INVENTÁRIO
SUCESSÃO POR MORTE
RESIDÊNCIA HABITUAL DO FALECIDO
Sumário

I - O âmbito de aplicação do Regulamento UE 650/2012 abrange todas as questões de direito civil da sucessão por morte, ou seja, todas as formas de transferência de bens, direitos e obrigações por morte, independentemente de se tratar de um ato voluntário de transferência ao abrigo de uma disposição por morte, ou de uma transferência por sucessão ab intestato (considerando 9).
II - É fator de conexão geral para a determinação da competência e da lei aplicável, a residência habitual do falecido no momento do óbito.
III - Para a determinação da residência habitual, ficou explícito no considerando 23 que a autoridade que trata da sucessão deverá proceder a uma avaliação global das circunstâncias da vida do falecido durante os anos anteriores ao óbito e no momento do óbito, tendo em conta todos os elementos factuais pertinentes, em particular a duração e a regularidade da permanência do falecido no Estado em causa, bem como as condições e as razões dessa permanência.
Devendo a residência habitual assim determinada revelar uma relação estreita e estável com o Estado em causa, tendo em conta os objetivos específicos do presente regulamento.
IV - Um cidadão português emigrante e respetivo cônjuge de nacionalidade francesa, que em 2012 decidem fixar residência definitiva em Portugal / Porto, tendo para o efeito trazido todos os seus pertences de França, na execução de um projeto de ali viverem até à data da sua morte e que, num contexto de doença, passados mais de 4 anos regressam a França, onde foram acolhidos na casa de uma irmã da requerente cônjuge onde passaram a viver até ao seu óbito, o qual viria a ocorrer dois meses após, mantendo no entanto a intenção de regressarem a sua casa sita no Porto, tem à data do seu óbito a residência habitual em Portugal.

