I. O requerente do apoio judiciário continua a beneficiar da interrupção do prazo para deduzir embargos de terceiro, ainda que constitua mandatário e venha a praticar o ato através deste, por não lhe ter sido concedida a modalidade pretendida.
II. Não se deve confundir a categoria de prédio misto, de natureza fiscal, com a divisão civilística das coisas imóveis, em prédios rústicos e urbanos.
III. Tendo sido penhorado ¼ de um prédio, classificado, para efeitos estritamente fiscais, como misto, e ordenado o levantamento dessa penhora, em resultado da procedência dos embargos, não pode o segundo grau cindir a penhora, mantendo a decisão do primeiro grau quanto a uma putativa parte urbana e ordenando o prosseguimento da execução quanto à parte rústica.
IV. A proibição de reformatio in pejus impede que o STJ revogue a decisão da Relação, na parte em que esta se apresenta favorável ao recorrente.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
Alega ter adquirido o imóvel penhorado em inventário para partilha dos bens do casal constituído pela executada e pelo embargante.
O exequente embargado contestou e pediu, por via da reconvenção, a declaração da nulidade da aquisição pelo embargante do imóvel, com fundamento em simulação negocial, bem como o cancelamento da inscrição a favor do embargante junto das finanças.
O embargante, por sua vez, respondeu à reconvenção, pugnando pela sua improcedência total.
Após audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que:
- julgou procedentes os embargos de terceiro e, consequentemente, determinou o levantamento da penhora sobre o prédio. .
- julgou improcedente a reconvenção deduzida;
- absolveu a executada do pedido de condenação como litigante de má fé formulado pelo exequente.
Inconformado, interpôs o embargado/exequente competente recurso.
Na Relação de Coimbra, o relator proferiu decisão singular a julgar a apelação parcialmente procedente, e, consequentemente:
-- julgou parcialmente procedentes por parcialmente provados os embargos de terceiro e por isso determinou o levantamento da penhora que incide sobre 1/4 do prédio misto sito em Vale ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...00, freguesia de ..., no que tange à parte inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...78;
- e mandou prosseguir a execução no que tange à penhora de ¼ sobre as partes rústicas do mesmo prédio: a inscrita na matriz predial rústica sob o n.º ...46 e a inscrita na matriz predial rústica sob o artigo ...48, todos da União de Freguesias de ..., ... e ...;
- julgou improcedente a reconvenção deduzida;
- absolveu a executada do pedido de condenação como litigante de má fé formulado pelo exequente.
Reclamou o apelante para a conferência, a qual deliberou confirmar a decisão impugnada.
De novo inconformado, interpôs o embargado/exequente competente recurso de revista.
Neste grau julgou-se ter havido omissão de pronúncia, porquanto, tendo sido suscitadas duas questões que alegadamente obstavam à tempestividade dos embargados, a saber, uma relacionada com o termo a quo do conhecimento da penhora (artigo 344.º) e com a prova desse conhecimento (n.º 5 dos factos assentes), e outra, consistente em o embargado ter alegado que o embargante serviu-se do apoio judiciário apenas para beneficiar de prazo adicional para deduzir embargos, apenas se conheceu da primeira.
Na sequência, este tribunal anulou o acórdão recorrido e ordenou a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Coimbra, para aí ser proferido acórdão que incida sobre a mencionada matéria não reapreciada, de forma cabal e devidamente fundamentada, pelos mesmos juízes quando possível.
Baixados os autos, o Tribunal da Relação, reapreciando a referida questão, julgou que «o embargante não se serviu do apoio judiciário para beneficiar de prazo adicional para deduzir os presentes embargos de terceiro» e, em consequência, «julgou improcedente a arguição».
O embargante interpôs de novo recurso de revista, concluindo assim, desta vez:
1ª Vem o presente recurso de revista do acórdão da Relação de Coimbra que julgou tempestivos os embargos deduzidos nos autos e alterou parcialmente a decisão de 1ª instância, decidindo-se manter a penhora de uma parte do prédio aqui em causa e ordenar o levantamento da penhora relativamente a outra parte do mesmo prédio.
2ª Relativamente à decisão da tempestividade dos embargos, verifica-se que o acórdão fez incorrecta interpretação jurídica, ao considerar que a decisão da segurança social indeferiu o pedido de apoio judiciário solicitado pelo embargante ou que só poderia obter pagamento faseado da taxa de justiça.
