IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
PODER-DEVER DO JUIZ
NULIDADE SECUNDÁRIA
NULIDADE DE SENTENÇA
Sumário

I - Quando em causa a arguição da falta de determinação oficiosa pelo tribunal de uma 2ª perícia, em razão da inconclusividade ou incompletude da 1ª, essa possibilidade apenas opera, quando colocado em causa no recurso da decisão final o objecto da prova, no quadro da necessária impugnação da matéria de facto provada ou não provada.
II - A prevalência da apelação como meio impugnatório explica que a violação do art. 411º do CPC [ainda quando prefigurável a nulidade da decisão decorrente de um efeito consequencial, obtido por via do n.º 2 do art. 195.º do CPC, e não da subsunção às causas autónomas de nulidade das decisões previstas no art. 615.º do mesmo diploma] não caia inevitavelmente nas malhas do regime de arguição previsto no art. 195.º e seguintes, quando o recurso é admissível. Consequentemente, da sentença caberá recurso (normal) por error in judicando no julgamento pressuponente (a decisão de decidir sem a realização necessária do meio de prova que se impunha).
III - A superioridade da verdade material sobre a forma é a razão de ser da opção feita pelo legislador mediante a consagração do princípio do inquisitório em matéria da instrução do processo com forte compressão do princípio do dispositivo.
IV - O juiz tem o poder-dever de realizar ou ordenar oficiosamente as diligências necessárias ao apuramento da verdade, ainda quando as partes não as tenham requerido ou o tenham feito extemporaneamente.
V - Constituem-se como limites ao exercício deste poder-dever conferido pelo princípio do inquisitório, o princípio da imparcialidade do tribunal e o critério nos termos do qual tal exercício não poder ser uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseira e indesculpavelmente negligentes das partes em violação do princípio da auto-responsabilidade.

(Da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Processo 102623/22.1YIPRT. P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo Local Cível do Porto - Juiz 2

Relatora: Isabel Peixoto Pereira

1º Adjunto: Carlos Portela

2º Adjunto: Paulo Dias da Silva

Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.

A..., S.A., com sede na Avenida... - ... ... intentou contra B..., Lda., requerimento de injunção pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 9.597,41.

Alega, para o efeito, que no âmbito de subempreitada adjudicada pela requerida à requerente, esta executou uma série de trabalhos a mais dos inicialmente acordados, que importaram na quantia reclamada.

Citada, a Requerida deduziu oposição nos autos e pedido reconvencional, o qual não foi admitido. Excepcionou a Requerida a existência de defeitos da obra realizada.

Produzida a prova, foi proferida sentença, a qual julgou a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, condenou a Requerida, B..., Lda., a pagar à Requerente, A..., S.A., a quantia de € 9.315,00 (nove mil trezentos e quinze euros), acrescida de juros de mora vencidos desde a data de vencimento da fatura e vincendos, à taxa legal comercial, até integral e efetivo pagamento e da quantia de € 40,00 (quarenta euros).

É desta decisão que vem interposto o presente recurso, concluindo a Ré recorrente mediante as seguintes alegações:

1. A Recorrente é do firme entendimento que o Tribunal não podia, assim sem mais, isto é, sem o recurso a outro tipo de prova mais objetiva, no caso concreto, à prova pericial, decidir com segurança. De facto,

2. Perante opiniões dispares (a da Autora e a da Ré), não sendo possível ao Tribunal determinar, assim sem mais, a existência ou não de defeitos, para a Ré são defeitos, para a Autora não são defeitos, restava-lhe o juízo de equidade, socorrendo-se para tal da prova pericial. Nesta conformidade;

3. E atenta e falta de produção de prova realista e técnica, a qual não foi levada a cabo duma forma esclarecedora, ficou a Ré impedida de demonstrar a existência dos defeitos por si alegados em 14.º e 15.º da sua oposição, motivo pelo qual não poderia tal matéria ter sido dada como não provada o que infelizmente acabou por suceder (alíneas e), f) e g) da matéria dada como não provada) pontos esses que se devem considerar como incorretamente julgados.

4. O Sr. Perito no seu relatório pericial, referiu que no dia agendado para a realização da diligência de perícia, não foi disponibilizado o acesso ao interior do imóvel. Assim sendo;

5. E no que às questões colocada pela Ré e que se relacionam com os alegados defeitos no interior do imóvel, uma vez que não foi facultado o acesso, o Sr. Perito referiu desconhecer se os mesmos já haviam ou não sido corrigidos, não podendo por isso se pronunciar sobre aqueles dois quesitos, na sua totalidade, pelas razões apontadas. Sucede que;

6. A grande maioria dos defeitos alegados/denunciados e ordenados oportunamente peritar são interiores, pelo que, nunca poderia o Sr. Perito, que só teve acesso ao exterior, ficar habilitado a produzir o relatório, motivo inclusivamente pelo qual foi – na devida altura – pela Ré/Recorrente solicitado que o Sr. Perito fosse notificado para completar o relatório pericial, o que apesar de ter tido lugar, nunca por ele (cabalmente) esclarecido.

7. No caso objecto dos presentes autos, afigura-se-nos, atenta a natureza da factualidade em causa, ser insuficiente a prova testemunhal produzida para considerar como não provada a matéria de excepção alegada pela Ré no que à existência dos ditos e invocados defeitos diz respeito, devendo por isso o Tribunal a quo socorrer-se da prova pericial para superar as dúvidas existentes, prova essa que como é fácil de constatar não foi produzida na sua plenitude;

8. Até porque e conforme fotos recentemente obtidas no interior do imóvel objecto dos presentes autos, aqueles defeitos ainda lá estão.