Texto Integral

Processo nº. 9227/22.3T8PRT-A.P1
3ª Secção Cível

Relatora – M. Fátima Andrade
Adjunta – Teresa Sena Fonseca
Adjunto – Carlos Gil

Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Jz. Local Cível do Porto

Apelante/ AA






Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC):
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório
1) AA requereu em 20/05/2022, o presente inventário para partilha da herança aberta por óbito de seus sogros – BB falecida em ../../1990 e CC falecido em ../../1997 - ambos com última residência habitual no Porto e que faleceram sem deixar testamento ou outra disposição de última vontade.
2) Aos inventariados sucederam seus dois únicos filhos:
DD, casado com a requerente.
E EE, casado com FF.
3) No dia ../../2016 faleceu em ..., França, DD, no estado de casado em primeiras núpcias com a requerente, sem descendentes ou ascendentes vivos, sem deixar testamento ou disposição de última vontade.
4) No dia ../../2015 faleceu no Porto, EE, no estado de casada com FF. Este falecido por sua vez em ../../2019, igualmente no Porto, onde residiam. Sem deixarem testamento ou disposição de última vontade.
Tendo-lhes sucedido, como única herdeira sua filha GG, no estado de casada com HH.
Neta dos inventariados e que a requerente indicou para exercer as funções de CC.
5) No requerimento inicial indicou ainda a requerente ser casada com o falecido filho dos inventariados no regime de comunhão geral de bens, bem como indicou ter este falecido no Porto, onde residia.
6) Admitida a cumulação do inventário por óbito do identificado casal e nomeada para exercer as funções de cabeça de casal a indicada GG, prestou esta CC o compromisso de bem exercer as suas funções e apresentou as declarações de cabeça de casal, bem como a relação de bens.
Nestas declarações tendo confirmado serem os dois filhos identificados pela requerente [DD e EE] os únicos herdeiros do casal inventariado.
No mais, corrigiu o alegado pela requerente quanto ao regime de casamento desta com o falecido herdeiro DD, bem como morada do mesmo.
Concretamente tendo alegado ter este herdeiro falecido em França, onde tinha a sua última residência.
Mais tendo alegado:
- ter sido celebrado em França o casamento entre a requerente e DD, em 06/06/1959 e sem convenção antenupcial, pelo que o regime de bens aplicável a tal casamento seria o regime supletivo ou imperativo previsto na lei francesa, nos termos do nº 2 do artigo 53º do CC;
- ainda que assim se não entendesse e sendo aplicável a lei portuguesa, porquanto o casamento só foi transcrito e registado em Portugal em 10/10/2024, o regime de bens aplicável ao mesmo seria igualmente o regime da comunhão de adquiridos.
Daqui concluindo que a requerente AA não foi herdeira dos inventariados, apenas o tendo sido o seu marido e filho daqueles.
Pelo que e porquanto o falecido teve a sua última residência em França e não escolheu lei para regular a sua sucessão, se lhe aplica a lei francesa por força do Regulamento UE 650/2012 de 04/07/2012.
De onde resulta que [nos termos dos artigos 757º 2 e 3 do CC Francês] recebem os irmãos ou descendentes do falecido DD metade dos bens que o falecido tenha recebido por herança ou doação dos seus ascendentes – o chamado direito de retorno da lei francesa.
Motivo por que da parte da herança dos inventariados que caberia ao falecido marido da requerente, esta apenas receberá metade, ficando a outra metade para a CC (neta dos inventariados) Maria do Rosário.
O mesmo é dizer, a requerente apenas receberá ¼ da totalidade da herança dos inventariados.
7) Notificada a requerente, veio impugnar as declarações da CC quanto ao regime de bens aplicável ao seu casamento. Que defendeu ser o regime de comunhão geral de bens.
