CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
EXCEÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
PERDA DE INTERESSE DO CREDOR
RESOLUÇÃO ILÍCITA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
Sumário


I – Quanto aos efeitos da resolução ilícita a solução depende da circunstância de o declarante da resolução ilícita ter, ou não, o direito a denunciar o contrato.
II - Caso o resolvente ilícito tenha a possibilidade de extinguir o contrato através de uma denúncia ad nutum então a resolução ilícita extingue o vínculo contratual já que a declaração de resolução pode ser convertida numa declaração de denúncia. Nos demais casos, a resolução sem fundamento é ineficaz, já que não estão cumpridos os pressupostos inerentes ao direito potestativo de resolução.
III - Concluindo-se que a comunicação de resolução não extingue, de per se, o vínculo contratual, a existência desta comunicação não é irrelevante para aferir de eventuais vicissitudes na relação contratual, podendo a resolução sem fundamento corresponder a uma recusa categórica de cumprimento do contrato, configurando um incumprimento definitivo.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO
           
EMP01... - SOFTWARE E SISTEMAS INFORMÁTICOS, LDA., pessoa coletiva n.º ...38, com sede em ..., intentou contra EMP02..., S.A, pessoa coletiva n.º ...82, com sede em Guimarães, ação declarativa comum, pedindo, a final:

- Ser declarado o incumprimento definitivo do contrato e ser declarado resolvido o contrato de prestação de serviços por causa imputável ao devedor;
- caso assim não se entenda, deverá ser declarado que a ré se encontra em mora, e com a perda de interesse do credor, ser declarado resolvido o contrato de prestação de serviços por causa imputável à ré.

Sem prescindir e em qualquer dos casos, sempre a ré deverá ser condenada ao pagamento da quantia de 142.416,88 € (cento e quarenta e dois mil, quatrocentos e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos), acrescido dos respetivos juros de mora vencidos e vincendos até ao efetivo e integral pagamento, pelos prejuízos causados pelo não cumprimento da obrigação nos exatos termos acordados.
Alega, em síntese, que celebrou um contrato em que se comprometeu a fazer a implementação e licenciamento do ERP SAP na ré e na empresa EMP03..., que pertence ao mesmo grupo, mediante preço total de 330.817,37 €, acrescido de IVA. Apesar de ter elaborado o programa em conformidade com os parâmetros da ré e da existência de atrasos no arranque, por perda de dados, a autora deu continuidade à formação e aos testes de aceitação, faltando apenas corrigir alguns pontos, quando em maio de 2019 a ré solicitou uma alteração radical do projeto, tendo sido acordado que a autora iria proceder às alterações, devendo ser pagas as faturas já emitidas, de acordo com plano de pagamento. No entanto, a ré não realizou oportunamente a análise do projeto, nem procedeu ao pagamento da primeira prestação do plano, no montante de 111.124,59€, o que levou à suspensão dos trabalhos e subsequente interpelação admonitória.
Conclui, especificando os serviços que não chegou a prestar na totalidade à ré e por causa a esta imputável (no valor de 28.420,00€), mais descrevendo os trabalhos a mais que prestou à ré no valor de 130.480,00€, pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de 142.416,88 € (cento e quarenta e dois mil, quatrocentos e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos) a título de danos patrimoniais causados, correspondendo aos serviços acordados e prestados.

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A ré contestou alegando que a autora se apresentou como empresa habilitada para responder às necessidades das empresas do Grupo EMP02..., tendo sido, por isso, celebrado o contrato com implementação em quatro das empresas deste.
No entanto, logo depois se apurou que a autora não era parceira VAR da SAP, não podendo vender à ré a solução proposta, o que desde logo, impediria a sua contratação. Além do mais, esta falta de estatuto teve reflexos na capacidade de implementação, não tendo logrado fazer até ../../2017, prazo contratado e em janeiro de 2019 ainda se verificavam erros graves de configurações iniciais, com problemas de comunicação com a Autoridade Tributária e de atualizações, bem como falta de dados. Existiram serviços que nunca funcionaram, não tendo sido aprovadas pela ré as correções dos BBP, nem efetuada a verificação da qualidade, nem validados os testes de aceitação, não havendo razão para o pagamento das faturas reclamadas, razão dada pela autora para suspender o serviço, o que levou à resolução justificada do contrato pela ré em julho de 2019.
Foi deduzida reconvenção pedindo, na sequência da resolução do contrato, a devolução dos valores pagos de 262.987,26 €, nos termos contratados, bem como pagamento de despesas com a implementação, nomeadamente com o pagamento da licença SAP, no montante de 172.703,62 € e com as horas perdidas dos seus colaboradores, que relega para liquidação ulterior.
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 A autora replicou impugnando as condições de licenciamento junto da SAP e das empresas envolvidas. Acrescenta que os BPP foram aprovados pela ré em abril de 2017, tendo solicitado a revisão dos mesmos em 2019, o que provocou atrasos, bem como a recolha manual de dados pela ré e a falta de indicação de utilizadores de cada departamento, ao contrário das boas práticas, havendo ainda necessidade de refazer o trabalho depois de uma corrupção do sistema da ré. A autora, devido ao prolongamento do serviço, aceitou ainda implementar as atualizações anuais, e entregar funcionalidades não previstas no contrato inicial, na perspetiva da conclusão do serviço.
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A final foi proferida sentença que julgou a ação totalmente procedente, e em consequência, condenou a ré a pagar à autora a quantia de 142.416,88 € (cento e quarenta e dois mil, quatrocentos e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos), acrescido dos respetivos juros de mora desde as interpelações em julho de 2019, até efetivo e integral pagamento e julgou improcedente a reconvenção.
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Inconformada com a sentença veio a ré recorrer, formulando as seguintes conclusões:

