EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO ANTECIPADA DO BENEFÍCIO
PRÉVIA AUDIÇÃO DO FIDUCIÁRIO
NULIDADE
Sumário


I. A exoneração do passivo restante tem por fundamento final proporcionar ao devedor um fresh start, ou uma nova oportunidade, de modo a que, liberto do passivo que o vinculava, se reabilite economicamente e se reintegre, plenamente na vida económica.
II. A exoneração do passivo restante fica dependente do cumprimento, pelo insolvente, durante o período de cessão, de deveres específicos (de apresentação, informação e colaboração) e de deveres gerais (de cooperação e de actuação com boa-fé processual); e à sua concessão está subjacente uma ideia de merecimento (nomeadamente, pelo oportuno e escrupuloso cumprimento de tais deveres).
III. A recusa de concessão da exoneração do passivo restante com fundamento na violação, pelo insolvente, durante o período da cessão, de qualquer obrigação a que esteja vinculado (máxime, da obrigação de entregar ao fiduciário o rendimento disponível) exige, em regra e cumulativamente, uma conduta dolosa ou gravemente negligente desse devedor e um prejuízo para satisfação dos credores da insolvência.
IV. Previamente à prolação de decisão sobre o pedido de recusa antecipada da exoneração do passivo restante o fiduciário terá que ser sempre ouvido; e compreende-se que assim seja, face à gravidade das consequências para o devedor da recusa da exoneração (com a consequente vinculação à satisfação integral de todos os créditos sobre a insolvência), e ao expectável maior conhecimento do fiduciário, quer quanto às circunstâncias da sua vida pessoal, por um lado, quer quanto à forma como o incumprimento denunciado poderá impactar negativamente a satisfação dos créditos sobre a insolvência, por outro.
V. A omissão da prévia audição do fiduciário, face à decisão de recusa antecipada da exoneração do passivo restante, é susceptível de influir no exame e na decisão da causa; e, desse modo, consubstancia uma nulidade, que impõe a anulação de todos os actos praticados posteriormente à sua verificação.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada
1.1.1. AA (aqui Recorrentes), residente na Rua ..., ..., em ..., propôs o presente processo especial de insolvência, pedindo que:

· fosse declarado em estado de insolvência;

· e lhe fosse concedido o benefício de exoneração do seu passivo restante.

Alegou para o efeito, em síntese, encontrar-se impossibilitado de fazer face aos compromissos assumidos, no montante global apurado de € 25.572,72, mercê do insucesso da actividade de comerciante e de pequeno construtor civil a que se dedicou desde Junho de 2019, impactado pelos conturbados tempos da pandemia de Covid 19; vivendo do seu salário mensal de € 1.000,00, parte dele penhorado em vários processos executivos, e da ajuda financeira e familiares e amigos.
Mais alegou viver sozinho, em habitação arrendada, por € 575,00 por mês, pagando uma pensão de alimentos mensal de € 200,00 à sua filha menor.
Por fim, alegou estar em condições de beneficiar da exoneração do passivo restante, preenchendo todos os requisitos previstos nos arts.ºs 237.º e 238.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas  [1]; e dever o seu rendimento indisponível para cedência aos respectivos credores ser equivalente a dois salários míninos nacionais.

1.1.2. Em 29 de Junho de 2022 foi proferida sentença onde, nomeadamente: se declarou a insolvência do Requerente (AA); se fixou a sua residência na morada por ele indicada como sua; se decretou a imediata apreensão de todos os seus bens; e se designou o prazo de trinta dias para reclamação de créditos (sentença que aqui se dá por integralmente reproduzida).

1.1.3. Em 31 de Outubro de 2022 o Administrador de Insolvência apresentou o relatório previsto no art.º 155.º do CIRE (que aqui se dá por integralmente reproduzido), onde nomeadamente se lê:
«(…)
O Requerente encontra-se empregado com contrato de trabalho sem termo, exercendo as funções de encarregado, auferindo uma remuneração pelo trabalho prestado no valor mensal, ilíquido, de € 1000.
O agregado familiar é composto pelo próprio.
(…)
O insolvente requereu a exoneração do passivo restante, nos termos do disposto nos arts. 235º e seguintes do CIRE, sendo que o Administrador Judicial desde já se pronuncia favoravelmente quanto ao Despacho Inicial da Exoneração do Passivo restante, devendo necessariamente atender-se ao sustento considerado minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar (…)».
 
1.1.4. Em 11 de Janeiro de 2023 foi proferido despacho (que aqui se dá por integralmente reproduzido), admitindo liminarmente o pedido do Insolvente de exoneração do passivo restante (após parecer favorável do Administrador de Insolvência e a não oposição de qualquer credor), lendo-se nomeadamente no mesmo:

«(…)
II -
Factos Provados:
1 - O Requerente, encontra-se empregado com contrato de trabalho sem termo, exercendo as funções de encarregado, auferindo uma remuneração pelo trabalho prestado no valor mensal ilíquido de 1.000,00 euros.
2 - O agregado familiar é composto pelo próprio.
3 - Foi junto pelo Administrador da Insolvência, a lista provisória dos credores a que alude o art. 154º do C.I.R.E., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
4 - Não consta do C.R.C. do insolvente qualquer condenação pela prática dos crimes a que aludem os artigos 227.º a 229.º do Código Penal.
(…)
III.
Do Direito:
(…)
Não resultando demonstrado qualquer facto que justifique a consideração de montante superior é de fixar como rendimento indisponível o salário mínimo nacional, por se entender que o limite mínimo para a quantia a excluir nos termos do artº 239º, nºs 2 e 3, não pode ser menor e considerar-se ser esse o montante mais baixo que ainda é suscetível de assegurar a subsistência com o mínimo de dignidade (cfr., neste sentido entre outros Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-07-2016, Processo n.º 3347/15.8T8ACB-D.C1).
Posto isto, perante o rendimento disponível do insolvente e à ausência de outros membros que componham o seu agregado familiar, entende-se justificado fixar como rendimento disponível um montante correspondente a 1,5 salário mínimo nacional, de forma ser salvaguardado o princípio da dignidade da pessoa humana, sendo certo que, “(…) por força da submissão ao instituto da exoneração do passivo restante aquilo a que o devedor tem direito é apenas a um montante que lhe proporcione um sustento minimamente condigno e os subsídios de férias e de Natal não são imprescindíveis para o sustento minimamente condigno (…) pelo que têm que ser incluídos no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência”, como se concluiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26/03/2015, rel. Helena Melo, in www.dgsi.pt..
Entendemos, ainda, que o cálculo do montante a ceder no período da cessão, deve ser efetuado anualmente, garantido assim igualdade de tratamento perante a devedora e os credores, sendo obrigação da insolvente proceder à entrega do rendimento que ultrapasse o fixado 1,5 SMN - multiplicado por 12 meses, sendo o cálculo efectuado anualmente, pelo fiduciário.

*******
IV.
Os autos prosseguem para liquidação do ativo que vier a ser apreendido, pelo que, por força do disposto no art. 230º n.º 1 al. e), há que declarar encerrado o processo de insolvência, o que, no caso dos autos, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível (art. 233º n.º 7 do CIRE, na redação do DL n.º 79/2017, de 30/06).
***
V.
Termos em que, considerando o exposto, se decide admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor AA e consequentemente:

a) Declaro que a exoneração do passivo restante será concedida ao insolvente uma vez que sejam observadas as condições previstas no artigo 239º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, nos três anos subsequentes ao encerramento do presente processo de insolvência;
b) Determino que, nos três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (“período de cessão”), o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir (determinado nos termos constantes do artigo 239.º, n.º 3) seja cedido ao fiduciário designado, com exclusão do montante mensal corresponde a um salário mínimo nacional, que para cada ano seja legalmente determinado, sendo o cálculo efectuado anualmente;
c) Nomeio, para o exercício das funções de fiduciário, o administrador da insolvência designado nos autos – o Exmo. Dr. BB e CC.
d) Fica o insolvente advertido de que, durante o período da cessão, está obrigado a: 1) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; 2) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; 3) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão; 4) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego ou rendimento, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; 5) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
e) Durante o período de cessão, o fiduciário nomeado fica obrigado a cumprir as funções previstas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 241.º.
(…)
g) Declaro encerrado o processo de insolvência de AA, nos termos do art. 230º n.º 1 al. e) do CIRE, o que no caso dos autos determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível, com a consequente obrigação do devedor entregar o rendimento disponível ao fiduciário.
h) Adverte-se o devedor de que com o encerramento do processo de insolvência inicia o período de cessão com a consequente obrigação de entregar o rendimento disponível ao fiduciário.
*****
Notifique, registe e publicite a nomeação de fiduciário e o encerramento do processo de insolvência, com a indicação da razão determinante, nos termos previstos nos artigos 37.º e 38.º, ex vi dos artigos 240.º, n.º 2, 247.º e 230.º, n.º 2.
*****
Oportunamente deverá o fiduciário nomeado, com periodicidade anual, dar cumprimento ao dever de informação previsto nos artigos 61.º, n.º 1 e 240.º, n.º 2, do C.I.R.E.
(…)»