Bem como impugnou o alegado quanto à morada do falecido marido, afirmando que tinha o mesmo uma relação manifestamente mais estreita com Portugal do que com a França.
Tendo em março de 2012 o casal fixado residência definitiva em Portugal / Porto.
De onde saiu por expulso pela CC, vindo a falecer 2 meses depois em França. Pelo que representaria manifesto abuso de direito que deste comportamento da CC e pela aplicabilidade da Lei Francesa, passasse a pertencer-lhe metade do património que àquele pertencia.
Pugnando assim pela distribuição dos bens da herança dos inventariados em metade, pela CC e requerente.

Respondeu ainda a CC a este requerimento de impugnação das suas declarações, pugnando pela sua improcedência.
Tendo ambas as interessadas oferecido prova documental e testemunhal, foi agendada audiência prévia, seguida de audiência para a produção da prova testemunhal oferecida.

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Após foi proferida decisão julgando:
“improcedente a impugnação apresentada pela impugnante / interessada AA contra as declarações prestadas pela cabeça-de-casal”.
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Notificada do assim decidido, interpôs a requerente recurso de apelação, alegando e a final aduzindo as seguintes
“Conclusões
I) Considerando a matéria provada, a residência habitual de DD, no momento do óbito, não era em França, mas em Portugal, na Travessa ..., no Porto, razão pela qual, nos termos da disposição vertida no n.º 1, do art. 21º, do Regulamento citado, a lei aplicável à sua sucessão é a portuguesa.
II) Sempre e quando assim se não entenda, então é inequívoco que resulta claramente do conjunto das circunstâncias do caso que, no momento do óbito, o falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita com Portugal do que com França, sendo, por conseguinte, aplicável à sua sucessão a lei portuguesa (n.º 2, do art. 21º, do Regulamento citado).
III) Com efeito, durante o período em que permaneceu emigrado, o filho dos inventariados DD vinha, habitualmente, três vezes por ano a Portugal: nas férias de Verão, no Natal e na Páscoa, instalando-se, sempre, na morada de casas da Travessa ..., no Porto, pertencente à sua família.
IV) Em março de 2012, DD e a requerente AA fixaram residência definitiva em Portugal, na dita Travessa ..., no Porto, num dos imóveis pertencentes à herança, tendo trazido todos os seus pertences de França, na execução do projeto de ali viverem até à data da sua morte.
V) Porém, no mês de Maio de 2016, então encontrando-se DD, com 87 anos de idade, doente, bastante debilitado, a passar os dias em casa, entre a cama e o sofá, regressou, juntamente com a sua mulher, requerente do Inventario, a França, indo viver para casa da sua cunhada, irmã da requerente AA, II, residente em ..., em França, vindo a falecer cerca de 2 meses após esse regresso, em França, sendo que, antes do óbito de DD, quer este, quer a requerente AA pretendiam regressar à sua casa na Travessa ..., no Porto.
VI) Por conseguinte, entendemos que o facto de o DD, por motivos de saúde, ter ido passar uma temporada a casa de uma cunhada, em França, com intenção de regressar à sua casa na Travessa ..., no Porto, onde havia fixado residência definitiva 4 anos antes, não tendo logrado concretizar esta sua intenção, porque, entretanto, cerca de 2 meses depois de chegar a casa da cunhada, morreu, não implica que passe a ter residência habitual em França e uma relação mais estreita com França do que com Portugal.
A decisão recorrida violou o artigo 21.º Regulamento EU 650/2012, de 4 julho de 2012.
(…)
Termos em que, deve o presente recurso proceder, considerando-se antes aplicável a lei portuguesa à sucessão de DD, assim se fazendo justiça.”

