I – Embora os AA. tenham de dormir com as entradas de ruído fechadas no seu quarto, para não serem incomodados, não lograram provar estar impedidos de dormir nem de desenvolver as suas atividades diárias em consequência do ruído proveniente da chaminé da requerida. Não pressupondo o direito ao sossego, o silêncio completo, pois o ruído é algo de inerente à civilização moderna, não se pode considerar que ocorre violação do direito ao sossego.
II – A circunstância dos apelantes não terem logrado provar determinados factos que alegaram, não constitui litigância de má fé. A litigância de má-fé não deve ser confundida com prova frágil ou dificuldade de se fazer prova.
(Sumário elaborado pela Relatora)
I - Relatório
AA e BB intentaram ação especial de tutela de personalidade contra A..., Lda.
Alegaram, em síntese, que são proprietários de um imóvel que confronta com uma instalação pertencente à requerida; que a mesma produz ruído e nuvens de poeira que prejudicam o bem estar, descanso e saúde dos requerentes durante todo o dia e toda a noite; que já apresentaram diversas queixas, mas o problema não foi resolvido.
A final, peticionaram os requerentes por forma a assegurar a tutela dos direitos à saúde, à integridade física e psicológica, ao bem estar, ao descanso, a um sono tranquilo, a um ambiente sadio e equilibrado, à habitação condigna, bem como ao pleno exercício do seu direito de propriedade, a condenação da requerida a abster-se de desenvolver qualquer atividade industrial nomeadamente a não licenciada atividade de transformação de artefactos em betão, pedra e outros, no espaço utilizado pela requerida, um deles edificado de modo ilegal, identificado na petição inicial, com todas as demais consequências, ou pelo menos, a limitar a atividade de produção ou extração de itens de pedra pela requerida aos dias úteis das 8.30 horas às 17.30 horas, ou se assim não se entender, pelo menos restringindo a sua atividade ao horário previsto no Regulamento Geral do Ruído - cessação por completo aos sábados, domingos e feriados e nos dias úteis entre as 20 e as 8 horas – cfr. alínea a) do artigo 14.º do RGR; a abster-se por completo de produzir ruído e poeiras fora das horas anteriormente descritas, bem como aos fins de semana e feriados, bem como a mitigar os efeitos nos dias e horários ali não compreendidos, dotando a indústria de supressores de poeiras e análogos; e que seja imposto à requerida que as maquinarias sejam utilizadas apenas no interior do pavilhão identificado e seja proibida de utilizar na sua atividade de transformação de artefactos em pedra, vibradores de mesa e/ou vibrador de agulha ou outra maquinaria suscetível de produzir ruído.
Peticionaram ainda a condenação da requerida, a título de sanção pecuniária compulsória, a pagar aos requerentes a quantia de 1.000,00€ diários desde a citação, e a pagar-lhes, a título de indemnização, a quantia de 60.000,00€.
Citada, a ré apresentou contestação, na qual, impugnou o alegado pelos requerentes no seu requerimento inicial, negando a produção de poeiras e de ruído audível pelos requerentes na sua habitação, atendendo à distância entre a fábrica e a habitação destes e invocou o licenciamento das suas instalações e atividade. Por fim, pugnou pela improcedência do pedido, invocando a sua desproporcionalidade e inadequação, pugnou pela inadmissibilidade do pedido indemnizatório atendendo à forma de processo utilizada e peticionou a condenação dos requerentes em litigância de má fé por terem invocado factos que sabiam não ser verdade.
Foi realizada inspeção judicial ao local da residência dos requerentes e ao estabelecimento fabril da requerida e após a realização da audiência final foi proferida sentença que absolveu a requerida da instância relativamente ao pedido de indemnizatório formulado na alínea f. do requerimento inicial, por inadmissibilidade de cumulação de pedidos; foi fixado o valor da causa, foi julgado improcedente a ação e os requerentes condenados como litigantes de má fé na multa de duas Ucs e na indemnização a pagar à requerida, no valor de 200,00 euros.
Os requerentes não se conformaram e interpuseram o presente recurso de apelação, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
(…).
A parte contrária não contra-alegou.
II - Objeto do recurso
Tendo em consideração que as conclusões da apelação delimitam o objeto da apelação, as questões a conhecer são as seguintes:
. se os factos constantes das alíneas l) e m) dos factos não provados devem ser dados como provados;
. se deve ser aditada aos factos provados a seguinte matéria: A Recorrida, na atividade desenvolvida, age e continua a agir de forma ilícita, levada a cabo com desrespeito pelos direitos alheios e pelas normas que regem a vida em sociedade, em consequência do ruido que emite 24 horas.
. se, em consequência da alteração, deve considerar-se que se mostra violado o direito ao descanso dos apelantes e, em consequência, reduzir-se o horário de laboração da requerida; e ,
. se a decisão que condenou os apelantes como litigantes de má fé deve ser revogada.
III – Fundamentação
Na primeira instância foram julgados provados e não provados os seguintes factos:
Factos Provados:
1. Os requerentes são proprietários e legítimos possuidores de um imóvel sito na Freguesia ..., Rua ..., ... ..., ... ..., descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...06 e da matriz ...15 e ali inscrito a seu favor.
2. Os requerentes adquiriram o imóvel a 04.03.2022.
3. O imóvel é constituído por uma habitação unifamiliar na qual os requerentes habitam.
4. Os requerentes vivem, trabalham, confecionam e tomam as suas refeições, convivem, descansam, dormem, recebem amigos e familiares no imóvel indicado em 1..
5. As instalações da requerida distam cerca de 650 metros, em linha reta, da moradia dos requerentes.
6. A requerida usa o espaço que detém para moer pedra calcária, para transformar em calcário filler, fazendo recurso, no exterior, de pá carregadora e camiões para fornecimento de materiais para a construção civil.
7. Através do processo n.º 01/20..., a requerida solicitou junto da Câmara Municipal ... o licenciamento de obras de legalização de “licenciamento de cobertura”.
8. As nuvens de poeira são provocadas pelas deslocações de veículos pesados de carga e descarga de materiais.
9. A requerida labora 24 horas por dia, 6 dias por semana e alguns feriados.
10. A laboração da fábrica da requerida produz ruído.
11. Os camiões e pá carregadora emitem um sinal sonoro de aviso durante as manobras, sendo que durante o período noturno o aviso sonoro “bip” da pá-carregadora é automaticamente substituído por um sinal luminoso.
12. Em virtude do ruído audível de sua casa, BB fica ansioso e irritado.
13. Por duas vezes, AA. Interrompeu reuniões profissionais em virtude do ruído sentido.
14. BB é acompanhado psicologicamente.
15. Os requerentes tiveram reuniões com funcionários da Câmara Municipal ... (CM...) e da Junta de Freguesia referentes ao ruído.
16. A 09.08.2023, a CM... efetuou vistoria às instalações da requerida, dentro do horário laboral.
17. Os requerentes participaram a situação à Agência Portuguesa do Ambiente e à IGAMAOT.
18. Os requerentes pediram à requerida para que esta cessasse o barulho.
19. A requerida instalou um silenciador na chaminé.
20. O calcário filler é um grão com uma dimensão de 100 microns, ou seja, assume a natureza de pó de pedra calcária.
21. A pedra calcária de 0 a 4mm, e que constitui a matéria prima, é transportado por camião até às instalações da requerida para aí ser moída em filler.
22. Seguidamente é carregado, por uma pá carregadora que a requerida dispõe nas suas instalações, para o alimentador do moinho.
23. O moinho mói o agregado fino até o transformar em pó (filler).
24. No mesmo circuito interno, o filler é separado, mediante um filtro, do ar.
25. Apenas o ar é expelido pela chaminé.
26. O filler é armazenado em big bags ou diretamente carregado nas cisternas, para transporte.
27. Inexiste necessidade de emprego de máscaras de proteção individual nas instalações da requerida.
28. A cabine de produção da requerida encontra-se isolada por camadas de lã de rocha colocadas em escamas.
29. O barulho audível a partir do exterior das instalações da requerida provém da dita chaminé, na qual se encontra o extrator de ar.
30. O ruído emitido pelo extrator é constante, sempre com a mesma intensidade, porquanto o seu funcionamento e velocidade faz-se sempre à mesma rotação.
31. A requerida não consegue interferir na velocidade do extrator e, por conseguinte, na intensidade do barulho que este emite.
32. A alteração da velocidade ou direção dos ventos provoca uma alteração da intensidade do ruído, geradora de uma aparente e incorreta, perceção de que o funcionamento do extrator da chaminé não é constante.