1.1.5. Em 12 de Janeiro de 2023 a secretaria certificou a notificação por carta registada ao Insolvente (AA) e a notificação electrónica (via citius) ao mandatário que o mesmo tinha constituído do despacho de admissão liminar da exoneração do passivo, lendo-se nomeadamente na primeira notificação referida:
«(…)
Durante o período de cessão (3 anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência), o devedor fica obrigado a:

· Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;

· Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;

· Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão;

· Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;

· Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
(…)»

1.1.6. Durante o primeiro período de cessão (entre Janeiro de 2023 a Dezembro de 2023, inclusive), o Insolvente (AA) nada entregou ao Fiduciário, entendendo, porém, o mesmo ser devida à fidúcia nesse período a quantia de € 13.630,08, conforme relatório a que alude o art.º 240.º, n.º 2, do CIRE (que aqui se dá por integralmente reproduzido), de 24 de Março de 2024.

1.1.7. Em 29 de Abril de 2024, sob promoção do Ministério Público, foi proferido despacho (que aqui se dá por integralmente reproduzido), ordenando ao Insolvente (AA) que regularizasse a sua falta, sob pena de eventual cessação antecipada da exoneração do passivo restante, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Requerimentos de 24.03 e 16.04 de 2024: Notifique o insolvente e o mandatário para, no prazo de 10 dias, proceder à regularização da quantia em dívida (€ 13.630,08), face ao exposto no primeiro relatório de cessão ou em alternativa acordar com o fiduciário na apresentação de um plano de pagamento faseado, sob cominação de que nada sendo entregue ou informado, o Tribunal equacionar a possibilidade de cessação antecipada da exoneração do passivo restante – art. 243º n.º 1 al. a) do CIRE.
*
Oportunamente, nada sobrevindo, notifique o fiduciário para informar o que tiver por conveniente.
(…)»

1.1.8. Em 30 de Abril de 2024 a secretaria certificou a notificação por carta registada ao Insolvente (AA) e a notificação electrónica (via citius) ao mandatário que o mesmo tinha constituído do despacho referido no ponto anterior, lendo-se nomeadamente na primeira notificação referida:
«(…)
Fica notificado, na qualidade de Insolvente, relativamente ao processo supra identificado, para, no prazo de 10 dias, proceder à regularização da quantia em dívida (€ 13.630,08), face ao exposto no primeiro relatório de cessão ou em alternativa acordar com o fiduciário na apresentação de um plano de pagamento faseado, sob cominação de que nada sendo entregue ou informado, o Tribunal equacionar a possibilidade de cessação antecipada da exoneração do passivo restante – art. 243º n.º 1 al. a) do CIRE., conforme todo o conteúdo do despacho de que se junta cópia.
(…)»

1.1.9. Em 21 de Maio de 2024 o Fiduciário veio informar «que não houve lugar a qualquer entrega por parte do Devedor, nem foi apresentado plano de pagamentos».
 
1.1.10. Em 21 de Maio de 2024 o Ministério Público, em representação do credor Estado - Autoridade Tributaria e Aduaneira, veio requerer a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante (conforme promoção que aqui se dá por integralmente reproduzida), lendo-se nomeadamente no seu articulado:
«(…)
9º. Ao não proceder à entrega à fidúcia dos 13.630,08 euros acima referidos o devedor prejudicou nesse montante não só a satisfação dos créditos tributários reconhecidos como ainda a satisfação dos demais créditos sobre a insolvência.

Requer por isso a V. Exa. que, ao abrigo do artigo 243º nº1 al. a) do CIRE, se digne determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
Mais requer que para o efeito seja dado prévio cumprimento ao disposto no artigo 243º nº3 do CIRE.
(…)»
 
1.1.11. Em 27 de Maio de 2024 foi proferido despacho, ordenando a notificação do «devedor e o seu mandatário para, querendo, se pronunciar quanto à requerida cessação antecipada da exoneração do passivo restante».

1.1.12. Em 28 de Maio de 2024 a secretaria certificou a notificação por carta registada ao Insolvente (AA) e a notificação electrónica (via citius) ao mandatário que o mesmo tinha constituído do despacho referido no ponto anterior, lendo-se nomeadamente na primeira notificação referida:
«(…)
Fica notificado, na qualidade de Insolvente, relativamente ao processo supra identificado, para, querendo, se pronunciar quanto à requerida cessação antecipada da exoneração do passivo conforme todo o conteúdo do despacho de que se junta cópia.
(…)»

1.1.13. Em 24 de Junho de 2024 foi proferida sentença (que aqui se dá por integralmente reproduzida), recusando antecipadamente a exoneração do passivo restante ao Insolvente (AA), lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
Fundamentação de facto: 
Com base nos documentos carreados para os autos e respectivos apensos (artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do C.P.C.), é a seguinte a factualidade assente: 
1. Em 29.07.2022 foi decretada a insolvência de AA, por sentença transitada em julgado. 
2. Em 11.01.2023 foi proferido despacho liminar de admissão do pedido de exoneração do passivo restante e fixado o rendimento indisponível, iniciando-se o período de cessão a partir da data do encerramento do processo que ocorreu na mesma data. 
3. O devedor, interpelado pelo Fiduciário para entregar o rendimento disponível, reportado ao primeiro ano de cessão, no valor total de € 13.630,08, não o fez.
 4. Por despacho datado de 29.04.2024 foi notificado o devedor e o mandatário para regularizar a quantia em dívida à fidúcia ou apresentar um plano de pagamento, não o fez.
5. Interpelados pelo Tribunal para se pronunciarem quanto à requerida cessação antecipada da exoneração, pelo credor, o devedor e o seu mandatário nada disseram.
*
Não existem factos não provados com relevo para a boa decisão da causa.
*
III - Fundamentação de direito: 
(…)
No caso dos autos, o devedor foi pessoalmente notificado, bem como o seu mandatário, para entregar os rendimentos em falta, tendo para o efeito lhe sido facultada, a possibilidade de pagamento faseado do rendimento disponível, mediante um plano por si a apresentar, tendo-se remetido ao silêncio.
O insolvente não se pode remeter ao silêncio, como de facto se remeteu, sem dar conta, por iniciativa própria, no mínimo das razões da não entrega dos montantes a que está vinculado e entregar as quantias a que está obrigado, como a lei impõe. 
Ora, o devedor assumiu uma postura passiva e de desinteresse e mesmo notificado, não cumpriu os deveres que lhe foram impostos e que se dispôs a cumprir, nem se pronunciou quanto à requerida cessação antecipada da exoneração do passivo restante.
O devedor não se pode limitar à posição de nada dizer e esperar que o tempo corra, pois, de outro modo, o sacrifício que a lei impõe aos credores com o instituto da exoneração do passivo restante, não fica minimamente justificado.
Tais deveres de apresentação, informação, colaboração, cooperação e de actuação com boa-fé processual, têm de ser escrupulosamente cumpridos, para o insolvente merecer o “fresh start” proporcionado pela possibilidade de assim se eximir do pagamento dos créditos que não ficam pagos no processo de insolvência ou nos 3 anos após a admissão da exoneração do passivo restante.
Nesta decorrência, entende-se estarem verificados os pressupostos para ser determinada a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, por referência ao preceituado nos artigos 242º-A e 243.º, n.º 1, al. a), do C.I.R.E. 
*
 IV- Decisão: 