Contra-alegou a CC, em suma pugnando pela manutenção da decisão.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida em separado e efeito suspensivo.
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Foram dispensados os vistos legais.
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II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pela apelante ser questão a apreciar se a impugnação aduzida às declarações da CC merece procedência.
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III- Fundamentação

O tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
“A) Factos provados
Com relevância para a decisão a proferir resultaram provados os seguintes factos:
1. O filho dos inventariados DD casou civilmente com a requerente do inventário, AA, em 6 de junho de 1959, na Câmara Municipal ..., ..., em França.
2. O casamento foi celebrado em França sem convenção antenupcial, sendo a nubente AA de nacionalidade francesa e o nubente DD de nacionalidade portuguesa, residindo ambos habitualmente em França à data do casamento.
3. DD faleceu em ../../2016.
4. O casamento foi averbado em Portugal em 10 de outubro de 2014, na 4ª Conservatória do Registo Civil do Porto, através do assento nº ...41/2014.
5. No assento de casamento - n.º ...41 do ano de 2014 – consta cota, datada de 10-10-2014, com a descrição da informatização do assento consular n.º ...19/1993, lavrado no Consulado de Portugal em ..., França, integrado sob o n.º ...50/1996, em 31 de maio de 1996, na Conservatória dos Registos Centrais, em Lisboa.
6. Os nubentes não tinham, nem jamais tiveram, filhos.
7. Celebraram aquelas núpcias sendo as primeiras e únicas de ambos, tendo o nubente DD então 30 anos de idade e a nubente AA 21.
8. Durante o período em que permaneceu emigrado, o filho dos inventariados DD vinha, habitualmente, três vezes por ano a Portugal: nas férias de Verão, no Natal e na Páscoa, instalando-se, sempre, na morada de casas da Travessa ..., no Porto, pertencente à sua família.
9. Após a morte de DD, o IMI referente aos imóveis pertencentes à herança dos inventariados passou a ser pago, na proporção de metade para cada uma, pela requerente e pela cabeça de casal.
10. Em março de 2012, DD e a requerente AA fixaram residência definitiva em Portugal, na dita Travessa ..., no Porto, num dos imóveis pertencentes à herança;
11. Tendo trazido todos os seus pertences de França;
12. Na execução do projeto de ali viverem até à data da sua morte.
13. Porém, no mês de maio de 2016, então encontrando DD, com 87 anos de idade, doente, bastante debilitado, a passar os dias em casa, entre a cama e o sofá;
14. Regressou, juntamente com a sua mulher, requerente do Inventario, a França;
15. Indo viver para casa da sua cunhada, irmã da requerente AA, II, residente em ..., em França;
16. Vindo a falecer cerca de 2 meses após esse regresso, em França.
17. Antes do óbito de DD, quer este, quer a requerente AA pretendiam regressar à sua casa na Travessa ..., no Porto.
18. DD foi sepultado em França.
19. Depois que regressou a França, a requerente só veio uma vez a Portugal, vivendo em França e sem quaisquer intenções de regressar a Portugal.”