33. A requerida adquiriu na data de 23.11.2022 à empresa B..., Lda. um insonorizador.
34. A 28.04.2023, a requerida adquiriu uma nova chaminé.
35. A 31.08.2023, a requerida adquiriu à empresa C..., Lda., um atenuador de ruído cilíndrico.
36. A Câmara Municipal ... adjudicou a realização de medições ao ruído ambiente, que tiveram lugar nos dias 3 e 4 de março de 2023 e decorreram durante o período diurno, entardecer e noturno em dias de laboração contínua, que concluiu que “as medições efetuadas verifica-se o cumprimento dos valores limites estabelecidos no DL 9/2007”.
37. A vegetação em redor da casa dos requerentes e das instalações da requerida encontra-se verde e sem vestígios de pó.
38. Os valores obtidos no ensaio acústico realizado em 3 e 4 de março de 2023 foram inferiores ou iguais a 45 dB(A) para medições no exterior, não sendo aplicável o critério de incomodidade.
39. Do ensaio acústico resultou uma medição de 48dB(A) expresso pelo parâmetro Lden, e 41dB(A) expresso pelo parâmetro Ln.
40. Em data não concretamente apurada, mas pelo menos desde 2000, existe a fábrica referida em 5..
Factos não provados
Da prova produzida não resultou comprovado que:
a) A requerida é proprietária de um terreno confrontante a norte e a poente com a propriedade dos requerentes.
b) A requerida utiliza o seu espaço para extrair britar pedra, calcites e fillers.
c) A atividade e instalações da requerida não estão licenciadas.
d) A laboração da fábrica da requerida provoca trepidações.
e) A requerida utiliza betoneiras na sua laboração.
f) A laboração da requerida provoca nuvens de poeiras nas zonas envolventes que atingem diretamente a residência dos requerentes.
g) A requerida produz resíduos industriais de poeira.
h) A requerida labora 7 dias por semana e utiliza betoneiras ou vibradores de pedra que ocasionam eco.
i) Pela emissão de poeiras, os requerentes são impedidos de abrir as janelas da sua casa e de utilizar o exterior da sua casa para estender a roupa ao ar livre.
j) Pela emissão de poeiras, os requerentes são impedidos de estacionar os seus veículos ao ar livre, pois sempre que os mesmos lá são deixados por períodos de 2 ou 3 dias neles se deposita uma camada de pó de cimento e de areia.
k) Os resíduos industriais decorrentes da atividade da requerida são despejados na rede de águas pluviais.
l) O ruído impede os requerentes de estudar, descansar, realizar tarefas domésticas e profissionais.
m) Os requerentes não conseguem dormir.
n) Aquando da vistoria, a requerida foi avisada da presença da medição do ruído, tendo propositadamente reduzido o mesmo.
Da impugnação da matéria de facto – alíneas l) e m) dos factos não provados
A Relação pode alterar a matéria de facto se a prova produzida impuser decisão diversa (artº 662º, nº 1 do CPC).
Entendem os apelantes que ocorreu erro de julgamento, devendo ser dados como provados, os factos dados como não provados nas alíneas l) e m).
Nas referidas alíneas foram dados como não provados os seguintes factos:
l) O ruído impede os requerentes de estudar, descansar, realizar tarefas domésticas e profissionais.
m) Os requerentes não conseguem dormir.
Os apelantes insurgem-se quanto à avaliação da prova efetuada na sentença recorrida. Em seu entender, o tribunal atendeu apenas às testemunhas CC e DD, arroladas pela recorrida e desconsiderou as testemunhas arroladas pelos requerentes, assim como os seus próprios depoimentos e conferiu demasiado crédito à testemunha EE, trabalhadora da apelada.
Fundamentam-se no depoimento da testemunha FF e GG, nas suas próprias declarações e nos vídeos juntos aos autos onde se encontra efetuada a gravação do ruído que é produzido pela fábrica da recorrida.
Insistem os apelantes que o ruído é audível na sua habitação, impedindo o seu descanso e as atividades que realizam, tanto que ao longo dos meses têm apresentado diversas queixas à GNR e junto de entidades públicas. O resultado da inspeção judicial não pode ser valorado como foi pelo tribunal a quo, porquanto a inspeção não teve lugar de surpresa, pelo que não foi possível ao tribunal apurar a real situação de laboração da fábrica.
A apelada não contra-alegou, pelo que não indicou quais os segmentos dos depoimentos prestados pelas demais testemunhas em que o tribunal se fundamentou que põem em causa os depoimentos em que que os apelantes se fundamentam.
Apreciando:
Uma vez que a sentença recorrida, como se impõe, efetuou uma apreciação crítica da prova produzida, resultando a convicção da concatenação entre toda a prova produzida na audiência de discussão e julgamento e da demais prova junta aos autos, expondo a fundamentação ao longo de cerca de 8 páginas, e alegando os apelantes que a sentença recorrida conferiu credibilidade às testemunhas da apelada, desconsiderando os depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pelos requerentes e as suas próprias declarações, a Relação, recorrendo aos seus poderes oficiosos (artº 640º, nº 2, alínea b) do CPC), procedeu à audição de toda a prova produzida nas sessões da audiência final, pois só deste modo se poderá apreciar se ocorreu um erro de julgamento.
Prestou depoimento de parte a sócia-gerente da requerida, HH que confessou alguns factos que foram exarados em ata (em obediência ao disposto no artigo 463º, nº 1 do CPC) e prestaram declarações os dois requerentes, AA e BB.
Prestaram, ainda, depoimento as seguintes testemunhas:
.Arroladas pelos requerentes - II (presidente da Junta de Freguesia ..., onde se situa a unidade fabril da requerida) a quem os requerentes se queixaram do barulho e do pó provenientes da fábrica; JJ, chefe da Divisão de Ambiente da Câmara Municipal ..., município onde se situa a fábrica, a quem os requerentes dirigiram vários e-mails queixando-se do barulho e do pó, KK, morador em ..., mas a uma distância da fábrica superior à dos requerentes ( a cerca de 900 m, enquanto a morada destes se situa a cerca de 650 m), que redigiu uma queixa em 2019, queixando-se maioritariamente do pó, queixando-se, também, atualmente do ruído; LL que reside perto dos requerentes (entre a sua casa e a dos requerentes há apenas uma casa de permeio), mas a uma cota mais baixa e com uma cortina arbórea à sua frente, que também dirigiu um e-mail à Câmara Municipal ... queixando-se do ruído, acompanhada de um vídeo e que tem auxiliado os requerentes nas diligências que têm feito para solucionar o ruído de que se queixam, devido à dificuldade destes em se expressarem em português, FF que reside junto dos requerentes, autor de queixas junto da GNR, denunciando o ruído proveniente da unidade fabril da requerida, MM, vizinha dos requerentes e que se queixou essencialmente do pó proveniente das instalações da requerida (a testemunha referiu ter alguns problemas de audição); e,
. arroladas pelos requeridos, CC que reside perto da fábrica, situando-se a sua residência à mesma cota da fábrica, DD cuja residência se situa a cerca de100 metros da dos requerentes, mas a uma cota mais baixa, NN que reside no ... e é funcionário da Câmara Municipal, tendo participado numa vistoria às instalações da requerida e OO, trabalhadora da requerida, tendo também prestado durante vários anos trabalho para a sociedade antecessora da requerida, a D..., Lda., que pertencia a um dos sócios fundadores da requerida, o Sr. PP, surgindo a requerida na sequência da partilha do património dos três irmãos que detinham a D....
Prestou igualmente depoimento, por determinação da Mma Juíza a quo, QQ, técnico superior na Divisão de Ambiente da Câmara Municipal ... que efetuou uma visita a casa dos requerentes, na sequência das queixas que apresentaram.
Foi ainda ouvido GG, cuja presença em tribunal tinha sido solicitada pela requerida, autor do ensaio acústico, elaborado a pedido da Câmara Municipal ..., nos dias 3 e 4 de março de 2023, na sequência das queixas de ruído apresentadas pelos requerentes, a que se seguiram outras, ensaio que foi junto pela Câmara Municipal, em 11.06.2024, por determinação do tribunal.
Nos presentes autos o tribunal procedeu a inspeção judicial tanto à habitação dos requerentes, como às instalações fabris, no dia 6 de junho de 2024, tendo sido exarado em ata, em obediência ao disposto no artigoº 493º do CPC, o resultado da inspeção.