Termos em que, considerando o exposto, se decide julgar procedente o incidente de cessação antecipada do procedimento de exoneração, e nessa conformidade, decide-se recusar antecipadamente a exoneração do passivo restante ao insolvente AA – cfr. artigo 243.º, n.º 1, al. a), do C.I.R.E..
Notifique, publicite e comunique ao Registo Civil – cfr. artigos 230.º, n.º 2 e 247.º do C.I.R.E. 
*
As custas do incidente mostram-se abrangidas pela tributação do processo principal de insolvência, por serem imputáveis ao insolvente – cfr. artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C., 17.º e 303.º do C.I.R.E. 
(…)»
*
1.2. Recurso
1.2.1. Fundamentos
Inconformado com esta decisão, o Insolvente (AA) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que o mesmo fosse julgado procedente.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (reproduzindo-se ipsis verbis as respectivas conclusões, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção, bem como da parte já prejudicada pelo juízo de admissão do recurso em causa):

1. Vem o recorrente interpor recurso do despacho que Revogou antecipadamente o procedimento da exoneração do passivo restante, proferido, pelo Digníssimo Juiz a quo, em 24 de junho de 2024.
(…)

15. Do incumprimento das formalidades legais:
 
16. A 21.05.2024 o digno magistrado do Ministério Público requereu a cessação antecipada do benefício da exoneração do passivo restante.
 
17. Esse requerimento foi apenas notificado ao insolvente e ao seu mandatário.
 
18. Não ordenou o Juiz a quo a audição prévia do fiduciário, conforme determina o artigo 243º nº 3 do CIRE.
 
19. Nem nunca o fiduciário se pronunciou quanto à possibilidade da cessação do benefício da exoneração do passivo restante.
 
20. Uma vez que, o fiduciário já tinha junto o relatório referente ao primeiro ano de cessão de rendimentos, não foi ouvido, como deveria e a lei determina, especificamente, quanto à atuação dolosa ou grave negligência e violação de alguma das obrigações que lhe foram impostas pelo artigo 239º do CIRE – crf. Artigo 243º alínea a) do CIRE.
 
21. Decidiu, após requerimento do Ministério Público, notificado o insolvente e mandatário, que se encontravam verificados os pressupostos previstos no artigo 243º do CIRE, e decidiu pela cessação antecipada do benefício da exoneração do passivo restante, com base na alínea a) do artigo 243º do CIRE.
 
22. Entende o ora recorrente que o Juiz a quo violou o disposto no nº 3 do artigo 243º do CIRE.
 
23. Conforme refere o despacho de que se recorre, o fiduciário, embora não tenha a responsabilidade de fiscalizar a atuação do insolvente, nem o cumprimento das suas obrigações, tem, invariavelmente um acompanhamento mais de perto do insolvente ao longo de todo o processo de insolvência e mais ainda durante o período de cessão, pelo que,
 
24. O fiduciário é “chave” fundamental e a sua opinião e parecer deve ser ponderado antes da decisão final de cessação antecipada.  
25. Atendendo à gravidade das consequências, mas também, pela responsabilidade do mesmo em todo o processo de insolvência e, claro está, pela determinação legal.
 
26. O digníssimo magistrado do Ministério Público requereu que fosse cumprido o disposto no nº 3 do artigo 243º do CIRE.
 
27. E entende o ora recorrente que, atendendo a que o fundamento é a violação dolosa ou a grave negligência na violação de alguma das obrigações do artigo 239º do CIRE, deveria haver uma pronúncia específica do fiduciário antes da cessação antecipada.
 
28. Entende o recorrente que não houve violação dolosa nem grave negligência das obrigações impostas pelo artigo 239º do CIRE.
 
29. Efetivamente o insolvente foi notificado do relatório elaborado pelo Sr. Fiduciário uma vez mais enviado por carta registada com número de registo ...38..., rececionada a 06.05.2024.
 
30. No dia 10 de maio tentou contactar, por mensagem via whatsapp, o seu mandatário constituído no processo.
 
31.A partir desse dia, tentou por diversas vezes contactar o mandatário, sempre sem sucesso.
 
32. Pois, pretendia explicar que os montantes de rendimentos auferidos, que o fiduciário menciona no seu relatório do primeiro ano de cessão, tinham a ver com ajudas de custos que lhe eram pagas a título de subsídio de transporte pela utilização da viatura pessoal ao serviço da empresa durante o horário de trabalho.
 
33. Uma vez que não conseguia contactar o seu mandatário, entrou em contacto com o fiduciário e enviou a declaração da entidade patronal e foi aconselhado a proceder à junção, através do seu advogado.
 
34. Sucede que, continuava sem conseguir contactá-lo, apesar das diversas tentativas de contacto.
 
35. Surpreendido pela renúncia de mandato, o insolvente teve de recorrer à Segurança Social a fim de lhe ser nomeado um advogado.
 
36. Pedido esse que lhe veio a ser indeferido.
 
37. Pelo que constituiu mandatário e pagou a respetiva taxa de justiça para apresentação do presente recurso por entender que não violou as obrigações que lhe foram impostas pelo artigo 239º do CIRE.
 
38. Muito menos de forma reiterada!
 
39. No entanto, não sabia como agir nem defender os seus interesses.
 
40. Deste modo, analisado o comportamento do insolvente, nomeadamente a falta de informação que deixou de prestar ao Tribunal, entende o ora recorrente que não houve atuação dolosa,
 
41. Não teve intenção de prejudicar os seus credores.
 
42. Nem de omitir qualquer rendimento ou incumprir qualquer obrigação que lhe tenha sido imposta.
 
43. Esteve, aliás, sempre de forma ativa a tentar entrar em contacto com o mandatário que tinha constituído à data, não tendo tais tentativas sortido qualquer efeito.
 
44. Tentou justificar perante o fiduciário o motivo dos montantes pagos a títulos de subsídio de transporte, 
 
45. Tendo aquele informado que deveria proceder à junção do documento através do mandatário.
 
46. Certo é que, com o decurso do tempo, veio a prejudicar-se e considerou o Tribunal que a sua atuação era dolosa ou negligente.
 
47. Sendo que, na realidade o insolvente procurou fazer tudo o que estava ao seu alcance para ultrapassar a situação e justificar que não estava a incumprir com as obrigações que lhe foram impostas.  
48. Pelo que, discorda-se que a atuação do insolvente, ora recorrente, atendendo às circunstâncias demonstradas e invocadas, não configura a existência de negligência grave ou violação grave das suas obrigações.
 
49. Nem tão pouco, se verifica um prejuízo para os credores do insolvente na medida em que o montante mencionado no relatório do Sr. Fiduciário (1º ano), de acordo com os recibos de vencimento, já foi devidamente esclarecido pela ainda entidade patronal do insolvente como sendo entregas feitas a título, não de vencimento, mas de subsídio de transporte por circular com viatura ao serviço da empresa.
 
50. No entendimento do recorrente, não se verifica um nexo de causalidade entre a violação das obrigações e o dano na esfera jurídica dos credores, pois mesmo que o insolvente tivesse conseguido contactar com o mandatário e proceder à junção da documentação atempadamente, daria origem, provavelmente, a que o Sr. Fiduciário tivesse que refazer os cálculos e não ao recebimento desse montante pelos credores.
 
51. Assim, tendo decorrido apenas o primeiro ano da cessão de rendimentos, entende o insolvente que não houve um incumprimento reiterado das obrigações que lhe foram impostas.
 
52. De tal forma que provocaram um prejuízo efetivo para a satisfação dos credores.
 
53. Nem se verifica um nexo causal entre a “violação das obrigações” cometidas pelo insolvente e a criação do dano na esfera jurídica dos credores.
 
54. Pelo que, se requer a V. Exas. a revogação da decisão que cessou antecipadamente a exoneração do passivo restante, autorizando a admissão da junção da declaração justificativa dos montantes pagos pela entidade patronal do insolvente durante o primeiro ano de cessão de rendimentos a título de subsídio de transporte, bem como que seja refeito o relatório do fiduciário referente ao primeiro ano de cessão de rendimentos.
*
1.2.2. Contra-alegações
Não foram juntas quaisquer contra-alegações no prazo legal.
*
II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, nºs. 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art.º 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).

Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida) [2], uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação/reponderação e consequente alteração e/ou revogação, e não a um novo reexame da causa).
*
2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

Mercê do exposto, e do recurso interposto pelo Insolvente (AA), duas questões foram submetida à apreciação deste Tribunal:

1.ª - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação do direito, ao ter decidido a cessação antecipada do benefício de exoneração do passivo restante sem previamente ouvir o fiduciário (conforme lhe era imposto pelo art.º 243.º, n.º 3, do CIRE) ?

2.ª - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação do direito, por não existir fundamento legal para determinar a cessação antecipada do benefício de exoneração do passivo restante (nomeadamente, por o Insolvente não ter incumprido a obrigação de entregar à fidúcia rendimentos que lhe eram devidos, fazendo-o de forma dolosa ou gravemente negligente, e prejudicando por esse acto a satisfação dos créditos sobre a insolvência) ?
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para a apreciação das duas questões enunciadas, encontram-se assentes (mercê do conteúdo dos próprios autos) os factos já discriminados em «I - RELATÓRIO», que aqui se dão por integralmente reproduzidos, recordando que o Tribunal a quo considerou para o mesmo efeito os seguintes:

1 - Em 29 de Julho de 2022 foi decretada a insolvência de AA, por sentença transitada em julgado. 

2 - Em 11 de Janeiro de 2023 foi proferido despacho liminar de admissão do pedido de exoneração do passivo restante e fixado o rendimento indisponível, iniciando-se o período de cessão a partir da data do encerramento do processo que ocorreu na mesma data. 

3 - O Devedor (AA), interpelado pelo Fiduciário para entregar o rendimento disponível, reportado ao primeiro ano de cessão, no valor total de € 13.630,08, não o fez.
 
4 - Por despacho datado de 29.04.2024 foi notificado o devedor e o mandatário para regularizar a quantia em dívida à fidúcia ou apresentar um plano de pagamento, não o fez.

5 - Interpelados pelo Tribunal para se pronunciarem quanto à requerida cessação antecipada da exoneração, pelo credor, o devedor e o seu mandatário nada disseram.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Exoneração do passivo restante 
4.1.1. Definição
Lê-se no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/04, de 18 de Março (que, recorda-se, aprovou o CIRE), que o «Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da “exoneração do passivo restante”».
Dir-se-á que a exoneração do passivo restante é um instituto próprio, e gerado, pela economia moderna, de mercado, a qual necessita de funcionar permanentemente, isto é, de produzir ininterruptamente.
Contudo, esta produção ininterrupta só pode ser alimentada se, do outro lado, houver quem consuma incessantemente. Ora, o consumo vive intimamente ligado à concessão de crédito [3], actividade que se faz com risco (antecipado e calculado pelos credores). Logo, o sobreendividamento é um resultado, não só eventual, como previsível, da dita concessão de crédito [4].
Vindo a liquidação do património do devedor (a garantia geral dos seus credores - art.º 601.º, do CC) a revelar-se insuficiente para o cumprimento integral das suas obrigações, poderão os respectivos credores, em caso de regresso de melhor fortuna, accionar o insolvente nos 20 anos do prazo ordinário de prescrição dos seus créditos (art.º 309.º, do CC); e, assim, pode ser inviabilizada a sua reabilitação económica (cruzando-se na mesma quer a dignidade da pessoa humana, quer o interesse no desenvolvimento da economia, que nomeadamente pressupõe o contributo do maior número de elementos financeiramente saudáveis [5]) [6].

Decidiu-se, então, conceder ao devedor insolvente uma nova oportunidade, por meio de um importado fresh start (nascido no ordenamento jurídico norte-americano), por forma a que pudesse começar de novo, liberto das suas anteriores dívidas. O princípio geral nesta matéria é, então, o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência.

Lê-se, em conformidade, no art.º 235.º, do CIRE, que se o «devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos do presente capítulo».
Logo, só as pessoas singulares podem requerer a concessão do benefício de exoneração do passivo [7]; mas todas as pessoas singulares o podem fazer (v.g. consumidores, comerciantes, profissionais independentes ou liberais).
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Mais se lê, nos art.º 239.º e 245.º, do CIRE, que, encerrado o processo de insolvência sem que os credores do insolvente pessoa singular (cujos créditos sejam anteriores à data da declaração de insolvência) tenham logrado o seu pagamento (ou logrado o seu pagamento total), inicia-se um novo período, de três anos, em que os ditos credores têm uma nova oportunidade para serem pagos, pela cedência pelo devedor do rendimento próprio que a lei considera disponível para o efeito; e, decorrido esse período (haja, ou não, pagamento integral dos créditos sobre a insolvência), verifica-se  a extinção da quase generalidade dos créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que a exoneração do passivo restante seja concedida [8].
Logo o despacho proferido no final do período da cessão, concedendo a exoneração, liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento, mesmo que os correspondentes créditos não tenham sido reclamados e verificados.
Fala-se a propósito (desta extinção dos créditos que não tenham sido reclamados e verificados) da comprovação da «ideia de que o processo de insolvência é um processo com eficácia externa ou erga omnes» (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 623, com bold apócrifo).
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Vem-se, assim, defendendo que a exoneração do passivo restante é um instrumento que, simultaneamente: liberta o devedor do estigma da insolvência,  reabilitando-o e reintegrando-o plenamente na vida económica (evitando que fique ad eternum marginalizado, social e economicamente); beneficia a transparência e o funcionamento da economia em geral, nomeadamente evitando o recurso a procedimentos maliciosos (como o recurso a testas de ferro do devedor, na tentativa deste sobreviver economicamente),  aumentando a disponibilidade dos credores para negociarem (quer a satisfação dos seus créditos, quer a recuperação do devedor), recuperando para a economia um novo agente (uma vez que o devedor não exonerado tem o seu acesso ao crédito limitado, o que deixará de suceder após alcançar aquele benefício,  propiciando-se a sua contribuição futura no desenvolvimento da economia) e estimulando a concessão responsável do crédito por parte das entidades bancárias e financeiras; e atende aos interesses dos credores (renovando a possibilidade de pagamento - ainda que parcial - dos créditos não satisfeitos na pendência do processo de insolvência) [9].
Afirma-se, por isso, que não «se pense (…) que o CIRE contém um regime que é um brinde ao incumpridor» (Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, 2016, pág. 584), já que, a exoneração do passivo restante balancearia, simultânea e equilibradamente, quer o interesse do devedor (que poderá ficar, definitivamente, exonerado do seu passivo restante - face ao termo do processo de insolvência), quer os interesses dos seus credores (que aqui encontram uma «dupla oportunidade» de satisfação dos seus créditos) [10].