9. A perícia levada a cabo pelo Sr. Perito, de forma incompleta e inconclusiva, manifesta-se como insuficiente, pouco clara, inconsistente, podendo-se considerar – no sentido amplo do art. 487 n.º 3 do CPC - inclusivamente como inexacta para abranger a deficiência, imprecisão, obscuridade, contradição, imprecisão e contradição do resultado da perícia. Posto isto;

10. E atenta a forma como o relatório foi apresentado, o Tribunal – para além das partes - podia ter ordenado oficiosamente e a todo o tempo a realização da segunda perícia, desde logo por se considerar absolutamente imprescindível e necessária para o apuramento da verdade. Acontece que;

11. E apesar disso não ter tido lugar, o Tribunal conseguiu – mesmo com uma perícia totalmente inconclusiva e inexacta – dar como não provada a matéria cuja realização de perícia havia antes sido por ele mesmo determinada, o que também não deixa de ser contraditório.

12. Não sendo possível ao Tribunal determinar, assim sem mais, a existência de defeitos, para a Ré são defeitos, para a Autora não são defeitos, restava-lhe o juízo de equidade, socorrendo-se da prova pericial que devia/podia por “ele” ter a título oficioso sido determinada, desde logo porque necessária para o apuramento da verdade e porque a que fora anteriormente realizada se demonstrou como incompleta e insuficiente, isto é, como inexacta face ao que se pretendia esclarecer, devendo-se por via do exposto considerar como incorrectamente julgados os factos e), f) e g) dos “factos não provados”.

13. Isto porque o Tribunal a quo, no uso dos poderes inquisitórios que a lei lhe confere, devia, atenta a dúvida que resulta da prova produzida, ter determinado a realização de uma segunda perícia. Consequentemente;

14. E em face das considerações expostas, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil, deverá o Tribunal da Relação do Porto ordenar a realização de uma (nova-completa) segunda perícia que deverá incidir sobre a factualidade atrás referida, o que conduz à anulação da decisão de facto e da sentença proferida.

Contra-alegou a Autora recorrida, pugnando pela total improcedência do recurso, nos termos e com os fundamentos que dos autos resultam.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II.

O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).

Assim, o presente recurso tem por objecto as seguintes questões, que se intrincam, como se explicitará:

a) do vício da sentença integrado pela não determinação oficiosa de 2ª perícia, em face da inconclusividade da 1ª e da insuficiência ou dúvida séria quanto aos factos integrantes da excepção de cumprimento defeituoso da prestação em função da prova efectivamente produzida em audiência, a reconduzir-se já ao

b) erro na apreciação da prova na sentença quanto à existência dos invocados defeitos ou vícios de execução da obra cujo preço vem pedido.

Quanto agora à efectiva interposição de recurso em matéria de facto, discorda-se da posição da Recorrida, que não o antevê, como contra-alega, já que patente, mormente nas conclusões das alegações, a vontade ou intenção de recorrer da matéria de facto, quanto às alíneas, justamente, dos factos não provados que se reconduziam à execução defeituosa da prestação.

Atente-se ao acórdão uniformizador do STJ nº 12/2023, de 17/10, que no seu segmento decisório diz não ser preciso que as conclusões do recurso expressamente contenham a indicação da decisão alternativa que o recorrente pretende [a alínea c) do nº 1 do artigo 640º do CPC], desde que isso resulte evidente da motivação. Ora, na fundamentação, este acordão também diz que o mesmo princípio (ou seja, não é obrigatório constar das conclusões) deve ser aplicado aos meios de prova que o recorrente entende imporem outra decisão [a alínea b) do nº 1 do artigo 640º do CPC]. Resta a alínea a) do nº 1 do artigo 640º do CPC - diz o mesmo acórdão, que tem obrigatoriamente de constar das conclusões, sob pena de rejeição, a indicação dos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.

Tem-se, pois, por caracterizado e passível de conhecimento o recurso da matéria de facto não provada na sentença, sob as alíneas e) a g).

Mais discutível já, perante os fundamentos do recurso mesmo, o âmbito de apreciação do erro de julgamento nessa parte, do qual se cuidará em sede própria, a do conhecimento do objecto do recurso.


*

Quanto ao vício da sentença…

Em causa a arguição da falta de determinação oficiosa pelo tribunal de uma 2ª perícia, em razão da inconclusividade ou incompletude da 1ª (já decidida pelo tribunal bem assim), na medida da dúvida séria quanto aos factos integrantes da excepção de cumprimento defeituoso da prestação em função da prova efectivamente produzida em audiência, pela contradição, decisivamente, entre os depoimentos das testemunhas da Autora e as declarações do legal representante da Ré/requerida…

Desde logo, como anota A. Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição, anotação ao art. 630º do CPC, ainda quando deva submeter-se ao regime geral de impugnação da legalidade do uso[1] de poderes-dever, a invocação da ausência dos pressupostos definidos pela lei[2] ou a alegação de que o acto extravasa o quadro das possibilidades legais[3], essa possibilidade apenas opera, quando colocado em causa no recurso da decisão final o objecto da prova, no quadro da necessária impugnação da matéria de facto provada ou não provada.

