos arrendatários, entendeu o acórdão recorrido que os Réus, na qualidade de senhorios dos agentes produtores do ruído incomodativo dos Autores, eram efetivamente partes substantivamente legitimas na presente demanda, tanto porque a alteração legislativa ocorrida sobre a ação especial de tutela de personalidade que, na atual redação do n.º 2 do art. 70.º do Código Civil, abriu a possibilidade de passarem a ser demandados “terceiros inocentes”, como porque alegadamente – porquanto, não resulta dos factos provados – existiu uma atitude permissiva dos Réus perante a emissão de ruídos.
12) Com o devido respeito que estes assuntos nos merecem, fez o Tribunal da Relação de Coimbra uma errada aplicação do direito no caso concreto.
13) Em primeiro lugar, porque a própria doutrina citada no acórdão sub judice, prevê que os terceiros inocentes possam ser responsabilizados apenas nos casos em que “tal seja necessário para assegurar a adequação e eficiência da providência”, o que não é o caso dos autos, considerando que os arrendatários dos Réus são pessoas perfeitamente identificáveis, sendo certo que nenhum argumento consta do dito acórdão que permita concluir que seria ineficaz ou inadequada a ação intentada contra os concretos Autores do ruído.
14) Bem pelo contrário, crê-se que a aplicação da sanção pecuniária teria um efeito manifestamente dissuasor se aplicada aos produtores do ruído, efeito esse que não será tão premente perante os referidos produtores de ruído, quando, literalmente são condenados a “pagar” os “terceiros inocentes”, no caso, os senhorios.
15) Ademais, sempre se questionaria se o acórdão reconheceria a legitimidade substancial ativa dos senhorios inocentes, no caso de se tratar de apenas um arrendatário a produzir os ruídos. Com o devido respeito e considerando a jurisprudência existente, cremos não restar dúvidas que o tribunal consideraria que como parte legitima não os senhorios, mas os autores dos ruídos.
16) Sem prescindir, a verdade é que o acórdão sub judice imputa aos Réus senhorios, titulares de um contrato de arrendamento, os direitos, deveres e responsabilidades que imputa ao proprietário de um estabelecimento comercial, tratando de forma igual situação manifestamente diferentes, em clara violação princípio da Igualdade, ínsito no art. 13.º da CRP, uma vez que não subsume, no caso concreto, o regime jurídico do arrendamento urbano.
17) Posto isto, resultando dos factos provados que só os arrendatários são os produtores do ruído, importa lançar mão do regime do arrendamento urbano para habitação, sendo nesta senda de referir que sobre o senhorio não impende qualquer dever de vigiar os arrendatários, sobretudo, quando, centrando-nos no caso concreto, estamos perante arrendatários maiores de idade, responsáveis civil e penalmente, aos quais incumbe respeitar o Regulamento Geral do Ruído, tanto por via dos deveres inerentes ao contrato de arrendamento, como por via dos deveres inerentes a qualquer cidadão de cumprir a lei, não sendo necessário qualquer regulamento adicional ou cláusula contratual especifica para os vincular ao cumprimento da lei.
18) Os arrendatários por si próprios estão sujeitos ao cumprimento da lei, incluindo da Lei Geral de Ruído e substituem-se ao proprietário não apenas nos direitos, mas também nos deveres, incluindo nos deveres advenientes das relações de vizinhança, que implicam o respeito pelo descanso dos vizinhos, porquanto determina expressamente o art. 1071.º do Código Civil que “os arrendatários estão sujeitos às limitações impostas aos proprietários de coisas imóveis, tanto nas relações de vizinhança como nas relações entre arrendatários de partes de uma mesma coisa”.
19) De resto, o art. 70.º do CC determina que as providências emergentes da presente ação de tutela de direitos de personalidade pressupõem que exista da parte, no caso, dos Réus, uma atuação ilícita, que manifestamente não ocorreu.
20) Tanto porque não resulta da matéria dada por provada que os Réus permitem que os barulhos se produzam - facto que, por si só impediria tal conclusão constante do acórdão recorrido – como porque os Réus, enquanto senhorios, não permitem, de facto, contra legem que os seus arrendatários produzam qualquer ruído.
21) Como tal, não existindo qualquer ato ilícito da parte dos Réus, considerando que estes não fazem qualquer barulho que incomode os Autores, considerando que o único ato praticado foi a celebração de contratos de arrendamento destinados a habitação e, portanto, lícitos à luz do direito e considerando ainda que o único meio de que podem lançar mão para sancionar a conduta dos arrendatários é o direito de resolução do contrato de arrendamento - mesmo que existissem factos concretos que pudessem fundamentar a resolução de algum ou alguns contratos de arrendamento em vigor, o que não acontece no caso concreto – que não é uma imposição legal, ter-se-á que concluir que não existiu qualquer conduta ilícita por parte dos senhorios, ora Réus.
22) Assim sendo, salvo melhor opinião, o acórdão sub judice fez uma errada aplicação do direito, devendo reconhecer-se a ilegitimidade substantiva passiva dos Réus, sob pena de violação dos invocados n.º 1 e 2 do art. 70.º do CC, porquanto nem a aplicação de sanção pecuniária compulsória aos Réus/senhorios/ “terceiros inocentes” é essencial para assegurar a adequação e eficiência da providência decretada, nem os Réus/senhorios/ “terceiros inocentes” tiveram qualquer conduta ilícita que permita o recurso à ação especial de tutela da personalidade em apreço nos autos, sendo manifesto que existindo contratos de arrendamento em vigor, nos termos, além do mais, do art. 1071.º do Código Civil “os arrendatários estão sujeitos às limitações impostas aos proprietários de coisas imóveis, no que concerne às relações de vizinhança e, por isso, ao dever de evitar a emissão de ruídos ilegais.
23) Por fim, quanto aos critérios/elementos objetivos a considerar para a fixação de uma sanção pecuniária compulsória e à nulidade e ilegalidade de decisão judicial que fixa infundadamente o quantitativo da sanção, o acórdão sub judice sobre a invocada falta de fundamentação do quantitativo fixado em primeira instância a título de sanção pecuniária compulsória, limitou-se a concluir que o mesmo era equilibrado.
24) Com o devido respeito que estes assuntos nos merecem, tal conclusão carece de factos que a consubstanciem e que no caso concreto não existem, porquanto refere expressamente o n.º 2 do art. 829.º-A que a mesma deve ser fixada segundo critérios de razoabilidade, critérios esses que também não constam nem da sentença nem do acórdão recorrido e que as partes têm o direito de sindicar.
25) Assim sendo, a inexistência de fundamentação quanto aos critérios objetivos e factos utilizados para a determinação do quantum da sanção pecuniária compulsória fixada nos presentes autos - note-se que não é a insuficiência, mas a total inexistência de fundamentação – não é uma decisão de mero expediente, bem pelo contrário, pelo que não pode deixar de ser nula e de nenhum efeito, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 615.º do CPC e claramente violadora do n.º 1 do art. 205.º da Constituição da República Portuguesa, e do art. 829.º-A do CC.