Ora, dir-se-á que, defendendo uns que o instituto se encontra estabelecido tendo em conta um razoável benefício dos credores [11], e outros tendo em conta interesses não só dos devedores como ainda inapropriáveis por nenhum sujeito ou grupos de sujeitos [12], entendemos que nele se privilegiaram sobretudo os interesses dos devedores [13].
Com efeito, é indiscutível que na exoneração do passivo restante há uma efectiva «colisão entre direitos ou valores constitucionalmente protegidos; de um lado, a proteção constitucional dos créditos no quadro (…) da proteção geral do património; do outro, a proteção da liberdade económica e do direito ao desenvolvimento da personalidade, e, também, o princípio, próprio do Estado Social de Direito, da proteção social dos mais fracos (neste caso, tendencialmente o devedor insolvente)»; mas é igualmente indiscutível que a solução alcançada passou por um sacrifício não desproporcionado do interesse do credor na satisfação do seu crédito (Paulo Mota Pinto, «Exoneração do passivo restante: Fundamento e constitucionalidade», III Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, págs. 179, 187 e 194).
Só assim se compreende que a exoneração do passivo restante possa ser requerida em casos de insuficiência da massa insolvente, conforme art.º 39.º, n.º 8, do CIRE [14], ou sê-lo por insolventes sem qualquer rendimento actual susceptível de ser cedido aos seus credores [15]; e se assista, na generalidade das situações pendentes em juízo, a uma inexistente, ou irrisória, satisfação remanescente (durante o período de cessão) dos créditos sobre a insolvência insatisfeitos no prévio encerramento do processo de insolvência [16].
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4.1.2. Pressuposto - Merecimento do devedor (na concessão da segunda oportunidade)
Contudo, ainda assim e conforme já se deixou implícito, o nosso instituto da exoneração do passivo restante não assenta num modelo de puro fresh start , mas antes no modelo derivado do earned start ou da reabilitação [17]: o devedor, pessoa singular, declarado insolvente não pode ser exonerado das suas dívidas em quaisquer circunstâncias, dado que, em princípio, os contratos são para cumprir, conforme art.º 406º, n.º 1, do CC (assumindo o instituto um carácter excepcional); e, por isso, o devedor insolvente só será exonerado das ditas dívidas quando demonstre, ao longo de todo o processamento do incidente, que é merecedor da dita segunda oportunidade (grosso modo, desde que não haja dolo ou culpa grave da sua parte na situação em que se encontra, isto é, por ter agido de forma recta e honesta, nomeadamente cumprindo com o rigor, a transparência e a boa fé que lhe eram exigíveis e acessíveis as obrigações que previamente assumira, não sendo a insolvência em que, não obstante, depois incorreu devida a contrário modo de proceder seu) [18].
Esta avaliação do seu merecimento é feita em três momentos chave [19], nomeadamente: na apreciação liminar do seu pedido [20]; durante os três anos do período de cessão [21]; e no final do mesmo, ao ser proferida a decisão final do incidente [22] (podendo ainda, mas com carácter eventual, ocorrer na posterior revogação da exoneração antes concedida, conforme art.º 246.º, n.º 1, do CIRE).
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Lê-se, assim, no art.º 236.º, n.º 1 e n.º 3, do CIRE, que o «pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação», dele devendo constar «expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos» exigidos para o efeito, discriminados nos arts. 238.º e seguintes, grosso modo, o não ter prejudicado os credores com a sua pretérita actuação (nomeadamente, não ter falseado nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência as informações pertinentes à sua situação económica por forma a obter crédito, ter-se apresentado prontamente à insolvência, não ter culposamente criado ou agravado a sua situação de insolvência, e não ter violado, com dolo ou culpa grave, os deveres de informação, apresentação e colaboração que o CIRE lhe impunha no decurso do respectivo processo de insolvência).
«Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes» [23], determinando que, durante os três anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal», a quem cabe afectar «os montantes recebidos, no final de cada ano que dure a cessão», aos «credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processos de insolvência» (arts. 239.º, n.º 1 e n.º 2 e 241.º, n.º 1, al. d), ambos do CIRE) [24]; e, durante o período de cessão, não sendo «permitidas quaisquer execuções sobre os bens do devedor destinadas à satisfação dos créditos sobre a insolvência», nem qualquer actuação que conceda vantagens especiais a um credor sobre outro (art.º 242.º, do CIRE) [25].

Logo, ficará ainda o devedor insolvente, durante o período de cessão, vinculado à observância de um conjunto de obrigações fundamentais, discriminado no art.º 239.º, do CIRE (nomeadamente, de exercer uma profissão remunerada [26], de entregar ao fiduciário a parte dos rendimentos que receba que seja objecto da cessão [27], a não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, informando prontamente sobre os mesmos ou sobre o seu património, e a não fazer quaisquer pagamentos ou a não criar quaisquer vantagens especiais em benefício de qualquer dos credores da insolvência [28]).
Das mesmas resulta que, para além dos específicos deveres de apresentação, informação e colaboração, o devedor insolvente está ainda obrigado aos deveres gerais de cooperação e de actuação com boa-fé processual [29].

Ora, só o cumprimento de tais deveres, ao longo de todo o período da cessão, permite que lhe venha a ser concedida a exoneração do passivo restante, com a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida [30].
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4.2. Recusa antecipada de concessão (da exoneração do passivo restante)
4.2.1. Previsão (do incidente) - Tramitação
Lê-se no art.º 243.º, n.º 1, al. a), do CIRE, que, antes «ainda de terminado o período de cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando» este «tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência».
Precisa-se que nem sempre o fiduciário terá a função de fiscalizar o cumprimento das obrigações que recaem sobre o devedor, já que a mesma terá de lhe ser expressamente conferida.
Com efeito, lê-se no art.º 241.º, n.º 3, do CIRE, que  a «tarefa de fiscalizar o cumprimento pelo devedor das obrigações que sobre este impendem, com o dever de informar os credores em caso de conhecimento de qualquer violação, pode ser conferida ao fiduciário, caso os credores o requeiram na assembleia de credores de apreciação do relatório ou, sendo dispensada a realização da mesma, no prazo de 10 dias subsequente ao decurso do prazo de 60 dias previsto na parte final do n.º 1 do artigo 236.º» (isto é, subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência).
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Dir-se-á, então, que a cessação antecipada do benefício de exoneração do passivo restante pode ter lugar a qualquer momento durante os três anos correspondentes ao período da exoneração.
Contudo, terá a mesma que ser pedida nos seis meses seguintes à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados (conforme n.º 2 do art.º 243.º do CIRE) [31].
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Dir-se-á ainda que, uma vez que a cessação antecipada do benefício de exoneração do passivo restante, por incumprimento do devedor, pressupõe o «requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor», o juiz da insolvência não pode suscitá-lo oficiosamente (ao contrário do que sucede com a hipótese prevista no n.º 4, do art.º 243.º, do CIRE, onde se lê que o «juiz, oficiosamente ou a requerimento do devedor ou do fiduciário, declara também encerrado o incidente logo que se mostrem integralmente satisfeitos todos os créditos sobre a insolvência») [32].

Compreende-se, ainda, que, lendo-se no art.º 243.º, n.º 2, in fine, do CIRE, que, com o requerimento fundamentado de algum credor da insolvência referido, deve «ser oferecida logo a respetiva prova», nesta hipótese apenas possam ser apreciados os fundamentos aduzidos pelos requerentes da cessação antecipada [33].
Melhor precisando, e de acordo com as regras processuais gerais, no «incidente da cessação antecipada do procedimento de exoneração a decisão do juiz pode ser fundada em factos alegados por quem requer a cessação, em factos notórios e em factos que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções» (Ac. da RC, de 06.03.2018, Emídio Francisco Santos, Processo n.º 3221/12.0TBLRA.C1); e, por isso, «ainda que a sua alegação e prova caiba, em primeira linha, aos credores e/ou ao administrador da insolvência, a verdade é que tais situações, uma vez alegadas, poderão ser complementarmente provadas através dos elementos factuais que constem dos autos e através dos poderes inquisitórios do juiz previstos no art. 11º, ao abrigo dos quais este último não está limitado aos factos alegados pelas partes» (Ac. da RP, de 30.04.2020, Pedro Damião e Cunha, Processo n.º 1866/10.1TJPRT.P1) [34].

Relativamente ao ónus de prova, caberá ainda ao requerente da cessação antecipada [35]. Com efeito, estando a regra geral sobre a sua distribuição enunciada no art.º 342.º, do CC [36], defende-se que a lei delimitou pela negativa a exoneração do passivo restante, impondo requisitos para a sua recusa, não para a sua concessão, nos termos dos art.ºs 238.º, 243.º, 244.º, n.º 2, e 246.º, n.º 1, todos do CIRE (pelo que se torna aplicável a regra geral contida no art.º 342.º, n.º 1, do CC); ou defende-se que estão em causa factos impeditivos do direito do insolvente à concessão do benefício em causa (pelo que se torna aplicável a regra geral contida no art.º 342.º, n.º 2, do CC) [37].
Logo, e em qualquer caso, não impende sobre o devedor o ónus da prova da não verificação dos requisitos que impedem a concessão, mas é antes sobre os interessados que impende o ónus de alegar e demonstrar os factos dos quais decorrem o indeferimento liminar, a cessação antecipada, a recusa, ou a revogação da dita concessão da exoneração do passivo restante.
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Fundando-se o requerimento de cessação antecipada do benefício de exoneração do passivo restante na violação, dolosamente ou com grave negligência, de alguma das obrigações impostas ao devedor pelo art.º 239.º do CIRE (e de cujo cumprimento dependia a futura concessão do dito benefício), o juiz terá necessariamente que ouvir antes de proferir a sua decisão, não só o devedor e os respectivos credores, como ainda o fiduciário (ressalvando-se, porém, entre credores e fiduciário, aquele que, em concreto, haja requerido o incidente, por manifesta desnecessidade [38]).
Com efeito, lê-se no art.º 243.º, n.º 3, do CIRE, que quando «o requerimento [de cessação antecipada] se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão».