3ª De facto, a segurança social, por falta de prova e em sede de audiência de interessados, notificou o embargante para apresentar prova da sua situação de carência económica aduzindo que da análise da mesma poderia ter apenas direito a pagamento faseado da taxa de justiça e se nada dissesse no prazo de 10 dias seria indeferido o pedido de apoio judiciário formulado.
4ª Porém, não juntou, exibiu ou apresentou qualquer elemento probatório da sua insuficiência económica no prazo que lhe foi concedido para o efeito.
5ª E, depois de expirado o prazo para se pronunciar, aguardou que a decisão de indeferimento da Segurança Social se tornasse definitiva para beneficiar de novo prazo para a dedução de embargos de terceiro tendo, então, pago a taxa de justiça e constituído mandatário, cujo mandato de presume, aliás, oneroso.
6ª Manifestamente, não tinha necessidade do apoio judiciário solicitado, tendo beneficiado ilegalmente de prazo adicional para deduzir os embargos, com efeito ficou provado que teve conhecimento da penhora em 17.04.2022 mas apenas em 20.06.2022 deduziu os embargos.
7ª O que configura um expediente ilegal pelo que o Tribunal, ao considerar os embargos tempestivos, fez incorrecta interpretação jurídica.
8ª Por outro lado, embora no acórdão recorrido se tenha alterado a decisão de 1ª instância e mantido a penhora da rústica parte do prédio aqui em causa e determinado o levantamento da penhora relativamente à parte urbana, tal decisão não fez também o correto enquadramento jurídico
9ª Efectivamente, estando aqui em causa um prédio misto o mesmo constitui um só prédio e uma unidade registal pelo que nem podiam ser deduzidos embargos relativamente a uma parte do prédio, não sendo, nesse contexto, legalmente admissível o levantamento da penhora de parte do prédio misto.
10ª E, estando registada a favor da executada a aquisição de ¼ do referido prédio misto sobre o qual incidiu a penhora também registada, sem que exista qualquer direito inscrito no registo predial a favor do embargante, o levantamento da penhora relativamente a uma parte do prédio a favor do embargante constitui uma violação da obrigação de registar, da oponibilidade do registo e do trato sucessivo.
11ª Tendo, assim, a decisão recorrida violado os artigos 2.º, nº 1 alínea a), 5.º, nº 1 e 34.º, nº 2 do Código do Registo Predial.
NESTES TERMOS e noutros de direito doutamente supridos deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via do mesmo, declararem-se os embargos intempestivos e/ou revogar-se a decisão recorrida julgando-se os embargos totalmente improcedentes com o que se fará TOTAL JUSTIÇA».
O embargante contra-alegou pugnando pela improcedência da revista.
i) O embargante usou de expediente ilegal, ao requerer o benefício de apoio judiciário com o único propósito de dilatar o prazo de dedução dos embargos.
ii) Se é admissível o levantamento da penhora de parte do chamado prédio misto.
iii) Os embargos devem ser julgados improcedentes e mantida a penhora do prédio.
1 – Nos autos principais, encontra-se penhorado ¼ do prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de ... com o n.º ...00, freguesia de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...78 e na matriz predial rústica sob o artigo ...46 (cfr. Auto de penhora junto aos autos de execução em 16-03-2022, que aqui se dá por integralmente reproduzido).
2 – No registo predial do imóvel referido em 1), encontra-se registada:
- a aquisição de ¼ do imóvel a favor da executada em 6-12-1993, por doação;
- a penhora de ¼ a favor da exequente, em 7-03-2022.
3 – Nos autos de inventário subsequente a divórcio n.º 540/09.6..., que correu termos no Juízo de Família e Menores de ..., foi adjudicado ao embargante o prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...78 da União de Freguesias de ..., ... e ... (anterior artigo ...36 da extinta freguesia de ...), por sentença transitada em julgado em 26 de fevereiro de 2020.
4 – O prédio urbano referido em 3) encontra-se inscrito nas Finanças em nome do embargante.
5 – O embargante teve conhecimento da penhora no dia 17 de abril de 2022.
6 – Por requerimento de 22 de abril de 2022, o embargante informou os autos de execução que havia requerido junto da Segurança Social a concessão de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento da compensação de patrono.
7 – Por notificação expedida em 17 de maio de 2022, a Segurança Social informou o embargante ser sua intenção indeferir o apoio judiciário referido em 6) e da possibilidade de o mesmo vir a beneficiar da modalidade de pagamento faseado, sendo que, na falta de resposta em dez dias, a proposta de decisão convertia-se em definitiva, não havendo lugar a nova notificação.