26) Pelo exposto, o acórdão recorrido fez uma errada aplicação do direito em relação às três questões objeto do recurso, que são verdadeiramente essenciais no julgamento do caso concreto, como tal deve ser julgado procedente o recurso agora apresentado e revogado o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que julgou improcedente o recurso apresentado sobre a sentença de primeira instância.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Em conexão com esta matéria considerou-se, ainda, verificada a relevância jurídica da questão atinente à sanção pecuniária compulsória e ao seu decretamento no seio das providências de tutela de personalidade.
Nada obsta à apreciação do mérito da revista.
Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).
• Da admissibilidade legal de decisões implícitas de indeferimento sobre exceções processuais invocadas em sede de contestação, ou da sua nulidade, por omissão de pronúncia e falta de fundamentação, e da sua ilegalidade por violação do princípio da proibição do non liquet e do n.º 1 do art. 205.º da CRP;
• Da legitimidade substantiva dos senhorios, em ação de tutela de personalidade fundada em ruído de vizinhança produzido pelos arrendatários;
• Da condenação dos réus no pagamento da sanção pecuniária compulsória.
III – FUNDAMENTAÇÃO
III. 1. FACTOS PROVADOS
É a seguinte a matéria de facto provada (na 1ª instância, sem impugnação em recurso):
1 - Os réus CC e a Herança Aberta e Indivisa por óbito de DD, são donos e legítimos proprietários do prédio sito no nº 25 da Rua ..., na cidade de ... e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..19 da freguesia de ... (... e ...) e inscrito na matriz predial urbana sob o nº ..79 da União de Freguesias de ... (... e ...).
2 - Os autores são, pelo menos desde 2016, legítimos proprietários e possuidores do imóvel sito na Rua ..., nº 19 e 21, ..., que é composto por uma habitação unifamiliar, com rés-do-chão, primeiro e segundo andar, e logradouro. Nele habitam, quotidianamente, os autores e os seus dois filhos menores, com idades de 15 e 13 anos.
3 - Esta é a única habitação dos autores, constituindo a casa de morada de família do seu agregado familiar.
4 - Pelo menos desde há cerca de seis anos são vários, sucessivos e reiterados os constrangimentos e condicionamentos que sofrem ao uso e fruição do mesmo, nomeadamente como consequência de ruídos e perturbações sonoras que são constantemente promanadas do referido edifício propriedade dos requeridos.
5 - Neste edifício vizinho, conhecido como ..., afastado apenas cerca de 5 metros do prédio dos autores, constituído por uma casa de habitação com cave, rés-do-chão, primeiro e segundo andar, garagem, pátio e quintal, residem vários arrendatários dos requeridos - nem sempre os mesmos - em média, em cada ano lectivo, cerca de 25 arrendatários, na sua maioria estudantes do Programa Erasmus. Os arrendatários que por este prédio vão passando e amigos ou conhecidos destes, realizam frequentemente - cerca de duas ou três vezes por semana - convívios, festas e outras actividades no exterior e interior do dito prédio. Nesses convívios, que ocorrem em regra pela tarde e noite, põem música excessivamente alta, há gritos e gargalhadas estridentes, palavrões estridentes em diversos idiomas, garrafas a partirem-se - barulhos motivados, além do mais, pelo consumo sistemático de álcool. Tais convívios prolongam-se frequentemente até cerca das 2 horas.
6 - Em consequência desses barulhos, a vida familiar dos autores e dos seus filhos tem sido afectada, dado que se têm visto privados de tranquilidade, serenidade e reserva de intimidade que esperavam alcançar com a aquisição do seu imóvel, que constitui a sua casa de morada de família.
7 - A autora BB, que é ..., encontra-se proibida, desde ... de 2018, por indicação médica em consequência da apresentação de um quadro clínico de enxaqueca violenta crónica - devido à falta de descanso provocada pelas sobreditas perturbações e, bem assim, ao stress que toda a situação provoca -, de prestar serviço noturno. Tal implica a possibilidade de uma desvalorização profissional, bem como uma redução dos rendimentos que costumava auferir e que iria continuar a auferir, não fosse dar-se a referida situação.
8 - O autor AA, que é ... e que, no âmbito dessa actividade, prepara e leva a efeito revisões projectistas de grandes infraestruturas, também é afectado por tal falta de descanso e repouso, que também motiva um estado acentuado de nervosismo em que se encontra.
9 - Os filhos menores dos autores também têm sido privados de descanso e bem-estar, dado que não conseguem dormir normalmente, padecem de problemas ao nível de concentração, o que afecta o seu rendimento escolar.
10 - Acresce que os filhos menores dos autores não podem convidar amigos a frequentar a sua casa e, muito em particular, a nela pernoitarem, uma vez que o descanso não é possível com música em “altos berros”.
11 - Os autores já apresentaram diversas denúncias junto da Polícia de Segurança Pública, que frequentemente intervém no sentido de pôr termo a tais actividades. Todavia, se é certo que em alguns casos a actividade ruidosa apenas se volta a verificar passados escassos dias, outros há, em que imediatamente após as autoridades policiais se ausentarem, há um imediato regresso daquela actividade ruidosa, que se prolonga “noite dentro” perturbando o descanso e tranquilidade dos autores e dos seus filhos menores.
12 - Dado que na sua maioria os ditos arrendatários são alunos do ensino superior, mais propriamente alunos estrangeiros acolhidos ao abrigo do programa Erasmus, foi dado conhecimento desta situação à Universidade de ..., a qual reportou a situação às entidades que entendeu serem competentes na matéria.
13 - Os réus CC e a sua esposa, bem como a ré EE também residem no dito edifício conhecido como .... Nunca chamaram a polícia, nem qualquer outra autoridade para fazer cessar festas ou ruídos.
14 - O réu CC, tal como a sua esposa, é enfermeiro e trabalha por turnos.
15 - Os autores intentaram uma acção no Julgado de Paz de ..., que correu termos sob o processo nº 74/2001, na qual os demandantes peticionavam contra os réus o encerramento de um estabelecimento, indemnizações por danos não patrimoniais e que os réus fossem impedidos de propagar ruídos do estabelecimento.
16 - Os demandantes desistiram da instância após a contestação.
17 - A esposa do réu CC, HH apresentou queixa crime contra o autor, alegando ter sido por este ameaçada na rua dizendo “tenho muito dinheiro, conheço pessoal da máfia, um dia destes pego fogo a isto tudo", dando origem ao inquérito que corre os seus termos no DIAP sob o n.º 240/22.1...
18 - O réu CC apresentou queixa crime contra o autor alegando que no dia 26/03/2022, o autor o agrediu, processo que corre termos no DIAP sob o processo n.º 544/22.3...
Resultou não provado que:
A - No prédio sito no nº 25 da Rua ..., na cidade de ... e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..19 da freguesia de ... (... e ...) e inscrito na matriz predial urbana sob o nº ..79 da União de Freguesias de ... ... e ...) funciona uma unidade ilegal de alojamento local;
B - Nem o réu CC nem a referida EE ouvem o barulho acima referido.