Precisa-se que a notificação do insolvente, a fim de ser ouvido, pressupõe uma notificação endereçada pessoalmente ao mesmo, isto é, distinta da notificação do mandatário que eventualmente haja constituído [39].
Contudo, o «princípio do contraditório, enunciado em termos gerais no art. 3º, nº 3, do CPC e quanto à exoneração do passivo restante no art. 244º, nº 1, do CIRE, cumpre-se permitindo à parte que se pronuncie sobre a concreta questão a apreciar», mas não exige «que o tribunal a informe previamente do sentido em que vai proferir decisão» (Ac. da RG, de 26.10.2023, Rosália Cunha, Processo n.º 1608/16.8T8VNF.G1).
           
Precisa-se, ainda, que, mesmo na hipótese de não terem sido cometidas ao fiduciário quaisquer funções de fiscalização do cumprimento pelo devedor, durante o período da cessão, das obrigações que lhe foram cometidas, terá sempre que ser ouvido.
Compreende-se que assim seja, face à gravidade das consequências para o devedor da recusa da exoneração (com a consequente vinculação à satisfação integral de todos os créditos sobre a insolvência), e ao expectável maior conhecimento do fiduciário, quer quanto às circunstâncias da sua vida pessoal, por um lado, quer quanto à forma como o incumprimento denunciado poderá impactar negativamente a satisfação dos créditos sobre a insolvência, por outro.
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Dir-se-á, por fim (embora se crendo que de forma desnecessária, face ao demais explicitado), que, se antes «de ter sido proferida a decisão de recusa de exoneração», tiverem «sido efectuados pagamentos a credores sobre a insolvência», esses pagamentos «produzem os seus efeitos, pois não há restituição dos créditos» (Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, 2016, pág. 612).
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4.2.2. Fundamentos (de recusa antecipada da concessão da exoneração do passivo restante) - Referencial de «merecimento»
Reitera-se que se lê, no art.º 243.º, n.º 1, al. a), do CIRE, que, ainda «antes de terminado o período de cessão, deve o juiz recusar a exoneração», se o devedor «tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência»; e, no art.º 244.º, n.º 2, do mesmo diploma, que a «exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior».
Logo, quer a cessação antecipada da concessão da exoneração do passivo restante, quer a sua recusa no final do período de três anos de cessão, é determinada «sempre que se verifique supervenientemente que o devedor não se mostra digno de obter a exoneração» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 333, com bold apócrifo) [40].
Com efeito, o instituto em causa «não pode traduzir-se num instrumento oportunística e habilidosamente empregue unicamente com o objectivo de se libertarem os devedores de avultadas quantias» [41]; pressupõe, sim, «a apreciação da conduta anterior e actual do insolvente pautada pela licitude, honestidade, transparência e boa fé, no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, com vista a determinar se reúne condições para que lhe seja dada uma nova oportunidade, ainda que sujeita a um período probatório», hoje de três anos (Ac. da RC, de 17.12.2008, Gregório Silva Jesus, Processo n.º 1975/07.4TBFIG.C1) [42]

Compreende-se, por isso, que se exija que a violação das obrigações impostas ao devedor insolvente tenha que ser dolosa ou com negligência grave; e que se exija ainda que esse comportamento inadimplente tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência [43].
Logo, estes dois elementos, «um subjectivo (o dolo do devedor) e outro objectivo (o prejuízo relevante para os credores), têm de estar devidamente enunciados e provados»; e, por isso, o «mero incumprimento da entrega de quantias ao fiduciário, por banda do devedor, sem que se apure que o mesmo tenha sido doloso e que tenha causado prejuízo aos credores, não poderá sem mais conduzir à cessação antecipada prevenida naquele segmento normativo», o art.º 143.º, n.º 1, al. a), do CIRE (Ac. do STJ, de 09.04.2019, Ana Paula Boularot, Processo n.º 279/13.8TBPCV.C1.S2) [44].

Compreende-se, ainda, que se afirme que esta «ideia de merecimento» exige «que a apreciação da conduta do insolvente durante o período da cessão, para o efeito de lhe ser concedida ou negada a exoneração do passivo restante», seja «abrangente, ou seja, deve considerar a globalidade daquela conduta, as circunstâncias que a rodearam e as suas consequências»; e, por isso, «não pode o julgador focar-se no facto objectivo da falta de cumprimento de determinado dever do insolvente para, desconsiderando a globalidade da conduta deste último, as circunstâncias em que a mesma teve lugar e as concretas consequências daí advenientes, concluir que a exoneração do passivo restante não pode ser concedida» (Ac. da RE, de 13.02.2020, Vítor Sequinho, Processo n.º 482/12.8TBACN.E1, com bold apócrifo).

Por fim, dir-se-á que os referidos «elementos subjectivo e de resultado, pela sua importância na economia deste instituto, têm que se apurados e retratados na matéria de facto provada, sob pena de se criarem artificialmente impedimentos ao acesso à nova oportunidade a pessoas que apenas formalmente violaram os comandos, mas agiram de boa-fé e dentro das suas possibilidades, mais não lhes devendo ser exigido» (Ac. da RG, de 09.09.2021, Sandra Melo, Processo n.º 5589/13.1TBVNG.G1 - ainda inédito -, com bold apócrifo); e, de outro modo, também não poderiam tais factos ser sindicados em sede de recurso (pela impugnação do juízo probatório do tribunal que os firmou, após a eventual produção de prova que haja recaído sobre as justificações apresentadas pelo devedor). 
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4.3. Subsunção do caso concreto (ao Direito aplicável)
4.3.1. Falta de (prévia) audição do fiduciário
Concretizando, verifica-se que, tendo em 11 de Janeiro de 2023 sido proferido despacho admitindo liminarmente o pedido do Insolvente (AA) de exoneração do passivo restante, foi-lhe fixado como rendimento indisponível para cedência aos seus credores a quantia equivalente a uma retribuição mínima mensal garantida e meia, contabilizada num período de doze meses.
Mais se verifica que durante o primeiro período de cessão (entre Janeiro de 2023 a Dezembro de 2023, inclusive), o Insolvente (AA) nada entregou ao Fiduciário, entendendo, porém, o mesmo ser devida à fidúcia nesse período a quantia de € 13.630,08.
Verifica-se ainda que, tendo o Insolvente (AA) sido notificado para regularizar a sua alegada falta, sob pena de eventual cessação antecipada da exoneração do passivo restante, nada fez.
Por fim, verifica-se que, sob promoção do Ministério Público (em representação do credor Estado - Autoridade Tributária e Aduaneira), foi proferida decisão recusando antecipadamente a exoneração do passivo restante; e que a mesma foi proferida depois de ter sido dada a oportunidade ao Insolvente (AA) e aos seus credores de se pronunciarem sobre essa possibilidade, mas sem que idêntica oportunidade tivesse sido dada ao Fiduciário.

Logo, e ao contrário do que lhe impunha a lei, o Tribunal a quo omitiu a prática de um acto que a mesma prescrevia.
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4.3.2. Omissão com influência na decisão da causa
Concretizando novamente, verifica-se que, nas suas alegações de recurso, o Insolvente (AA) veio alegar que os montantes de rendimentos auferidos, que o Fiduciário menciona no seu relatório do primeiro ano de cessão, incluem ajudas de custos, que lhe foram pagas a título de subsídio de transporte (pela utilização da viatura pessoal ao serviço da empresa durante o horário de trabalho); e juntou um documento emitido pela sua Entidade Patronal, alegadamente certificando essa alegação. 