O poder de determinação oficiosa de diligências probatórias é discricionário em si, ainda quando vinculado à verificação efectiva das condicionantes previstas nas normas que o estabelecem, interesse ou virtualidade probatória. Assim, a omissão da determinação oficiosa de 2ª perícia não é recorrível a se com fundamento na sua ilegalidade, designadamente pela verificação das referidas condicionantes.

É-o apenas e só quando haja recurso sobre a matéria de facto à demonstração da qual se dirigia a diligência probatória não oficiosamente ordenada, invocada a falta desta como razão para o erro de julgamento.

É o que é determinado pela coerência sistemática do processo civil, num sistema que, após a reforma do CPC, como é generalizadamente reconhecido, intendeu reforçar os poderes do juiz quanto à tramitação processual e à produção da prova, robustecendo a oficiosidade, quer mediante a ampliação dos poderes de direcção e iniciativa, quer, reflexamente, na limitação aos recursos versando sobre tais decisões. Sobre a questão, por todos, A. Geraldes, loc. cit. e Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, p. 380.

O juiz é o destinatário da prova, cabendo às partes o principal papel na indicação/requerimento, apresentação dos meios de prova e realização desta, na tentativa de demonstração dos factos que interessam à boa decisão da causa, em linha com os princípios processuais do dispositivo (que rege ainda em sede probatória, do que o ónus da prova se constitui como a mais imediata e gravosa consequência) e da autorresponsabilidade das partes.

De todo o modo, o artigo 411.º do CPC (princípio do inquisitório) estabelece um “poder-dever” do juiz, incumbindo-lhe realizar ou ordenar oficiosamente as diligências relativas aos meios de prova propostos pelas partes, como aquelas não requeridas, na medida em que julgue que aquelas são necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio relativamente a factos que o Tribunal pode (e deve) conhecer.

No âmbito do princípio do inquisitório, previsto no art. 411º do CPC, não incumbe ao juiz apenas ordenar as diligências probatórias que não hajam sido solicitadas pelas partes. Sempre, além desta prova de iniciativa oficiosa, “ao juiz cabe também realizar ou ordenar as diligências dos procedimentos probatórios relativos aos meios de prova propostos pelas partes, na medida em que necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litigio” (como mostra o segmento do citado dispositivo legal: “mesmo oficiosamente”)[4].

O juiz como condutor do acto processual do julgamento e, neste, da produção da prova, não apenas pode, como tem de (em termos que infra melhor resultarão) determinar a realização das diligências probatórias que tenha como necessárias ao esclarecimento dos factos relevantes.

Em si, de forma autónoma e em abstracto, sem a impugnação concomitante e relevante da matéria de facto adquirida ou indemonstrada, não é admissível o recurso autónomo/interlocutório da decisão de omissão da determinação imposta pela regra legal da oficiosidade.

Ora, o recurso interposto quanto à omissão da determinação oficiosa da produção de prova pericial pelo juiz relaciona-se, expressa e invocadamente, com a impugnação da matéria de facto, na parte em que se houve por não provada a execução defeituosa da prestação, concretizada nos invocados defeitos ou vícios da prestação…

É o que justifica a apreciação da argumentação expendida, mas no segmento ou enquadramento respectivo, o da impugnação da matéria de facto tida por não provada, reconduzindo-se a uma verdadeira e própria impugnação do julgamento de facto quanto às alíneas aludidas.

Sempre temos para nós que a omissão pelo juiz de uma iniciativa oficiosa de prova que se lhe impusesse, tratando-se de uma situação que não é regulada por norma especial, deverá reger-se no quadro da regra geral do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, na parte em que dispõe que a omissão de uma formalidade que a lei prescreve produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir na decisão da questão. Neste caso, a eventual nulidade da decisão decorre de um efeito consequencial, obtido por via do n.º 2 do art. 195.º do CPC, e não da subsunção às causas autónomas de nulidade das decisões previstas no art. 615.º do mesmo diploma.

Não sufragamos também o entendimento de que o meio processual único para a arguição da nulidade (processual) decorrente da omissão, como violação legal do princípio do inquisitório, seja a reclamação perante o tribunal que proferiu a decisão, no prazo de dez dias (arts. 149.º e 199.º, n.º 1, do CPC) após o encerramento da produção de prova ou mesmo após a notificação da sentença (esta enquanto último momento até ao qual passível de reabertura a audiência, para realização do meio de prova de iniciativa oficiosa[5]), podendo ser interposto recurso da decisão que incida sobre a mesma reclamação. Caso em que, sempre a nulidade processual arguida apenas nas alegações de recurso se deveria considerar sanada, por não respeitar a vício da decisão recorrida e na medida em que não se reporta ao indeferimento de uma reclamação oportunamente apresentada. Nessa tese, a nulidade processual decorrente da preterição do inquisitório convocada pela recorrente deveria ter sido objecto de reclamação, no prazo de dez dias a contar das ocasiões acima aventadas, perante o tribunal recorrido, nos termos da segunda parte do art. 196.º e arts. 197.º, n.º 1 e 199.º, n.º 1, todos do CPC, uma vez que não se coloca a hipótese prevista no n.º 3 da última disposição. Não tendo sido deduzida tempestivamente tal reclamação perante o tribunal a quo, sempre se verificaria o efeito preclusivo de perda da faculdade de exercício.