I. Da admissibilidade legal de decisões implícitas de indeferimento sobre exceções processuais invocadas em sede de contestação, ou da sua nulidade, por omissão de pronúncia e falta de fundamentação, e da sua ilegalidade por violação do princípio da proibição do non liquet e do n.º 1 do art. 205.º da CRP
Invocam os recorrentes que o tribunal recorrido “ao considerar que a sentença de primeira instância, considerando o decretamento de medidas, continha uma implícita decisão de indeferimento de ilegitimidade substantiva passiva fez uma errada aplicação do direito, violando flagrantemente o princípio da proibição do non liquet, previsto, nomeadamente no n.º 1 do art. 8.º do Código Civil e no n.º 1 do art. 152.º do CPC, bem como a alínea b) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.”.
Pretendem, assim, os recorrentes reverter a decisão do tribunal da Relação que não considerou a sentença da 1.ª instância nula por omissão de pronúncia. Está em causa a análise da invocada ilegitimidade substantiva dos réus, considerando os réus que tal matéria não foi objecto de pronúncia por parte do tribunal da 1.ª instância e que tal dever de pronúncia não se pode/deve ter por implicitamente cumprido.
Como é consabido, a invocada nulidade por omissão de pronúncia encontra-se em estreita conexão com o comando normativo ínsito no art. 608.º, n.º 2, do CPC, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.” e verifica-se quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar – cfr. art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.
Neste âmbito, este STJ tem vindo a propugnar o entendimento de que “a nulidade da decisão por omissão de pronúncia apenas se verificará nos casos em que ocorra omissão absoluta de conhecimentos relativamente a cada questão e já não quando seja meramente deficiente ou quando se tenham descurado as razões e argumentos invocados pelas partes”2.
Resulta, assim, que existe dever de pronúncia apenas quanto a questões que diretamente digam respeito ao objeto do processo que hajam sido deduzidas pelas partes ou que devam ser suscitadas oficiosamente3.
Regressando aos autos e adiantando solução, diremos que se não vislumbra razão aos recorrentes.
Efectivamente, como já foi defendido pelo STJ, “não se verifica nulidade da decisão por omissão de pronúncia sempre que a matéria tida por omissa tenha ficado implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada.”4
Resulta, assim, que a admissibilidade de decisões implícitas tem sido, pacificamente, aceite pela jurisprudência, não se almejando na decisão recorrida qualquer violação de lei ou de princípios gerais de direito, ao contrário do defendido pelos recorrentes.
Em todo o caso, sempre se dirá que a decisão que versou sobre a invocada ilegitimidade substantiva é clara e evidente.
Efectivamente, muito embora não se tenha recorrido à fórmula sacramental “julgo improcedente a exceção…” ou ainda que não se tenha deixado escrito “ilegitimidade substantiva”, a verdade é que esta foi conhecida pelo tribunal da 1.ª instância.
De facto, como já se deixou escrito em acórdão de 12-10-2023, “a legitimidade substantiva, material ou ad nutum - bem diferente da legitimidade processual (legitimidade ad causam que constitui um pressuposto processual positivo) -, constitui um complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que ele invoque ou que lhe seja atribuído, dessa forma dizendo respeito ao fundo ou mérito da causa (é um requisito de procedência do pedido).”5.
A legitimidade substantiva passiva coloca-se, assim, no plano do mérito da ação. Isto é dizer, afere-se sempre em função da possível afectação da situação jurídica dos réus, no quadro da relação6 estabelecida com os autores, por força de uma decisão de procedência. Como nos ensinam CASTRO MENDES e TEIXEIRA DE SOUSA “para o réu, a improcedência da acção importa um efeito liberatório, porque não é atingido na sua situação jurídica por qualquer obrigação ou oneração; todavia, a procedência da acção produz, para o réu, um efeito dispositivo, quando o bem é reconhecido como pertencendo à esfera jurídica do autor, ou um efeito vinculativo, quando o réu fica vinculado a uma obrigação ou sujeito a uma mudança na sua situação jurídica”7.
Sobre este tema, veja-se, ainda, ISABEL MAGALHÃES COLAÇO8.
Ora, o tribunal da 1.ª instância, ao conhecer dos fundamentos da ação e ao considerar procedente a pretensão dos autores face aos réus, atenta a sua qualidade de proprietários do imóvel descrito nos autos, conheceu os fundamentos da ação, deixando claro que o direito dos autores se projectava na esfera jurídica dos réus, assumindo estes, inevitavelmente, legitimidade substantiva passiva.
A pronúncia existe e é clara, sendo evidente que a ausência de menção à expressão “ilegitimidade substantiva” não obsta a esta conclusão.
Assim improcede esta questão.
I. Da legitimidade substantiva dos senhorios, em ação de tutela de personalidade fundada em ruído de vizinhança produzido pelos arrendatários
Dispõe o art. 20.º, n.º 5, da CRP que “para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”.
Em concretização desse desígnio constitucional, encontra-se consagrada na nossa lei um processo especial de tutela da personalidade, que visa, no essencial, assegurar a todas as pessoas uma tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações dos direitos de personalidade.
No plano processual, dispõe o art. 878.º do CPC que “pode ser requerido o decretamento das providências concretamente adequadas a evitar a consumação de qualquer ameaça ilícita e direta à personalidade física ou moral de ser humano ou a atenuar, ou a fazer cessar, os efeitos de ofensa já cometida.”.
Como nota ABRANTES GERALDES, muito embora este processo especial não conste do elenco dos processos de jurisdição contenciosa, não deixa de apresentar “algumas características que são retiradas dos processos de jurisdição voluntária (y.g. amplitude dos poderes do juiz na conformação da decisão final e na adoção de medidas provisórias, mediante a simples análise dos meios de prova apresentados pelo requerente).”9.
E assim é, porquanto a riqueza da vida em sociedade exige que se conceda ao juiz, na conformação deste tipo de litígios, uma amplitude capaz de tornar efectiva a proteção a conceder aos direitos de personalidade em perigo e também para obter, em concreto, a concordância prática dos direitos em conflito.
Também ALEXANDRA FILIPA DA SILVA DUARTE deixou escrito a este propósito que “o legislador consagra o processo especial de tutela da personalidade como de jurisdição contenciosa, mas atribui-lhe grande parte das notas da jurisdição voluntária. Assim, e apesar da crítica, é de louvar a atitude do legislador, que apesar de ter excluído o processo especial de tutela da personalidade do leque de processos que constituem os processos de jurisdição voluntária previstos no NCPC, não descurou algumas das exigências específicas que caracterizam o processo de tutela da personalidade, tendo feito ressalvas como as previstas no n.º 4 e no n.º 5 do art. 879.º do NCPC.”10.
No plano substantivo, dispõe o art. 70.º do CC que “1. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral. 2. Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.”.