O que está em causa no presente recurso é apenas o ruído proveniente do funcionamento de um equipamento mecânico – extrator - situado na estrutura da fábrica – chaminé - (os apelantes tinham alegado a emissão de poeiras, trepidações e ecos, mas conformaram-se com a decisão que não deu tais factos como provados) que foi caraterizado como um sopro ou ruído distante proveniente de tráfego rodoviário (GG) e como um zumbido no ouvido causado por inseto ( declarante BB).
Como se referiu já, na sequência dos vários e-mails dirigidos à Câmara Municipal ..., esta entidade entendeu ser de requerer um estudo acústico, tendo sido elaborado pela testemunha GG um relatório (de ensaio acústico), na sequência das medições que registou em 3 e 4 de maio de 2023.
Neste estudo foram efetuadas medições do ruído, em diversas frequências e em diversos horários distribuídos por três períodos diurno-laboral (entre as 13 h e 18 e as 16 h e 04) , entardecer (das 21 e 15mn às 22 h e 45 mn) e noturno-laboral (das 23 h às 00h e 16) com diversas medições efetuadas durante esses períodos, com duração cada de cerca de 15 mn.
As medições foram efetuadas em condições normais de funcionamento, não tendo as partes sido informadas da realização do ensaio, tendo o equipamento de medição sido instalado num local que o engenheiro responsável entendeu reunir condições de receção similares à existente no exterior da residência dos requerentes.
É referido no ensaio que durante a sua realização foram audíveis ruídos de tráfego rodoviário ocasional durante o período diurno, pouco significativo e nos demais dois períodos, ruído de tráfego esporádico, também pouco significativo, tendo também em qualquer dos períodos sido ouvidos ruídos de animais afastados, designadamente de cães e pássaros.
O técnico autor do estudo, GG, explicou quem requereu o estudo, em que condições o efetuou, as conclusões do mesmo, tendo também explicado os quadros que acompanham o relatório.
Esta testemunha explicou também que no exterior, no local onde estava a realizar o estudo, tanto durante o dia, como durante a noite, era audível o ruído proveniente do funcionamento do equipamento extrator da requerida, equivalente a um ruído proveniente de um tráfego rodoviário afastado. Em resposta às questões que lhe foram colocadas pela Mma. Juíza a quo, para comparar o barulho emitido pela requerida com o produzido por um aparelho de ar condicionado, esclareceu que o nível do ruído proveniente do funcionamento do ar condicionado instalado na sala de audiência, era superior ao produzido pelo equipamento em questão, mas este é superior, em determinados momentos, ao que é produzido pelos mais recentes aparelhos de ar condicionado, que produzem menos de 44 decibéis, uma vez que foi registado numa das diversas medições efetuadas, o valor de 44,9 decibéis.
A testemunha referiu ainda que à noite, em virtude da redução do tráfego rodoviário e de outras atividades, a perceção do ruído é maior, ainda que ele se mantenha na mesma frequência que apresenta durante o horário diurno. Devido à ausência de ruído, o barulho do equipamento a trabalhar torna-se mais audível. Se a medição tivesse sido efetuada dentro da habitação dos requerentes, o volume de decibéis seria necessariamente inferior ao registado no exterior, ainda que a moradia estivesse mal isolada em termos acústicos, fixando-se, no máximo dos máximos (a testemunha utilizou a expressão “na loucura”), em vinte e poucos decibéis, sendo que, com as portas e as janelas fechadas, muito dificilmente o ruído seria audível, embora não excluindo totalmente essa possibilidade. As pessoas que residem mais próximo de vias de tráfego, ouvem menos o ruído como o que está em causa nestes autos, ou nem os ouvem mesmo. Assim, as pessoas que estão mais perto destas vias, podem até residir mais perto do centro emissor do ruído e, no entanto, aperceberem-se menos do mesmo. Outros fatores influenciam na transmissão do som, como a existência ou não de uma parede arbórea e a diferença de cotas entre o emissor e o recetor. A testemunha também explicou que apesar de existir vegetação perto da casa dos requerentes, esta situa-se a um nível mais alto, pelo que o efeito de barreira que a vegetação poderia fazer, não existe no caso, sendo plúrimos os fatores que podem influenciar a receção do som (designadamente a direção do vento).
A testemunha referiu ainda que a perceção do ruído não é linear, dependendo ainda da sensibilidade dos recetores. Um ruído com 20 e poucos decibéis pode ser ouvido por uma pessoa deitada e é irritante, se tudo estiver em silêncio. O silêncio absoluto situa-se nos 17/18 decibéis. Se a pessoa residir numa zona de maior silêncio (de ausência de ruído) tem mais facilidade em se aperceber dos sons.
Por sua vez, ouvidas as declarações prestadas pelos apelantes, ambos foram assertivos na declaração de que o barulho é mais audível e incomodativo à noite, impossibilitando de abrir a janela, sendo sentido mesmo com as janelas fechadas. É um barulho constante, parecendo umas vezes mais alto, outras vezes mais baixo. Ambos referiram que, mesmo com as janelas fechadas, para dormirem, para não ouvirem o ruído têm de abrir a ventoinha para este som abafar o outro. O requerente BB referiu ainda que para conseguir dormir pode também recorrer a uma música calma, como o barulho do oceano, para neutralizar o ruído proveniente da fábrica.
Ambos os requerentes foram unânimes em afirmar que o que os transtorna mais é o facto do barulho nunca parar, referindo o requerente BB que a sua saúde física e mental está a sofrer com esta situação, tendo inclusive procurado a ajuda de um psicólogo para o ajudar a lidar com a irritabilidade e a raiva que sente porque, apesar de todos os seus esforços, não conseguem resolver a situação.
As testemunhas FF e KK que residem perto da residência dos requerentes, embora a residência da testemunha KK esteja mais distante da fábrica – a cerca de 900 m - igualmente declararam que o ruído perturba o seu descanso noturno, assim como dos seus filhos, sendo audível dentro de casa, ainda que com as janelas fechadas. Também a testemunha LL igualmente referiu que o ruído proveniente da fábrica é audível e incomodativo dentro da residência dos requerentes, ainda que as janelas e portas se encontrem fechadas. Esta testemunha tem auxiliado os requerentes nas diligências que têm efetuado para pôr fim ao ruído que alegam sentir, porque estes, por serem norte-americanos, têm dificuldade em expressar-se em português, o que dificulta os seus contactos com as autoridades, designadamente com a GNR (entidade à qual apresentaram queixas do barulho, tendo da primeira vez não sido atendidos por não se terem expressado em português), tem casa junto da casa dos requerentes, com uma casa de permeio. No entanto, esta testemunha que igualmente apresentou queixa junto da Câmara Municipal ..., assumindo ser um jovem interessado nas questões que envolvem os munícipes, igualmente declarou que na sua residência, mesmo com as janelas fechadas, ouve o ruído proveniente da fábrica, mas que tal ruído não impede o seu sossego. Apresentou com explicação o facto da sua casa se situar a uma cota mais baixa, além de ter um eucaliptal em frente, o que funciona como barreira sonora.
Foi também passado por mais de uma vez o registo áudio do som imputado ao funcionamento do equipamento da requerida e as testemunhas confrontadas com o mesmo, não se tendo conseguido apurar em que local o mesmo foi registado.
A Relação, apesar das restrições que tem por não ter ido ao local da inspeção e por apenas proceder à audição dos depoimentos e declarações, não tendo a imediação, deve fazer uma apreciação crítica da prova e criar a sua própria convicção.
Como se referiu já, procedeu-se à audição de toda a prova produzida em julgamento, à leitura do auto de inspeção, e de toda a documentação junta aos autos, e-mails e queixas, à leitura dos auto de vistoria e do ensaio acústico realizado entre 3 e 4 de março de 2023. Foram juntas aos autos as queixas por ruído junto da GNR com data de 11.01.2023, 30.01.2023 (queixa anónima), 3.02.2023 e 22.08.2023 (em que foi denunciante a testemunha FF). Foram também juntas as queixas do ruído e do pó provenientes das instalações da apelada, efetuadas pelos requerentes por e-mail, dirigidas, designadamente, à Câmara Municipal ..., à Junta de Freguesia ..., à testemunha JJ, chefe de Divisão de Ambiente da Câmara Municipal ... e à requerida, em 18.03.2023, 14.05.2023, 03.06.2023, 26.07.2023, 04.10.2023, 06.01.2024, 26.03.2024, 03.05.2024. Foi ainda junto um e-mail subscrito pela testemunha LL, anexando um vídeo alegadamente gravado às 22 h e 47 mn (e-mails juntos aos autos por requerimento dos apelantes de 03.05.2024).