Julgou ainda o tribunal a quo como não provados, os seguintes factos:
B) Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente os que a seguir se enunciam:
a. Que logo que os inventariados faleceram, na década de 90 do século passado, passou a ser o seu filho DD, ajudado pela sua mulher, que tratava de todos os assuntos relacionados com o património dos inventariados, designadamente documentação, pagamento de impostos, realização de trabalhos de conservação.
b. Que a cabeça de casal expulsou o seu tio DD e a sua mulher AA daquela casa onde moravam na Travessa ..., dizendo-lhes para irem para a terra da AA (França).
c. Que a cabeça de casal chegou a empurrar a AA no seu afã de que abandonassem a casa onde há anos residiam e pretendiam continuar a residir até ao final dos seus dias.
d. Que foi perante a atitude demonstrada pela outra herdeira do património que aos inventariados pertencia, que DD, vendo-se impedido de proteger a sua mulher, com quem vivia e estava casado há mais de 50 anos, decidiu regressar a França.
e. Que logo que chegou a França, DD foi-se muito abaixo animicamente.”
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Conhecendo.
Tendo o presente inventário sido intentado em maio de 2022, é-lhe aplicável quanto à sua tramitação o regime do CPC constante dos artigos 1082º do CPC [redação conferida pela Lei 117/2019 de 13/09 – vide artigos 11º e 15º desta Lei].
O presente recurso foi admitido ao abrigo do previsto no artigo 1123º nº 2 al. b) do CPC.
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O objeto do recurso é delimitado por via das conclusões, não podendo o tribunal de recurso conhecer de questões que nas mesmas não sejam elencadas – em obediência ao disposto no artigo 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do CPC.
Analisadas as conclusões de recurso, extrai-se estar em causa qual a lei aplicável ao conjunto da sucessão por óbito de DD.

A questão assim colocada e subjacente à impugnação deduzida pela requerente do inventário às declarações da CC, impõe um prévio enquadramento do objeto processual.

Os autos de inventário foram instaurados para partilha da herança aberta por óbito de BB e CC, ambos de nacionalidade portuguesa, residentes e falecidos em 1990 e 1997 em Portugal e com bens relacionados em Portugal.
O mesmo é dizer que, no que à sucessão dos inventariados respeita, não está em causa uma sucessão transfronteiriça que demande a aplicação de normas do direito da união europeia, nomeadamente o previsto no regulamento UE 650/2012.
Tendo os inventariados deixado como únicos herdeiros dois filhos, o seu património é, numa primeira linha, dividido em duas partes iguais.
Cabendo cada uma dessas partes a cada um dos seus dois filhos (ou aos seus sucessores).
O problema colocou-se pela circunstância de um dos filhos dos inventariados – DD, falecido em ../../2016 (na verdade também a outra filha havia já falecido em 2015, seguida do falecimento do seu cônjuge em 2019, pelo que à data da instauração do processo de inventário, era sucessora única destes a CC Maria do Rosário) não ter deixado descendentes, apenas cônjuge sobrevivo e de nacionalidade francesa. Tendo também o casamento sido celebrado em frança, onde o casal residiu e onde o interessado veio a falecer.
Neste contexto, veio a CC alegar que o cônjuge do falecido DD não é herdeira dos inventariados – quanto a tal inexiste qualquer dúvida, nem nunca a mesma o alegou – e que a lei que regula a sucessão do falecido cônjuge da mesma e filho dos inventariados é a lei francesa, por força do previsto no Regulamento UE 650/2012. Da lei francesa decorrendo que na inexistência de descendentes, recebem os irmãos do falecido metade dos bens que este tenha recebido por herança ou doação dos seus ascendentes – o chamado direito de retorno da lei francesa.
Daqui retirando a conclusão de que ½ do que será o quinhão do cônjuge da requerente deverá, de acordo com tais regras sucessórias, ser logo entregue à CC e não ao cônjuge do falecido herdeiro que, na qualidade intitulada de única herdeira daquele veio requerer o inventário, pugnando pelo direito a ½ da herança dos inventariados que a seu cônjuge caberia, por via do direito de transmissão (vide artigo 2058º do CC).
O tribunal a quo, após produção de prova e da fixação dos factos provados que acima se deixaram já elencados e não vêm impugnados, pelo que se têm por definitivamente assentes, entendeu por aplicação do previsto nos artigos 4º e 21º nº 2 do Regulamento UE 650/2012, ter o falecido DD à data do óbito residência habitual em França e por tal ser aplicável ao conjunto da sucessão a lei do Estado onde tinha tal residência habitual, ou seja, a lei francesa.
Concluindo assim pela improcedência da impugnação deduzida pela requerente do inventário às declarações da CC..

