- A instrução é legalmente inadmissível quando no requerimento de abertura de instrução não são alegados factos susceptíveis de integrarem todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime cuja prática o assistente imputa ao arguido, devendo tal requerimento ser rejeitado.
- O requerimento de abertura de instrução tem que ter uma estrutura semelhante a uma acusação e conter a descrição completa, ainda que sintética, dos factos cuja prática se imputa aos arguidos e não uma descrição dos factos meramente episódica ou exemplificativa.
No processo nº 3374/22.9T9STB que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo de Instrução Criminal de … - Juiz …, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, datado de 17/02/23, na sequência do qual vieram os assistentes AA e BB requerer a abertura de instrução,
imputando aos arguidos CC e DD, a prática de um crime de dano e de um crime de furto.
O requerimento de abertura de instrução foi rejeitado, por despacho datado de 4/07/2024, por se ter considerado que a instrução é legalmente inadmissível, nos termos previstos no art.º 287º, nº 3 do Cód. Proc. Penal.
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Inconformados com esta decisão, vieram os assistentes interpôr o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
“ 1. Do despacho proferido pelo Magistrado do Ministério Público, despacho de arquivamento do inquérito, nos termos do disposto no artigo 277º do Código de Processo Penal (cfr. fls. 133 a 134), vieram os assistentes AA e BB, a fls.196 e ss, requerer a Abertura da Instrução.
2. Remetido o processo à distribuição como Instrução, pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, no dia 05.07.2024, foi proferido despacho em que decidiu rejeitar liminarmente o Requerimento de Abertura de Instrução, nos termos do artigo 287º, n.º 3 do CPC.
3. Inconformados com tal despacho, pretendem, os assistentes, dele interpor recurso. Porquanto,
4. O presente recurso tem como objeto o douto Despacho de rejeição do Requerimento de Abertura de Instrução por inadmissibilidade legal.
5. O Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal do Tribunal “a quo” considera, no seu despacho de rejeição, que os assistentes não fizeram, no requerimento de abertura de instrução, a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública.
6. Defende o Meritíssimo Juiz, que o requerimento apresentado pelos assistentes carece de uma estrutura acusatória, pautando pela inexistência de narração dos “concretos factos imputados ao arguido e as normas legais aplicáveis, estruturando-se- enfim- como acusação que, na perspetiva do requerente, deveria ter sido pelo Ministério Público deduzida.”.
7. Admitindo, contudo, o Tribunal “a quo”, ser “possível extrair genérico sentido- material e jurídico do pretendido pelos requerentes.
8. Facto é que, no ínsito nos requisitos do artigo 287º do Código do Processo Penal, decorre que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, apenas devendo conter em súmula as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação, a indicação dos atos de instrução que pretenda levar a cabo, os meios de prova não considerados, bem como a remissão para o artigo 283º, n.º 3, alíneas b) e c), do Código do Processo Penal.
9. Na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, os Assistentes requereram a abertura de Instrução, na qual narraram os factos criminalmente censuráveis, o contexto em que tais factos ocorreram e a intervenção direta dos arguidos CC e DD, nos mesmos e, para tal, apresentaram e requereram a correspondente produção de prova, cumprindo, assim, o disposto no n.º 2 do artigo 287º, do CPP.
10. E narraram sinteticamente os factos, arguindo que os arguidos tiveram a posse legítima do imóvel, desde a data de celebração do contrato de arrendamento, que a versão apresentada pelos mesmos não podia ser procedente, e que até à entrega das chaves os proprietários desconheciam os danos que o locado apresentava, bem sabendo os arguidos que tinham de entregar o imóvel no estado em que o encontraram.
11. Mais indicaram que os arguidos agiram com o propósito único de destruir o locado como retaliação pela não renovação do contrato de arrendamento, determinando a impossibilidade de utilização subsequente e que quiseram e conseguiram destruir propriedade alheia.
12. Destacando que foi apurado em sede de inquérito e dado como bom no despacho de arquivamento, que os arguidos “poderão não ter tomado os devidos cuidados na sua boa utilização e as precauções necessárias à elaboração das obras de conservação que ali realizaram, tendo, deste modo, causado “estragos na habitação.”
13. E consignando que o arguido CC confessou que “…retirou o bidé da casa de banho mais pequena (…) e afirma ter deitado essa loiça para o lixo…”.