Com o referido e-mail de 04.10.2023 foram juntos três ficheiros, denominados petição e respostas, fotografias das poeiras e informação subscrita por uma médica com o diagnóstico de problemas de saúde mental gerados pela exposição constante ao ruído (anexos estes que não foram juntos aos autos).
O tribunal, como resulta da decisão recorrida, considerou que as testemunhas FF, KK, LL e MM, enquanto também queixosos do ruído proveniente da fábrica, tinham interesse na decisão dos autos ( e como tal entendeu que os seus depoimentos quanto à incomodidade do ruído não eram isentos), contra o que se insurgem os apelantes. Efetivamente a existência de interesse no desfecho da causa por parte de uma testemunha, não impõe de imediato a sua descredibilização, mas importa um especial cuidado na valoração do mesmo, tal como acontece com as declarações e depoimentos prestados pelas partes. O tribunal poderá fundamentar-se nas declarações de parte, como na prova testemunhal produzida por testemunhas com interesse na sorte do processo, desde que as declarações/depoimentos alcancem o standard de prova exigível, para que um facto possa ser considerado provado pelo tribunal, tendo presente que para que o Tribunal possa dar como provado um determinado facto não tem que se convencer da certeza absoluta da sua verificação, mas tem de se convencer com alguma segurança, tem de ocorrer pelo menos um alto grau de probabilidade suficiente de que determinados factos ocorreram ou não ocorreram. Se a prova em juízo tivesse que ser absoluta, na maior parte das coisas, porque tal não é conseguido, a atividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante denegação de justiça, o que significa que a justiça apenas exige um grau de probabilidade bastante ou suficiente, face às circunstâncias do caso, às regras da experiência da vida e aos ensinamentos da ciência.
Mas também os depoimentos prestados pelas testemunhas CC, DD e OO, arroladas pela requerida, têm de ser valorados com cuidado, atentas as relações de amizade que os dois primeiros declararam ter com os sócios da requerida, e a qualidade de trabalhadora da requerida da testemunha EE, interessada, naturalmente, na continuação da atividade da requerida.
Acresce que o julgador no seu trabalho de valoração da prova e de reconstituição dos factos com o fim de atingir uma verdade, não está obrigado a aceitar ou recusar cada uma das declarações ou depoimentos na globalidade. Poderá extrair de cada um deles, o que lhe merece ou não crédito. Não viola qualquer regra de direito probatório a não valorização da totalidade do depoimento de uma testemunha se, em face dos demais elementos de prova e de acordo com as regras da experiência e da lógica, se evidencie que, relativamente a certos factos, a testemunha assumiu um posicionamento interessado.
Na apreciação da matéria de facto incumbe ao julgador efetuar uma análise crítica de todos os elementos probatórios, independentemente da parte que os produziu e que tem o ónus de provar determinado facto, com o fim de motivar e justificar a sua decisão. Nessa apreciação crítica irá valorar tanto individualmente como globalmente a prova produzida, operação na qual irá socorrer-se das regras da normalidade, da verosimilhança, do bom senso e experiência da vida. Os diversos elementos de prova devem assim ser apreciados em correlação uns com os outros, de forma a discernir aqueles que se confirmam e aqueles que se contradizem, possibilitando ou a remoção das dúvidas ou a constatação de que o peso destas é tal que não permite uma convicção segura acerca do modo como os factos se passaram e de quem foram os seus agentes.
Da audição a que procedemos, em conjugação com a documentação junta aos autos, valorando o resultado da inspeção judicial a que a 1ª instância procedeu e o depoimento desinteressado da testemunha GG, técnico que procedeu ao ensaio acústico, não nos suscita dúvidas que o som emitido pelo equipamento da requerida é audível na residência dos requerentes com as janelas abertas, a qualquer hora do dia, pois trata-se de um ruído permanente que se mantém durante 24 horas, durante todos os dias úteis e ao sábado até às 24 horas (cfr. resulta do horário de funcionamento da requerida em vigor em janeiro de 2024, junto aos autos), embora de baixo volume. Tal foi constatado pelo técnico que procedeu ao ensaio e pela Mma Juíza a quo que realizou a inspeção efetuada no dia 06 de junho de 2024, já depois da instalação do redutor de ruído na chaminé da requerida, como da ata da inspeção consta.
Durante o período diurno o nível de ruído causado pela atividade desenvolvida na requerida, embora seja o mesmo que o de noite, por força da atividade associada a todo o bulício diário, esbate-se mais, atento o convívio que o ser humano está habituado a ter com outros níveis sonoros durante o dia. Já durante a noite, face à diminuição do bulício diurno, o ruído torna-se mais audível, pelo que se considera, em face das declarações prestadas pelos requerentes, em conjugação com os resultados do ensaio acústico, o percecionado pela inspeção judicial e o depoimento da testemunha GG que tal ruído constante, impede-os de dormir, com as janelas abertas. Não se pode deixar de referir, em face dos esclarecimentos prestados pela testemunha GG, que a perceção do ruído é influenciada pela distância das residências ao centro emissor do ruído, mas também das diferentes cotas em que residências se localizam, face ao emissor, da existência ou não de outras fontes de ruído na sua proximidade, na existência ou não de vegetação junto das residências que possa constituir uma barreira sonora e até da capacidade de audição e sensibilidade de cada recetor.
Mas já não entendemos que esse ruído com as janelas e portas fechadas possa impedir o descanso dos apelantes, pelas seguintes razões:
.Durante o dia, na inspeção ao local no quarto dos requerentes, com a porta fechada e a janela fechada, a Sr.ª juíza junto ao armário ouvia uma vibração sonora leve, que mais próximo da cama dos requerentes deixou de ouvir e com as portadas de madeira fechadas e todas as janelas fechadas não percecionou qualquer vibração sonora, em qualquer local do quarto dos requerentes.
. O depoimento da testemunha FF, cuja residência se situa numa localização mais semelhante à dos requerentes, embora na audiência de julgamento tenha referido a sua impossibilidade de dormir e dos seus filhos, ainda que com as janelas fechadas, quando foi ouvido pela GNR, na sequência da queixa efetuada queixa em 03.02.2023, referiu que “(…) E mais informou que o ruído permanente que naquele momento era escutado é habitual e a ele, em particular, não o incomoda muito uma vez que ao entrar para o interior da sua residência deixa de o ouvir. Informou que o ruído que o levou a denunciar trata-se de um ruído que associa ao transporte de pedra talvez com uma máquina já carregada e ao seu despejo e transposição, provocando dessa forma ruído incomodativo, mesmo percetível dentro da sua habitação”.
. Não se apuraram factos que permita concluir que o volume do ruído emitido pela chaminé se acentuou posteriormente, à queixa. Quanto muito, se o redutor de ruído instalado surtiu algum efeito (o que as testemunhas arroladas pelo requerente e estes negaram), poderia ter diminuído, pelo que o depoimento prestado pela testemunha FF em que os apelantes se baseiam, se nos afigurou exagerado, empolando o incómodo causado pelo ruído emitido pelo exaustor. Os apelantes alegaram que a recorrida exerce a sua atividade com um horário mais alargado que a D..., mas não o lograram demonstrar. Apenas foram juntos os horários de funcionamento da requerida e não foram juntos os horários de funcionamento da D..., sendo que a testemunha EE, trabalhadora da requerida e anteriormente trabalhadora da D..., desde 2004 até 2017, tendo regressado em março de 2018 e aí permanecendo até setembro de 2020, declarou que a D... também trabalhou muitas vezes 24horas por dia e sete dias da semana, pelo que os requerentes não lograram demonstrar que a D... funcionava apenas durante a semana, de segunda a sexta e não também à noite.
. Até 2019 apenas foi referida uma queixa efetuada por KK, mas com maior enfoque no pó produzido pela atividade fabril (situação que terá ocorrido devido a uma avaria numa das mangas), tendo as queixas surgido após a aquisição pelos apelantes da sua residência, com maior expressão em 2023, apesar da atividade fabril se desenrolar há vários anos naquela localidade. A D..., Lda., sociedade que antecedeu a requerida, tinha licença para o exercício desta atividade já em 2001 (cfr. doc. nº 16 junto com a contestação) e há anos que exercia a sua atividade (o que foi confirmado, designadamente pela testemunha II, presidente da Junta de Freguesia ... e pela sua ex-trabalhadora EE), o que não deixa de ser revelador que o ruído emitido, não tem sido sentido como muito incomodativo por quem ali reside. A ora requerida foi constituída em 02.01.2018 (cfr. certidão comercial junta aos autos) e sucedeu a esta empresa.