8 – Os presentes embargos de terceiro foram intentados em 20 de Junho de 2022 tendo a douta petição inicial sido subscrita pela Sra. Dra. DD, Ilustre Advogada, constituída nos autos por procuração passada a seu favor e datada de 15 de Junho de 2022.
9 – A executada e os seus filhos menores residem no imóvel descrito em 3).
Entende o recorrente, como vimos, que o embargante utilizou o regime de apoio judiciário apenas para poder ampliar o prazo para a dedução dos embargos.
Não tem razão.
Sob a epígrafe «autonomia do procedimento», o artigo 24.º da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho (LAJ) preceitua:
1. O procedimento de protecção jurídica na modalidade de apoio judiciário é autónomo relativamente à causa a que respeite, não tendo qualquer repercussão sobre o andamento desta, com excepção do previsto nos números seguintes:
2. (…)
3. (…)
4. Quando o pedido de apoio judiciário é apresentado na pendência de acção judicial e o requerente pretende a nomeação de patrono, o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo.
5. O prazo interrompido por aplicação do disposto no número anterior inicia-se, conforme os casos:
a) A partir da notificação ao patrono nomeado da sua designação;
b) A partir da notificação ao requerente da decisão de indeferimento do pedido de nomeação de patrono.
No caso sujeito, o embargante teve conhecimento da penhora no dia 17 de Abril de 2022.
Em 20 de Junho de 2022, ou seja, muito além do prazo de 30 dias, a que alude o artigo 344.º, 2 do Código de Processo Civil (serão deste código os artigos ulteriormente citados, sem menção específica), foram instaurados os embargos.
Todavia, na pendência destes, por requerimento de 22 de Abril de 2022, o embargante informou de que havia requerido a concessão de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento da compensação de patrono.
Tal significa que, de acordo com o citado número 4 do artigo 24.º da LAJ, o decurso do trintídio foi interrompido.
A interrupção implica que todo o tempo decorrido anteriormente fica inutilizado. Só a partir da notificação ao embargante da resposta da Segurança social se soltou novo prazo para a dedução dos embargos.
Na verdade, por notificação expedida em 22 de Maio de 2022, a Segurança Social informou o embargante ser sua intenção indeferir o pedido de apoio judiciário referido e da possibilidade de o mesmo vir a beneficiar da modalidade de pagamento faseado, sendo que, na falta de resposta em dez dias, a proposta de decisão convertia-se em definitiva, não havendo lugar a nova notificação.
Então, com data de 15 de Junho de 2022, o embargante passou procuração à senhora advogada Dra. DD, a qual apresentou em petição em juízo, como vimos em 20 de Junho de 2022, isto é dentro do prazo. Diante desta factualidade, não se pode falar em uso indevido dos meios legais ou de de abuso do processo.
O primeiro grau analisou bem a questão ao aderir à ideia que «o requerente do apoio judiciário continua a beneficiar da interrupção do prazo ainda que constitua mandatário e venha a praticar o ato através deste, por não lhe ter sido concedida a modalidade pretendida (dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e pagamento da compensação de patrono) e a Segurança Social pretender atribuir apenas a modalidade de pagamento faseado».
Como justificação argumentou que «afigura-se compreensível que o embargante, confrontado com o indeferimento do apoio judiciário na modalidade pretendida (dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e pagamento da compensação de patrono), opte por prescindir da concessão de apoio na modalidade de pagamento faseado, uma vez que tal regime se afigura muito mais gravoso. Com efeito, o requerente terá de suportar a prestação fixada até que o somatório da mesma exceda quatro vezes o valor da taxa de justiça inicial (artigo 13.º da Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de agosto), para além das consequências gravosas da falta de pagamento tempestivo de uma das prestações (artigo 10.º, n.º 1, alínea f), da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho)».
Para suporte desta posição, o primeiro grau invocou três acórdãos: RL de 9.7.2014, Proc. 97/12, RG de 22.9.2016 e RP de 25.9.2018.
No primeiro, a Relação de Lisboa resolveu um caso em que o requerente, depois de lhe ter sido concedido patrocínio judiciário, constituiu mandatário (um caso diferente do actual).
Entendeu o segundo grau que se deveria «equacionar a possibilidade de se estar perante uma situação de utilização abusiva de um mecanismo legal, desviando-se do fim a que se destina para obter uma vantagem ilícita, no caso um aumento do prazo para a prática de um ato processual, fora das situações em que tal é facultado pela lei», para concluir que na hipótese in judicatio.