14. Os atos de destruição praticados nas diversas divisões do imóvel, estão representados nos fotogramas apresentados com a queixa.
15. E que os arguidos, com a sua conduta criminosa, quiseram e conseguiram provocar danos avultados no locado.
16. E quiseram e conseguiram fazer seus os objetos que furtaram, a saber a porta do quadro elétrico, o bidé da casa de banho e os outros bens constantes da queixa crime.
17. Todos estes factos demonstram que os Arguidos tiveram total intervenção nos danos causados, com o único intuito de causar prejuízos aos Assistentes e obter para si um benefício ilegítimo, com os bens retirados do imóvel.
18. Concluindo, os Assistentes, que, por todos os factos expostos, fica por demais claro e evidente que os Arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, com o intuito de destruir bem alheio e haver para si bens pertencentes aos assistentes e com isso prejudicar os mesmos, que se viram impedidos de arrendar o locado, o que os Arguidos previram e quiseram, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
19. Portanto, não estamos perante insuficiente factualidade, sabendo através de tal Requerimento de Abertura de Instrução quem, quando e de que forma foram praticados os factos e que esses factos constituem crime, no caso em apreço, um crime de dano e um crime de furto.
20. Requereram, ainda, os Assistentes, diligências de prova, que não foram tidas em conta e que deveriam ter sido consideradas.
21. Assim, não só os Recorrentes descreveram os factos, como alegaram quais as disposições violadas, sendo perfeitamente inteligível o entendimento de quais os factos que estão em causa, e a razão pela qual os Recorrentes entendem dever haver acusação, pelo que o Requerimento de Abertura de Instrução deveria ter sido admitido.
22. O Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal do Tribunal a quo, ao rejeitar liminarmente o Requerimento da Assistente para Abertura da Instrução, com fundamento em inadmissibilidade legal, violou o disposto nos artigos 283º e 287º, do CPP.
23. Sendo estas a ordem de razão que leva a interposição do presente recurso, pretendendo-se ver revogado o douto despacho recorrido, substituindo-se por outro que decida de harmonia com o atrás elencado.
24. Porque tem legitimidade, interesse e estão inconformados, vêm agora à presença de Vossas Excelências clamar por justiça, fundamentando o seu desacordo nos precedentes considerandos.”
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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O Ministério Público apresentou resposta, pugnando pela procedência do recurso e pela substituição da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões:
“ 1. Interpuseram os assistentes AA e BB recurso do douto despacho proferido a fls. 218 dos autos supra epigrafados que, ao abrigo do disposto no art.º 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, rejeitou, com fundamento em «inadmissibilidade legal», o requerimento de abertura de instrução de fls. 196-202 dos mesmos autos (apresentado por aqueles sujeitos processuais), onde se peticionava a pronúncia dos arguidos CC e DD pela prática dos crimes de furto e dano qualificado que lhes foram aí imputados;
2. Pugnam os ora recorrentes, a final, no sentido de dever aquele despacho ser revogado e, consequentemente, substituído por outro que decida no sentido de «admiti[r] o requerimento apresentado pelos Assistentes», «declarando-se aberta a Instrução»;
3. Ora em apreço no presente recurso estará a questão de saber se existe, in casu, qualquer deficiência – de carácter “inultrapassável” – do requerimento instrutório apresentado, designadamente, resultante do facto de não ter sido cabalmente observado o disposto no art.º 283.º, n.º 3, als. b) e d), ex vi do art.º 287.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal;
4. A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, podendo ser requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (cfr., respectivamente, os art.ºs 286.º, n.º 1, e 287.º, n.º 1, al. b), ambos do Código de Processo Penal);
5. «O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º (…)» – art.º 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal;
6. Dispõe o referido art.º 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal que «[a] acusação contém, sob pena de nulidade: (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; (…) d) A indicação das disposições legais aplicáveis»;