Note-se que espontaneamente o requerente BB quando prestou declarações e procurou ilustrar ao tribunal o seu estado de espírito em face do ruído produzido pela requerida, referiu que se levantou durante a noite para ir à casa de banho e estando a janela desta aberta[1], logo se apercebeu do ruído e ficou tão irritado por este ruído nunca parar que já não conseguiu voltar a dormir, o que demonstra apenas que o barulho é audível quando as janelas se encontram abertas, pois foi então que se apercebeu do mesmo.
Acredita-se que os requerentes se encontram desgostosos com o ruído contínuo provocado pela atividade da requerida percetível no exterior da sua habitação, ainda que de expressão reduzida. Tal é demonstrado pelos diversos e-mails remetidos a diversos destinatários, queixando-se do mesmo. Os requerentes encontram-se reformados e procuraram um sítio verde para tranquilamente passar a sua reforma (sendo que o requerente AA afirmou ainda realizar algum trabalho de consultadoria, mas à distância, na sua residência), pelo que permanecem essencialmente em casa, estando consequentemente, mais expostos ao ruído que outros cidadãos que saiam diariamente da mesma para ir trabalhar.
Não ficou demonstrado que os apelantes não consigam estudar, realizar tarefas domésticas e profissionais, em face dos registos efetuados pelo ensaio acústico e atento o percecionado na inspeção judicial. Aliás, o único episódio que a testemunha AA., o único dos dois requerentes que exerce ainda atividade profissional, referiu foi que durante duas reuniões, o seu interlocutor lhe perguntou qual a proveniência do ruído que estava a escutar, tendo o requerente interrompido a reunião para ir fechar a janela, o que demonstra que, até ser interpelado pelo seu interlocutor, o apelante se encontrava a trabalhar com a janela aberta, não atingindo assim o ruído a dimensão incomodativa que alegou.
Assim, entende-se que se mostra somente demonstrado que os apelantes não conseguem dormir, mas apenas com as janelas e portadas abertas do seu quarto (o tribunal pode precisar/explicar as circunstâncias em que os factos ocorrem), mantendo-se como não provado a demais matéria impugnada por não estar demonstrada a existência de um erro de julgamento.
Do aditamento à matéria de facto
Pretendem os apelantes que seja aditado aos factos provados a seguinte matéria: A Recorrida, na atividade desenvolvida, age e continua a agir de forma ilícita, levada a cabo com desrespeito pelos direitos alheios e pelas normas que regem a vida em sociedade, em consequência do ruido que emitem 24 horas.
Ora, além de não explicarem porque razão consideram este aditamento essencial para a sorte da ação, o certo é que o que pretendem aditar constitui uma conclusão a retirar dos factos provados, não devendo ser incluídos nos factos provados nem matéria de direito, nem conclusões de facto ou de direito.
A matéria de facto é pois a que foi dada como provada e não provada pela sentença recorrida, introduzindo-se apenas a seguinte alteração à matéria de facto provada, eliminando-se a alínea m) dos factos não provados: Os requerentes não conseguem dormir com as janelas abertas do quarto.
Do Direito
Entendem os apelantes que em face da alteração da matéria de facto que peticionaram, deve a requerida ser condenada a restringir a sua atividade entre as 8,30 e as 17h30, de segunda a sexta, ou no máximo, entre as 20h e as 8 da manhã, de segunda a sexta, excluindo feriados, caso ocorram durante a semana.
Ora, apenas foi dada parcialmente procedência à impugnação.
No caso, estamos perante um ruído que é constante, permanente 24 horas por dia, mas que se mantém dentro dos limites estabelecidos no DL 9/2007, de 17 de janeiro que aprova o Regulamento Geral do Ruído.
De acordo como artº 13º, nº 1, alínea a) do referido Regulamento, a instalação e o exercício de atividades ruidosas permanentes em zonas mistas, nas envolventes das zonas sensíveis ou mistas ou na proximidade dos recetores sensíveis isolados estão sujeitos ao cumprimento dos valores limite fixados no artigo 11.º; os quais são, em função da classificação de uma zona como mista ou sensível, designadamente, os seguintes:
a) As zonas mistas não devem ficar expostas a ruído ambiente exterior superior a 65 dB(A), expresso pelo indicador L(índice den), e superior a 55 dB(A), expresso pelo indicador L(índice n);
b) As zonas sensíveis não devem ficar expostas a ruído ambiente exterior superior a 55 dB(A), expresso pelo indicador L(índice den), e superior a 45 dB(A), expresso pelo indicador L(índice n).
Como se referiu já supra, no ensaio clínico a que se procedeu foram efetuadas diversas medições ao longo do dia, de modo a abranger as atividades humanas típicas, delimitado nos seguintes termos, de acordo com o DL 9/2007:
i) Período diurno - das 7 às 20 horas;
ii) Período do entardecer - das 20 às 23 horas;
iii) Período nocturno - das 23 às 7 horas.
Os valores apurados mantiveram-se sempre abaixo dos valores limites máximos permitidos, fixados nas alíneas a) e b) do nº 1 do artº 11º do DL 9/2007, não se aplicando o critério de incomodidade, considerado como a diferença entre o valor do indicador L(índice Aeq) do ruído ambiente determinado durante a ocorrência do ruído particular da atividade ou atividades em avaliação e o valor do indicador L(índice Aeq) do ruído residual, por as diferenças obtidas não excederem 5 dB(A) no período diurno, 4 dB(A) no período do entardecer e 3 dB(A) no período noturno, nos termos do anexo I ao presente Regulamento, do qual faz parte integrante.
Mas o facto de o ruído emanado pelo funcionamento mecânico do extrator da requerida se conter dentro dos limites fixados não conduz, desde logo, ao afastamento da tutela dos direitos de personalidade. O direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de vida configuram-se como requisitos indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo emanação do direito fundamental de personalidade. Consequentemente, o STJ, desde há muito tem vindo a entender que a relevância da ofensa do direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade não é afetada pela circunstância de se mostrar respeitado o que se encontra regulamentado relativamente ao ruído e/ou de a atividade que o provoca se encontrar devidamente licenciada (cfr. se refere no Ac. do STJ de 07.11.2019, proc. 1386/15, apoiando-se, no que diz respeito ao ruído, nos Acórdãos do STJ, de 17.01.2002 (processo nº 4140/01); Acórdão de 02/07/2007 (proc. nº 09B0511),de 30.05.2013 (processo nº 2209/08.0TBTVD.L1.S1) ; de 02.12.2013 (processo nº 110/2000.L1.S1) ; de 29.11.2016 (processo nº 7613/09.3TBCSC.L1.S1) e de 29.06.2017 (processo nº 117/13.1TBML.G.g1.S1) e no que diz respeito ao licenciamento da atividade, nos Acórdãos do STJ, de 15.05.2008 (processo nº 08B779) e de 06.12.2012 (processo nº 247/1998.C2.S1)[2], nos quais se afirma a irrelevância da licença camarária para afastar a ilicitude da conduta lesiva do direito ao repouso.
A consagração de um valor máximo de nível sonoro do ruído apenas significa que quem não respeitar aquele limite pratica um ilícito de mera ordenação social punido com coima, nos termos do art.º 28º, nº 2, alínea b) do Regulamento Geral Sobre o Ruído, aprovado pelo DL 9/2007, mas o seu cumprimento não afasta, por si só, a censurabilidade que possa advir em termos de responsabilidade civil.
O artigo 70º n º 1 do Código Civil estabelece que “ a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”. E o seu número 2 inclui expressamente a responsabilidade civil entre os meios gerais de tutela da personalidade física ou moral.
Constituem os direitos de personalidade um círculo de direitos necessários; um conteúdo mínimo e imprescindível da esfera jurídica de cada pessoa, cuja violação traduz um facto ilícito civil que desencadeia a responsabilidade civil do infrator ( Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1976, págs. 63 e 64.)
São direitos subjetivos absolutos, os que têm por fim tutelar a integridade física e moral do indivíduo, impondo a todos os componentes da sociedade o dever negativo de se absterem de praticar atos que ofendam a personalidade alheia, entre os quais se contam o direito à vida, à integridade física, à saúde e ao repouso essencial à existência física. O direito ao repouso, à tranquilidade e ao sono são aspetos do direito à integridade pessoal que faz parte do elenco dos direitos fundamentais, do acervo de direitos, liberdades e garantias pessoais (artº 25º da CRP), direito de personalidade que beneficia da tutela dos artºs 64º nº 1 e 66º, nº 1 da CRP.