A exemplo do que sugerem Paulo Ramos de Faria e Nuno de Lemos Jorge, em As outras nulidades da sentença cível, Julgar Online, setembro de 2024, p. 1 a 79[6], a p. 48, a propósito de uma hipótese paralela ou assimilável, que vem a ser a da violação de norma legal expressa sem a estatuição da consequência respectiva, a saber, a inobservância da regra da contraditoriedade, parece-nos que a prevalência da apelação como meio impugnatório explica que a violação do art. 411º do CPC não caia inevitavelmente nas malhas do regime de arguição previsto no art. 195.º e seguintes, quando o recurso é admissível.

Desta decisão caberá recurso (normal) por error in judicando no julgamento pressuponente (a decisão de decidir sem a realização necessária do meio de prova que se impunha).

Isto posto, cabe aferir da efectiva violação do art. 411º pelo Tribunal.

O exacto critério legal que delimita a intervenção do tribunal e que importa aplicar no caso concreto vem tão só a ser o de saber se a diligência probatória pretendida (a 2ª perícia)– independentemente da iniciativa das partes – é necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.

Quanto ao conteúdo actual do princípio do inquisitório[7].

A dinâmica evolutiva do processo civil tem-se desenhado na oposição dialética entre dois princípios aparentemente contraditórios – dispositivo e inquisitório –, evidenciando um sentido de sucessivas transigências do primeiro e prevalecimento do segundo, com vista à realização da verdadeira aspiração do processo, afirmada nos artigos 8º, nº 1 e 411º do CPC: o apuramento da verdade e a justa composição do litígio.

Uma das linhas mestras do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro – que alterou o artigo 645º, nº 1 do CPC de 1961, atribuindo-lhe uma redacção igual à do artigo 526º, nº 1 do CPC actual (inquirição por iniciativa do tribunal) –, tal como definidas no seu preâmbulo, era a de privilegiar a decisão de fundo sobre a decisão meramente formal, através de uma atitude mais interventiva do Juiz – cfr. Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro: “Garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz, compensado pela previsão do princípio de cooperação, por uma participação mais activa das partes no processo de formação da decisão.”

Nas palavras do legislador de 1995 cabia ao processo civil procurar a verdade material, em vez de se privilegiarem aspectos formais, que não assumem verdadeira importância perante o objectivo de boa aplicação do Direito Substantivo ao caso concreto – cfr. citado diploma legal: “Ter-se-á de perspectivar o processo civil como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo.”

A verdade material a que se refere o legislador reconduz-se à absoluta correspondência entre afirmações sobre factos e a realidade dos mesmos através da produção da prova. Esta verdade material será, rectius, desejavelmente tenderá a ser aquela “verdade processual”, que os diversos meios de prova permitam apurar.

A maior prevalência do princípio do inquisitório sobre o princípio do dispositivo foi explicada da seguinte forma no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro: “Procede-se a uma ponderação entre os princípios do dispositivo e da oficiosidade, em termos que se consideram razoáveis e adequados. (…)

Para além de se reforçarem os poderes de direcção do processo pelo juiz, conferindo-se-lhe o poder-dever de adoptar uma posição mais interventora no processo e funcionalmente dirigida à plena realização do fim deste, eliminam-se as restrições excepcionais que certos preceitos do Código em vigor estabelecem, no que se refere à limitação do uso de meios probatórios, quer pelas partes quer pelo juiz, a quem, deste modo, incumbe realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente e sem restrições, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.”

Ora, “o CPC de 2013 acentuou a tendência para o reforço dos poderes do juiz e da sua compreensão como deveres, com a correlativa compressão do princípio do dispositivo (em sentido amplo) e os inerentes riscos no plano das garantias processuais fundamentais do cidadão perante o uso ou não uso de tais poderes/deveres… (…).

O CPC de 2013 acentuou o carácter público da função jurisdicional civil, enquanto função estadual ao serviço da justa composição de litígios de acordo com a verdade material. Com efeito, a descoberta da verdade material envolve um alto interesse do Estado e assim se promove a confiança na justiça dos tribunais. O poder de livre disposição reconhecido à vontade individual mantém-se na fase do impulso inicial e de identificação do objecto do processo; porém, a partir do momento em que as partes submetem o litígio ao tribunal todo o decurso do processo passa a ser dominado quase exclusivamente pela ideia de que a função jurisdicional deve observar as exigências da justa composição do litigio e esta é uma incumbência do juiz, não está dependente da vontade das partes…”[8].

Esta superioridade da verdade material sobre a forma é a razão de ser da opção feita pelo legislador mediante a consagração do princípio do inquisitório em matéria da instrução do processo em detrimento (“com forte compressão”) do princípio do dispositivo - é significativo disso mesmo a expressão sistemática da inserção do artigo 411.º do Código de Processo Civil, logo nas disposições gerais do Título V, Instrução do processo, na actual redacção.

Como referem A. Geraldes/ P. Pimenta/Luís Sousa, no seu CPC Anotado, Volume I, p. 484, o artigo 411º do CPC faz apelo à realização de diligências probatórias que importem a justa composição do litígio, cumprindo ao juiz exercitar a inquisitoriedade, preservando o necessário equilíbrio de interesses, critérios de objectividade e uma relação de equidistância e de imparcialidade.