Possibilidade que deveria ser analisada e resolvida à luz dos «mecanismos legais de correcção do aludido desvio, atinentes ao abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil) e à repressão da litigância de má fé (artigos 8.º e 542.º)», mas in casu inaplicáveis pois nada ficou demonstrado acerca das razões que subjazeram à apresentação do pedido de apoio judiciário.
No acórdão da Relação de Guimarães de 22.9.2016, Proc. 1428/12, respondeu-se afirmativamente à questão de saber se «aproveita ou não ao réu contestante, que constituiu mandatário (e subscreveu a contestação), após a nomeação de patrono oficioso, o alargamento do prazo para contestar por via desse pedido de nomeação de patrono».
Argumentou-se que «não decorre da referida LAJ qualquer entrave ou condição resolutiva à interrupção do prazo em curso (no caso, da contestação), possibilitando, pois, o alargamento desse prazo sem mais, após a notificação ao patrono nomeado», que «importa não descurar que a concessão de apoio judiciário, na modalidade de nomeação e pagamento da compensação de patrono, é atribuída à parte requerente e não ao patrono/advogado»; que o alargamento do prazo para contestar «compreende-se, não só nos casos de necessidade de o requerente do apoio judiciário consultar e preparar a sua defesa com o advogado oficiosamente nomeado, como nas situações em que o requerente perdeu confiança neste ou se desentendeu ou ainda simplesmente decidiu constituir um advogado porque a sua situação económica melhorou (podendo custear os seus honorários) ou recorreu a um empréstimo, tudo na perspectiva de que com tal patrocínio voluntário os seus direitos são melhores defendidos; que não se vislumbra, nem na letra da lei, nem no seu espírito, que fosse intenção do legislador cercear esse alargamento do prazo nas situações, como a presente, em que, reiniciado o prazo da contestação, por força do apoio judiciário concedido ao réu, se lhe coarctasse o direito de beneficiar desse prazo mais longo e, consequentemente, para esse efeito de exercício do seu direito de defesa através de advogado constituído»; se assim fosse, estaria em causa o próprio exercício do direito de defesa, a liberdade de escolha de defensor e, em última instância, do direito a processo justo e equitativo, constitucionalmente consagrados».
Por sua vez, no acórdão da Relação do Porto de 25.9.2018, Proc. 5027/12, que também versou sobre um caso em que os beneficiários de apoio judiciário, na modalidade de patrocínio judiciário, não fizeram uso deste benefício, antes deduziram oposição através de mandatário constituído, admitiu igualmente que lhes aproveitava a interrupção do prazo previsto no artigo 24.º, 4 acima citado.
Isto porque a conduta daqueles beneficiários, «ao deduzirem oposição não através do patrono que lhes fora nomeado, mas sim através de mandatário por eles constituído, beneficiando daquela interrupção de prazo, não deve ser encarada como fraude à lei e assim como uma forma, iníqua, de obter uma prorrogação de prazo a que não teriam direito».
Pois bem, no caso sujeito, a ratio decidendi, pelas razões elencadas, que se julgam adequadas, não deve ser diversa.
Na verdade, a razão de ser da interrupção do prazo para contestar e ulterior início de um novo prazo, é a mesma, quer nos casos analisados em que, como vimos, é concedido apoio e depois intervém na causa patrono constituído, quer no caso vertente, em que é peticionado o patrocínio e depois perante uma resposta dos serviços da Segurança Social se arrepia caminho e se constitui mandatário: possibilitar a parte que invocou não ter condições económicas para suportar os custos da constituição de mandatário não seja prejudicado por efectivamente não as ter ou, quando não veja reconhecida a sua pretensão, a litigar com apoio judiciário, possa, ainda assim, fazer valer o seu direito.
É certo que tal comportamento pode ter na base uma intenção não querida pelo legislador: o aproveitamento abusivo e de má fé de um mecanismo pensado para a protecção através da lei e n~~ao para o aproveitamento menos ético desta.
Todavia, a este respeito nada transpareceu nos autos.
Neste ponto o recurso falece.
Como é sabido, não são penhoráveis bens de terceiro, relativamente à execução.
Se mesmo assim forem penhorados, a lei faculta ao possuidor (ou ao titular de um direito incompatível) o meio defensivo constituído pelos embargos de terceiro (artigos 1285.º CC e 342.º).
O embargante veio defender o seu direito, na qualidade de proprietário do prédio parcialmente penhorado.