O direito à saúde, ao repouso, e ao bem-estar são direitos fundamentais de todos os cidadãos que receberam igualmente consagração nos artigos 3º e 25º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
A poluição sonora (ruídos prejudiciais, sobretudo nas horas consagradas ao descanso reparador da generalidade das pessoas) constitui , designadamente, uma das variantes dos atentados ao direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado (cfr. se sumariou no Ac. do STJ de 19-04-2012, Revista n.º 3920/07.8TBVIS.C1.S1 - 2.ª Secção (Relator Álvaro Rodrigues)[3].
A privação do sono e do repouso da pessoa ”quando assume carácter continuado, constitui um fator de extraordinária degradação do sistema psicossomático do ser humano, representando um prejuízo substancial para a sua estrutura física e mental, para o seu equilíbrio emocional, para a sua capacidade de realização pessoal e profissional, para a sua qualidade de vida, enfim, revestindo um dano essencial para a sua personalidade, face à sua manifesta gravidade” (cfr. se sumariou no Ac. 30-10-2012, Revista n.º 1767/06.8TBVNG.P1.S1 - 1.ª Secção Helder Roque (Relator), acessível na referida compilação).
O direito ao repouso, como bem indispensável à saúde e, portanto, à integridade física e moral e à vida, que se integra no âmbito dos direitos de personalidade, resulta violado com a produção de ruídos que, pela sua frequência e intensidade, afetam o sono e a tranquilidade emocional dos visados, representando fatores decisivos do desequilíbrio psicossomático.
A habitação é o local privilegiado para o repouso, sossego e tranquilidade necessários à preservação da saúde e, assim, da integridade material e espiritual que o art.º 25, n.º 1, da CRP protege.
Por sua vez, o direito à liberdade económica que assiste à requerida, também deve ser exercido de forma não discricionária ou arbitrária, com limites normais para não serem ofendidos com ele direitos de terceiros.
Como se considerou no Ac. do STJ de 12.10.2023, proc. 247/19, acessível em www.dgsi.pt (sítio onde poderão ser consultados todos os acórdãos que venham a ser citados, sem indicação da fonte) “o direito fundamental à iniciativa económica privada tem uma dimensão de liberdade pessoal pelo que, nessa medida, pode ser enquadrado nos direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias (artigo 17. º da Constituição) ou, até, também no direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Tem, no entanto, uma outra dimensão, que é a da “liberdade de gestão e atividade da empresa (liberdade da empresa, liberdade do empresário” (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 76/85).”
Estando por um lado em questão o direito à saúde e por outro o direito à liberdade económica, a colisão existente é resolvida através da figura da colisão de direitos prevista no artº 335º do CC .
Como refere o Prof. Menezes Cordeiro, há colisão de direitos, em sentido amplo, “quando um direito subjetivo, na sua configuração ou no seu exercício, deva ser harmonizado com outro ou com outros direitos. Num sentido estrito, a colisão ocorre sempre que dois ou mais direitos subjetivos assegurem, aos seus titulares, permissões incompatíveis entre si”( “Da Colisão de Direitos”, apud, “O Direito”, 137, 2005, 38). Só haverá colisão quando coexistam pluralidade de direitos pertencentes a titulares diversos, não sendo possível o respetivo exercício simultâneo e integral por ambos.
Ocorrendo um conflito de direitos, um deles terá de prevalecer, o que for considerado superior (artº 335º nº 1 do CC), tendo a jurisprudência maioritariamente entendido que o direito ao descanso, enquanto direito de personalidade, prevalece sobre o direito à iniciativa económica e de propriedade, o que não preclude a análise, caso a caso, se a prevalência dos direitos relativos à personalidade não resulta em desproporção intolerável, face aos interesses em jogo, ocorrendo que o sacrifício e compressão do direito inferior apenas deverá ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante».
Vejamos o que a jurisprudência do STJ tem entendido:
. No acórdão do STJ de 31.03.2023, proc. 773/19, já citado, foi confirmada a decisão das instâncias, que condenou a requerida a abster-se de praticar qualquer atividade no estabelecimento noturno e de bebidas em causa, entre as 00h00 e as 8 da manhã, incluindo preparações para abertura, encerramentos tardios, limpezas e arrumações e a encerrar um dia de descanso semanal. Apurou-se que a A. vivia por cima da fração, onde funcionava um estabelecimento comercial propriedade da 1ª ré, que o explorava com o objeto de exploração de café, bares, snack-bar e salão de jogos. O dito estabelecimento é composto, entre outros equipamentos e utensílios, por mesas, cadeiras, aparelhagem de música, mesa de snooker, jogo de setas e televisores, espaço destinado a café, cozinha de refeições rápidas e uma esplanada exterior que funciona sempre que as condições meteorológicas são mais favoráveis, em especial na Primavera e Verão; desde que a autora passou a ter a sua residência na fração autónoma identificada em 1, no dia 5 de Janeiro de 2018, que se deu conta que era quase impossível ali descansar, sobretudo à noite; o ruído provém, nomeadamente, do arrastar de cadeiras no chão, de pancadas, do bater das bolas de bilhar, de vozes, de talheres, de copos; no espaço, o som da música, das vozes, risos, gargalhadas, gritos, copos e garrafas atravessa as paredes do imóvel onde se encontra instalado o estabelecimento e, ainda, as suas janelas e portas; sendo tais ruídos percetíveis em todo o interior da habitação da autora, nomeadamente na sala e quarto; no interior da habitação da autora ouvem-se as bolas de snooker a bater umas nas outras e nos buracos, nas tabelas e as pancadas das setas no quadro do jogo respetivo, o ruído do rojar das mesas e das cadeiras no chão é incomodativo, ouve-se com muita intensidade na residência da autora e de alguns vizinhos; ouvem-se as pancadas para limpeza das borras de café ao longo de toda a noite, assustando a autora de cada vez que sucedem, acordando-a; ouvem-se ruídos provenientes das arrumações diárias levadas a cabo no estabelecimento, bem como ruídos provindos de arrastamento de cadeiras e mesas e de copos e louças a partir ou bater entre si; na residência da autora ouvem-se vozes dos utentes do estabelecimento, sendo, por vezes, percetíveis as palavras ditas; é habitual os utentes do espaço permanecerem no exterior do estabelecimento durante o seu período de funcionamento e para além do mesmo, conversando em voz alta, berrando e gritando e deixando garrafas no pavimento, nomeadamente nas madrugadas de Primavera e Verão, quando se encontra a esplanada aberta; por vezes, os utentes do estabelecimento fazem-se transportar em veículos automóveis, cujo movimento de chegada e partida produz ruídos de motores, incluindo buzinas, movimentos esses, por vezes acompanhados de vozes em tom alto, risos e gargalhadas; os referidos sons são audíveis no prédio da autora, tanto no interior, como no exterior do edifício e no prédio confinante; os tampões para os ouvidos e comprimidos para a ansiedade fazem parte do dia a dia da autora, desde a 1ª semana em que se mudou para aquela casa; a autora toma diariamente essa medicação e usa os referidos tampões auriculares para tentar dormir; a autora teve que adquirir uma coluna para otimizar o som da sua televisão, por não conseguir ouvir as palavras ali proferidas pelo facto de as mesmas serem abafadas pelo ruído do bar; mesmo com os tampões auriculares colocados, a ansiedade da autora não diminui, passando noites em que acorda de hora em hora; e outras em que só adormece quando o bar encerra (a partir das 5 h da manhã); mal se mudou para aquela habitação, a autora começou a tomar comprimidos naturais, sem necessidade de receita médica, para conseguir descansar; a partir de Abril, recorreu ao seu médico de família porque precisava de medicação mais forte; passando, desde então, a tomar Alprazolan; a autora pediu a amigas que a pudessem albergar em noites que não estava a conseguir descansar e precisava de o fazer, por ter de acordar muito cedo para trabalhar e a autora não consegue descansar na sua própria casa, desde o 1º dia em que para lá foi residir, desde a abertura do bar até às 5 da manhã, passando várias horas sem dormir, sendo que, quando adormece, acorda constantemente nervosa e ansiosa.