É contra este entendimento e tendo por base a mesma factualidade que a recorrente se insurge. Defendendo que à data do óbito de seu marido a residência habitual do mesmo era em Portugal, sendo como tal aplicável à sua sucessão a lei portuguesa.
Ainda que assim se não entendesse, sempre devendo ser entendido que era com Portugal que o mesmo mantinha uma relação mais estreita, também por esta via concluindo pela aplicação da lei portuguesa à sua sucessão.
Sempre e para tanto convocando a factualidade que vem julgada provada.

A sucessão do falecido DD convoca efetivamente a aplicação do Regulamento UE 650/2012 já que implica a legislação de mais do que um Estado-Membro, in casu e de acordo com a factualidade apurada, Portugal e França.

Na prossecução do objetivo da União em manter e desenvolver um espaço de liberdade, de segurança e de justiça em que seja assegurada a livre circulação das pessoas e para tanto adotando medidas no domínio da cooperação judiciária em matéria civil que tenham incidência transfronteiriça que assegurem a compatibilidade das normas aplicáveis nos Estados-Membros em matéria de conflitos de leis e de jurisdição, foi em 2009 aprovado um programa para alargamento do reconhecimento mútuo a novas matérias não abrangidas pelo anterior programa de 2004. Entre as quais, sucessões e os testamentos, tendo sempre em consideração os sistemas jurídicos, incluindo a ordem pública e as tradições nacionais neste domínio.
Com vista a alcançar tal desiderato – eliminando dificuldades às pessoas para exercerem os seus direitos no âmbito de uma sucessão com incidência transfronteiriça - foi elaborado o Regulamento 650/2012, visando agrupar as disposições sobre a competência judiciária, a lei aplicável, o reconhecimento ou, consoante o caso, a aceitação, a executoriedade e a execução das decisões, dos atos autênticos e das transações judiciais, bem como sobre a criação do certificado sucessório europeu (vide considerandos 1 a 8 deste regulamento).
Regulamento UE 650/2012 cujo âmbito de aplicação abrange todas as questões de direito civil da sucessão por morte, ou seja, todas as formas de transferência de bens, direitos e obrigações por morte, independentemente de se tratar de um ato voluntário de transferência ao abrigo de uma disposição por morte, ou de uma transferência por sucessão ab intestato (considerando 9).
Sem, todavia, se aplicar a questões relacionadas com o regime de bens no casamento, incluindo as convenções antenupciais previstas nalguns sistemas jurídicos, na medida em que tais convenções não tratem de matérias sucessórias, nem a questões relacionadas com regimes de bens no âmbito de relações que se considere produzirem efeitos equiparados ao casamento.
Sem prejuízo de deverem as autoridades que tratem de determinada sucessão ao abrigo do presente regulamento e em função da situação, ter em conta a liquidação de um eventual regime de bens no casamento ou regime de bens semelhante do falecido ao determinarem a herança do falecido e as quotas-partes dos beneficiários (vide considerando 12).
Tendo em conta a mobilidade crescente dos cidadãos e a fim de assegurar a boa administração da justiça na União e para assegurar uma conexão real entre a sucessão e o Estado-Membro em que a competência é exercida, ficou previsto no regulamento 650/2012 da UE como fator de conexão geral, para fins de determinação da competência e da lei aplicável, a residência habitual do falecido no momento do óbito – vide artigo 4º do regulamento e em cumprimento do considerando 23.
E, para efeitos de ser determinada a residência habitual, ficou explícito neste considerando 23 que a autoridade que trata da sucessão deverá proceder a uma avaliação global das circunstâncias da vida do falecido durante os anos anteriores ao óbito e no momento do óbito, tendo em conta todos os elementos factuais pertinentes, em particular a duração e a regularidade da permanência do falecido no Estado em causa, bem como as condições e as razões dessa permanência. A residência habitual assim determinada deverá revelar uma relação estreita e estável com o Estado em causa tendo em conta os objetivos específicos do presente regulamento.
Acrescentando-se ainda nos considerandos 24 e 25 a propósito da determinação da residência habitual do falecido e assim da lei sucessória aplicável:
- (24) Em certos casos, poderá ser complexo determinar a residência habitual do falecido. Poderá ser esse o caso, em particular, quando o falecido, por razões profissionais ou económicas, tenha ido viver para o estrangeiro a fim de aí trabalhar, por vezes por um longo período, mas tenha mantido uma relação estreita e estável com o seu Estado de origem. Nesse caso, o falecido poderá, em função das circunstâncias, ser considerado como tendo ainda a sua residência habitual no Estado de origem, no qual se situavam o centro de interesses da sua família e a sua vida social. Outros casos complexos poderão igualmente ocorrer quando o falecido tenha vivido de forma alternada em vários Estados ou tenha viajado entre Estados sem se ter instalado de forma permanente em nenhum deles. Caso o falecido fosse um nacional de um desses Estados ou tivesse todos os seus principais bens num desses Estados, a sua nacionalidade ou o local onde se situam esses bens poderia ser um fator especial na apreciação global de todas as circunstâncias factuais;
- (25) No que diz respeito à determinação da lei aplicável à sucessão, a autoridade que trata da sucessão pode, em casos excecionais – quando, por exemplo, o falecido se tenha mudado para o Estado da sua residência habitual muito pouco tempo antes da sua morte e todas as circunstâncias do caso indiquem que tinha uma relação manifestamente mais estreita com outro Estado – chegar à conclusão de que a lei aplicável à sucessão não deverá ser a do Estado da residência habitual do falecido, mas sim a lei do Estado com o qual o falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita. No entanto, a relação manifestamente mais estreita não deverá tornar-se em fator de conexão subsidiário caso se revele complexa a determinação da residência habitual do falecido no momento do óbito.
Remetendo este considerando 25 para o previsto no artigo 21º do Regulamento que define a regra geral para a definição da lei aplicável ao conjunto da sucessão:
“1. Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha residência habitual no momento do óbito.
2. Caso, a título excecional, resulte claramente do conjunto das circunstâncias do caso que, no momento do óbito, o falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplicável nos termos do n.º 1, é aplicável à sucessão a lei desse outro Estado.”
Podendo esta regra geral ser afastada por via de escolha previamente feita nos termos dos artigos 22º e segs. do regulamento, sem aplicação para a situação dos autos.

Enquadrado o âmbito de aplicação deste Regulamento, bem como os critérios interpretativos das suas normas com relevo para o objeto deste recurso, afigura-se-nos que a interpretação dos factos seguida pelo tribunal a quo, ao considerar que dos mesmos se infere que à data do óbito o falecido tinha residência habitual em França, com a consequente aplicação da lei francesa ao conjunto da sucessão, merece censura.