7. O processo penal tem estrutura acusatória, sendo o seu objecto fixado pela acusação que assim delimita a actividade cognitiva e decisória do tribunal; esta vinculação temática do tribunal tem a ver fundamentalmente com as garantias de defesa, protegendo o arguido contra qualquer arbitrário alargamento do objecto do processo e possibilitando-lhe a preparação da defesa no respeito pelo princípio do contraditório (art.º 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa). Requerida a instrução pelo assistente relativamente a factos de que o Ministério Público se tenha abstido de acusar, o respectivo requerimento tem que enumerar os factos que fundamentam a eventual aplicação ao arguido de uma pena, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório, e a elaboração da decisão instrutória. A actividade cognitória do juiz de instrução está limitada, pois, pelo objecto da investigação (no caso de não ter havido acusação, pelos factos que o assistente pretende provar), o que implica a necessidade da respectiva enunciação no requerimento de instrução, até para possibilitar a sua realização (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05.05.1993, Colectânea de Jurisprudência, Tomo III, págs. 243-245);
8. Cumpre começar por referir, em primeiro lugar, que o douto despacho aqui posto em crise encontrar-se-á, manifestamente, no limiar da falta de fundamentação, sendo certo que após ser mencionado que devem constar do requerimento para abertura da instrução apresentado pela figura processual do assistente a narração dos factos imputados ao arguido/visado e as normas legais aplicáveis conclui-se, singelamente, no sentido de não ser isso que sucede in casu porquanto «carece o documento daquela estrutura e da necessária concretização», não tendo, assim, o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal cuidado de, como seria exigível, fazer qualquer explicitação sobre quais seriam as concretas desconformidades legais do requerimento instrutório dos ora assistentes AA e BB;
9. Isso conduziu, inclusive, a que os ditos assistentes (levados a admitir ter o Senhor Juiz entendido terem então sido inobservadas todas as correspondentes exigências legais) tenham invocado no recurso entretanto interposto que defendeu o Meritíssimo J.I.C. pautar-se aquele requerimento pela «inexistência de narração dos “concretos factos imputados ao arguido e [d]as normas legais aplicáveis», mas que, ao invés, «não só os Recorrentes descreveram os factos, como alegaram quais as disposições violadas», quando, segundo cremos, não será, sequer, ab initio, controvertido ter sido omitida a menção de semelhantes normas, não querendo o mesmo Senhor Juiz, decerto, referir-se a tal (mas, antes, e tão só, à questão referente à narração factual), em face da evidência da menção dos art.ºs 203.º, n.º 1, 212.º, n.º 1, e 213.º, n.º 2, al. a), por remissão ao art.º 202.º, al. b), todos do Código Penal – aludindo os aqui assistentes em sede recursiva à al. c) do n.º 3 do art.º 283.º do Código de Processo Penal, sucede que, por força das alterações introduzidas pela Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro, essa alínea passou a ser, ao invés da c), a d), referente à «indicação das disposições legais aplicáveis», cujo comando os mencionados assistentes observaram;
10. Afigurando-se-nos, consequentemente, não importar discorrer aqui senão sobre a observância, ou não, do estatuído na al. b) do n.º 3 do art.º 283.º, ex vi do n.º 2 do art.º 287.º, ambos do Código de Processo Penal, a saber, quanto à supra referida «narração (…) dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança», entendemos que semelhante narração mostra-se efectuada com suficiente acerto no requerimento instrutório apresentado pelos ora recorrentes;
11. Designadamente, quando é aí referido que: «[o]s assistentes arrendaram o seu imóvel sito na Rua … n.º …, …, … aos arguidos, em boas condições de utilização, em 01 de abril de 2016» (art.º 4.º), «[o]s arguidos tiveram a posse legítima do imóvel, desde a data da celebração do contrato de arrendamento até à entrega das chaves do locado» (art.º 5.º), «[o]s arguidos agiram com o propósito único de destruir o locado como vingança pela não renovação do contrato de arrendamento por parte dos denunciantes, querendo e conseguindo a impossibilidade de utilização subsequente» (art.º 15.º), «[q]uiseram e conseguiram destruir propriedade alheia» (art.º 16.º), «[o]s atos de destruição praticados nas diversas divisões do imóvel, estão representados nos fotogramas apresentados com a queixa (…), pelo que não podem deixar de ser valorados como intencionalmente provocados» (art.º 21.º), «[e] por demais evidente que os arguidos, com a sua conduta criminosa, quiseram e conseguiram provocar danos avultados no locado» (art.º 22.º), «[e] quiseram fazer seus os objetos que furtaram, a saber a porta do quadro elétrico, o bidé da casa de banho e os outros bens constantes da queixa crime» (art.º 23.º), «[o] comportamento dos arguidos (…) é demonstrativo do dolo existente nas suas ações, …) ao retirar o chão, cortar a porta da entrada etc.., conhecia e queria inutilizar o imóvel, que não era seu, não permitindo novo arrendamento do imóvel» (art.º 26.º), «[o] objeto do crime é um imóvel, com o valor de € 58.535,05» (art.º 28.º) e «[o]s arguidos (…) subtraíram e fizeram seus vários bens que se encontravam no locado na altura em que tomaram o imóvel de arrendamento» (art.º 30.º).”