1. A Ré não se conforma com a decisão que julgou a ação totalmente procedente e, em consequência, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de 142.416,88€, acrescido dos respetivos juros de mora desde as interpelações em julho de 2019, até ao efetivo e integral pagamento, e julgou totalmente improcedente, por não provada, a reconvenção, razão pela qual deduz o presente recurso de apelação.
2. Analisando a sentença recorrida, verifica-se que o douto Tribunal a quo incorreu no vício de omissão de pronúncia, porquanto não se pronunciou acerca de todos os pedidos deduzidos na Petição Inicial, o que determina a nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC.
3. Acresce que, a sentença recorrida viola o disposto no artigo 607.º, n.º 4 e n.º 5 do CPC, o que determina a sua nulidade, nos termos do artigo 195.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, quer porque não tomou em consideração os factos admitidos por acordo, nem compatibilizou toda a matéria de facto adquirida, nomeadamente, a matéria de facto alegada nos artigos 1º, 5º, 12º, 14º, 70º, 81º, 112º, 120º e 121º da douta petição inicial, e que, no despacho saneador, o Meritíssimo Juiz a quo tinha considerado provada, por acordo ou confissão das partes, não constando tal matéria do elenco dos factos provados.
4. Por outro lado, a Autora aceitou expressamente como verdadeiros, os factos constantes dos artigos 19, 24, 25, 27, 28, 41, 72, 89 a 92, 102, 103, 105, 121, 122, 123, 153, 153, 157, 161, 183, 185 e 208 da Contestação – conforme artigo 10º da Réplica –, pelo que, e de acordo com o disposto na 2.ª parte, do número 4, do artigo 607.º do CPC, deveria o douto Tribunal recorrido ter tomado tal matéria em consideração aquando da fundamentação da sentença, o que, reitera-se, não sucedeu, em total violação do disposto na referida disposição legal.
5. Acresce que o Tribunal a quo não analisou criticamente as provas produzidas, não sendo possível apurar quais os elementos probatórios e qual o seu peso na valoração do Tribunal, nomeadamente, pela credibilidade da sua fonte, pela natureza do meio de prova em causa, entre outros, relativamente a cada um dos temas controvertidos. 6. Percorrendo a motivação da sentença recorrida, embora o Tribunal se refira aos depoimentos de algumas testemunhas, e a alguns documentos, a fundamentação da decisão apresenta-se muito genérica, sem especificação da prova documental e testemunhal, quando é certo que os autos comportam numerosos documentos e várias testemunhas.
7. Certo é que a fundamentação da matéria de facto deve indicar, de forma clara, os concretos meios de prova que determinaram a decisão, positiva ou negativa, para, assim, dar adequado cumprimento à formalidade legal consagrada no artigo 607.º, n.º 4, do CPC, o que, no caso dos autos, não sucede, verificando-se, deste modo, uma nulidade processual, nos termos do disposto no artigo 195.º, n.º 1 do CPC.
8. Ainda e sem prescindir, a Recorrente não concorda com a decisão proferida acerca da matéria de facto, uma vez que entende que, da prova produzida, resultaria outra decisão quanto aos factos infra discriminados.
9. Em particular, quanto à decisão da matéria de facto provada, deverá aditar-se ao elenco dos factos provados a matéria constante dos artigos 1º, 5º, 12º, 14º, 70º, 81º, 112º, 120º e 121º da petição inicial, porque provada, por acordo ou confissão das partes, conforme decisão dada no despacho saneador.
10. De igual sorte, no âmbito da Réplica apresentada, a Autora aceitou expressamente como verdadeiros os factos constantes dos artigos 19, 24, 25, 27, 28, 41, 72, 89 a 92, 102, 103, 105, 121, 122, 123, 153, 153, 157, 161, 183, 185 e 208 da Contestação – conforme artigo 10º da Réplica –, matéria que assim deverá ser aditada ao elenco dos factos provados, porque provada, também ela por acordo ou confissão das partes.
11.Acresce que deveria, ainda, ter sido dado como provada a factualidade relativa à regularização do IVA pela Autora das faturas cujo pagamento é reclamado na presente ação, não só porque resultou demonstrado documentalmente, como também porque foi confessado pela Autora, conforme requerimento em que se alegaram tais factos supervenientes, junto em 10/02/2021, com a referência Citius 37997246, e como resulta dos depoimentos das testemunhas AA e BB, transcritos no corpo das alegações e que por economia processual aqui se dão por reproduzidos.
12. Ainda e sem conceder, a Recorrente impugna a decisão relativa aos pontos 1, 2, 9, 10, 21, 24, 26, 36, 46 e 47 da matéria de facto provada, porquanto entende que deveria ser outra a sua redação, conforme se sugere na impugnação especificada e de acordo com os meios probatórios constantes do processo e expressamente indicados no corpo das presentes alegações, para onde, por questões de economia processual, expressamente se remete.
13.Ademais, quanto aos factos dados como provados sob os pontos 17, 27, 28, 31, 43, 44 e 45, 51, 52 e 53 a Recorrente expressamente impugna a decisão relativamente a estes, na medida em que entende que, face aos meios probatórios produzidos nos autos e que supra se indica, no corpo das alegações, sempre deveriam os mesmos ter resultado não provados.
14. Quanto à decisão relativa à matéria de facto não provada, que a Recorrente também expressamente impugna, pese embora a mesma não esteja numerada, seguir-se-á a numeração que se atribui supra, no corpo das alegações.
15. Assim, relativamente ao ponto a) e l) deverá o mesmo ser eliminado/ter-se por não escrito, por englobar matéria conclusiva.
16.I mpugna-se, ainda, a decisão relativa aos pontos c), d), da matéria de facto não provada e cuja redação é manifestamente infeliz e sem rigor, quer face à matéria alegada pelas partes nos articulados, quer pela prova produzida nos autos e que especificamente se indicou supra, pelo que se impõe que os mesmos sejam dados como provados, porém, seguindo a redação que se sugere no corpo das alegações, e para onde expressamente se remete, novamente, por economia processual.
17. Por seu turno os pontos, b), e), k) deveriam ter sido dados como provados, conforme se explanou no corpo das alegações e de acordo com os meios probatórios expressamente indicados e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
18.S em prescindir, a Recorrente expressamente impugna a decisão proferida acerca da matéria de direito.
19. No caso dos autos, a obrigação da Autora consistia na prestação dos serviços descriminados no contrato e na proposta n.º ...32 ver. 8.2. – documentos juntos sob os nºs 1 e 2 com a Petição Inicial -, ou seja, na prestação dos serviços de implementação e licenciamento do ERP (sistema de planeamento de recursos empresariais) da SAP na Ré, na EMP03..., na EMP04... e na EMP05..., e a obrigação da Ré consistia no pagamento à Autora do montante global de 330.817,37€, acrescido de IVA, nos montantes parciais e nas datas fixadas no contrato.
20. Relativamente à resolução dos contratos, a mesma ocorre quando uma das partes não cumpre a prestação a que se vinculou, total ou parcialmente. Porém, «a resolução do contrato por uma das partes não é livre, antes tem de ser fundamentada, exigindo uma situação de incumprimento da parte contrária que seja de tal modo grave que determina uma rutura contratual. A mesma tem de ter na sua origem factos que se integrem na convenção das partes que contemple a possibilidade de resolução do contrato, ou na lei, designadamente que caibam na previsão do art.º 801.º e 802.º do C. Civil, factos que, pela sua importância ou gravidade, justificam que, unilateralmente, uma das partes ponha fim ao contrato.»
21. No caso dos autos, foi identificado no despacho saneador o objeto do litígio, como sendo o de saber se alguma das partes incumpriu o contrato e, sendo caso disso, saber se é procedente a pretendida resolução e se são devidas as indemnizações peticionadas.
22. O Tribunal recorrido não se pronunciou nem acerca do objeto do litígio, nem acerca das resoluções «operadas» por ambas as partes, não obstante estar obrigado a tal, até porque ambas as partes pediram a resolução do contrato resultante do incumprimento definitivo do mesmo que imputaram à parte contrária, omissões estas que inquinaram a sentença recorrida da nulidade prevista no artigo 615º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Civil, pois que o Tribunal não se pronunciou sobre questões que tinha a obrigação de se pronunciar, nulidade que expressamente se argui.
23. Da matéria de facto dada como provada resultou ter a Autora procedido à suspensão da prestação dos serviços a que estava vinculada por alegadamente ter perdido a confiança na Ré e esta não ter pago «a primeira prestação» de um plano alegadamente apresentado pela Autora à Ré.
24.  já com os trabalhos suspensos, a Autora a 25.07.2019 enviou à Ré uma interpelação admonitória, concedendo-lhe o prazo de oito dias para o pagamento integral das faturas pendentes desde dezembro de 2018 no valor de 142.416,88 €, sob pena de se considerar o incumprimento definitivo da obrigação da Ré.
25. Conforme se referiu, a resolução do contrato não é livre, ocorrendo quando uma das partes não cumpre a prestação a que se vinculou, total ou parcialmente, incumprimento esse que deverá ser definitivo ou de tal modo grave que torne inexigível a manutenção da relação contratual, designadamente, pela quebra de confiança, o que efetivamente não resultou provado relativamente à Ré.
26. No caso dos autos estamos perante um contrato sinalagmático, pois que dele emergem obrigações recíprocas e interdependentes: para a Autora a obrigação de prestar os serviços de implementação e licenciamento do ERP da SAP na Ré, na EMP03..., na EMP04... e na EMP05..., de acordo com o convencionado entre as partes, sem vícios que excluam ou reduzam a sua aptidão para o uso previsto no contrato e com observação dos princípios da boa fé e lealdade, tal como resulta do disposto no artigo 762º, n.º 2, do Código Civil. Para a Ré a obrigação do pagamento do preço nos prazos e valores constantes da cláusula terceira.
27. Da matéria de facto dada como provada resultou demonstrado que a Autora agiu abusivamente, com violação do que tinha sido convencionado e expresso no contrato celebrado, uma vez que emitiu faturas referentes a estados da implementação e licenciamento do ERP da SAP que ainda não tinham ocorrido.
28. Com efeito, as faturas foram emitidas a 21.12.2018, data em que não tinha ocorrido o arranque do sistema em nenhuma das quatro empresas, ou seja na Ré, na EMP03..., na EMP04... e na EMP05....
29. Da matéria de facto dada como provada, apenas resultou provado o arranque do sistema na sociedade Ré, no mês de janeiro, e relativamente às demais empresas nem sequer ficou demonstrada a data em que tal iria ocorrer. Tudo isto, sublinhe- se, sem que se atente à impugnação da decisão de facto relativamente à circunstancia do arranque do sistema na sociedade Ré ter sido parcial e relativa unicamente a três módulos.
30. E quanto à fatura n.º ...45, no montante de 40.690,54 €, a mesma corresponderia ao período experimental de 60 dias, que apenas teria lugar após o decurso do prazo de um mês após o arranque do sistema, tal como resulta expresso no cronograma constante de fls.16 da proposta junta com a Petição Inicial sob o documento nº 2, pelo que demonstrado está que nunca ocorreu o período experimental.
31. Os valores constantes das referidas faturas não eram devidos pela Ré nem assistia à Autora o direito de exigir daquela o seu pagamento, atentas as regras fixadas na cláusula terceira do contrato, pelo que o seu não pagamento não tem como efeito a constituição da Ré em mora nem poderá constituir incumprimento definitivo do contrato.
32. Não se verificaram quaisquer fundamentos para a Autora suspender a prestação dos serviços a que se obrigara.
33. À data em que ocorreu a suspensão dos trabalhos (15 de julho de 2019), assim como a data em que a Autora procedeu à interpelação admonitória da Ré (25 de julho de 2019), era a Autora quem estava em incumprimento dos seus deveres de implementação e licenciamento do ERP da SAP na Ré e restantes sociedades.
34. A interpelação admonitória efetuada pela Autora através da referida carta tinha, desde logo, como pressuposto o cumprimento do contrato por parte da mesma, o que já não ocorria pois havia procedido à suspensão unilateral da prestação dos serviços a que estava vinculada.
35. No caso dos autos estamos assim perante uma resolução do contrato, operada pela Autora, indevidamente exercida, manifestamente infundada uma vez que os factos em que se apoia não se verificaram.
36. Ao receber da Autora a declaração de resolução, sem fundamento de facto ou de direito, tal como alegado, a Ré interpretou, e bem, a mesma como intenção da Autora de se furtar definitivamente ao cumprimento do contrato, quer porque esta já tinha procedido à suspensão da prestação dos serviços em data anterior à interpelação que fez à Ré, quer porque fundamentou a sua pretensão na exigência do pagamento por parte da Ré de valores não vencidos, violando, assim, a Autora o estipulado no contrato,
37. Pelo que a Ré resolveu ela própria o contrato de prestação de serviços, com fundamento no incumprimento resultante da falta de implementação nas sociedades EMP03..., EMP05... e EMP04..., dos atrasos e defeitos no cumprimento do contrato, incumprimento esse que se tornou definitivo em consequência da declaração de resolução remetida pela Autora à Ré. Tais descritos comportamentos determinaram a perda de confiança da Ré na Autora, não sendo exigível àquela a manutenção do contrato.
38. Assim a declaração de resolução operada pela Ré à Autora foi válida e eficaz, por fundamentada, ao contrário da declaração de resolução remetida pela Autora à Ré, que consubstanciou uma resolução infundada e que teve, consequentemente, o valor de declaração antecipada de não cumprimento definitivo do contrato.
39. Nestes termos, o Tribunal deveria ter julgado improcedentes todos os pedidos formulados pela Autora e, consequentemente, absolvido a Ré dos mesmos. Por outro lado, a reconvenção deveria ter sido julgada procedente, por provada, declarando resolvido o contrato de prestação de serviços celebrado entre Autora e Ré, junto com a Petição Inicial sob os documentos nos. 1 e 2, em consequência do incumprimento definitivo do mesmo pela Autora. Mais condenando a Autora a restituir à Ré os valores por esta pagos àquela em cumprimento do mesmo contrato, no valor global de 262.987,26 €, acrescido de juros de mora, contados desde a notificação do pedido reconvencional até efetivo e integral pagamento. Mais deveria ter condenado a Autora a indemnizar a Ré pelos prejuízos por esta sofridos em consequência da celebração do contrato de licenciamento e de manutenção celebrado com a SAP, em quantia a liquidar no respetivo incidente, mas não superior a 172.703,62 €, bem como condenada a indemnizar a Ré pelos prejuízos por esta sofridos em consequência do tempo despendido pelos seus colaboradores, assim como decorrentes da paragem da sua atividade, em quantias a liquidar no respetivo incidente.
40. Ao não decidir assim, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 406.º, 762.º, 798.º e 801.º do Código Civil, para além de estar ferida da nulidade a que se refere o artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, uma vez que os fundamentos de facto estão em oposição com a decisão proferida.
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A recorrida contra alegou pugnando pela manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