Podia inquestionavelmente fazê-lo, nessa qualidade e enquanto terceiro, pois que, usando de plenos poderes sobre a coisa penhorada, pode reagir contra todos os atentados que se dirijam contra o bem e a respectiva posse.
A questão suscitada pelo recorrente e objecto de análise neste capítulo, tem subjacente um equívoco quanto à natureza do prédio misto, que supostamente teria sido penhorado e quanto à natureza e extensão da penhora.
As decisões das instâncias não contribuíram para o esclarecimento da questão, antes a tornaram mais opaca.
Vejamos.
Não se deve confundir a categoria de prédio misto, de natureza fiscal, com a divisão civilística das coisas imóveis em prédios rústico e urbanos (artigo 204.º, 1, al. a) e 2 CC).
A questão foi analisada, com acuidade, no acórdão do STJ de 14.1.2021, Proc. 14.1.2021, 892/18.7T8JA.E1.S1.
Começa-se aí justamente por sublinhar que «o conceito de prédio misto, vale apenas para efeitos fiscais» e que se trata, na expressão do acórdão do STJ, de 28.02.2008 Proc. 08A075, de uma definição fiscal, assente num critério de predominância da parte principal, «ou seja, a parte que avultar no conjunto é que determina a qualificação como prédio rústico ou urbano; se tal juízo de predominância não for alcançável, o prédio é considerado misto».
A nossa lei civil, porém, «não só não reconhece a categoria de prédio misto como um tertium genus, nem aceita o critério de predominância da parte rústica ou urbana, como também não atende ao tipo de inscrição matricial nem ao tipo de descrição predial, pelo que, para qualificar um prédio como sendo rústico ou urbano, há que recorrer à definição dada pelo artigo 204º do C. Civil.
Segundo o nº 2 deste artigo, “Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro”.
De entre as teorias do valor; da afetação económica; do fracionamento e da consideração social propostas pela doutrina com base neste preceito, como critério de distinção entre prédio rústico e urbano, julgamos, na esteira da orientação consolidada na jurisprudência deste Supremo Tribunal , que tal distinção deve assentar, numa avaliação casuística, tendo subjacente o critério base de destinação ou afetação económica.
Assim, de acordo com este critério, «um prédio será rústico ou urbano conforme a habitação for fundamentalmente um meio de ligação à terra cultivada ou antes a terra constituir apenas um complemento da habitação e não um fim essencial da ocupação da habitação».
Um prédio com parte rústica e parte urbana, qualificado, no seu conjunto, como misto para efeitos fiscais, será qualificado, para efeitos civis, designadamente do disposto no nº 1 do art. 1380º do Código Civil, «como prédio rústico quando, essencialmente utilizado para cultura ou cultivo agrícola, a parte urbana estiver ao serviço da parte rústica desse prédio, não gozando de autonomia funcional».
E uma parcela de terreno, contígua a casa de habitação, será qualificada de prédio rústico ou logradouro de um prédio urbano, consoante não se destine ou seja destinada a proporcionar utilidade a este prédio».
No caso vertente, foi penhorado ¼ de um prédio, classificado, para efeitos estritamente fiscais, como misto.
Na relação de bens apresentada no inventário para partilha dos bens do casal constituído pelo embargante e a executada, esse prédio está descrito na verba n.º 42, como urbano, com uma área de 432,10m2, verba essa adjudicada ao ora recorrido.
Se compulsarmos a certidão predial actualizada do ajuizado prédio, descrito na Conservatória de Registo Predial de ..., sob o n.º ...80, verificamos que aí é referida a mesma área coberta de 432,10m2, e a área descoberta com 2440m2.
Pois bem: deverá entender-se que a quota parte penhorada reporta-se à realidade registal deste prédio, e não a um putativo prédio misto, que possa considerar-se segmentado, para efeitos de penhora, numa parte rústica e numa parte urbana, e penhorar autonomamente e em separado cada uma das partes.
A Relação tinha dois caminhos: ou julgava que não havia fundamento para levantar a penhora e então revogava a decisão do primeiro grau e mantinha a penhora feita, ou então julgava, ao invés, que o primeiro grau andou bem ao ordenar o levantamento da penhora, e confirmava a sentença impugnada.
´Não podemos seguir a Relação quando trilhou caminho muito diferente, quando afirma: «No caso dos autos a dimensão da área descoberta, que é considerável, face à área coberta, tendencialmente toda afecta à parte urbana, dá espaço para uma autonomia sólida da vertente rústica do prédio penhorado.