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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, acompanhando a posição assumida na primeira instância e defendendo a procedência do recurso e a revogação da decisão recorrida.
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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo os recorrentes vindo acrescentar ao já por si alegado.
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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.
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2 – Objecto do Recurso
Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. Neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, in Sumários do STJ, www.stj.pt).
A questão a decidir neste recurso consiste, assim, em saber se a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que determine a admissão do requerimento de abertura de instrução, por não existir inadmissibilidade legal da mesma.
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3- Fundamentação:
3.1. – Fundamentação de Facto
É a seguinte a decisão recorrida:
“ O requerimento para abertura da instrução interposto pela figura processual do assistente deve estruturar-se como uma verdadeira acusação, dele devendo nomeadamente constar a narração, ainda que sintética, dos concretos factos imputados ao arguido ou visado e as normas legais aplicáveis, estruturando-se — enfim — como a acusação que, na perspectiva do requerente, deveria ter sido pelo Ministério Público deduzida.
Tal manifestamente não ocorre no requerimento de abertura de instrução agora propugnado pelos assistentes a folhas 196 e seguintes: não obstante ser possível extrair genérico sentido — material e jurídico — do pretendido pelos requerentes, carece o documento daquela estrutura e da necessária concretização, o que suscita equívocas dificuldades interpretativas não apenas aos demais sujeitos processuais como ao próprio tribunal.
Assim, e porquanto não é este requerimento suscetível de aperfeiçoamento, rejeita-se o mesmo por inadmissibilidade legal — conferir artigo 287.º n.º 3 do Código de Processo Penal.”
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3.2.- Mérito do recurso
Vem o presente recurso interposto da decisão do Tribunal a quo que rejeitou o requerimento dos assistentes para abertura de instrução, com fundamento na inadmissibilidade legal da mesma, face ao disposto no art.º 287º, nº 3 do Cód. de Proc. Penal.
Segundo o previsto no art.º 286º, nºs 1 e 2 do Cód. de Proc. Penal, a instrução é uma das fases preliminares do processo, com carácter facultativo, que visa a comprovação judicial do despacho de encerramento do inquérito, ou seja, da decisão de deduzir acusação ou despacho de arquivamento, em ordem a submeter ou não uma causa a julgamento.
Diz-nos o citado art.º 287º, nos seus nºs 1 e 2, que a abertura da instrução pode ser requerida no prazo de vinte dias, a contar da notificação da acusação ou do arquivamento, não estando o requerimento sujeito a formalidades especiais, mas devendo conter, em súmula, as razões de facto e de direito da discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que se justifique, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do art.º 283º do mesmo diploma.
Prevê-se nesta norma que:
“ 3 - A acusação contém, sob pena de nulidade:
(…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis; (…)”.
Ora, a instrução a requerimento do assistente, na sequência da não acusação do arguido, tem por finalidade conseguir a submissão deste a julgamento pelos factos que, no entender do assistente, consubstanciam a prática de uma actividade criminosa e que podem levar à aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança.
Por esta razão, e em obediência aos princípios do acusatório e do contraditório que regem o processo penal, o requerimento de abertura de instrução do assistente tem que ter uma estrutura semelhante a uma acusação, dado que, à semelhança do que é exigido para a acusação, o citado art.º 287º, nº 2 impõe que o requerimento contenha a descrição clara e ordenada, ainda que sintética, de todos os factos susceptíveis de responsabilizarem criminalmente o arguido, ou seja, dos factos que preencham todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime e que permitam conduzir a uma decisão de pronúncia.
Este requerimento, em caso de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público, equivalerá em tudo a uma acusação, condicionando e limitando, da mesma forma, a actividade de investigação do juiz e a própria decisão final instrutória.
Tal como acontece com a acusação, também o requerimento de abertura da instrução tem em vista delimitar o thema probandum desta fase processual, ou seja, determina o âmbito e o limite da intervenção do juiz em sede de instrução.