As questões decidendas a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as de saber se a decisão é nula, se houve erro na apreciação da prova e, consequentemente, se a decisão de mérito deve ser alterada no sentido da validade da resolução do contrato pela ré com a consequente improcedência dos pedidos da autora e procedência do pedido reconvencional da ré.
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III - FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
3.2.1. Factos Provados

Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:

1. No exercício das respetivas atividades comerciais, Autora e Ré celebraram um contrato em que a Autora se comprometeu a fazer a implementação e licenciamento do ERP (sistema de planeamento de recursos empresariais) da SAP na Ré e na empresa EMP03..., que pertence ao mesmo grupo, EMP02..., mediante os termos estipulados na proposta n.º ...32 ver. 8.2., constituída pelos seguintes serviços:
- Serviços de Parametrização da Solução dos Módulos: Financeiro (FI/CO), Gestão de Recursos Humanos (HCM), Compras (MM) e Vendas e Distribuição (SD);
- Serviços de Administração da plataforma ...;
- Serviços de Aplicação;
- Serviços de Base de Dados; e
- Serviços de Integração.
2. Como serviço opcional, não incluído na proposta, a Autora prestaria Formação Certificada em SAP dos Colaboradores do Grupo EMP02... e após o arranque do sistema em produtivo (...) a garantia do Suporte aplicacional e funcional através do Centro PCOE (Partner Center of Expertise) da Autora.
3. O contrato devia vigorar entre 01 de julho de 2016 e 31 de julho de 2017, seguindo o cronograma de trabalho existente na Proposta, que aqui se dá como reproduzida.
4. Os serviços prestados pela Autora e aceites pela Ré tinham um custo total de 330.817,37€, acrescido de IVA e que deveriam ser pagos pela Ré da seguinte forma:
a) 18% com a adjudicação da Proposta – esta adjudicação inclui as seguintes etapas:
- Preparação do projeto: 2.100,00€;
- Elaboração e Preparação BBP: 17.640,00€;