Acrescentam ainda noutro lugar (loc. cit., p. 484), que, apesar da rigidez para que o art. 423.º do CPC (Prova Documental) parece apontar, “em parte associada ao princípio da auto-responsabilidade das partes, o mesmo não pode deixar de ser compatibilizado com outros preceitos ou com outros princípios que justificam a iniciativa oficiosa do tribunal na determinação da junção ou requisição de documentos que, estando embora fora daquelas condições, sejam tidos como relevantes para a justa composição do litígio, à luz, pois, de um critério de justiça material, cabendo realçar em especial o princípio do inquisitório consagrado no art. 411º e concretizado ainda no art. 436º”.

No mesmo sentido, Profs. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (op. cit., p 501) que destacam justamente que ao juiz cabe também realizar ou ordenar as diligências dos procedimentos probatórios relativos aos meios de prova propostos pelas partes, “na medida em que necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio”.

Ainda no mesmo sentido, refere J. M. Gonçalves Sampaio[9] que: “Sendo certo que o juiz não pode, nem deve, em princípio, substituir-se à parte, atento o princípio do dispositivo, temos para nós que, após a Reforma de 1995-1996, o juiz passou a ter uma intervenção mais activa na instrução do processo, devendo fazer uso do poder-dever conferido pelo normativo do nº 3 do artigo 265.º (princípio do inquisitório) sempre que as circunstâncias e a boa instrução do processo o aconselhem, visando, em última instância […] obter um melhor apuramento da verdade material e justa composição do litígio”.

A definição do dever funcional do juiz emergente da norma processual convocada, como “poder-dever” subordinado ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, vigora apenas com os limites que se sintetizam no acórdão da RG de 14.05.2020 (relator: Alcides Rodrigues - citando Nuno Lemos Jorge)[10]:

«I- O uso de poderes instrutórios está sujeito aos seguintes requisitos:

i) a admissibilidade do meio de prova;

ii) a sua manifestação em momento processualmente desadequado;

iii) a necessidade da diligência ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio;

e iv) a prova a produzir incidir sobre factos que é lícito ao juiz conhecer»

Assim, a amplitude dos poderes/deveres do juiz, decorrentes do princípio do inquisitório pode impor que o julgador admita, por exemplo, um requerimento probatório ainda que apresentado intempestivamente sempre que existam fortes razões para concluir que os meios de prova em causa podem contribuir decisivamente para a apreciação do mérito das pretensões das partes[11].

Deste modo, caso a parte tenha omitido o cumprimento dos seus deveres processuais, concretamente na apresentação dos requerimentos probatórios no tempo adjectivamente oportuno, o juiz poderá ainda assim exercitar o poder-dever conferido pelo artigo 411º, quando resulte da instrução da causa que as diligências probatórias em causa são necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.

Reitera-se, o que é decisivo para a admissibilidade do exercício deste poder-dever conferido pelo princípio do inquisitório é que os meios de prova admitidos ou ordenados sejam relevantes para o esclarecimento da verdade e a apreciação da factualidade que o tribunal tem que conhecer para apreciação do mérito da causa, independentemente da vontade de qualquer uma das partes na sua produção (e da tempestividade dessa iniciativa).

Em conclusão, como anota Paulo Pimenta[12], “o equilíbrio do nosso quadro legal resulta da intersecção das duas dimensões: por um lado, o ónus da iniciativa probatória das partes; por outro, o poder-dever do juiz em sede instrutória. Daqui resulta o seguinte: jamais as partes podem encontrar naquele poder-dever um pretexto para negligenciarem a sua iniciativa probatória; jamais o juiz pode ver naquela iniciativa probatória um alibi para a sua própria inércia. O critério firmado no art. 411º coloca a questão ao nível da necessidade das diligências probatórias para o apuramento da verdade e para a justa composição do litígio. Verificando-se o pressuposto da necessidade, o juiz tem um dever oficial de agir. Não se verificando o pressuposto, inexistirá aquele dever”.

“Nessa medida, também não deve ser confundido aquilo que é próprio do princípio do inquisitório, em que a actuação do juiz é vinculada desde que se convença da necessidade de certa diligência probatória, com uma pretensa auto-responsabilidade das partes em sede probatória (…). Na verdade, o inquisitório deve orientar-se por um padrão mínimo de objectividade, condição para ser exigível que o juiz adopte certa conduta em matéria instrutória. Para isso muito contribuirá o zelo probatório das partes. De todo o modo, uma vez verificados os pressupostos que lhe impõem as incumbências previstas pelo art. 411º, é vedado ao juiz justificar a sua inércia com a tal auto-responsabilidade das partes”[13].

Como resume Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, página 175, no âmbito da instrução do processo, o monopólio que pertencia às partes, de prova de factos alegados, deixou de existir. O juiz tem o poder de realizar ou ordenar oficiosamente as diligências necessárias ao apuramento da verdade.

O juiz tem a iniciativa de ordenar o depoimento testemunhal nos termos do artigo 526º, bem como determinar junção de documentos (artigo 436.º), ordenar a realização de prova pericial (artigo 467º, nº 1), uma 2.ª perícia (artigo 487º, nº 2), a realização de inspecção judicial (artigo 490º), ouvir pessoas após alegações (artigo 607º, nº 1) e ouvir as partes (artigo 452º, nº 1). Esta panóplia de alterações quanto aos poderes do juiz do processo, como refere o Prof. Lebre de Freitas, veio dar um novo paradigma do que é o princípio do inquisitório no processo civil português.