A vinculação do Tribunal aos factos alegados, limitadora da atividade instrutória, decorre não só da natureza judicial desta fase processual, como também da estrutura acusatória do processo penal e das garantias de defesa do arguido, consagradas no art.º 32º, nºs 1 e 5 da CRP, e não só funciona como mecanismo de salvaguarda do arguido contra o alargamento arbitrário do objecto do processo, como lhe permite a preparação da defesa, no respeito pelo princípio do contraditório.
É que na instrução não se pode fazer uma verdadeira investigação, porquanto a mesma não é um novo inquérito, nem se pode através dela alcançar os objetivos próprios do inquérito, havendo outros meios processuais adequados a esse efeito, como sejam a intervenção hierárquica e a reabertura do inquérito, previstos nos art.sº 278º, nº 2 e 279º do Cód. Proc. Penal.
Admitir entendimento diverso, levaria a transferir para o juiz o exercício da ação penal, ao arrepio de todos os princípios constitucionais e legais em vigor, e a transformar a natureza da instrução de contraditória em inquisitória. ( Confrontar, neste sentido, o Acórdão do TRP de 15/09/2010, proferido no processo nº 167/08.0TAETR-C1.P1, em que foi relator Vasco Freitas, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “(…) De facto, a liberdade de investigação conferida ao juiz de instrução pelo art. 289º como decorrência do princípio da verdade material que enforma o processo penal, e que lhe permite levar a cabo, autonomamente, diligências de investigação e recolha de provas, não é absoluta, porque está condicionada pelo objecto da acusação. A actividade processual desenvolvida na instrução é uma actividade “materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações”. Entre as causas de rejeição do requerimento para abertura de instrução previstas taxativamente no nº 3 do art. 287º conta-se a “inadmissibilidade legal da instrução”. Neste conceito cabem apenas as deficiências do conteúdo de tal requerimento, nomeadamente quando dele resultar falta da tipicidade da conduta - e já não as suas deficiências formais. Devendo a pronúncia descrever os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (nº 1 do art. 308º), se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente não contiver tais factos - e sendo nula a pronúncia que os viesse a incluir a despeito de tal omissão -, então temos que, em tais casos, a instrução é inútil, porque não pode legalmente conduzir à pronúncia do arguido. Ora, não admitindo a lei a prática de actos inúteis (arts. 137º do C.P.C. e 4º do C.P.P.), será “legalmente inadmissível a instrução quando seja requerida pelo assistente e este não descreva no seu requerimento os factos integradores do crime pelo qual pretende a pronúncia do arguido (…)”).
Relacionado com estas exigências está também o regime de nulidades previsto no art.º 309º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, o qual comina com a nulidade a decisão instrutória “na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução”.
De tudo o exposto decorre que o legislador quis efectivamente conferir ao requerimento para abertura da instrução uma feição e estrutura similares a uma acusação, devendo o mesmo conter todos os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e ter o seu objecto definido de uma forma clara e suficientemente rigorosa, a fim de permitir a organização da defesa.
É o que defende Germano Marques da Silva, in “ Curso de Processo Penal III”, págs. 136 e 137: “Em tal caso, de instrução requerida pelo assistente, o seu requerimento deverá, a par dos requisitos do nº1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório, e à elaboração da decisão instrutória”.
Nesta matéria, também se pronunciou Souto Moura, in “ Jornadas de Direito Processual Penal “, págs. 120 e 121: “Se o assistente requerer a abertura da instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será inexequível”.
E ainda Henriques Gaspar, in “As exigências da investigação no processo penal durante a fase de instrução” - “Que Futuro para o Processo Penal”, 2009, pág. 92 e 93: “ (…) a estrutura acusatória do processo determina que o thema da decisão seja apresentado ao juiz, e que a decisão deste se deva situar dentro da formulação que lhe é proposta no requerimento para a abertura de instrução. (…) Os termos em que a lei dispõe sobre a definição do objecto da instrução através do requerimento para abertura desta fase processual têm de ser compreendidos pela estrutura e exigências do modelo acusatório. (…) O requerimento para a abertura de instrução constitui pois o elemento fundamental de definição e de determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas delimitada pelo tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura de instrução.”