Resulta do n.º 2 da norma acabada de citar que a tutela dos direitos de personalidade, muito embora possa coexistir com a tutela ressarcitória que emerge do disposto nos arts. 483.º do CC, nela não se esgota. Efectivamente, os pressupostos e desígnios destas duas formas de tutela são distintos. Como nos explica ALEXANDRA FILIPA DA SILVA DUARTE 11“a responsabilidade civil extracontratual efectiva-se nos termos do disposto nos arts. 483.º e 484.º do CC, enquanto que o decretamento das providências, quer preventivas quer atenuantes, concretiza-se através do processo especial de tutela da personalidade previsto nos arts. 878.º a 880.º do NCPC3312. Assim, somos levados a constatar que enquanto as acções de responsabilidade civil visam uma tutela ressarcitória, as providências têm uma função preventiva ou atenuante.”.
MENEZES CORDEIRO escreve a este propósito que “as providências adequadas às circunstâncias podem, além da indemnização, ser requeridas pelo ofendido (72.º/2). Têm, em regra, lugar perante ofensas ou ameaças ao direito à vida ou ao direito à integridade física: estão envolvidas posições irreparáveis, sendo insuficientes meras compensações”13.
Ora, no caso que nos ocupa, consideramos que a análise a empreender não se coloca tanto na perspectiva dos réus enquanto produtores de ruído, sendo manifesto que resultou demonstrado que não são os réus os responsáveis por tais níveis de ruído. Não está, assim, em causa a responsabilidade dos réus por conduta de terceiros. Veja-se que os autores não peticionam nos autos a condenação dos réus no pagamento de indemnização por força do ruído causado por terceiros, mas tão-só a sua condenação na proibição de emissão de ruídos e a não permitir a emissão de ruídos por outrem.
O prisma de análise a adoptar é, ao invés, o que se reconduz à posição dos réus enquanto titulares do direito de propriedade sobre coisa imóvel e enquanto beneficiários da exploração económica de tal direito.
Ora, o direito de propriedade – como referem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA – “abrange pelo menos quatro componentes: (a) a liberdade de adquirir bens; (b) a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário; (c) a liberdade de os transmitir; (d) o direito de não ser privado deles. Talvez se possa acrescentar uma quinta dimensão: o direito de reaver os bens sobre os quais se mantêm direito de propriedade”14.
Prosseguem os referidos autores, afirmando que “a Constituição não menciona expressamente, entre os componentes do direito de propriedade, a liberdade de uso e fruição, o qual, porém, goza da protecção constitucional da liberdade de empresa (art 61°), no que respeita ao seu uso e fruição com fins económicos. Todavia, mesmo devendo entender-se que ele integra naturalmente o direito de propriedade, fácil é verificar que são grandes os limites constitucionais, especialmente em matéria de meios de produção — que vão desde o dever de uso (art. 88") até ao seu condicionamento (cfr. especialmente o art. 93°-2) —, podendo a lei estabelecer restrições maiores ou menores, credenciada nos princípios gerais da Constituição, particularmente nos da constituição económica, bem como nos demais valores constitucionais acima referidos (ambiente, urbanismo, segurança, património cultural e natural)”15.
Esta garantia constitucional não é, contudo, absoluta, sendo manifesto que o direito de propriedade apenas é garantido “dentro dos limites e com as restrições previstas e definidas noutros lugares da Constituição (e na lei, quando a Constituição possa ela remeter ou quando se trate de revelar limitações constitucionalmente implícitas) por razões ambientais, de ordenamento territorial e urbanístico, económicas, de segurança, de defesa nacional.”16.
Como faz notar OLIVEIRA ASCENSÃO, “a vizinhança imobiliária é outra situação susceptível de gerar conflitos. - O exercício dum direito no próprio prédio-não pode deixar de repercutir-se sobre o exercício do direito no prédio vizinho; A lei previne o conflito regulando vários aspectos que considerou particularmente importantes. Estabelece-se portanto uma teia de relações jurídicas. (…)”17.
Ainda a propósito das relações de vizinhança, escreveu RUI PINTO DUARTE que “a primeira reflexão azada é sobre o caráter não absoluto do direito de propriedade. Pelo menos no que respeita a prédios, é óbvio que não é, nem nunca foi, possível caraterizar o direito de propriedade como ilimitado. É, e sempre foi, frequentíssimo os proprietários prediais terem de se relacionar com os proprietários dos prédios vizinhos: ou porque os prédios têm algo em comum (v.g. um muro, uma parede), ou porque um dos proprietários tem necessidade de entrar no prédio vizinho ou de para ele enviar algo (v.g. fumos ou cheiros), ou por qualquer razão análoga”18.
Esta ideia de existência de limites ao exercício do direito de propriedade, subsidiária da existência de relações de vizinhança, verifica-se sempre que o exercício daquele direito, nas suas diversas dimensões, colida de alguma forma com os direitos de outrem, nomeadamente, no que aqui releva, com o direito ao repouso e ao sossego, enquanto dimensão do direito à integridade física e psíquica.
Esta potencial colisão pode ocorrer sempre que o direito de propriedade é exercido, nomeadamente quando está em causa o aproveitamento económico do direito de propriedade. Pode, assim, suceder que o aproveitamento económico do direito de propriedade se mostre inconciliável com os direitos de personalidade de outrem.
É o que sucede no caso dos autos.
Efectivamente, surge retratado nos autos um caso em que, por via do aproveitamento económico do direito de propriedade (arrendamento), a utilização do bem imóvel – nos termos que tem vindo a ocorrer – é geradora de danos gravíssimos para a saúde e bem-estar dos autores.
Está em causa, nesta vertente, a colisão entre o direito ao repouso e bem-estar dos autores e o direito de propriedade, na sua dimensão do seu aproveitamento económico.
Ora, no que à hierarquização destes direitos diz respeito, tem sido jurisprudência pacífica deste STJ que o direito de propriedade deve ceder face aos demais direitos de personalidade, como o direito ao sossego e repouso.