E esta adjudicação inclui a instalação de parte do licenciamento SAP do Projeto:
- Base de dados – ..., RT ed Applic & BW – new/subsq: 25.809,00€;
- SAP Enterprise Support: 3.627,60€;
- SAP S/4 HANA Enterprise Management for ERP Customers: 4.950,00€; e
- SAP Developer User: 4.200,00€;
b) 10% na aprovação formal do BBP – Business Blueprint, no prazo máximo de 30 dias após a adjudicação;
c) 20% na instalação do licenciamento;
d) 10% na disponibilização de protótipo para testes;
e) 7% na validação dos testes de aceitação;
f) 25% no arranque do sistema em produtivo;
g) 10% após 60 dias do período experimental do projeto.
5.  Entre ../../2016 e ../../2016, foram recolhidas as assinaturas das partes e a Ré forneceu a lista dos principais utilizadores (key users) para os serviços contratados, BB (FI/CO), CC (HCM) e DD,
6. A 27/07/2016 a Autora emitiu a primeira fatura n.º ...93, no montante de 58.326,60€ acrescido de IVA, paga a 06.09.2016.
7. A 12/08/2016 foi realizada uma reunião inicial em que esteve presente a administração da Ré e foram abordados vários assuntos, como os objetivos e o âmbito do projeto, a metodologia e a organização do mesmo.
8. Nessa reunião, ficou ainda estabelecida a estrutura organizacional do projeto, tendo a Ré definido como seu gestor de projeto, o Sr. DD e por parte da Autora, a Sra. EE e o Sr. FF.
9. Assim, durante o mês de agosto de 2016, a Autora realizou 4 dias de esclarecimentos com colaboradores e fez levantamento de processos na Ré.
10. A 24.08.2016, realizou-se uma reunião de gestores de projeto com a Sra. EE (Autora) e o Sr. DD (Ré), em que a Ré manifestou o seu entendimento de que os serviços deveriam abranger todas as empresas do Grupo EMP02... e a Autora de que a proposta abrangia apenas a Ré e a EMP03...; foi discutida entre as partes a inclusão da EMP04... (única empresa em que seria implementado o módulo CRM Services) e da EMP06... (empresa sediada no ..., que tinha a necessidade de sistematização e controlo no início de 2017).
11. Na referida reunião foi ainda iniciado um alinhamento sobre a integração do projeto de implementação da ferramenta SharePoint com o sistema SAP, tendo sido ulteriormente acordado outra data paralela para implementação.
12. Durante o mês de setembro de 2016 existiu ainda outra reunião de gestão de projeto, no dia 23, onde ficou registada a existência de pedido de orçamentação da implementação dos módulos PS e WM (gestão de localizações) e a elaboração do BPP Consolidação, apesar da falta de alguns dados da Ré.
13. Em 06.10.2016 realizou-se nova reunião de projeto onde, além de um ponto de situação sobre os procedimentos em curso na elaboração dos BPP, cuja aceitação ficou prevista para 10 de outubro, e se discutiu sobre as possibilidades de implementação dos serviços na EMP06... (com apresentação de dois cenários) e de um identificador único na Logística (com apresentação de três cenários).
14. A 20.10.2016 feito um ponto de situação do projeto, devido aos levantamentos efetuados pela Autora e verificação das necessidades reais da Ré, com o adiamento da implementação do módulo BSM Consolidação (por o âmbito organizativo não estar completo) e a sua substituição por outros requisitos fora do âmbito, a não implementação do módulo WM e a implementação parcial e antecipada do módulo PP e ficou ainda definido o plano e prazo de implementação dos serviços possíveis na EMP06....
15. A Autora procedeu à elaboração dos BBP e procedeu também à instalação do licenciamento acordado, que foi suportado pela Ré junto da SAP desde outubro de 2016.
16. Neste seguimento procedeu à emissão da fatura n.º ...36, de 22.10.2016, no montante de 81.381,08€ (paga em março de 2017).
17. Em dezembro de 2016, a Autora entregou à Ré os BBP para aprovação, tendo a Ré decidido pedir previamente uma auditoria da SAP, ficando os trabalhos suspensos.
18. A 21/12/2017 a Autora emitiu fatura no valor de 40.690,54€.
19. Depois de efetuadas as adendas no BPP FI/CO (versão 3.9) e SharePoint (versão 1.1), foram os BPP considerados aceites e validados pela Ré, na reunião de 11 de maio de 2017, onde se retomaram os trabalhos, comprometendo-se a Ré a efetuar o pagamento das faturas pendentes até ../../.... e ficou definido o plano de trabalhos padrão para os meses seguintes, a saber:
a) setembro de 2017: Formação aos Key Users e Testes de Aceitação;
b) outubro e novembro de 2017: respetivamente o primeiro e o segundo paralelos do processamento salarial;
c) janeiro de 2018 – ....
20. Adicionalmente, tendo em conta que a SAP lançou em outubro de 2016 uma nova atualização, a Autora concordou proceder à atualização para a versão 1610.
21. A 09.08.2017 realizou-se uma reunião de esclarecimentos MM e SD em que participou o Gestor de Projeto da Ré e três Consultores por parte da Autora, onde se solicitou a inclusão da empresa que o Grupo EMP02... participa em ..., em detrimento da EMP06..., com a configuração standard, situação que obrigou a Autora a nova apreciação e adaptação do projeto.
22. Além destas reuniões, a Autora foi sempre dando conhecimento à Ré do andamento dos trabalhos, assim como pedindo à Ré que desse seguimento às suas tarefas de forma a dar continuidade ao projeto.
23. A 15.09.2017 foi realizada outra reunião de gestão do projeto com a presença dos gestores de ambas as partes e ainda com quatro consultores da parte da Autora, onde foram acordados alguns ajustes ao plano, nomeadamente, o início das formações para outubro de 2017 e a realização dos testes de validação das soluções para iniciar no mês de novembro de 2017.
24. Em outubro de 2017 a Autora iniciou as formações agendadas, nomeadamente a formação de HCM e FI/CO e entregou ainda o protótipo para dar início aos testes, tendo emitido a respetiva fatura, datada de 21.12.2017, no valor de 40.690,54€ (paga a 09.05.2018).
25. Em novembro de 2017 deu-se a corrupção total dos discos da Ré onde se encontravam as bases de dados SAP (EMP07...) e SharePoint, obrigando a nova reorganização do cronograma de trabalho.
26. Para minimizar esta situação e ajudar na recuperação e consequentemente carregamento dos dados, a Ré solicitou que a Autora colocasse as máquinas/servidores nas suas instalações, o que a Autora aceitou, tendo ainda refeito o trabalho perdido na CRM.
27. A Autora manteve algumas formações em curso, e no mês de janeiro de 2018, deu continuidade à formação agendada e ainda deu início aos testes de aceitação do protótipo, encontrando-se em falta ainda o carregamento de dados pela Ré.
28. Durante os meses de março e junho de 2018 foram realizados os testes de aceitação e validação do protótipo.
29. O programa S/4HANA tinha entretanto sofrido nova atualização – 1709 –, e a Ré em julho de 2018 volta a solicitar a nova versão, o que a Autora concordou.
30. Ademais, a Ré solicitou que a implementação na empresa de ... fosse substituída por outra empresa do Grupo EMP02..., a EMP05..., o que iria obrigar a nova adaptação dos serviços em curso, mas foi aceite pela Autora.
31. Entre outubro e dezembro de 2018, foram agendados e realizados vários testes de aceitação e validação do protótipo, e ainda as formações finais para a conclusão desta fase.
32. A ../../2018, a Autora fez um ponto de situação onde expõe os pontos em falta pela Ré, para avançarem para esta fase, a saber:
EMP03... – Falta ficheiro com os funcionários.
a. Plano de ação: Envio dos funcionários ativos para carga no produtivo
EMP04... – Dados mestre dependem de liberação da porta 80 para a SAP acessar e verificar o erro;