Em sintonia, Nuno Lemos Jorge, loc. cit., p. 61, afirma mesmo que na nova formulação decorrente da alteração do Código de Processo Civil de 1995, cabe ao juiz “a iniciativa da prova”.

No artigo que vem de citar-se indigitam-se os perigos e/ou problemas que se podem colocar no uso deste poder dever. Assim, “no que diz respeito aos poderes instrutórios do juiz, há que reconhecer que, antes de mais, eles encontram um limite natural nas garantias das partes, assumindo particular importância, neste caso, a garantia de imparcialidade do tribunal (…). É este o difícil equilíbrio a gerir: demasiadas concessões às sugestões probatórias das partes podem transformar o juiz num instrumento de uma (ilícita) fuga aos ónus probatórios das partes; demasiada insensibilidade às pretensões de uso, pelo juiz, dos seus poderes instrutórios podem implicar o incumprimento do poder-dever previsto no n.º 3 do artigo 265º” (págs. 69/70).

Finalmente, afirma-se uma outra limitação ao exercício deste poder-dever conferido pelo princípio do inquisitório que é o de tal exercício não poder ser uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseira e indesculpavelmente negligentes das partes em violação do princípio da auto-responsabilidade.

Ora, na situação decidenda, se, nos termos expostos, ultrapassável a questão do não requerimento pela parte de 2ª perícia, na sequência das apontadas insuficiências da primeira, temos para nós que estas insuficiências o são, como bem observa a recorrida, nessa parte com inteira razão, na medida do comportamento da parte mesma, ao não colaborar com a realização da 1ª perícia, inviabilizando a realização cabal e completa da diligência ordenada, por não ter diligenciado pela possibilidade de acesso ao interior do imóvel para a verificação dos alegados vícios ou defeitos…

Esta sua culpa grave na frustração da diligência probatória ordenada oficiosamente exclui a viabilidade de suprimento pelo tribunal, com o que injustificada a determinação de 2ª perícia.

Sempre a determinação oficiosa das diligências probatórias com invocação do princípio inquisitório só deverá ser efectuada, quando resulte da instrução da causa que as diligências probatórias em causa são necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio (não decorrendo apenas da visão probatória subjectiva das partes).

Se a necessidade de realização da diligência probatória não for patentemente justificada pelos elementos constantes dos autos, a promoção da mesma resultará, apenas, da vontade da parte nesse sentido (da sua sugestão), a qual, não se tendo traduzido pela forma e no momento processualmente adequados, não deverá agora ser substituída pela vontade do juiz, como se de um seu sucedâneo se tratasse.

É, assim, absolutamente indispensável para o exercício deste poder-dever do Juiz que as diligências probatórias admitidas ou ordenadas oficiosamente pelo tribunal (independentemente de terem ou não surgido da iniciativa das partes) sejam “necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer” - como expressamente impõe o legislador no citado art. 411º do CPC.

Não se tem como determinante já que a possibilidade da prova o possa ser mediante outros meios efectivamente produzidos, i.é., não se exige a imprescindibilidade do meio de prova a ordenar oficiosamente.

Contudo e decisivamente (e talvez bastasse esta única linha), na situação decidenda, como resulta inelutavelmente do depoimento/declarações de parte do legal representante da Ré/Requerida/Recorrente, em audiência, AA, executados/realizados pela requerida os trabalhos em falta e reparados os vícios da prestação a que reconduzia a excepção de não pagamento[14].

Donde, mais que a previsível inutilidade, ao invés de necessidade, da diligência pericial cuja falta vem assinalada, o que resulta é mesmo a sua IMPOSSIBILIDADE material e lógica.

Com o que não assistindo qualquer razão à recorrente, por não se vislumbrar que a determinação de 2ª perícia fosse susceptível de lograr a prova dos vícios da obra ou da execução imperfeita/defeituosa desta, na medida da execução dos trabalhos alegadamente em falta e da reparação dos vícios ou defeitos pela Ré/recorrente, em termos de tornar inviável agora a vistoria ou exame tendente à sua determinação/existência e causa[15]


*

Como se adiantou, discutível agora, em face das alegações de recurso, a apreciação do erro de julgamento quanto às alíneas dos factos não provados postas em causa pela Recorrente, a partir da prova efectivamente produzida e da fundamentação de facto da decisão recorrida.

Assim é que as alegações de recurso pressupõem ou aceitam a insuficiência ou inconcludência da prova por depoimento/declarações e testemunhal produzida à aquisição probatória daqueles factos. Esse é o argumento da necessidade da realização da 2ª perícia…

Ao apuramento ou aquisição da prova estranho outrossim qualquer juízo de equidade, tudo dependendo do standard ou padrão de prova exigível a lograr o convencimento da realidade de um facto.

Nesta sede, cabe a este tribunal inteirar-se sobre se a convicção expressa pelo tribunal recorrido na fundamentação tem suporte adequado da prova produzida e constante da gravação da prova por si só ou conjugada com as regras da experiência e demais prova existente nos autos.

Temos para nós que assim sucede.