Recorda-se que, integrando o rendimento disponível «todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor», estão nomeadamente abrangidos «os [rendimentos] que resultem de uma profissão remunerada» (conforme art.º 239.º, n.º 3 e n.º 4, al. a), do CIRE, com bold apócrifo).
Precisando o que seja retribuição, lê-se no art.º 258.º, do Código do Trabalho [45], que se considera como tal «a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho» (n.º 1), compreendendo «a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie» (n.º 2); e presume-se «constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador» (n.º 3).
Contudo, lê-se ainda no art.º 260.º, do Código do Trabalho, que não «se consideram retribuição»: «as importâncias recebidas a título de ajudas de custo, abonos de viagem, despesas de transporte, abonos de instalação e outras equivalentes, devidas ao trabalhador por deslocações, novas instalações ou despesas feitas em serviço do empregador, salvo quando, sendo tais deslocações ou despesas frequentes, essas importâncias, na parte que exceda os respectivos montantes normais, tenham sido previstas no contrato ou se devam considerar pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador» (n.º 1, al. a)); e o referido «aplica-se, com as necessárias adaptações, ao abono para falhas e ao subsídio de refeição» (n.º 2) [46].

Ora, resulta dos recibos de vencimento que foram juntos aos autos com o primeiro relatório anual do Fiduciário que figura nos mesmos um regular e significativo montante, designado como de «subsídio de transporte»; e que nalguns meses (v.g. Maio, Agosto e Dezembro) o valor pago a esse título quase que duplica.
Importaria, por isso, que o Fiduciário apurasse se os valores alegadamente pagos a título de subsídio de transporte merecem, ou não, esse título jurídico, isto é, se estão, ou não, excluídos - e em que medida - do cálculo do rendimento a ceder pelo Insolvente (AA) à fidúcia [47]. Só após essa averiguação se poderá concluir pelo incumprimento da obrigação imposta ao Insolvente (AA) de cedência de rendimentos à fidúcia; e pela existência de um dano (e respectiva dimensão) assim causado na esfera jurídica dos credores.
Tem-se, por isso, como inquestionável que a omissão da prévia audição do Fiduciário, face à decisão de recusa antecipada da exoneração do passivo restante, foi susceptível de influir no exame e na decisão da causa; e, desse modo, consubstancia una nulidade, que impõe a anulação de todos os actos praticados posteriormente à sua verificação, nos termos do art.º 195.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC.
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Face ao exposto, fica prejudicado o conhecimento da segunda questão enunciada como constituindo o objecto útil do presente recurso, o que aqui se declara, nos termos do art.º 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC.
*
Importa, pois, decidir em conformidade, pela procedência do recurso interposto pelo Insolvente (AA).
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V - DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelo Insolvente (AA) e, em consequência,

· Declaram nula a decisão recorrida (que recusou antecipadamente a exoneração do passivo restante), por ter sido proferida sem prévia audição do Fiduciário, ordenando que se proceda agora a essa audição, só depois se apreciando e decidindo o pedido de cessação antecipada do benefício de exoneração do passivo restante. 
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Custas pelo Insolvente recorrente, atento o critério do proveito, uma vez que não foram apresentadas contra-alegações e, por isso, no presente recurso não existe vencido (art.º 527.º do CPC).
Guimarães, 14 de Novembro de 2024.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.ª Adjunta - Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade;
2.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias.