É também este o sentido em que vem decidindo a jurisprudência maioritária, referindo-se a título de exemplo o acórdão do STJ de 13/01/2011, proferido no processo nº 3/09.0YGLSB.S1, em que foi relator Arménio Sottomayor, in www.dgsi.pt e onde se pode ler que: “ I – O requerimento para abertura da instrução, quando apresentado pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento do MP, deve observar o disposto no art. 283.º, n.º 3, als. b) e c), do CPP, quer dizer, deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis. II - Não tendo sido formulada acusação pelo MP, o requerimento para a abertura da instrução funciona como equivalente dessa acusação, do qual decorre a vinculação factual que o juiz tem de respeitar, pautando a sua conduta no processo, por força do princípio do acusatório, dentro dos parâmetros fornecidos por aquela delimitação factual, uma vez que o juiz não actua oficiosamente e não investiga por conta própria, embora dirija e conduza a instrução de forma autónoma. III -Nestes casos, o requerimento para a abertura de instrução subscrito pelo assistente, não sendo uma acusação em sentido processual-formal, deve constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo, resultando da falta de indicação dos factos essenciais à imputação da prática de um crime ao agente a inutilidade da fase processual de instrução. IV -Um dos princípios que presidem às normas processuais é o da economia processual, entendida como a proibição da prática de actos inúteis (art. 137.º do CPC). O CPP não contém norma equivalente, mas tal não impede a aplicação deste preceito nos termos do art. 4.º do CPP, por se harmonizar em absoluto com o processo penal, havendo afloramentos do referido princípio no art.311.º, ao permitir ao juiz rejeitar a acusação manifestamente infundada e no art. 420.º ao prever a rejeição do recurso quando for manifesta a sua improcedência. V - Se o juiz de instrução, apreciando o requerimento do assistente, concluir que de modo algum o arguido poderá ser pronunciado, uma vez que os factos que narra jamais constituirão crime, deve rejeitar tal requerimento, por o debate instrutório nenhuma utilidade ter, porque “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, … quando este for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido” (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/2005). VI -A instrução é de considerar legalmente inadmissível quando, pela simples análise do requerimento para a abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se concluir que os factos narrados pelo assistente jamais podem levar à aplicação duma pena ao arguido. VII - Nos casos em que exista um notório demérito do requerimento de abertura de instrução, a realização desta fase constitui um acto processual manifestamente inútil por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia. VIII - O assistente indicou, com minúcia, a conduta do denunciado que, na sua óptica, era integradora dos tipos de crime que entende preenchidos; porém, claudicou quanto ao elemento subjectivo, ficando-se pelo mero uso de expressões conclusivas, sem alegar qualquer facto capaz de pôr em evidência o motivo por que o denunciado voluntariamente assim agiu. IX -Como os poderes de indagação do juiz de instrução se encontram limitados pelos factos alegados, vedado lhe fica indagar das razões por que aquele teria agido contra direito com a finalidade de prejudicar o assistente e de beneficiar a contra-parte, o que constitui verdadeiramente um dos pressupostos do requerimento de abertura de instrução.(…).”
Voltando ao caso dos autos, do requerimento de abertura da instrução em apreço decorre que os crimes cuja prática os assistentes pretendem imputar aos arguidos são os de dano qualificado e de furto, previstos e punidos, respectivamente, pelos arts.º 212º, nº 1 e 213º, nº 2, alínea a) do, por remissão do art.º 202º, alínea b), e no art.º 203º, nº 1 todos do Cód. Penal.
O crime de dano vem tipificado no art.º 212º, nº 1 do Cód. Penal, onde se lê que:
“Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa ou animal alheios, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”
Já o crime de dano qualificado está previsto no art.º 213º do mesmo diploma, pela seguinte forma:
“1 - Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável:
a) Coisa ou animal alheios de valor elevado;
b) Monumento público;
c) Coisa ou animal destinados ao uso e utilidade públicos ou a organismos ou serviços públicos;
d) Coisa pertencente ao património cultural e legalmente classificada ou em vias de classificação; ou
e) Coisa ou animal alheios afetos ao culto religioso ou à veneração da memória dos mortos e que se encontre em lugar destinado ao culto ou em cemitério;
é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.
2 - Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa ou animal alheios:
a) De valor consideravelmente elevado;
b) Natural ou produzida pelo homem, oficialmente arrolada ou posta sob protecção oficial pela lei;
c) Que possua importante valor científico, artístico ou histórico e se encontre em colecção ou exposição públicas ou acessíveis ao público; ou
d) Que possua significado importante para o desenvolvimento tecnológico ou económico;
é punido com pena de prisão de dois a oito anos.