E essa vertente rústica da penhora não vem beliscada pela adjudicação ao Embargante da verba 42 da relação de bens do inventário.
Assim tem de subsistir a penhora de ¼ relativa ao prédio descrito na MATRIZ nº: ...46 NATUREZA: Rústica FREGUESIA: ..., ...e ..., e a penhora de ¼ relativa ao prédio descrito na MATRIZ nº: ...48 NATUREZA: Rústica FREGUESIA: ..., ... e ...».
A Relação parece esquecer que apenas foi penhorada uma quota ideal da executada no prédio descrito, mas só através de subsequente divisão da coisa comum, essa quota se concretizaria sobre parte específica dela.
O primeiro grau entendeu que, como o embargante era o proprietário do urbano, aquisição operada por partilha judicial homologada por sentença transitada em julgado em momento anterior ao da penhora, devia prevalecer o direito de propriedade e ser levantada a única penhora relativa ao imóvel.
Tem razão. Tanto a penhora como a aquisição do direito real de propriedade estão sujeitos a registo (artigo 2.º, 1, alíneas a) e n) do Código do Registo Predial-CRP).
Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros, depois da data do respectivo registo (artigo 5.º, 1 CRP).
O número 4 deste artigo contém uma noção restrita de terceiros, na linha da lição de Manuel de Andrade (Teoria Geral do Negócio Jurídico, Vol. II:19): Terceiros, para efeitos de registo são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
O registo, em Portugal, não é constitutivo (salvo o caso da hipoteca).
No caso, um direito real de garantia (a penhora), registada, confronta-se com a aquisição de um direito real de propriedade anterior, não registada.
Nesta situação, mesmo que o credor ignore que o bem já saiu da esfera jurídica do devedor, quando por via de embargos de terceiro se denuncia a verdade da situação, manter a apreensão executiva, «seria colocar o Estado, por via do aparelho judicial, a, deliberadamente, ratificar algo que vai necessariamente desembocar numa situação intrinsecamente ilícita» (cfr. acórdão uniformizador do STJ de 18 de Maio de 1999).
Seguindo a doutrina deste acórdão e de acordo com a noção restrita de terceiros, porque o imóvel quando foi penhorado já não pertencia à devedora, a penhora não podia garantir as dívidas do exequente e como bem alheio que é pode o seu titular embargar de terceiros.
Isto dito, sublinhe-se o dispositivo da sentença, que é clara e de fácil compreensão: «Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide este Tribunal:
- julgar procedentes, por provados, os presentes embargos de terceiro e, em consequência, determinar o levantamento da penhora que incide sobre o prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...78 da União de Freguesias de ..., ... e ...».
Quer isto dizer que a penhora de ¼ relativo a este prédio foi levantada in totu.
Mais equívoca foi a decisão singular do segundo grau (ulteriormente confirmada em conferência):
«Julgo parcialmente procedentes por parcialmente provados os embargos de terceiro e por isso determino o levantamento da penhora que incide sobre 1/4 do prédio misto sito em Vale ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ...sob o n.º ...00, freguesia de ..., no que tange à parte inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...78;
- e mando prosseguir a execução no que tange à penhora de ¼ sobre as partes rústicas do mesmo prédio: a inscrita na matriz predial rústica sob o n.º ...46 e a inscrita na matriz predial rústica sob o artigo ...48, todos da União de Freguesias de ..., ... e...».
Vendo bem as coisas, a Relação, em semelhante dispositivo, confirma a decisão de levantamento da penhora, mas complementa-a com o prosseguimento da execução quanto a uma penhora que não consta que tenha sido feita (a de ¼ da parte rústica).
Todavia, o recorrente, ao pugnar pela improcedência dos embargos, só poderia obter neste grau a repristinação da penhora originária, e não, claro está, esta penhora acrescida da penhora de ¼ sobre a parte rústica desse mesmo prédio, tal como a Relação decretou.
A Relação, ao contrário do primeiro grau, não se conformou com o direito. Porém, o STJ tem reconhecido a força obrigatória da parte não recorrida da decisão ex artigos 619.º,1 e 635.º, 2 (v.g. acórdãos do STJ de 7.02.2013, Proc. n.º 1720/05.9TBVCD.P1.S1 e de 21.03.2023, Proc. 1069/09.8TVLSB.S1).
A proibição de reformatio in pejus impede-nos de substituir a deliberação do colectivo de juízes por outra mais gravosa para o recorrente.
Luís Correia de Mendonça (Relator)
Teresa Albuquerque
Cristina Coelho