.No Ac. do STJ de 20.04.2021, proc. 19/18, concedeu-se parcialmente a revista e alterou-se o acórdão recorrido no sentido de condenar ainda os Réus a suspender a atividade do(s) equipamento(s) de tratamento sanitário e de secagem de paletes de madeira que ali se encontra(m) instalado(s) nos períodos seguintes: aos fins-de-semana (incluindo sábado); no dia de Carnaval e na segunda-feira que o precede; nas férias da Páscoa do dia que precede a Sexta-feira Santa até ao Domingo de Páscoa; no período de férias de Verão que decorre entre o dia 16 de Agosto e o dia 31 do mesmo mês; nas férias de Natal de 24 de Dezembro a 26 do mesmo mês e, ainda, nos dias 31 de Dezembro e 1 de Janeiro, confirmando-se o segmento em que ordenou a cessação da atividade do(s) equipamento(s) de tratamento sanitário e de secagem de paletes de madeira que ali se encontra(m) instalado(s), no período do entardecer e noturno, das 20.00 às 07.00 horas, e bem assim ao fim-de-semana.
No referido processo foi dado como provado que o autor tomou conhecimento que, a uma distância de cerca de 40 metros da sua casa de habitação no prédio “C.…”, os 1.º e 2.ª réus haviam instalado, no limite nascente do prédio “S….”, um equipamento de tratamento sanitário e de secagem de paletes de madeira, que têm posto em funcionamento 24 horas por dia, de dia e de noite, todos os dias da semana e do fim de semana; produzindo barulhos que se ouvem intensamente no interior da casa de habitação do autor, mesmo com todas as portas e janelas fechadas; desde junho de 2017 que, em consequência do ruído proveniente do prédio “S….….”, o autor não utiliza aquela sua casa de habitação, encontrando-se, em consequência, perturbado e frustrado; no interior da habitação do autor, a laboração da atividade industrial da 2.ª ré, num regime de funcionamento “a 100%”, designadamente o equipamento de tratamento sanitário e de secagem de paletes de madeira, produz ruído que ultrapassa, respetivamente, em 2 dB(A), 5 dB(A) e 7 dB(A) os valores diferenciais estabelecidos no Regulamento Geral do Ruído para os critérios de incomodidade nos períodos diurno, entardecer e noturno; no exterior da habitação do autor, a laboração da atividade industrial da 2.ª ré, num regime de funcionamento “a 100%”, designadamente o equipamento de tratamento sanitário e de secagem de paletes de madeira, produz ruído que ultrapassa, respetivamente, em 3 dB(A), 3 dB(A) e 7 dB(A) os valores diferenciais estabelecidos no Regulamento Geral do Ruído para os critérios de incomodidade nos períodos diurno, entardecer e noturno, em consequência, não é possível ao autor repousar, descansar e dormir com sossego e tranquilidade naquela sua casa de habitação; e em data não concretamente apurada, nas mesmas instalações, também passaram a ser audíveis disparos de pregos para assemblagem de paletes, serras elétricas e serração de madeira, o que antes não sucedia.
.No Ac. do STJ de 07.11.2019, proc.1386/15, foi confirmado o acórdão da Relação que que determinou que a ré procedesse a obras na estrutura onde se encontrava instalada a máquina de lavagem de veículos, de forma a impossibilitar que o ruído daí decorrente se propagasse para o prédio dos autores.
Estava em causa o ruído provocado pelo funcionamento de um sistema de lavagem de veículos automóveis quase encostado, paralelamente, ao imóvel dos autores, (distando apenas três metros da respetiva fachada, com janelas e varanda); o disparo da água contra a chapa dos veículos provoca ruído que, sobretudo nas segunda e quarta fases de lavagem, se sente no interior do edifício destinado a habitação do prédio dos autores, mesmo com as janelas fechadas, conseguindo-se individualizar tal ruído do demais ruído ambiente; ao incidir sobre os automóveis, os jatos provocam a nebulização da água associada à sujidade dos veículos e aos detergentes utilizados; a primeira autora padece de doença do foro respiratório, concretamente doença pulmonar obstrutiva (asma brônquica ou síndrome de sobreposição asma/doença pulmonar obstrutiva crónica), doença que se agrava com a exposição a fatores externos, tais como detergentes, fatores ambientais, produtos químicos, cheiros intensos ou poeiras; a primeira autora permanece no seu quotidiano na habitação com as janelas e persianas exteriores fechadas.
. No Ac. do STJ de 10.09.2019, proc. 27564/16, o STJ alterou a decisão da Relação que restringiu o período de funcionamento dos sete courts de padel explorados pelos Requeridos ao horário de funcionamento entre as 08.00 e as 20.00 horas nos dias de semana e interditou a utilização dos sete courts de padel aos Sábados e Domingos, permitindo o seu funcionamento até às 22 h.
No caso apurou-se que a requerida tinha instalado e explorava sete courts de padel, ao ar livre no interior de um quarteirão maioritariamente residencial, nas traseiras da residência da requente e que na sequência da instalação dos últimos quatro courts verificou-se, à data, um aumento do horário de atividade até às 24h00 nos courts n.º 1 a 4, em todos os dias da semana, incluindo sábados e domingos, bem como um aumento do horário de atividade até ao período entre as 21h00 e as 22h00, consoante o court, nos courts n.º 5, 6 e 7, em todos os dias da semana, incluindo sábados e domingos.
Não obstante as obras realizadas com vista à insonorização, alterações realizadas na estrutura, cobertura dos courts n.º 5, 6 e 7 e à colocação de painéis laterais nos dois lados adjacentes às traseiras da Travessa ..., tal não impediu a propagação do ruído e não alterou o seu carácter impulsivo e repetitivo, ao mesmo acrescentando um efeito de eco que o prolonga; a cobertura metálica e os painéis laterais não impedem a perceção dos diálogos e interjeições dos jogadores nos courts cobertos; o ruído produzido pelos jogos de padel é detetável no interior de frações do prédio da ora Requerente e dos prédios adjacentes, com as janelas fechadas; o ruído é incomodativo, com natureza impulsiva e conspícua, emergindo significativamente sobre as condições de ruído residual, perturbando o sossego e o repouso dos residentes; atenta a maior proximidade em relação aos courts de padel, o nível de perturbação é crescente dos pisos superiores até aos pisos inferiores, assumindo o seu nível de máxima expressão nas frações sitas no rés-do-chão e na cave, precisamente onde reside a Requerente; o ruído produzido consiste não apenas nos diálogos e interjeições dos jogadores, nos courts n.º 5, 6 e 7, como também nos impactos na bola, atentas as características do court, as regras do padel e as propriedades da raquete, em qualquer um dos courts n.º 1 a 7; nos courts n.º 5, 6 e 7, acrescem, ainda que com menor frequência, os impactos da bola acidentais na cobertura metálica superior e lateral. Ao ruído produzido pelos jogos de padel acresce ainda o ruído produzido pelos clientes do bar de apoio ao BB/DD/EE, funcionando em esplanada, com um horário de funcionamento coincidente com o horário do recinto, das 8h00 às 24h00 todos os dias da semana, o que motivou algumas queixas telefónicas por parte da Requerente e de outros residentes da área circundante; bem como o sistema de iluminação dos courts, de uma intensidade muito significativa e que se encontra ligado durante todo o período noturno de funcionamento dos mesmos, ou seja, até às 24h00, várias vezes não sendo imediatamente desligado a essa hora, mantendo-se ligado madrugada adentro, com exceção dos courts que agora se encontram cobertos (courts n.º 5, 6 e 7); o ruido produzido pelo exercício da atividade desportiva de padel, bem como pela iluminação causa impede o descanso da Requerente provoca, entre outros, ansiedade, dificuldade em adormecer, irritação e cansaço.
. E no Ac. do STJ de 18.10.2018, proc. 3499/11, foi confirmada a decisão das instâncias que proibiu a laboração da requerida entre as 22,00 horas e as 06,00 horas, e bem assim no dia de descanso semanal, o domingo. Nesta ação estava em causa o exercício da industria de tecelagem num estabelecimento localizado a 14 metros da residência dos requerentes. Mais se apurou que a atividade fabril da Ré provocava vibrações e ruídos constantes, que rapidamente se transferiam para a casa dos Autores que é a mais próxima e que os incomoda, fazendo vibrar de forma constante a habitação dos AA particularmente a cozinha dos AA.; o facto da Ré funcionar ininterruptamente 24 horas por dia, 6 dias por semana, afeta o descanso dos AA com especial relevância para o período noturno e entardecer, impedindo-os de dormir convenientemente, vivendo em estado de em estado de nervosismo e irritação constantes. Tal situação, pela sua duração e continuidade, afeta a saúde física e psicológica dos Autores.