A prova, por força das exigências da vida jurisdicional e da natureza da maior parte dos factos que interessam à administração da justiça, visa apenas a certeza subjetiva, a convicção positiva do julgador. Se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça (cf. Prof. Antunes Varela na RLJ 116/339). Importa considerar que a formação da convicção do juiz e a criação do espírito no julgador de que determinado facto ocorreu e de determinado modo, “se deve fundar numa certeza relativa, histórico-empírica, dotada de um grau de probabilidade adequado às exigências práticas da vida. Neste sentido Manuel Tomé Soares Gomes, Um Olhar sobre a Prova em Demanda da Verdade no processo Civil, Revista do CEJ, Dossier temático Prova, Ciência e Justiça - Estudos Apontamentos, Vida do CEJ, Número 3º, 2º Semestre, 2005, pp. 158 e 159. Ensina ainda o prof. Castro Mendes “a convicção humana é uma convicção de probabilidade”; de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente“.

No nosso sistema processual, com algumas excepções, vigora o sistema da livre apreciação da prova, no que concerne à valoração da prova e à formação da convicção necessária para suportar uma decisão judicial; o qual se caracteriza em duas linhas de força complementares: o tribunal não só aprecia livremente os meios de prova, i.é, o que o meio prova, como é livre na atribuição do grau do valor probatório de cada meio de prova produzido, hoc sensu, a “quantidade” de prova produzida por aquele meio. Em cada caso, pois, o tribunal é livre para considerar suficiente a prova testemunhal ou por declarações produzida ou para considerar que a mesma é afinal insuficiente e exigir outro meio de prova de maior capacidade para convencer o juiz da probabilidade do facto em discussão, hoc sensu, de maior valor probatório.

O que se não confunde com o standard ou padrão de prova exigível, que se prende já com o problema do ónus da prova ou, em contraponto, da determinação do conceito dúvida relevante para operar a consequência desse ónus.

Quanto a este, vistos os artigos 346º do CC e 516º do CPC, a prova de um facto em juízo é, por princípio, a demonstração de um alto grau de probabilidade (que não de mera possibilidade) de o mesmo corresponder à realidade material dos acontecimentos (dita verdade ontológica).

Por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz (meio da apreensão e não critério desta) a ideia de que o facto em discussão, mais do que ser possível e verosímil, possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso.

Esta é, de todo o modo, uma regra susceptível de adequação prática, a definir, caso a caso, a partir agora de fatores como:

- o da acessibilidade dos meios de prova (a natureza pública ou privada dos factos e as circunstâncias do caso, v.e, as partes serem as pessoas normalmente envolvidas nos factos, haver outras testemunhas destes para além das arroladas),

- da sua facilidade ou onerosidade,

- do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados,

- do relevo do facto na economia da acção;

tudo em termos de elevar ou diminuir a exigência probatória.

A almejada certeza subjectiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradição ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá uma dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado.

Ora, quando se considere a fundamentação da convicção do Tribunal recorrido, dela ressalta a razão da falta de prova dos vícios ou defeitos, enquanto execução defeituosa e do incumprimento parcial, por falta de acabamentos integrantes do objecto contratado. Assim, a contraditoriedade das versões trazidas a juízo pelas testemunhas da A. e pelo depoimento de parte/declarações do legal representante da Ré, insupríveis mediante as fotografias juntas aos autos e os termos do relatório pericial, justamente em função das aduzidas “reparações” pela Ré no decurso desta acção mesma… E estranha-se desde logo o comportamento da Ré, que não apenas não requereu a produção antecipada de prova, como sequer veio explicar nos autos a previsível frustração da ordenada perícia, inviabilizando na prática a inteira realização desta, ao não possibilitar o acesso ao interior do prédio onde a obra foi executada, vindo, ainda assim, pedir esclarecimentos ao relatório pericial, num comportamento processual destituído de lógica, cooperação e lealdade.

Decisiva e indiciariamente, no mesmo sentido da falta de prova da matéria excepcional, é a total ausência de qualquer comunicação escrita pela Ré à Autora, no sentido de reclamar de quaisquer “atrasos” na execução da obra (sendo que a documentação junta não caracteriza a estipulação de um prazo fixo para esta), como de uma reclamação ou denuncia, bem assim por escrito, dos alegados vícios, defeitos ou trabalhos não finalizados (o que apenas sucedeu após a reclamação judicial do pagamento em falta dos trabalhos), para mais quando o único “incidente” reportado à facturação em apreço (autorizada após “medição” conjunta dos trabalhos a mais cujo preço vem reclamado, como emergindo do depoimento do legal representante da Ré e da testemunha da A. BB, que foi acompanhando a execução da obra), como atestado pelo funcionário da contabilidade da A., CC, se prendeu com a indevida cobrança do IVA numa primeira factura emitida, que a junta aos autos substituiu.

Assim é que quando os factos têm intervenção humana ou são resultado dessa actuação, perscrutar a realidade desse facto é, antes de mais, averiguar a razão que subjaz a essa actuação, que lhe dá origem e a orienta e, sobretudo, apurar se a mesma é compatível com o quadro de actuação que qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias teria. Por isso que um dos elementos decisivos para a formação da convicção do julgador é a verosimilhança dos factos sobre os quais recai a controvérsia, i.é., a pertinência lógica dos mesmos ao domínio dos acontecimentos humanos que, por definição, possuem motivações apreensíveis, são orientados para um fim compreensível e delineados por processos intelectualmente aptos e estão de acordo com o que as regras da experiência nos ensinam ser expectável, corresponder ao devir normal. Comportamentos privados de racionalidade, opostos ou diferentes da actuação que o comum dos cidadãos teria, cuja lógica ou motivação não é sequer percetível ou se mostra destituída de coerência, são estranhos e como tal, ainda que possíveis, são pouco prováveis, indiciando que ou o comportamento não foi realmente aquele que é afirmado ou que o seu objetivo é diferente daquele que se pretende.