a. Suporte da SAP não consegue aceder a conexão remota, por que esta usando uma porta alta e como não tem a possibilidade de alterar a porta da conexão remota, vamos precisar usar o SAP Router e para isso vamos precisar liberar a porta 80 no firewall.
b. Aguardando retorno da solicitação efetuada para GG.
EMP05...:
a. MM – Falta ficheiro com os BPs;
b. HCM –não recebemos as seguintes informações:
i. Criação das unidades organizativas         
ii. Criação cargos/posições
iii. Criação de vagas
iv. Ligação dos centros de custo às unidades organizacionais
v. Parametrização de novas rubricas salariais
vi. Parametrização de novas regras salariais
vii. Parametrização de novas integrações no esquema salarial
viii. Parametrização de novas ausências
ix. Parametrização de novos horários de trabalho
x. Carregamento dos colaboradores
Perfis de Acesso - Não foram realizados testes integrados com os utilizadores para teste de perfil. Podem ocorrer problemas de acesso pós ....
33. A 21.12.2018 a Autora emitiu as faturas correspondentes às últimas parcelas: validação dos testes de aceitação, n.º...43 com o valor de 28.483,38€, arranque do sistema, n.º ...44 com o valor de 101.726,34€ e ainda a n.º ...45, com o valor correspondente ao período experimental de 60 dias, no montante de 40.690,54 €.
34. Em 03 de janeiro de 2019, o sistema arrancou na Ré e, a 24 e 25 de janeiro de 2019, as partes reuniram para fazer um ponto de situação do arranque do sistema, tendo sido elaborados documentos com o resumo de todo o processo de implementação em curso.
35. Aqui ficou acordado o arranque do sistema nas outras empresas – EMP03... a 04/02 e EMP04... e EMP05... a 18/02 –, assim como o início do contrato de suporte e manutenção a 01/02/2019.
36. A 29.01.2019, a Ré fez o pagamento da fatura correspondente à validação dos testes de aceitação, vencida desde 21.12.2018, mantendo as demais, também vencidas, pendentes até à presente data.
37. A Autora deu continuidade ao projeto e a 31.01.2019, realizou-se nova reunião de gestão de projeto, onde se fez um ponto de situação, mantendo-se agendado o arranque no sistema em duas das empresas solicitadas pela Ré, ficando por redefinir apenas uma data, ou seja: - EMP05...: 11.02.2019; - EMP03...: 18.02.2019; e - EMP04...: a definir.
38. A 07 e a 14 de fevereiro de 2019, realizaram-se novas reuniões onde foi feito o ponto de situação do procedimento de arranque do sistema, havendo ainda a estipulação das tarefas e responsabilidades de cada parte para a implementação do sistema, comprometendo-se a Ré a efetuar o pagamento da fatura correspondente ao arranque do sistema.
39. Além disso, devido aos problemas que estavam a ser encontrados, o início do contrato de suporte e manutenção foi adiado para 01.03.2019.
40. O arranque do sistema implicou um trabalho intenso de correção de dados por parte dos trabalhadores da Ré e a reproduzir janeiro e fevereiro em duplicado para os dois sistemas – SAP e Primavera – para cumprir todos os prazos legais de envio de IVA, Segurança Social, Finanças, faturações e guias de transporte.
41. A 28.02.2019 voltou a realizar-se nova reunião nos mesmos moldes, havendo novamente a estipulação das tarefas e responsabilidades de cada parte, e novamente o compromisso de efetuar o pagamento da fatura, com a necessidade de replaneamento do ... na EMP05..., na EMP03... e do início do contrato de suporte.
42. A 11 de abril de 2019 as partes voltaram a reunir nos mesmos moldes e foram identificadas várias tarefas pendentes, sendo necessário reagendar novamente as datas de arranque nas demais empresas do Grupo, tendo a Ré se comprometido a efetuar o pagamento das duas faturas pendentes.
43. Em maio de 2019, já depois da saída do gestor do projeto da Autora DD, foram realizadas reuniões em que a Ré solicitou a alteração dos BBP FI/CO e MM/SD e que provocou uma alteração no projeto, aceite pela Autora, ficando a aguardar que a Ré os analisasse e validasse até final de maio.
44. Durante junho de 2019 foram discutidas as alterações e atendidas as questões pendentes, de acordo com tabelas de ocorrências, e chegaram ainda as partes a um entendimento relativamente ao pagamento das faturas pendentes, tendo a Ré solicitado um plano de pagamento das faturas de acordo com a implementação efetuada e a efetuar nas empresas, situação para a qual a Autora se mostrou disponível, tendo enviado, a 26.06.2019, um plano de pagamento que pressupunha o pagamento imediato do montante de 111.124,59€ e que não teve qualquer resposta por parte da Ré.
45. A Ré efetuou a reanálise dos BBP e a 18.06.2019 comunicou-as à Autora; nesse seguimento, a 28.06.2019, a Autora envia a sua versão dos BBP, com as respetivas soluções já efetuadas e estado da situação em curso, assim como a solicitação do agendamento de uma reunião.
46. A Ré responde a 03.07.2019, informando que CC, membro da Administração da EMP02..., teria estado de férias e que a documentação enviada não tinha sido analisada.
47. Perante tal postura, a relação de confiança que a Autora mantinha foi quebrada e a 11.07.2019, a Autora concede um prazo para pagamento do valor proposto para a primeira prestação do plano de pagamento, no montante de 111.124,59€, sob pena de, findo esse prazo e sem qualquer pagamento, suspenderem todos os trabalhos em curso.
48. Pagamento que a Ré não efetuou, tendo a Autora suspendido todos os trabalhos em curso.
49. Nesse seguimento, a 25.07.2019, a Autora envia uma interpelação admonitória, concedendo um último prazo à Ré para o pagamento integral das faturas pendentes desde dezembro de 2018 no valor de 142.416,88€, sob pena de se considerar o incumprimento definitivo da obrigação da Ré.
50. Na mesma data que receciona a carta da Autora, a Ré resolve o contrato de prestação de serviços por falta de implementação nas sociedades EMP03..., EMP05... e EMP04..., os atrasos e o incumprimento imperfeito do contrato, nos termos de carta junta como doc. 43 da PI e que se dá como reproduzida.
51. Juntou ainda documentos não atualizados, colocando ainda ocorrências pendentes que nunca tinham comunicado à Autora, a saber:
HCM - 172 - Falta de Formação
CRM - 170 - No CRM, ao passar a encomenda para OV os anexos (PO do cliente) não passa para o SDV.
CRM - 171 - Após picking o Rui (Logística), não consegue anexar os documentos de exportação.
CRM - 174 - Falta de Formação
FI - 173 - Falta de Formação
MM - 164 - Guias de vendas saem 9 pág. (3xori + 3xdup + 3xtri)
MM - 165 - FW: Desconto Comercial (não aparece na guia)
MM - 166 - Guias sem referência não são impressas automaticamente
MM - 167 - Pedido de compra rever os calculos (ver email da HH)
MM - 175 - Falta de formação
52. Dos serviços contratados pela Ré, a Autora atendendo à resolução, não prestou na totalidade os seguintes serviços:
Na área CRM: - CRM Service: serviço negociado para entrar numa segunda fase do projeto, ou seja, uma adenda ao contrato de prestação de serviços, no valor de 25.000,00€;
- Interactive Reporting: serviço cuja conclusão não se concretizou devido à existência de problemas técnicos e cuja resolução ainda não tinha sido efetuada, no valor de 1.500,00€;
Na área de FICO:
- Controlo de Gestão: não implementado porque a Ré não tinha informação para colocar no sistema e não era uma prioridade para esta, tendo esta decidido adiar a sua implementação, no valor de 960,00€; 
Na área de MM:
- Registo automático de faturas inter-company: como seria um serviço de rápida implementação, foram priorizados outros serviços, tendo este ficado pendente, no valor de 960,00€.
53. A Autora prestou vários serviços fora do âmbito do contrato, que ascenderam a um valor estimado superior a 100.000 €, como duas atualizações e desenvolvimentos e suporte extra ao contratado.