No caso, embora os AA. tenham de dormir com as entradas de ruído fechadas no seu quarto, para não serem incomodados, não lograram provar estar impedidos de dormir nem estar impedidos de desenvolver as suas atividades diárias, em consequência do ruído proveniente da chaminé da requerida. Não pressupondo o direito ao sossego, o silêncio completo, pois o ruído é algo de inerente à civilização moderna, não se pode considerar que ocorre violação do direito ao sossego.
Mas, ainda que assim não se entendesse, o caso dos autos está longe da exuberante violação do direito ao sossego que os factos transcritos demonstram. Note-se que a residência dos apelantes se situa a cerca de 650 m das instalações da requerida, distância bastante considerável para efeitos da receção do som. Está em causa um ruído constante, cujo valor dos decibéis não é muito expressivo (os apelantes não lograram provar a existência de trepidações e eco), semelhante ao ruído de tráfego rodoviário ou sopro afastado, pelo que não se considera que a situação dos autos pudesse impor a restrição da atividade da requerida, pois constituiria um sacrifício desproporcionado.
Da condenação como litigantes de má fé
A sentença recorrida condenou os apelantes como litigantes de má fé na multa de 2 UC’s (valor mínimo previsto na lei) e na indemnização no valor de 200€ a pagar à requerida.
A sentença recorrida justificou a condenação dos apelantes no seguinte: “Os requerentes imputam à requerida, numa primeira vez como suposição, numa segunda fez com laivos de certeza que a requerida despeja resíduos nas águas pluviais, sugerindo a violação de problemas de saúde, bem como sugerindo que a requerida reduz propositadamente o ruído aquando das inspeções. Como afirma Paula Costa e Silva, e versando no caso concreto, os requerentes “devia[m] ter observado os deveres de indagação que sobre ela[eles] impendiam” (cfr. SILVA, Paula Costa e; ob. cit., p. 394). Tal alegação, embora não tenha prejudicado de forma cabal a administração e a realização da justiça (uma vez que produzida a prova, foi possível apurar a verdade material), a mesma entorpeceu a realização da mesma, uma vez que implicou esforços desnecessários para a aferição da verdade. O alargamento pretendido pelo legislador da Reforma de 95 tinha precisamente como objetivo principal responsabilizar as atuações ilícitas das partes nos termos do n.º 2, do artigo 542.º, ainda que por negligência grave. Tal encontra-se contemplado no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro: “Como reflexo e corolário do princípio da cooperação, consagram-se expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por ação ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjetivos (…)”.
Pelos fundamentos de facto e direito acima mencionados, condenam-se os requerentes como litigantes de má fé, por terem alterado a verdade dos factos relevantes para a decisão a proferir, mormente no que tange à adulteração do ruído produzido nas instalações da requerida. Se o facto constante na alínea j) não constitui o cerne da tutela pretendida e por esse motivo, não constitui facto relevante para a decisão da causa, o mesmo não se pode afirmar quanto aos factos vertidos nas alíneas a) e m). Os requerentes não ignoravam ou não podiam ignorar da falta de veracidade destes factos, sendo que, desconhecendo da sua exatidão, os deveres de boa fé faziam impender nos requerentes o dever de indagação ou abstenção da sua alegação.”
Os apelantes insurgem-se porque não atuaram com dolo ou negligência grave, como exige o artº 542º, nº 2 do CPC, só nesse caso havendo lugar à condenação como litigante de má fé.
No entender dos apelantes, atuaram como um homem medianamente prudente e cuidadoso, tendo previamente à presente ação tentado por varias vias resolver a questão do ruído, ruído que o tribunal constatou que existia e só instauraram a presente ação porque o ruído se mantém.
A litigância de má-fé não deve ser confundida com prova frágil ou dificuldade de se fazer prova, sendo que a prova de que os requerentes não conseguem dormir (alínea m), seria sempre uma prova difícil visto que não é possível ao Tribunal a quo, por exemplo, realizar uma inspeção sem avisar a Recorrida, devido ao exercício do contraditório, logo nunca conseguiria ter uma perceção direta do barulho no período noturno, por exemplo.
Quanto ao facto não provado a): o terreno de que a Recorrida é proprietária é visto da habitação dos Requeridos, como bem se verificou em sede de inspeção judicial, que distancia 650 metros, em linha reta, da moradia dos Requerentes (facto assente 5). A alegação feita na petição inicial de que a Requerida é proprietária de um terreno confrontante a norte e a ponte com a propriedade destes, não pretendeu ignorar a veracidade dos factos; é que estando a residência dos apelantes e as instalações da fábrica da requerida localizadas num vale, aqueles estão num cume do mesmo, e a Requerida mais em baixo, e que entre estes não há outra habitação, pretendendo com a sua alegação demonstrar uma relação de vizinhança.
Apreciando:
Relativamente à alínea m) dos factos não provados, a que a decisão recorrida faz referência, tendo a Relação alterado a matéria de facto, a questão da não prova destes factos deixou de se verificar. Mas ainda que se mantivesse inalterada a matéria de facto, também não se consideraria que pela circunstância dos apelantes não terem logrado a prova dos factos constantes da alínea m), deveriam ser considerados como litigantes de má fé.
O facto de se ter dado como não provados determinados factos, não permite que se conclua que o contrário se verificou. Ou seja, ao dar-se como não provado que os apelantes não conseguem dormir à noite, apenas resulta que se desconhece se conseguem dormir ou não, e não que os apelantes conseguem dormir.
E, como referem os apelantes, a má fé não se confunde com a falta de prova.
Assim, o facto de ter sido dado como não provado que os apelantes não conseguem dormir, em consequência do ruído provocado pelo equipamento da requerida, não permite que se considere os apelantes como litigantes de má fé. Note-se que numa questão sensível como o nível ruído impeditivo de um sono descansado e retemperador que não será o mesmo para todos quando está em causa um barulho como o dos autos, constante e de baixo volume, ruído que a sentença recorrida dá como provado, apenas não considerando que o mesmo é incomodativo, a circunstância dos apelantes não terem logrado fazer prova do que alegam, não pode ser interpretado como uma alteração da verdade dos factos dolosa ou com negligência grave.
Relativamente à referência à alínea j) dos factos dados como não provados, à qual a sentença recorrida também alude, como fundamento da condenação dos apelantes: nesta alínea foi dado como não provado que “pela emissão de poeiras, os requerentes são impedidos de estacionar os seus veículos ao ar livre, pois sempre que os mesmos lá são deixados por períodos de 2 ou 3 dias neles se deposita uma camada de pó de cimento e de areia”. Ora, como se referiu já, a circunstância dos apelantes não terem logrado provar estes factos, não pode ser entendido como litigância de má fé. O mesmo se diga quanto aos demais factos alegados pelos apelantes não considerados provados pelo tribunal a quo, impondo-se uma palavra extra quanto aos dados como não provados na alínea a).
Na alínea a) considerou-se que não foi feita prova de que a requerida é proprietária de um terreno confrontante a norte e a poente com a propriedade dos requerentes, como estes alegaram na petição inicial. Na matéria de facto provada apenas se incluiu que as instalações da requerida distam cerca de 650 metros, em linha reta, da moradia dos requerentes (facto 5 dos factos provados), o que não é impeditiva do alegado, tudo dependendo da extensão da propriedade da requerida. No entanto, os próprios apelantes admitem que o seu prédio não confronta com o da a apelada ( o que também admitiram, sem rodeios, nas declarações que prestaram na audiência final).
Afigura-se-nos que a referida alegação, embora não verdadeira, não envolve dolo ou negligência grave, até porque tal alegação poderia ser facilmente desmentida, com a junção da certidão predial do imóvel (na presunção das confrontações se encontrarem atualizadas) documento que os apelantes juntaram logo com a petição inicial, pelo que se entende não estar demonstrada a pretensão de alterar a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, não sendo, consequentemente de os condenar como litigantes de má fé.
Sumário:
(…).
IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, absolvendo os apelantes da condenação como litigantes de má fé.
Custas da apelação por ambas as partes, na proporção de 99,6% para os requerentes e 0,40% para os requeridos.
Notifique.
Coimbra, 14 de janeiro de 2025
[1] A intérprete não referiu na tradução que a janela se encontrava aberta, mas o depoente referiu-o claramente.
[2] Todos acessíveis no sítio www.dgsi.pt.
[3] O sumário deste e doutros acórdãos que venham a ser citados podem ser consultados na compilação s efetuada pelos assessores do STJ, relativos o período de 1997 a Março de 2016, sob a denominação “O direito ao descanso e ao sossego na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça” - https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2024/02/direitodescansosossego.pdf