Estranha agora, do ponto de vista de juízos de normalidade e regras da experiência, a “convenção ou acordo” para a emissão da factura atinente aos trabalhos a mais conferidos, no pressuposto de que estes não estariam findos ou terminados em termos relevantes, como estranha a ausência de interpelação admonitória para a conclusão destes e a reparação dos defeitos, que sequer o legal representante da Ré pôde atestar/afirmar, resultando incompreensível, assim, a atitude da Ré de proceder “autonomamente” à reparação dos vícios ou defeitos no decurso da acção e antes de confirmada a sua versão defensiva nestes autos.

Tudo para justificar a razoabilidade, rectius, a necessidade da insuficiência probatória da matéria de excepção convocada, como concluída na decisão recorrida, o que a Recorrente de resto aceita nas alegações

Não se alcançam, pois, razões para prover o recurso, nessa parte, relativa à matéria de facto.

Ora, é o que determina agora o acerto da solução de direito constante da sentença recorrida e a manutenção desta.

[É que, como já anotado sob 15 de rodapé, na medida em que a Autora não se reconduziu, mediante articulado superveniente, à reparação pela Ré mesma de vícios ou defeitos e execução incompleta, sem o incumprimento definitivo da (eventual) obrigação de reparar por si (autora) -por interpelação admonitória ou recusa peremptória a cumprir- e sem a caracterização cabal da situação de urgência que vem sendo excepcionalmente admitida pela jurisprudência como justificando a autotutela pelo dono da obra, inviável conhecer da paralisação da convocada exceptio non adimpleti por via da impossibilidade provocada pela Ré de cumprimento pela A. da obrigação (recíproca, rectius, sinalagmática) que se constituía como convocada causa de suspensão do pagamento do preço reclamado[16]].

III.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento à apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas do recurso pela recorrente.

Notifique.

Porto, 05 de Dezembro de 2024

Isabel Peixoto Pereira

Carlos Portela

Paulo Dias da Silva

____________________________
[1] Ou não uso, acrescento nosso.
[2] Ou da evidência destes, no caso do não uso.
[3] Ainda Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, CPC anotado, III, tomo 1, 2ª edição, p. 23.
[4]Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, in CPC anotado, Vol. 2º, pág. 208.
[5] A lei é generosa quanto ao momento até ao qual o tribunal pode ainda determinar a realização de diligências instrutórias, prescrevendo o artigo 607º, nº 1 do CPC, que, mesmo depois de recolher à sala de conferências para decidir, o tribunal, “se não se julgar suficientemente esclarecido, pode voltar à sala da audiência, ouvir as pessoas que entender e ordenar mesmo as diligências necessárias”.
[6] Bem assim, como antecede, quanto à natureza do vício.
[7] Rita Lobo Xavier/Inês Folhadela/Gonçalo Andrade e Castro, in Elementos do direito processual civil - teoria geral; princípios; pressupostos”, págs. 142 e ss.
[8] Loc. cit nota anterior, págs. 144. V. também no mesmo sentido, pág. 152 da mesma obra.
[9]A Prova por documentos particulares na doutrina, na lei e na jurisprudência, pág. 224.
[10] Nuno Lemos Jorge, Os problemas instrutórios do juiz: alguns problemas”, “Julgar”, nº 3, 2007, págs. 75/6 (disponível na internet). Veja-se, quanto ao conteúdo do ‘poder-dever’ em causa, o acórdão da Relação de Lisboa, de 17.05.2018, in dgsi.pt: “O artigo 411º do Código de Processo Civil, determinando que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer, consagra um claro poder-dever do juiz, com vista à plena realização dos fins do processo”.
[11] António Júlio Cunha, in Direito Processual Civil Declarativo, pág. 69.
[12] Processo Civil declarativo, pág. 343, nota 802
[13] Paulo Pimenta, loc cit. nota anterior, pág. 342.
[14] Sendo manifesto ou evidente em função daquele depoimento que os “defeitos no interior” a cuja “manutenção” equívoca e erradamente se referem as alegações não são, nem podem ser já, aqueles alegados na oposição, porquanto estes, de acordo com as declarações do gerente da Ré/Recorrente foram por si corrigidos/reparados/executados/completados, para o efeito de entrega da obra ao dono desta. Eventualmente em causa outros defeitos supervenientes, mas não aqueles confessadamente realizados/executados e corrigidos pela Ré…
[15] Não obstante a prova desta conclusão/reparação, por estar agora em causa um facto superveniente extintivo da causa de excepcionar quanto ao qual a A. não diligenciou pela possibilidade/admissibilidade da respectiva consideração, nos termos estabelecidos pela lei de processo (assim os artigos 588º, n.º 3, al. c), por referência aos artigos 5º, n.º 1 e 3º do CPC), caberá ainda assim apreciar da impugnação da matéria de facto.
[16] Sobre esta segunda parte da enunciada questão, por todos, o Acórdão desta Relação e secção de 19.12.2023, no processo 1671/22.2T8MAI.P1, acessível na base de dados da dgsi.