3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 204.º e 2 e 3 do artigo 206.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 207.º
4 - O n.º 1 do artigo 206.º aplica-se nos casos da alínea a) do n.º 1 e da alínea a) do n.º 2.”
Quanto ao que se deva entender por valor consideravelmente elevado, diz-nos o art.º 202º, alínea b) do Cód. Penal, que o mesmo consiste no valor que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto.
Já o crime de furto está tipificado no art.º 203º, nº 1 do Cód. Penal, pela seguinte forma:
“Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”
Como se vê, estes crimes são dolosos quanto ao seu elemento subjectivo.
De acordo com o disposto no art.º 14º do Cód. Penal, o dolo pode assumir uma das seguintes modalidades:
“1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.
2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.
3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.”
Para justificar o preenchimento dos crimes pelos arguidos, alegaram apenas os assistentes que:
“ 4) Os assistentes arrendaram o seu imóvel sito na Rua …, n.º…, … aos arguidos, em boas condições de utilização, em 01 de abril de 2016, conforme demonstram os documentos e os fotogramas apresentados com a queixa-crime.
5) Os arguidos tiveram a posse legítima do imóvel, desde a data da celebração do contrato de arrendamento até à entrega das chaves do locado.
14) Os arguidos sabiam que tinham de entregar o arrendado no estado em que o encontraram, mas não o fizeram.
15) Os arguidos agiram com o propósito único de destruir o locado como vingança pela não renovação do contrato de arrendamento por parte dos denunciantes, querendo e conseguindo a impossibilidade de utilização subsequente.
16) Quiseram e conseguiram destruir propriedade alheia.
19) E mesmo com a confissão do arguido CC, que negou a prática dos crimes na sua generalidade, embora confessando que “…retirou o bidé da casa de banho mais pequena (…) e afirma ter deitado essa loiça para o lixo…”.
22) E por demais evidente que os arguidos, com a sua conduta criminosa, quiseram e conseguiram provocar danos avultados no locado.
23) E quiseram fazer seus os objetos que furtaram, a saber a porta do quadro elétrico, o bidé da casa de banho e os outros bens constantes da queixa crime.
26) O comportamento dos arguidos, sem qualquer tipo de informação ou contacto aos assistentes, no mínimo indicaria uma atitude de má fé por parte dos arguidos, mas é demonstrativo do dolo existente nas suas ações, pois o arguido ao retirar o chão, cortar a porta da entrada etc.., conhecia e queria inutilizar o imóvel, que não era seu, não permitindo novo arrendamento do imóvel.
30) As condutas dos arguidos preenchem também o tipo legal de crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203, n.º 1 do Código Penal, uma vez que subtraíram e fizeram seus vários bens que se encontravam no locado na altura em que tomaram o imóvel de arrendamento.”
Ora, analisado o requerimento de abertura de instrução, verifica-se que no mesmo os assistentes se limitam a alegar, genericamente, que os arguidos destruíram partes de um seu imóvel e dai retiraram alguns bens.
Sucede, porém, que os mesmos não alegam, nem descrevem quais foram concretamente todos os bens destruídos e retirados do imóvel pelos arguidos, as suas características, as datas ou o período temporal em que tal ocorreu e o valor dos bens destruídos que permitiria qualificar o dano pelo seu valor consideravelmente elevado, não podendo resultar esta qualificação do valor do imóvel danificado, mas antes do valor dos bens eventualmente danificados, pois em parte alguma do requerimento de abertura da instrução se alega que o imóvel dos assistentes foi completamente danificado por acção dos arguidos.
É que não é admissível no requerimento de abertura de instrução a indicação de factos meramente exemplificativos ou condicionais, nem obedece às exigências de descrição dos factos a remissão para fotogramas e para o requerimento de apresentação de queixa, como fazem os assistentes.
O requerimento de abertura de instrução tem que ter uma estrutura semelhante a uma acusação e conter a descrição completa, ainda que sintética, dos factos cuja prática se imputa aos arguidos e não uma descrição dos factos meramente episódica ou exemplificativa.
Na verdade, a admitir-se um requerimento de abertura de instrução com estas características, equivaleria a impedir o exercício do direito do contraditório por parte dos arguidos, pois os mesmos não se conseguem defender de uma descrição genérica e exemplificativa de factos como a que temos em apreço.