Como se refere no acórdão do STJ de 08-04-2010, “Como vem sendo jurisprudencialmente decidido, de forma reiterada, a produção ou emissão de ruídos, geradora de poluição sonora, lesiva de direitos individuais e colectivos, obviamente carecidos de protecção e tutela, pode ser encarada por três ópticas distintas, embora, em muitos casos, conexionadas e interligadas:
- a do direito do ambiente, enquanto causa de evidente poluição ambiental, com assento primacial no próprio texto constitucional, no plano dos direitos e deveres sociais, de natureza análoga aos direitos fundamentais, em que se insere o direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado ( art. 66º),complementado e densificado pelas normas constantes da Lei de Bases do Ambiente, fundamentalmente orientada, imediatamente e em primeira linha, para a protecção de interesses colectivos ou difusos;
- a clássica visão da tutela do direito de propriedade, no domínio das relações jurídicas reais de vizinhança, permitindo ao proprietário de um prédio opor-se às emissões, provenientes de prédios vizinhos, que importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam ( art. 1346º do CC);
- finalmente, a dos direitos fundamentais de personalidade, consagrados, desde logo, no texto constitucional – direito à integridade física e moral e ao livre desenvolvimento da personalidade ( arts. 25º e 26º, nº1) e reiterados naturalmente no CC, ao contemplar, no art. 70º, a tutela geral da personalidade dos indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral – sendo óbvio e inquestionável que o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de vida na sua própria casa se configuram manifestamente como requisitos indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo emanação do referido direito fundamental de personalidade. Daí que, em regra – e sem prejuízo de uma concreta e casuística ponderação judicial, a realizar em função do princípio da proporcionalidade acerca da intensidade e relevância da invocada lesão da personalidade – se imponha a conclusão de que, em caso de conflito, efectivo e relevante, entre o direito de personalidade e o direito ao lazer ou `a exploração económica de indústrias de diversão, se imponha a preservação dos direitos básicos de personalidade, por serem de hierarquia superior à dos segundos, nos termos do art. 335º do CC.”19.
No caso estamos perante um conflito que opõe o aproveitamento económico do direito de propriedade ao direito ao sossego e repouso. Sobre a importância deste direito de personalidade (ao sossego e repouso) pronunciou-se, de forma particularmente impactante, o acórdão do STJ de 18-10-2018, onde se escreveu que “o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de vida se configuram como requisitos indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo emanação do referido direito fundamental de personalidade, facilmente se compreende que, desde há muito, se tenha firmado na jurisprudência deste Supremo Tribunal o entendimento de que a relevância da ofensa do direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade nem sequer é afetada pela circunstância de se mostrar respeitado o que se encontra regulamentado relativamente ao ruído e/ou de a atividade que o provoca se encontrar, ou não, devidamente licenciada, dispensando a ilicitude, nesta perspetiva, a aferição do nível do ruído pelos padrões legalmente estabelecidos.
Ou seja, em termos abstratos, a hierarquização do direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de vida, decorre do facto dos mesmos serem essenciais para a saúde e bem estar das pessoas e da violação destes direitos lesar baluartes da integridade pessoal.”20.
Dúvidas não subsistem, assim, sobre a prevalência de princípio do direito ao repouso e ao sossego sobre o direito de propriedade. Como é evidente, esta posição de princípio não dispensa, nem pode dispensar, a ponderação casuística a realizar em função do princípio da proporcionalidade, tendo em consideração a intensidade e relevância da lesão.
Ora, muito embora o caso dos autos se mostre, pelos seus contornos, inédito, a verdade é que encontramos na jurisprudência situações paralelas de colisão entre direito ao repouso e sossego e outros direitos e/ou liberdades, como seja a liberdade de iniciativa económica.
A título de exemplo, vejam-se os seguintes acs. do STJ, todos disponíveis em www.dgsi.pt:
- no âmbito do processo n.º 773/19.7T8CBR.C1.S1, considerando o direito ao repouso hierarquicamente superior ao direito de exercício de uma atividade comercial e perante a falta de demonstração de que os ruídos poderiam ser minorados com a realização de obras de insonorização, determinou-se a proibição de exercício da atividade comercial entre as 00h00 e às 8:00 da manhã;
- no âmbito do processo n.º 1386/15.8T8PVZ.P1.S1, considerando o direito ao repouso hierarquicamente superior ao direito de exercício de uma atividade comercial, determinou uma limitação de horário de segunda a sábado, das 7h às 21h, encerrando aos domingos e feriados;
- no âmbito do processo n.º 117/13.1TBMLG.G1.S1, considerando o direito ao repouso hierarquicamente superior ao direito de exercício de uma atividade comercial, determinou-se a proibição da “utilização do local como espaço destinado a dança e emissão de música durante o período normal repouso nocturno, ou seja, entre as 22 e as 7 horas , assim se eliminando o incómodo proveniente da audição, no domicílio dos AA., do ruido da música emitida no espaço do estabelecimento e atenuando, pelo horário do respectivo encerramento, o impacto ambiental negativo causado, a altas horas, pela entrada/ saída desordenada e incívica dos respectivos utentes.”;
- no âmbito do processo n.º 19/18.5T8CBC.G1.S1, considerando o direito ao repouso hierarquicamente superior ao direito de exercício de uma atividade comercial, considerou-se que “tendo em conta que não é possível ao autor controlar a redução do funcionamento do equipamento poluente (em termos de ruído) de modo a conter-se dentro dos limites de 50% (caso em que o ruído se manteria dentro dos limites regulamentares), considera-se adequado fazer suspender esse funcionamento em períodos (fixos) que tenham por referência os convencionais períodos de férias escolares”.
Esta abordagem pode e deve ser transposta para uma situação, como a dos autos, em que esteja em causa a colisão entre o aproveitamento económico do direito de propriedade privada e o direito ao repouso e ao sossego.
De facto, não é possível defender, como defendem os recorrentes, que os proprietários, por cederem o gozo de imóveis a terceiros, nada podem e nada devem fazer para acautelar que a utilização do objeto da sua propriedade por outrem se faça em cumprimento das regras de vizinhança aplicáveis ao caso.
Feito este breve enquadramento, cumpre deixar expresso que assiste razão aos recorrentes num ponto, qual seja o de que não é possível responsabilizá-los pelo comportamento de terceiros, até porque os réus não conseguem, nem podem controlar a atuação de outras pessoas. Por outro lado, muito embora seja sabido que a violação de regras vizinhança possa configurar fundamento para a resolução do contrato de arrendamento por justa causa, a verdade é que tal pode depender de uma ação judicial, cujo desfecho não é possível antecipar ou controlar.
Também neste âmbito, não é possível constranger o senhorio a intentar ação de despejo.
Efetivamente, há sempre que zelar definitividade e certeza da composição de interesses realizada na ação e a efetividade da tutela alcançada pelo demandante, o que não sucederá se se condenar os réus tão-só e apenas a não permitir a emissão de ruídos, como ocorre nos autos.
Ora, uma decisão de condenação numa determinada ação ou omissão deve sempre nortear-se pela necessidade de certeza e segurança jurídicas, de forma a garantir que a parte condenada saiba a que conduta está obrigada e que a parte activa nesta relação saiba o que exigir da parte condenada.
Como nos explica LEBRE DE FREITAS, “o acertamento é o ponto de partida da acção executiva, pois a realização coactiva da prestação pressupõe a anterior definição dos elementos (subjectivos e objectivos) da relação jurídica de que ela é objecto. o título executivo contém esse acertamento; daí que se diga que constitui a base da execução, por ele se determinando «o fim e os limites da acção executiva», isto é, o tipo de acção e o seu objecto (…)”21.
Como é evidente, a sentença condenatória não pode ser vaga, nem genérica, devendo zelar pela definitividade e certeza da composição de interesses realizada na ação e a efectividade da tutela alcançada pelo demandante22.