Note-se que dos factos provados resulta que o falecido e seu cônjuge após uma longa vida em comum, em que o mesmo permaneceu emigrado (e assim a viver em França – vide fp´s 2 e 8), decidiram em 2012 fixar residência definitiva em Portugal / Porto, num dos imóveis pertença da herança – vide fp 10.
Para o efeito tendo trazido todos os seus pertences de França, na execução de um projeto de ali viverem até à data da sua morte (fp´s 11 e 12).
Em 2016 – passados mais de 4 anos – o entretanto falecido adoece e bastante debilitado regressou com a sua mulher a França, onde foram acolhidos na casa de uma irmã da requerente, onde passaram a viver.
Tendo o nos autos herdeiro e filho dos inventariados ali vindo a falecer 2 meses depois (vide fp’s 13 a 16).
Acresce vir ainda provado que antes do óbito de DD, era intenção do mesmo e sua mulher regressarem “à sua casa” sita no Porto – vide fp 17.
Perante a factualidade apurada e que acima realçámos e tendo presentes os critérios de aferição indicados nos considerandos 23 e 24, não se acompanha o entendimento de que o falecido tinha à data do óbito residência habitual em França, quando o mesmo se havia mudado e de forma definitiva para Portugal onde residiu durante 4 anos, transportando todos os seus pertences para a morada onde fixou residência e de onde apenas saiu, para casa de uma cunhada em situação de doença, vindo a falecer 2 meses depois.
Certo sendo que vem ainda provado que, antes do óbito, era sua intenção (e de seu cônjuge) regressar a Portugal. Consentaneamente não vindo demonstrada uma qualquer atuação que permitisse inferir, com a ida para a França, uma intenção de nova mudança de residência. Nada consta quanto aos seus pertences que havia transportado para Portugal e que perante uma provada intenção, antes do óbito, de regressar, tudo indica não foram enviados para França. Permitindo inferir que os seus principais bens, também em Portugal se situariam.
Este circunstancialismo nos 4 anos anteriores ao falecimento do interessado DD, incluindo o estado de doença em que se deslocou para França e onde foi acolhido em casa de uma cunhada, onde passou a viver, durante dois meses apenas até à sua morte, justificam o entendimento de que então o mesmo mantinha ainda uma relação estreita e estável com Portugal, onde mantinha a sua residência habitual - desde há 4 anos, de forma permanente e de onde se ausentou por dois meses até à sua morte, mas para onde pretendia regressar.
O circunstancialismo apurado e acima analisado à luz dos considerandos 23 e 24 do Regulamento EU 650/2012, permite-nos assim concluir que à data da morte do interessado DD, a sua residência habitual era no Porto, Portugal.
Concluindo, um cidadão português emigrante e respetivo cônjuge de nacionalidade francesa, que em 2012 decidem fixar residência definitiva em Portugal / Porto, tendo para o efeito trazido todos os seus pertences de França, na execução de um projeto de ali viverem até à data da sua morte e que, num contexto de doença, passados mais de 4 anos regressam a França, onde foram acolhidos na casa de uma irmã da requerente cônjuge onde passaram a viver até ao seu óbito, o qual viria a ocorrer dois meses após, mantendo no entanto a intenção de regressarem a sua casa sita no Porto, tem à data do seu óbito a residência habitual em Portugal.
Implicando, nos termos do artigo 21º do mesmo regulamento, que a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado Português, onde o falecido mantinha residência habitual no momento do óbito.
Uma última nota para referir que embora o tribunal a quo não tenha emitido pronúncia quanto ao regime de bens aplicável ao casamento celebrado entre a requerente do inventário e o falecido DD, questão também suscitada pela CC nas suas declarações, facto é que a mesma não faz parte do objeto do recurso e como tal sobre a mesma não nos cumpre emitir pronúncia.

Nesta medida impõe-se revogar a decisão recorrida, na parte em que entendeu, de forma diversa, ser aplicável a lei francesa à sucessão de DD.
Sendo de julgar procedente a impugnação aduzida pela recorrente no que respeita à lei aplicável à sucessão que é a portuguesa.
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IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente procedente o recurso interposto, consequentemente e revogando a decisão recorrida, julgando procedente a impugnação deduzida pela requerente do inventário no que concerne à Lei aplicável à sucessão que se declara ser a portuguesa.

Custas do recurso pela recorrida.

Porto, 2024-12-11.



(M. Fátima Andrade)
(Teresa Sena Fonseca)
(Carlos Gil)