Impõe-se concluir que não foram alegados pelos assistentes factos integradores dos elementos objectivos dos crimes cuja prática imputam aos arguidos suficientes para uma pronúncia.
Também não se mostram alegados factos que permitam concluir pelo preenchimento do elemento subjectivo especial do tipo de crime de furto, pois em lado nenhum se refere a intenção de apropriação para si ou para outrem dos bens que os arguidos teriam retirado do imóvel dos assistentes.
Esta ausência de alegação revela uma insuficiência de factos impossível de suprir pelo Juiz de Instrução, como supra referido.
Apesar de não existirem “fórmulas sacramentais” de descrição de factos, há mínimos de descrição factual que os recorrentes não cumpriram relativamente a todos os elementos destes tipos legais de crime.
Ora, a ausência da descrição dos referidos factos no requerimento de abertura da instrução constitui motivo para a sua rejeição, sendo de aplicar aqui a doutrina fixada pelo STJ no seu Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015, publicado no D.R. nº 18/2015, Série I de 27/01/2015, por identidade de razão, e que é a seguinte: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.» ( neste sentido decidiu também o Acórdão do TRE, datado de 17/03/2015, proferido no processo nº1161/12.1GBLLE.E1, em que foi relator Sérgio Corvacho, in www.dgsi.pt ).
Não tendo sido articulados no requerimento de abertura da instrução todos os factos necessários a uma eventual decisão de pronúncia, impõe-se concluir que os assistentes não cumpriram o ónus previsto no art.º 283º, nº 3, al. b) do Cód. Proc. Penal, o que importa a rejeição liminar do requerimento de abertura da instrução, nos termos do art.º 287º, nº 3 do mesmo diploma, por inadmissibilidade legal desta fase processual.
É que ao não serem elencados todos os factos necessários a uma decisão de pronúncia, é inútil iniciar a fase de instrução, segundo o princípio constante do art.º 130º do Cód. Proc. Civil, aplicável por remissão do art.º 4º do Cód. Proc. Penal (cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário ao Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, 2007, página 737).
O STJ tem entendido que na densificação do conceito da «inadmissibilidade legal da instrução» se integram os casos em que, pela simples apreciação do requerimento de abertura de instrução, e sem recurso a qualquer elemento externo, o juiz possa concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à pronúncia do arguido e à eventual aplicação de uma sanção após o julgamento, seja por falta de pressupostos processuais, seja pela não verificação de condições objectivas de punibilidade, seja porque os factos invocados não constituem um crime.
Neste contexto, há ainda que ter em conta a seguinte jurisprudência fixada no acórdão do STJ nº 7/2005, de 12/05/2005, in www.dgsi.pt:
“ Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”
Por estar vedado ao juiz o convite ao aperfeiçoamento do requerimento do assistente, torna-se necessário que este alegue no requerimento de abertura de instrução todos os factos concretos suscetíveis de integrar os elementos, objetivos e subjetivos, do tipo de crime que imputa ao arguido, pois a sua posterior adição constituirá uma alteração substancial dos factos, nos termos previstos no art.º 1º, al. f) do Cód. Proc. Penal, que a lei não permite.
Em suma, estaremos perante um caso de inadmissibilidade legal da instrução, que dará lugar à sua rejeição, nos termos do nº 3 do citado art.º 287º do Cód. Proc. Penal, quando da análise do requerimento para abertura da instrução resulta que o assistente não cumpriu o ónus de descrever com clareza todos os factos dos quais decorre o cometimento pelo arguido de determinado ilícito criminal, pelo que, em consequência, também não delimitou o objeto do processo, não permitiu o exercício do direito de defesa e não forneceu ao Tribunal os elementos sobre os quais teria que proferir um juízo de suficiência ou insuficiência dos indícios da verificação dos pressupostos da punição.
Foi o que sucedeu no caso dos presentes autos.
Impõe-se, assim, concluir que a decisão recorrida não merece censura, julgando-se o presente recurso improcedente.
*
4 – Decisão
Pelo exposto, acordam as Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo-se integralmente a decisão do Tribunal a quo.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC´s.
Évora, 16 de Dezembro de 2024
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Carla Francisco
(Relatora)
Maria Filomena Soares
Laura Goulart Maurício
(Adjuntas)