Está, assim, em causa, como se explica no acórdão acabado de mencionar, o princípio da determinabilidade do conteúdo das decisões judiciais condenatórias e as exigências de definitividade na composição do litígio que decorrem, desde logo, do princípio da efetividade da tutela jurídica dos direitos fundamentais.
Resulta, assim, que os réus apenas podem ser condenados na prática de condutas concretas, cujo incumprimento seja possível atestar e cujo cumprimento dependa, em exclusivo, da sua vontade.
Ora, como é evidente, a condenação dos réus a não permitir a emissão de ruídos é indeterminável, não se alcançado quais as condutas em concreto cuja prática se exige. Há, assim, em caso de procedência (ainda que parcial) do pedido, aquilatar das condutas concretas que se impõem aos réus no quadro dos autos.
Dito isto, cumpre recordar que a emissão de ruídos ocorre há já mais de 6 anos, tendo já provocado enormes danos na saúde física e psíquica dos autores e seus filhos.
Como é evidente, os proprietários não podem afirmar que nada podem fazer.
Pelo contrário, os proprietários, no âmbito da relação de arrendamento, podem e devem sensibilizar os arrendatários para a necessidade de fazer cumprir as regras legais atinentes ao ruído e dar-lhes conhecimento de que, caso o incumprimento destas regras continua a verificar-se, podem vir a ser sujeitos a ação de despejo.
Se assim não fosse, estaríamos a tutelar uma situação em que os proprietários – naturalmente interessados na exploração do negócio de arrendamento – descartar-se-iam do eventual uso abusivo por parte dos arrendatários. Neste cenário estaria em causa a tutela efetiva dos direitos de personalidade, o que não é admissível.
Ademais, não é possível desconsiderar as especificas características dos contratos de arrendamento descritos nos autos. Estamos perante contratos de curta duração, em regra a estudantes de Erasmus, sendo evidente que, ainda que os autores demandassem directamente esses mesmos arrendatários, poderiam deparar-se com a substituição desses por outros arrendatários, com uma clara eternização da situação dramática em que já vivem. Como é evidente, os réus não se podem escudar na prática de conduta ilícita por terceiros para afirmar que nada se pode fazer.
Assim, se quem explora uma discoteca deve garantir que o barulho dos clientes não perturba terceiros, também quem arrenda um imóvel deve levar a cabo todas as diligências possíveis para garantir que o barulho causado pelos arrendatários não perturba terceiros.
É verdade que, no cenário dos autos, a atuação dos réus se mostra mais limitada, na medida em que não é possível introduzir as medidas típicas que surgem aplicadas nas situações de colisão entre o direito ao repouso e a liberdade de iniciativa económica (como seja a realização de obras de insonorização ou a limitação de horário de funcionamento). Em todo o caso, os réus, na qualidade de senhorios, devem levar a cabo um conjunto de ações com vista a garantir o cumprimento das regras atinentes ao ruído.
Não se cuida aqui de uma tutela indemnizatória, que não se mostra reclamada nos autos. O que está em causa é, sim, as limitações ao exercício de uma actividade geradora de rendimentos para o seu titular e de danos para terceiros.
Recordemo-nos que os autores formularam o seguinte pedido: “serem os RR. condenados a não emitirem, ou a não permitirem a emissão, a partir do prédio sito na Rua ... - n.º 25, de que são proprietários, de ruídos que perturbem ou afetem significativamente os direitos de personalidade dos AA., como seja o direito ao sono, à tranquilidade e ao descanso, mormente decorrentes de festas e/ou outros eventos ocorridos no período compreendido entre as 22h00 e as 07h00”.
Ora, se é certo que os réus não podem ser condenados nos autos a não emitir ruídos, atenta a prova de que não são eles os causadores de tais ruídos, a verdade é que há margem para impor aos réus um conjunto de práticas dirigidas a evitar a emissão de ruídos pelos seus arrendatários23.
Efectivamente, como se escreve no acórdão recorrido, “Os Réus podem exigir aos arrendatários comportamentos segundo padrões de decoro, criando condições para tal.
Os Réus podem exigir o cumprimento de regras de respeito mútuo nos espaços comuns do espaço locativo, criar um regulamento para a utilização do logradouro e vedar o acesso a este a estranhos ou a um número de pessoas superior a certo limite.
O arrendamento é um contrato intuitu personae. Celebrado em atenção à pessoa do arrendatário.
Os Réus podem aliviar o peso dos utentes na exploração locatícia que desenvolvem.
Os Réus podem, eventualmente, vir a ter de alterar o modelo da actividade que desenvolvem.”.
Ora, no caso sub judice, temos por evidente que não se mostra peticionado nos autos a proibição do exercício do negócio de arrendamento, sendo, a nosso ver, manifesto que tal pedido deve ser expresso E o mesmo não decorre, sequer, por via da interpretação do pedido formulado nos autos. Em todo o caso, no âmbito do segmento “não permitirem a emissão” cabe um conjunto de diligências capazes de atenuar a produção de ruído, o que permite um juízo de procedência parcial do pedido.
Nesta senda, e desde logo, podem os réus ser condenados a:
1 - Afixar no imóvel arrendado um conjunto de regras de utilização do imóvel, proibindo expressamente a produção de ruído (com realização de festas, ajuntamentos ou outros convívios), nem no interior, nem no exterior do edifício, no período compreendido entre as 22:00 e as 7:00;
2 - Manter, permanentemente, as regras de utilização fixadas no imóvel em local visível;
3 - Notificar, pessoalmente, cada um dos arrendatários com indicação de que a produção de ruídos nos períodos mencionados poderá importar a eventual resolução do contrato e a respetiva demanda em ação de despejo;
4 - Em caso de mudança de arrendatários, deve a diligência referida em 3 ser repetida na pessoa dos novos arrendatários, no momento da celebração do contrato;
5 - Comunicar aos autores o cumprimento destas diligências por carta registada com aviso de recepção.
O cumprimento destas injunções é necessário e possível, sendo de salientar que os réus CC e a sua mulher, bem como a ré EE, residem naquele imóvel, o que lhes permite controlar a produção de ruído.
O cumprimento destas injunções deve verificar-se no prazo de 15 dias após o trânsito em julgado da presente decisão.
Caso todas estas diligências se mostrem infrutíferas, podem sempre os autores intentar uma providência com vista à proibição de arrendamento nestas condições – arrendamento temporário a estudantes – pois que, como é consabido, tal tipo de arrendamento é, em regra, gerador de ruído.
Efectivamente, como bem salientou o tribunal da Relação, os réus podem mesmo vir a ser compelidos a alterar o seu modelo de negócio, sendo manifesto que o arrendamento temporário a estudantes é, de acordo com as regras da experiência, gerador de situações como a dos autos.
O que é certo é que a afectação do sossego e direito ao bem-estar dos autores não pode ser uma inevitabilidade.
II. Da condenação dos réus no pagamento da sanção pecuniária compulsória
Os recorrentes disputam, ainda, a quantia fixada a título de sanção pecuniária compulsória, considerando, em suma, que a mesma atenta contra o princípio da razoabilidade e contra o princípio da proporcionalidade.