3.2.2. Factos Não Provados

- a Autora é que convenceu a Ré a implementar o SAP e a celebrar o contrato;
 - que o contrato incluía a implementação do SAP nas dezenas de empresas do Grupo situadas em Portugal e no estrangeiro;
 - que a Autora não tinha o estatuto de parceira VAR da SAP por não cumprir com os requisitos necessários exigidos para o efeito pela SAP;
 - que a Ré não teria celebrado o contrato de prestação de serviços se fosse do seu conhecimento tal factualidade;
 - os licenciamentos propostos pela Autora estavam manifestamente desajustados à realidade da Ré e às necessidades desta;
 - A elaboração dos BBP pela Autora caracterizou-se por manifestas falhas graves, com necessidade de sucessivas correções, algumas das quais sem sucesso;
 - que os consultores da Autora não tinham conhecimentos técnicos para a implementação e que foram substituídos por erros grosseiros dos quais a Ré reclamou;
 - que a Ré, em finais de 2018, instou a Autora de que não toleraria mais adiamentos e que deveria proceder ao arranque do programa até janeiro de 2019;
 - que os BPP não foram aceites, designadamente na área financeira, não tendo sido validados os testes de aceitação;
 - a Ré não tinha o programa ERP SAP 4/HANA implementado, tendo sido desnecessário o pagamento do licenciamento junto da SAP;
 - foi solicitado à Autora que fizesse uma reposição do ambiente Produtivo para um ambiente de Qualidade;
 - o motivo de corrupção das bases de dados;
- ocorreram milhares de erros que determinaram pontos de correção, alguns dos quais permaneceram com erros e sem qualquer possibilidade de utilização;
- que a Autora não tinha capacidade para solucionar os erros reportados;
- o tempo despendido pelos colaboradores da Ré, causou reflexos quer na atividade produtiva da Ré, quer na sua atividade comercial, situação que se estendeu às demais empresas envolvidas no projeto e que determinou a paragem da produção pelo menos durante uma semana.
*
3.2. O Direito

a) Da nulidade da sentença
Invoca a recorrente que a sentença é nula, por omissão de pronuncia, já que não apreciou todos os pedidos formulados na ação.
Não lhe assiste razão.
O vício em causa prende-se com os limites da atividade de conhecimento do tribunal, estabelecidos no art. 608.º, nº2 do CPC: «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Se o juiz deixa de conhecer questão submetida pelas partes à sua apreciação e que não se mostra prejudicada pela solução dada a outras, peca por omissão; ao invés, se conhece de questão que nenhuma das partes submeteu à sua apreciação nem constitui questão que deva conhecer ex officio, o vício reconduz-se ao excesso de pronúncia.
Todavia, importa ter presente que o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.5.º) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas.
Ao julgar a ação totalmente procedente, o tribunal a quo deu provimento à pretensão da autora de lhe ser paga a quantia de142.416,88 €.
O fundamento baseou-se na resolução ilícita do contrato e consequente incumprimento definitivo do contrato imputável à ré.
A questão do IVA que vem agora suscitada tem de naufragar na medida em que numa transação comercial, a fatura é emitida com o respetivo IVA, que a contraparte tem de pagar, competindo a quem o recebe proceder à sua entrega à Autoridade Tributária, podendo quem o pagou deduzir o seu montante.
Mal se compreende que a recorrente não tenha pago as faturas emitidas, por considerar não serem devidos tais valores, e tenha regularizado o IVA junto da Autoridade Tributária, obrigação que não era da sua responsabilidade.
Quando muito o pagamento a que procedeu configura a devolução do valor que deduziu sem que as faturas houvessem sido pagas.
Assim, as questões que conformavam o objeto do litigio, incumprimento do contrato e seus efeitos, foram tratadas devidamente na sentença.
Nestes termos, não se verifica a alegada omissão de pronúncia.
Quanto à invocada nulidade da sentença, nos termos do art. 195.º, n.º 1 do CPC, diga-se, sem necessidade de outras considerações, que as causas de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciadas no artigo 615.º nº 1 do CPC onde não consta o que aqui vem alegado.
As nulidades da sentença são vícios intrínsecos da formação desta peça processual, taxativamente consagrados no nº1, do art. 615º, do CPC, sendo vícios formais do silogismo judiciário relativos à harmonia formal entre premissas e conclusão, não podendo ser confundidas com hipotéticos erros de julgamento, de facto ou de direito.[1]
A nulidade prevista no art. 195.º, n.º 1, CPC é uma nulidade processual que se refere ao ato como trâmite e não como expressão da decisão do tribunal.
O recurso não serve ou não é o meio próprio para conhecer da infração às regras do processo não sendo lícito à parte colocar a questão diretamente ao tribunal superior enxertando-a no recurso de uma outra decisão.
Ademais, na fundamentação da sentença, o juiz declarou quais os factos que julgou provados e quais os que julgou não provados, analisando criticamente as provas, e especificando os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.
Termos em que a sentença não enferma da nulidade que lhe é apontada.
*
a) Da modificabilidade da decisão de facto
Nos termos do artigo 662.º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A Recorrente impugna a matéria de facto numa tripla vertente:
- deverá aditar-se aos factos provados a matéria constante dos artigos 1º, 5º, 12º, 14º, 70º, 81º, 112º, 120º e 121º da petição inicial, e artigos 19º, 24º, 25º, 27º, 28º, 41º, 72º, 89º a 92º, 102º, 103º, 105º, 121º, 122º, 123º, 153º, 157º, 161º, 183º, 185º e 208º da contestação porque provada, por acordo ou confissão das partes;
- os factos 1, 2, 9, 10, 21, 24, 26, 36, 46 e 47 da matéria de facto provada devem ter outra redação e os factos 17, 27, 28, 31, 43, 44 e 45, 51, 52 e 53 deveria ser dados como não provados;
- os factos sob as alíneas a) e l) dos factos não provados deveriam ser excluídos, e os factos c), d), b), e) e k) deveriam ser provados.
Quanto aos factos que se pretende aditar, com o fundamento único de não terem sido impugnados e aos mesmos haver referência no saneador, tal não é razão para a sua inserção na sentença.
A decisão da matéria de facto (provada e não provada) não tem de comportar toda a matéria alegada pelas partes já que apenas a factualidade que assuma juridicidade relevante em razão das questões a conhecer é que deve ser objeto dessa decisão.
Assim, na sentença atenderam-se, e bem, aos factos que resultaram provados por acordo relativos à proposta, contrato, faturação e resolução do contrato, bem como a falta de pagamento.
Acrescenta-se, por uma questão de rigor, que os factos que expressamente constam do despacho saneador como estando as partes de acordo, foram integrados nos factos provados da sentença (factos 3, 8, 10, 24, 33, 49 e 50), e na replica a autora não aceita a extensão da factualidade que a impugnante invoca.
Donde, o aditamento pretendido não pode ser atendido.
Quanto à restante matéria, com vista a poder apreciar a impugnação, procedemos à audição integral da gravação da audiência final e à análise de tudo quanto consta do processo, designadamente os documentos, troca de correspondência eletrónica, e o relatório pericial e seus esclarecimentos.
Podemos afirmar com segurança que não assiste razão à impugnante.
Quanto aos factos a que se pretende dar outra redação, alterando-se em alguns casos o respetivo sentido, a alteração não tem fundamento.
Logo quanto ao facto 1º resulta claro da prova produzida a inclusão e exclusão de empresas ao longo do processo negocial pelo que não pode dar-se por assente que a proposta de prestação de serviços integrava todas as empresas do Grupo EMP02....
Quanto ao facto 2º resulta da proposta (doc. 2 junto com a PI) e do contrato de prestação de serviços (doc. 1 junto com a PI) que o módulo de formação era um serviço opcional, que veio a ser contratado pela recorrente.
Os pontos 9º e 10º consubstanciam preciosismos de índole formal sem relevância em termos fáctico-jurídicos.
O ponto 21º deverá manter a sua redação, pois que se mostra conforme com o que resulta do doc. 13 e do depoimento das testemunhas FF e II.
O ponto 24º, na parte relativa ao protótipo, extrai-se do relatório pericial que o protótipo foi aprovado, tendo sido emitida a fatura correspondente.
Quanto aos factos 26º, 36º, 46º e 47º a alteração da redação apresenta-se inconsequente, não se vislumbrando a sua relevância jurídica.
Quanto aos factos provados que a Recorrente considera que deveriam ser dados como não provados (17, 27, 28, 31, 43, 44 e 45, 51, 52 e 53), tais factos ressumam da prova documental junta aos autos e do depoimento das testemunhas ouvidas, com destaque para FF, JJ e II, consultores nas diferentes fases do projeto, e que relataram que as várias solicitações da ré, mesmo causando atrasos e problemas, foram sendo resolvidas, pois tinham interesse também nesta implementação, sendo que relativamente à realização de testes de aceitação e validação de protótipo, também se pronunciaram os peritos, pelo que tais factos são de manter.
Ficou ainda demonstrado que de maio a junho de 2019 a ré esteve a analisar, rever e alterar os BBP’s e suas funcionalidades, e solicitou que a autora apresentasse um plano de pagamentos a efetuar pela ré quanto às faturas em dívida.
As referidas testemunhas e a ROC da Autora, AA, confessaram a existência de serviços não prestados e ainda de outros que foram prestados fora do âmbito, e que na reunião final acordaram num plano de pagamento, ao qual a Ré não respondeu, nem sequer deu seguimento à revisão dos BPP entretanto pedida.
Quanto aos factos não provados, seguindo a enumeração avançada pela impugnante, cumpre referir que:
- não resultou prova suficiente e segura quanto aos motivos da corrupção das bases de dados, pelo que admitindo-se a sua formulação genérica, a verdade é que fazendo este segmento parte dos temas da prova, consignou-se a sua indemonstração nos factos não provados;
- o gestor de projeto DD, confirmou que foi a ré quem decidiu implementar o SAP e procurou empresas e orçamentos, tendo escolhido a autora;
- as empresas incluídas no contrato resultam do facto 10º já assente;
- dos documentos juntos a 19/11/2020, 17/12/2020 (ref. ...22) e a 18/12/2020 (ref. ...88) resulta que a autora era parceira SAP;
- quanto aos erros, falhas e outras deficiências apontadas pela ré, e que foram consideradas como não demonstradas, sufraga-se inteiramente a motivação da sentença quanto a não existirem evidências de a ré ter reclamado, aceitando as atas enviadas pela autora, tendo as testemunhas concordado que, na parte da implementação, os consultores tinham competência e conhecimento nas respetivas áreas, não havendo notícia que tenham tido real impacto no projeto (como resulta do relatório pericial).
A prova produzida, considerada na sua globalidade, não impõe decisão diversa (artigo 662.º, nº 1, do Código de Processo Civil), pelo que os pontos relacionados com a impugnação não merecem acolhimento, sendo a decisão de facto correspondente à realidade processualmente adquirida.
Nestes termos, é de manter na íntegra a matéria de facto nos termos em que foi definida na sentença.
*
c) O mérito da sentença: a resolução do contrato e seus efeitos
Não vem questionado que entre a autora e a ré foi celebrado um contrato de prestação de serviços inominado com as condições livremente fixadas pelas partes, que tinha como objeto a implementação e licenciamento do ERP SAP pela autora contra o pagamento do preço pela ré, e ao qual se aplicam as regras do mandato (artigos 1154.º e 1156.º do Código Civil - diploma a que pertencerão todos os artigos sem indicação da sua proveniência).
Uma vez que se trata de implementação de uma obra não corpórea, com a desadequação das regras do regime de empreitada, considerou-se corretamente que o regime do contrato de prestação de serviço, permite uma maior liberdade na adoção das normas aplicáveis ao caso concreto.[2]
O acordo das partes conforma um negócio jurídico bilateral, sinalagmático, oneroso, comutativo e consensual, dele emergindo reciprocamente direitos e deveres, consubstanciados numa relação jurídica complexa. A autora obriga-se à prestação do resultado, a ré ao correspondente pagamento do preço, a obrigação assumida por cada um dos contraentes constitui a razão de ser da obrigação conferida pelo outro.
Importará começar pela apreciação da dinâmica contratual no que se refere ao cumprimento do contrato pelas partes.
A autora alega que o contrato foi sendo alterado, com dilação dos prazos, mas foi sendo cumprido, tendo sido por si suspenso por falta de pagamento, e depois rescindido pela Ré.
Invoca a ré que resolveu o contrato, por perda objetiva de interesse, depois da recusa da autora em cumprir, pedindo a restituição das quantias entregues.
Do quadro factual extrai-se que a implementação do SAP sofreu atrasos, imputáveis quer à autora quer à ré, situação, no entanto, ultrapassada pelas partes, com o estabelecimento de prazos adicionais, bem como com a alteração do âmbito contratual.
As partes acordaram em alterar os pressupostos contratuais, estabelecendo ainda um acordo para a elaboração de um plano de pagamento das últimas faturas emitidas.
A autora no cumprimento do acordado, elaborou um plano de pagamento que pressupunha o pagamento imediato de determinada quantia.
A ré não respondeu, nem sequer depois de interpelada, assistindo-se a uma inércia injustificada com a manutenção da possibilidade de cumprimento por parte da autora.
Perante a falta de resposta da ré, a autora suspendeu a implementação, nos termos contratualmente previstos (cláusula 3.ª).
Este comportamento não configura uma recusa de cumprimento. Tal teria de revestir uma declaração categórica, e manifestar-se por atos inequívocos de não concluir o serviço.
Só perante uma declaração deste tipo é que se poderia dispensar a interpelação e a fixação de um prazo razoável para cumprir, para consubstanciar um incumprimento definitivo.
Em causa está uma exceção do não cumprimento do contrato, própria dos contratos bilaterais, em que as obrigações são correspetivas e interdependentes, isto é, uma é sinalagma da outra.
Como resulta do art. 428.º, a exceção do não cumprimento do contrato não nega a qualquer das partes o direito ao cumprimento da obrigação nem enjeita o dever de a outra cumprir a prestação. O que resulta ou origina a exceptio é a possibilidade de recusa da prestação por uma das partes enquanto a outra não efetuar a que lhe cabe, ou seja, tem somente um efeito dilatório, o de realização da prestação no momento (ulterior) em que receba a contraprestação.
Até aqui, mantém-se em vigor o vínculo contratual entre as partes.
Sucede que, nesta fase, a ré resolveu o contrato, invocando perda objetiva de interesse, pedindo a restituição das quantias entregues e uma indemnização.
É, pois, esta declaração resolutiva da ré cuja validade cumprirá analisar.