Vejamos.
Dispõe o art. 829.º-A do CC que “1. Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso. 2. A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar.”.
CALVÃO DA SILVA explica que “a sanção pecuniária compulsória é um meio coercitivo de aplicação geral a toda a espécie de obrigações ou apenas de aplicação restrita a certas e determinadas obrigações. (…) graças à sanção pecuniária compulsória, ao constrangimento que ela exerce sobre a vontade do devedor rebelde, o credor pode alimentar a esperança de obter a originária prestação infungível que lhe é devida (…), sem ter de cingir-se e resignar-se à execução por equivalente”24.
Está, assim, em causa o reforço do direito do credor ao cumprimento e do respeito devido pelas decisões judiciais.
No caso que nos ocupa, está em causa o cumprimento de injunções que se encontram na inteira disponibilidade dos réus, não se vislumbrando quaisquer motivos para o seu incumprimento.
Isto, por um lado.
Por outro, importa garantir que os réus se sintam, verdadeiramente, compelidos a cumprir, sob pena de estar em causa o cumprimento das obrigações a que se fez referência supra.
Como é evidente, na fixação do montante da sanção pecuniária compulsória deve ter por referência os princípios da igualdade e proporcionalidade, não podendo ser fixados montantes excessivos face à condição dos réus e à gravidade da lesão, nem irrisórios que se afigurem um convite ao incumprimento.
Como já fizemos por deixar claro, a lesão dos direitos dos autores é muitíssimo grave. Está em causa o direito ao sossego e ao repouso dos autores que há cerca de 6 anos está a ser posto em causa com a utilização que tem vindo a ser feita do imóvel dos réus.
Além disso, as obrigações impostas aos réus são de cumprimento simples e evidente, não se vislumbrando quaisquer motivos para o seu incumprimento.
Em face dos elementos a que se fez referência, julgamos adequada a fixação de uma sanção pecuniária de € 500,00 por cada dia de incumprimento.
1 - Afixar no imóvel arrendado um conjunto de regras de utilização do imóvel, proibindo expressamente a produção de ruído (com realização de festas, ajuntamentos ou outros convívios), nem no interior, nem no exterior do edifício, no período compreendido entre as 22:00 e as 7:00;
2 - Manter, permanentemente, as regras de utilização fixadas no imóvel em local visível;
3 - Notificar, pessoalmente, cada um dos arrendatários com indicação de que a produção de ruídos nos períodos mencionados poderá importar a eventual resolução do contrato e a respetiva demanda em ação de despejo;
4 - Em caso de mudança de arrendatários, deve a diligência referida em 3 ser repetida na pessoa dos novos arrendatários, no momento da celebração do contrato;
5 - Comunicar aos autores o cumprimento destas diligências por carta registada com aviso de receção.
Devem, ainda, os réus ser condenados ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de € 500,00 por cada dia de atraso no cumprimento das obrigações supra determinadas.
Face ao exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso e, consequentemente,
conceder parcialmente a revista, em função do que se condena os Réus a, no prazo de 15
dias:
1 - Afixar no imóvel arrendado um conjunto de regras de utilização do imóvel, proibindo expressamente a produção de ruído (com realização de festas, ajuntamentos ou outros convívios), nem no interior, nem no exterior do edifício, no período compreendido entre as 22:00 e as 7:00;
2 - Manter, permanentemente, as regras de utilização fixadas no imóvel em local visível;
3 - Notificar, pessoalmente, cada um dos arrendatários com indicação de que a produção de ruídos nos períodos mencionados poderá importar a eventual resolução do contrato e a respetiva demanda em ação de despejo;
4 - Em caso de mudança de arrendatários, deve a diligência referida em 3 ser repetida na pessoa dos novos arrendatários, no momento da celebração do contrato;
5 - Comunicar aos autores o cumprimento destas diligências por carta registada com aviso de receção.
Mais se condena os Réus no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de € 500,00 por cada dia de atraso no cumprimento das obrigações supra determinadas.
Custas da revista por ambas as partes, sendo 4/5 para os Réus e 1/5 para os Autores.
Lisboa, 30.01.2025
Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)
Ana Paula Lobo (Juíza Conselheira 1º adjunto)
Orlando dos Santos Nascimento (Juiz Conselheiro 2º Adjunto)
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1. Alegam os autores que são, pelo menos desde 2016, legítimos proprietários e possuidores do imóvel sito na Rua ..., nºs 19 e 21, ..., que é composto por uma habitação unifamiliar, com rés-do-chão, primeiro e segundo andar e logradouro. Nele habitam, quotidianamente, os autores e os seus dois filhos menores, com idades de 15 e 12 anos. Sucede, todavia, que, desde o momento em que os autores passaram a habitar o imóvel de que são legítimos proprietários e possuidores (pelo menos há 6 anos), que são vários, sucessivos e reiterados os graves constrangimentos e condicionamentos que sofrem ao uso e fruição do mesmo. Com efeito, afrontosos e problemáticos ruídos e perturbações sonoras são constantemente promanadas do edifício vizinho, sito na Rua ..., nº 25, que é propriedade dos réus. Neste edifício vizinho (afastado apenas 5 metros do prédio dos autores), que é constituído por uma casa de habitação com cave, rés-do-chão, primeiro e segundo andar, garagem, pátio e quintal, funciona, ao que tudo indica, uma unidade ilegal de alojamento local (conhecido como R........), que alberga, no mínimo, em cada ano lectivo, 25 estudantes do Programa Erasmus. Em consequência dos diversos distúrbios provocados pelos vários grupos de estudantes que por este prédio vão passando, sobretudo ao nível do ruído com a frequente realização de convívios, festas e outras actividades no exterior e interior da habitação, os autores já apresentaram diversas denúncias junto da Polícia de Segurança Pública, que frequentemente se vê obrigada a intervir no sentido de pôr termo às actividades exacerbadas e excessivamente ruidosas que são levadas a efeito - um verdadeiro «inferno acústico», com música desconsoladamente alta e pontuado por gritos estridentes, gargalhadas exacerbadas, palavrões generalizados nos mais diversos idiomas, garrafas a partirem-se, motivado que é pelas alegrias decorrentes do consumo sistemático de álcool (como aliás se comprova pelo conteúdo dos contentores de lixo que servem a zona). Todavia, se é certo que, em alguns casos, a actividade ruidosa apenas se volta a verificar passados escassos dias, outros há, até mais frequentemente, em que, imediatamente após as autoridades policiais se ausentarem, há um imediato regresso daquela actividade ruidosa, que se prolonga “noite dentro” e cerceia os autores e os seus filhos menores da mais ínfima esperança de descanso, tranquilidade ou até mesmo de reserva e protecção da intimidade da vida familiar - o que sempre viola o direito de propriedade dos autores e lhes abre, em consequência, a possibilidade de recorrerem ao direito de oposição consagrado no artº 1346º do CC. Ademais, e uma vez que, de facto e na realidade, se trata de alunos do ensino superior, mais propriamente alunos estrangeiros acolhidos ao abrigo do programa Erasmus, foi dado conhecimento desta situação à Universidade de ..., a qual logrou reportar a situação às entidades competentes na matéria. O tipo de uso que é dado ao dito prédio rompe, com estrondo e de rompante, a calmaria típica desta rua (pelo menos na parte onde se encontra implantado o prédio dos autores), reservada que é, como se disse, à habitação permanente (e civilizada). Há uma violação ostensiva do Regulamento Geral do Ruído, designadamente quanto ao cumprimento dos valores limites de exposição previstos no seu artº 11º. A vida familiar dos autores e dos seus filhos menores tem sido séria e veemente afectada, já que se têm visto privados de toda a tranquilidade, serenidade e reserva de intimidade que por tanto lutaram e esperavam alcançar com a aquisição do seu imóvel, que constitui a sua casa de morada de família. Tanto assim é que a autora, que é ..., se encontra proibida, desde ... de 2018, por indicação médica em consequência da apresentação de um quadro clínico de enxaqueca violenta crónica - que, bem se entenda, tudo deve à falta de descanso provocada pelas sobreditas perturbações e, bem assim, ao stress que toda a situação provoca -, de prestar serviço nocturno, o que não só comporta a possibilidade de uma desvalorização profissional, como comporta uma significativa redução dos rendimentos que costumava auferir e que iria continuar a auferir, não fosse dar-se a situação em causa nos autos - cerca de 1000 € mensais. O autor AA, que é ... e que, no âmbito dessa actividade, prepara e leva a efeito revisões projectistas de grandes infraestruturas e onde, naturalmente, um erro poderá ser pago com o preço mais alto: a vida - o estado acentuado de nervosismo em que este autor se encontra e que é motivado pelo clima de falta de descanso e repouso a que é totalmente alheio, aumenta, de modo exponencial, a possibilidade de erro humano e, por consequência, de catástrofe. Isto, sem esquecer as perturbações causadas aos filhos menores dos autores, que têm sido também privados de um normal desenvolvimento da personalidade e do seu bem-estar, que não só não conseguem descansar e repousar como padecem de problemas ao nível de concentração, o que os cerceia do normal decurso dos seus planos académicos e que motiva frequentes (e compreensíveis) queixas aos autores, seus pais. Em consequência de todas estas perturbações, os filhos menores dos autores não podem convidar amigos a frequentar a sua casa e, muito em particular, a nela pernoitarem, uma vez que o descanso, como já se disse, é materialmente impossível - a música aos “altos berros” e desconsoladamente alta afasta qualquer esperança de sossego e tranquilidade. Como resulta dos autos de participação e demais relatórios, as festas/eventos prolongam-se, pelo menos, até às 2 horas, tendo mesmo uma delas decorrido até às 7 horas. São graves e várias as perpetuações a que têm sido sujeitos os autores e os seus dois filhos menores e que afrontam, directa e inusitadamente, os seus direitos de personalidade corporizados no direito ao sono, à tranquilidade, ao descanso, à saúde ou, ainda, à habitação, não permitindo a sua vida familiar quotidiana e, muito particularmente, o normal desenvolvimento e aproveitamento da juventude e infância dos filhos dos autores. Requerem os autores que sejam impostas aos réus as injunções tidas por pertinentes, tais como a proibição de serem realizadas festas, convívios e outros eventos ruidosos no período nocturno compreendido entre as 22 horas e as 7 horas, de forma a que possam voltar a ter o mínimo de normalidade no seu quotidiano familiar, com o descanso, repouso, sono, tranquilidade e reserva que deve ser garantido a todas as famílias.
2. Ac. do STJ, de 09-03-2022 (proc. n.º 1600/17.5T8PTM.E1.S1), disponível em www.dgsi.pt. Neste sentido, vejam-se, inter alia, os acórdãos do STJ, de 23-03-2021 (proc. n.º 618/17.2T8ETR.P1.S1), de 12-01-2021 (proc. n.º 379/13.4TBGMR-B.G1.S1) e de 16-11-2021 (proc. n.º 5097/05.4TVLSB.L2.S3), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
3. Neste sentido, vejam-se, entre outros, o acórdão proferido, em 11-02-2015, no âmbito do processo n.º 1099/11.0TBCHV.P1.S1, não publicado; e ainda, LEBRE DE FREITAS, MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, 2.º Vol., Coimbra Editora, 2.ª edição, pp. 704 e ss..
4. Acórdão de 07-09-2020, proc. n.º 2774/17.0T8STR.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt. Neste sentido, pronunciaram-se, ainda, os acórdãos de 13-12-2022 (proc. n.º 608/19.0T8CTB.CL.S1 – não publicado nas bases de dados disponíveis), de 02-06-2021? (proc. n.º 786/15.8T8FAF.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt), de 08-09-2021 (proc. n.º 135/20.3T8CBA-A.E1.S1, não publicado nas bases de dados disponíveis).
5. Proc. n.º 731/22.4T8VRL-A.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
6. A relação jurídica é definida por Mota Pinto como “a relação da vida social disciplinada pelo Direito, mediante atribuição a uma pessoa de um direito subjetivo e a imposição a outra pessoa de um dever jurídico ou de uma sujeição” - Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3.ª edição actualizada, p. 167.
7. Manual de Processo Civil, Volume I, AAFDL, pp. 344 e ss.
8. “Da Legitimidade no acto jurídico”, in BMJ, nº 10, pág. 38 e ss.
9. Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2024, 2.ª edição, p. 324.
10. O Processo Especial De Tutela Da Personalidade, Coimbra, 2014, disponível em https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/28588.
12. No CPC revogado correspondia ao processo especial de tutela da personalidade, do nome e da correspondência confidencial, previsto nos arts. 1474.º e 1475.º.
13. Código Civil Comentado, I, Parte Geral, Almedina, 2020, p. 289.
16. GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, in Ob. Cit. p. 801.
17. Direito Civil – Reais, Coimbra Editora, 1993, 5.ª edição revista e actualizada, p. 249.
18. Curso de Direitos Reais, Principia, p. 89.
19. Proc. n.º 1715/03.7TBEPS.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt – destaques nossos.
20. Poc. n.º 3499/11.6TJVNF.G1.S2, disponível em www.dgsi.pt.
21. A Acção Executiva, Depois da Reforma, Coimbra Editora, 4.ª edição, pp. 35 e ss.
22. Acórdão do STJ de 7.4.2011, proc. nº 419/06.3 TCFUN-L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
23. Consideramos que a imposição de condutas concretas mais não é do que uma concretização da pretensão jurídica formulada nos autos, não configurando uma alteração do objecto do processo. Sobre este tema, veja-se Lopes do Rego, O Princípio Dispositivo e os Poderes de Convolação do Juiz no Momento da Sentença, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, 1º volume, Coimbra Editora p. 781-810.
24. Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Coimbra, 1997, pp. 449-451.