A resolução, como poder de extinção unilateral de um contrato válido, não é completamente livre, havendo pressupostos ou limites que a enformam, em regra, com a exigência de um incumprimento grave, impossível ou definitivo (artigos 801.º, 802.º e 808.º).
A resolução legal por incumprimento só se pode efetivar nas hipóteses tipificadas na lei, por via de regra, não ocorre com a mora, em que se torna necessário recorrer à previsão do artigo 808.º, para a converter em incumprimento definitivo.
Nos termos do art. 808.º, com a epígrafe perda do interesse do credor ou recusa do cumprimento, se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação (nº1), consignando-se que a perda do interesse na prestação é apreciada objetivamente (nº2).
De acordo com este normativo, são duas as causas reveladoras do incumprimento: o credor perder objetivamente interesse no cumprimento da prestação ou decorrer o prazo suplementar (admonitório) de cumprimento.
No caso, não houve lugar a interpelação admonitória.
Cumprirá, assim, apreciar se é legitima a perda de interesse do credor na prestação, apreciada objetivamente.
Recorrendo ao ensinamento de Almeida Costa quanto à apreciação objetiva da perda do interesse do credor, dir-se-á que “a importância de tal interesse, embora aferida em função da utilidade concreta que a prestação teria para o credor, não se determina de acordo com o seu juízo arbitrário, mas considerando elementos susceptíveis de valoração pelo comum das pessoas. Acrescenta o autor que se exige ainda “a efectiva perda do interesse do credor e não uma simples diminuição. Concretizando que o caso mais frequente consistirá no desaparecimento da necessidade que a prestação se destinava a satisfazer.[3]
Não bastará, pois, que o contraente alegue ter perdido o interesse que tinha na realização do contrato; é indispensável que a perda seja justificada à luz de circunstâncias objetivas, o mesmo é dizer, segundo um critério de razoabilidade, próprio do comum das pessoas. Logo, a perda do interesse, objetivamente considerada, só ocorrerá no caso de desaparecimento da necessidade do credor a que a prestação visava responder.
No caso, admitindo que a ré terá perdido subjetivamente interesse na prestação, tal surge na sequência de um pedido por si efetuado de alteração dos BPP, obviamente com o interesse na sua implementação, o que foi aceite pela autora, pelo que não ocorreu o desaparecimento objetivo da necessidade que a prestação visava satisfazer.
Considera-se, em sintonia com a sentença recorrida, que o motivo invocado pela ré não constitui fundamento para a resolução do contrato.
A resolução do contrato configura-se assim como ilícita.
A vexata question surge agora em saber se a declaração de resolução sem fundamento do contrato faz cessar o vínculo contratual.
Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 436.º «a resolução do contrato pode fazer-se mediante declaração à outra parte». A lei civil adota no tocante à resolução um sistema declarativo: a resolução opera por simples declaração à outra parte, portanto, sem necessidade de intervenção constitutivo-condenatória do tribunal. Por outras palavras, a resolução opera ope voluntatis e não ope judicis.  A natureza potestativa da declaração de resolução imprime-lhe as características da unilateralidade recipienda, da irrevogabilidade, da incondicionalidade e da concretização dos respetivos fundamentos (artºs 224 nº 1, 1º parte, e 230 nº 1 do Código Civil)[4].
Assumindo-se a declaração de resolução como uma declaração unilateral recetícia levanta-se o problema de saber em que situação fica o outro contraente que não tenha incorrido em incumprimento contratual.
Numa perspetiva, defende-se que, efetivando-se a resolução extrajudicial e unilateralmente, impõe-se à contraparte, pelo que o contrato se extingue assim que a comunicação de resolução for recebida pelo seu destinatário, não obstante a sua falta de fundamento. Este é o entendimento de Romano Martinez para quem «a declaração de resolução, ainda que fora dos parâmetros em que é admitida, não é inválida, pelo que, mesmo injustificada, produz efeitos; ou seja, determina a cessação do vínculo.[5]
Num outro sentido, sustenta-se que, embora se assuma como um direito potestativo, o direito de resolução do contrato pressupõe o incumprimento definitivo de um dos contraentes. Neste caso, o direito potestativo de resolver apenas emerge quando este seu pressuposto se verifique. Quando assim não é, a resolução deixa de ter fundamento, logo é ilegal, e, por isso, ineficaz, não determinando a cessação do contrato. Esta é a posição defendia por Calvão da Silva.[6]
A solução que deve ter-se por mais conforme, a nosso ver, é a que vem defendida por Paulo Mota Pinto e que atende à modalidade do contrato em que ocorra a resolução ilícita. Para este autor a solução depende da circunstância de o declarante da resolução ilícita ter, ou não, o direito a denunciar o contrato. Caso o resolvente ilícito tivesse a possibilidade de extinguir o contrato através de uma denúncia ad nutum então a resolução ilícita extingue o vínculo contratual já que a declaração de resolução pode ser convertida numa declaração de denúncia. Nos demais casos, a resolução sem fundamento é ineficaz, já que não estão cumpridos os pressupostos inerentes ao direito potestativo de resolução.[7]
Este foi também o entendimento seguido no acórdão da Relação de Coimbra de 06/11/2011[8] que refere que “a solução que deve ter-se por exacta obriga a um distinguo, consoante o resolvente tem ou não o direito de por termo ao contrato mediante uma denúncia ad nutum, embora, eventualmente, o faça sem pré- aviso. No primeiro caso, a resolução sem fundamento, ao menos na maioria dos casos, deve ser equiparada a uma denúncia sem pré-aviso; no segundo caso, a resolução será ineficaz, por não ter, juridicamente, fundamento e o resolvente não dispor do direito potestativo correspondente.
Concluindo-se que a comunicação de resolução não extingue, de per se, o vínculo contratual, a existência desta comunicação não é, contudo, desprovida de relevância para aferir de eventuais vicissitudes na relação contratual.
Assim é que, apuradas as circunstâncias, a resolução sem fundamento pode corresponder a uma recusa categórica de cumprimento do contrato.
É certo que, relativamente à equiparação da declaração da resolução ilícita a uma recusa categórica de cumprimento, Calvão da Silva chama a atenção para a necessidade de evitar a tentação de «cair em automatismos fáceis», na medida em que a declaração de resolução ilícita por um dos contraentes não constitui, sem mais, fundamento absoluto de resolução (lícita) a favor da outra parte[9].
No caso, a relação entre a autora e ré deteriorou-se de tal forma que a manutenção do contrato não podia ser-lhes exigida.
Os termos da ação proposta e da reconvenção nela deduzida denotam claramente que tanto a autora como a ré manifestaram o seu interesse na desvinculação, pelo que a manutenção do contrato se traduziria numa imposição para ambas. A ré manifestou o seu interesse na desvinculação quando procedeu à resolução do contrato, invocando perda do interesse, a autora quando, conformando o comportamento da ré como culposo, imputando-lhe o incumprimento, declarou pretender ver cessada a relação contratual e ser-lhe pago o valor dos prejuízos causados pelo não cumprimento da obrigação.
A comunicação da resolução do contrato por parte da ré, não se verificando qualquer incumprimento definitivo e culposo pela contraparte, e sobretudo, nas circunstâncias em que se desenvolveu a relacionamento contratual, terá de se considerar um ato ilícito, correspondente a uma situação de incumprimento do contrato por esta.
Dito de outo modo, a declaração resolutiva sem fundamento faz incorrer, no caso, o resolvente numa situação de incumprimento definitivo: quem resolve infundadamente um contrato nos termos expostos revela uma vontade séria e definitiva de não o querer cumprir, sujeitando-se às consequências desse incumprimento.
Assim, bem andou a sentença em declarar o direito da autora a receber o preço (artigo 795.º, n.º 2).
Nestes termos, a apelação terá de improceder.
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Sumário:

I – Quanto aos efeitos da resolução ilícita a solução depende da circunstância de o declarante da resolução ilícita ter, ou não, o direito a denunciar o contrato.
II - Caso o resolvente ilícito tenha a possibilidade de extinguir o contrato através de uma denúncia ad nutum então a resolução ilícita extingue o vínculo contratual já que a declaração de resolução pode ser convertida numa declaração de denúncia. Nos demais casos, a resolução sem fundamento é ineficaz, já que não estão cumpridos os pressupostos inerentes ao direito potestativo de resolução.
III - Concluindo-se que a comunicação de resolução não extingue, de per se, o vínculo contratual, a existência desta comunicação não é irrelevante para aferir de eventuais vicissitudes na relação contratual, podendo a resolução sem fundamento corresponder a uma recusa categórica de cumprimento do contrato, configurando um incumprimento definitivo.
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 14 de Novembro de 2024

Assinado digitalmente por:                                                   
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Paula Ribas
2º Adj. – Des. Sandra Melo


[1] Neste sentido, o acórdão desta Relação de Guimarães de 04/10/2018, proferido no processo nº 1716/17.8T8VNF.G1 e disponível em www.dgsi.pt.
[2] Cf. Cura Mariano, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 7.ª ed., p. 50).
[3] (in “Direito das Obrigações”, 11ª ed., pág. 1054),
[4] Neste sentido, Acórdão da Relação de Coimbra de 06/11/2011, proferido no processo nº 321/2002.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Da Cessação do Contrato, 2.ª Edição, 2006, pág. 221.
[6] Pressupostos da Resolução por Incumprimento, in Estudos de Direito Civil e Processo Civil Almedina, 1999, pág.158).
[7] Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Volume II, Coimbra, 2008, páginas 1674.
[8] Proferido no processo nº 321/2002.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[9] A declaração da intenção de não cumprir», Estudos de Direito Civil e Processo Civil (Almedina), 1999, pág. 135.