[1] O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - doravante CIRE - foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/04, de 18 de Março.
[2] Neste sentido, numa jurisprudência constante, Ac. da RG, de 07.10.2021, Vera Sottomayor, Processo n.º 886/19.5T8BRG.G1 (in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem), onde se lê que questão nova, «apenas suscitada em sede de recurso, não pode ser conhecida por este Tribunal de 2ª instância, já que os recursos destinam-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido».
[3] Neste sentido, Letícia Marques Costa, A Insolvência de Pessoas Singulares, Almedina, Teses, Maio de 2021, pág. 36, onde se lê que o «consumo preenche uma dupla função, do ponto de vista do indivíduo: a satisfação de necessidades e a realização de desejos Assim, o crédito aos consumidores contribui para a realização pessoal, expressa simbolicamente por um nível de vida melhorado. Simultaneamente, permite a criação de novas identidades culturais e de novas oportunidades de participação social, distintas do sistema leitoral e do político, dando origem à denominada “democracia do gasto”».
[4] Neste sentido, Letícia Marques Costa, A Insolvência de Pessoas Singulares, Almedina, Teses, Maio de 2021, pág. 41, onde se lê que o «sobreendividamento constitui a outra face da moeda da democratização do crédito, variando a dimensão e os contornos do fenómeno de Estado para estado, conforme a literacia financeira, o sistema de segurança Social e o comportamento do mercado de trabalho».   
[5] Neste sentido, Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações sobre o anteprojecto de código, Ministério da Justiça, Gabinete de Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, pág. 89, onde se lê que «o sobreendividamento» é «um risco natural da economia de mercado, particularmente associada à expansão do mercado de crédito - o crédito é uma actividade que se faz com risco e, por isso, o sobreendividamento é um risco antecipado e calculado pelos credores: o consumidor que ousa recorrer ao crédito e é mal sucedido não deve ser, por isso, excessivamente penalizado e, sobretudo, não deve ser excluído do mercado por um tempo demasiado longo».
[6] Com efeito, foi-se reconhecendo que:
(i) a insolvência pode ter causas que escapam ao controlo do devedor, sobretudo ao nível das perdas de rendimento, sejam estas resultantes de factores pessoais (v.g. desemprego, doença, divórcio - nos trabalhadores subordinados - ou fracasso de uma iniciativa empresarial -, nos trabalhadores independentes), sejam resultantes do quadro macro-económico (v.g. crise do subprime, pandemias, guerras regionais) [6]. A própria realização descontrolada de despesas (v.g. hábitos de consumo desenfreados) foi muitas vezes demasiado facilitada, senão mesmo induzida, por campanhas agressivas, senão mesmo enganadoras, de marketing.
Neste sentido, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 322, onde se lê que «a concessão de uma nova oportunidade às pessoas singulares justifica-se, até porque a insolvência pode ter causas que escapam ao seu controlo, como as perdas de rendimento resultantes de desemprego, doença, ou divórcio, nos trabalhadores subordinados, ou o lançamento de um novo negócio, que se revelou não rentável, nos trabalhadores independentes, desempenhando muitas vezes os hábitos de consumo desenfreados também um papel, podendo o devedor muitas vezes recompor a sua situação económica se lhe derem a oportunidade de começar de novo».
(ii) o desenvolvimento da economia (na lógica de ininterrupto funcionamento do mercado) pressupõe o contributo do maior número de elementos financeiramente saudáveis; e, por isso, também lucraria com a adição, e não com a exclusão por um tempo demasiado longo, do consumidor insolvente.
Neste sentido, Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, Volume I, 2.ª edição, Almedina, 2013, pág. 104, onde se lê que, «em regra, as pessoas singulares, micro-empresas e empresários em nome individual, carecem de falta de informação contratual ao que acresce um país dado a irrealismos e enfermo de iliteracia financeira. Tudo apimentado por uma política de crédito predatório e tentacular praticada pelas instituições financeiras. Nos contratos entre as instituições financeiras e os clientes, a posição daquelas é sempre mais forte e preponderante prevalecendo sempre o seu interesse».
(iii) a dignidade da pessoa humana imporia que a reabilitação económica do insolvente (recuperação da sua liberdade económica, da sua produtividade e, em última análise, do seu bem-estar) não ficasse postergada ad eternum.
[7] Compreende-se que as pessoas colectivas estejam excluídas do procedimento da exoneração do passivo restante, uma vez que «nem sequer dela efectivamente necessitam, na medida em que se dissolvem com a declaração de insolvência e veem a sua personalidade jurídica definitivamente extinta com o registo do encerramento da liquidação» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 323).
[8] Os credores que não tenham logrado a satisfação dos seus créditos (e que ficaram extintos), não poderão mais propor qualquer acção judicial (declarativa ou executiva) com vista à sua satisfação, restando-lhes apenas a possibilidade de requererem a revogação da exoneração do passivo restante (se para tanto existir fundamento).
[9] Apud Marco Carvalho Gonçalves, Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Almedina, Outubro de 2023, págs. 614-616.
No mesmo sentido, Ana Filipa Conceição, «Disposições específicas da insolvência de pessoas singulares no Código da Insolvência e Recuperação de Empresas», I Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2013, págs. 29-62 (com bold apócrifo), onde se lê que, no instituto da exoneração do passivo restante, o legislador procurou conciliar os incontornáveis direitos dos credores a verem satisfeitos os seus créditos, com direitos de personalidade do devedor, desde que não haja dolo ou culpa grave da sua parte na situação em que se encontra e desde que não seja reincidente. No regime instituído foram nitidamente ponderadas, ainda, questões de política social geral. Estão presentes as ideias de socialização do risco do mercado de crédito, repartindo-o entre credores e devedores, e de prevenção da exclusão social do devedor.
[10] Neste último sentido:
. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 322 - onde se lê que, «após o encerramento do processo de insolvência, e portanto esgotada a função do administrador de insolvência com a repartição do saldo do património actual (Ist-Vermögen) pelos devedores, ainda se efectua a cessão do rendimento disponível do devedor a um fiduciário durante cinco [hoje três] anos, com a função de o repartir pelos credores (art. 239º), colocando-se assim também o património a adquirir futuramente pelo devedor (Soll-Vermögen) durante um longo período igualmente afecto à satisfação dos seus credores».
. Letícia Gomes Marques, «O regime especial de insolvência de pessoas singulares», Revista de Direito e Ciência Política da Universidade Lusófona do Porto, 2013, n.º 2, pág. 137, in https://revistas.ulusofona.pt/index.php/rfdulp/article/view/3260, para quem a exoneração constituiu uma dupla oportunidade de satisfação dos seus créditos, isto é, durante o processo de insolvência e durante o período de cessão.
[11] Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, op. cit., págs. 858 e 868, onde se lê que, do prazo fixo do período de cessão se retira o ser «manifestamente estabelecido em benefício dos credores», constituindo «o período que o legislador entendeu adequado para lhes assegurar uma razoável satisfação dos seus créditos».
Ponderam ainda que o nº 2, do art.º 243.º, e o n.º 1, do art.º 244.º, ambos do CIRE, dos quais decorre que a cessação antecipada do procedimento de exoneração, quando não fundada em situações relativas ao devedor, só se verifica se se mostrarem totalmente satisfeitos os créditos sobre a insolvência», «satisfazendo-se, assim, o fim que preside ao instituto», ocorrendo então «uma situação equivalente à inutilidade superveniente da lide». 
[12] Neste sentido, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, págs. 612 e 614, onde se lê que, embora a exoneração seja, «antes de tudo, uma medida de protecção do devedor», as suas «maiores vantagens não respeitam (…) aos interesses privados de nenhum sujeito ou grupo de sujeitos», sendo de alcance mais geral»: «constituindo um estímulo à diligência processual do devedor, ela permite o início mais atempado do processo de insolvência, ajudando a atenuar uma das maiores preocupações do legislador»; «permite a tendencial uniformização dos efeitos da declaração de insolvência, mais particularmente dos efeitos do encerramento do processo de insolvência, estendendo o benefício exoneratório a todos os devedores»; e, apesar de «provocar uma contracção imediata do crédito, ela acaba por produzir um impacto positivo na economia», já que, «quanto mais restrito é o acesso ao crédito - mais “exigente” quem o concede e mais “responsável” quem o pede - menor é o risco de sobreendividamento e menos provável a insolvência dos consumidores e dos empresários em nome individual».
[13] Neste sentido, Assunção Cristas, «Exoneração do passivo restante», Themis, Edição Especial - Novo Direito da Insolvência, 2005, pág. 167.
[14] Neste sentido, Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, 2016, pág. 584.
Na jurisprudência: Ac. da RP, de 05.11.2007, Pinto Ferreira, Processo n.º 0754986; ou Ac. da RP, de 12.05.2009, Henrique Araújo, Processo n.º 250/08.1TBVCD-C.P1.
Contudo, considerando que nem sempre será uma boa decisão (quando tenha sido «o devedor que se colocou intencionalmente na situação e insolvência - que ele planeou apresentar-se à insolvência absolutamente desprovido de bens»), além de que, «sempre que a exoneração prossiga, os custos da exoneração transferem-se integralmente para os credores, o que não é fácil de aceitar», Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 612.
[15] Neste sentido: Ac. da RP, de 18.06.2009, José Ferraz, Processo n.º 3506/08.0TBSTS-A.P1; Ac da RC, de 23.02.2010, Alberto Ruço, Processo n.º 1793/09.5TBFIG-E.C1; Ac. da RG, de 07.04.2011, Augusto Carvalho, Processo n.º 1101/10.2TBVVD-A.G1; ou Ac. da RG, de 04.03.2021, Ramos Lopes, Processo n.º 3872/19.9T8STS.G1.
[16] Explicando-o, e lembrando que, com a exoneração, cada um dos credores fica novamente sujeito a um rateio, restrito para os credores da insolvência ao remanescente do pagamento dos credores da massa (conforme art.º 241.º, n.º 1, al. d), do CIRE), Catarina Serra afirma que, se «não houvesse exoneração, não haveria rateio; a satisfação do credor dependeria apenas da sua diligência processual e da data de prescrição do seu crédito, o que não poucas vezes representaria um aumento do prazo para agir executivamente contra o devedor. O período de cinco anos [hoje reduzido para três] não é, além do mais, suficientemente longo para que seja frequente o devedor reconstituir-se in bonis de forma a pagar, dentro desse período, de formas satisfatória, a todos os que permanecessem seus credores» (Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 614).
No mesmo sentido, Ac. da RG, de 23.11.2023, Gonçalo Oliveira Magalhães, Processo n.º 3833/22.4T8VCT-H.G1.
[17] Neste sentido:
.  Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 611 - onde se lê que «podem identificar-se hoje dois modelos para o tratamento da insolvência da pessoa singular: o modelo a que pode chamar-se modelo (puro) do fresh start e o modelo (derivado) do earned start ou da reabilitação. O primeiro baseia-se ma ideia de que a liquidação patrimonial e o pagamento das dívidas devem ter lugar no curso do processo de insolvência, sendo que, uma vez concluído este, restem ou não dívidas por pagar, o devedor deverá ser libertado de forma a poder retomar, com tranquilidade, a sua vida. O modelo da reabilitação assenta ainda no fresh start mas desenvolve um raciocínio diferente: o raciocínio de que o devedor não deve ser exonerado em quaisquer circunstâncias pois, em princípio, os contratos são para cumprir (pacta sunt servanda). Em conformidade com isto, o devedor deve passar por uma espécie de período de prova, durante o qual parte dos seus rendimentos é afectada ao pagamento das dívidas remanescentes. Só findo este período, e tendo ficado demonstrado que o devedor merece (earns) a exoneração, deverá ser-lhe concedido o benefício. Este é, indiscutivelmente, o modelo de que mais se aproxima a lei portuguesa».
. Letícia Marques Costa, A Insolvência de Pessoas Singulares, Almedina, Teses, Maio de 2021, págs. 41-41 - onde se lê que, segundo «o modelo do fresh start, o sobreendividamento é encarado como um mero risco que está associado à expensão do mercado financeiro, atribuindo-se uma responsabilidade limitada ao sobreendividado. Desta forma, a insolvência é perspetivada como a consequência de uma opção falhada do sujeito enquanto agente económico»: «o perdão será concedido ao devedor que, independentemente das causas que o conduziram a tal circunstancialismo, teve a infelicidade de cair numa situação de insolvência. Assim sendo, os riscos decorrentes desta, bem como os consequentes efeitos, deverão também ser repartidos pelos seus credores».
Já «no modelo de reeducação/reabilitação, a situação a que o devedor chegou será imputada unicamente a si mesmo, em virtude da sua falta de previsão ou de mera negligência acerca do rumo que se encontrava a trilhar para a sua vida. Deste modo, o devedor deverá renegociar as suas dívidas, com os respetivos credores, através de um plano de pagamentos, alcançar pela via judicial ou extrajudicial».  
[18] Neste sentido (de um referencial de merecimento), na doutrina:
. Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, Almedina, 2016, pág. 321 - onde se lê expressivamente que que poderão beneficiar da exoneração do passivo restante os «devedores pessoas singulares (…) que se tenham “portado bem”» (bold apócrifo).
. Marco Carvalho Gonçalves, Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Almedina, Outubro de 2023, pág. 619 - onde se lê que, «tratando-se de um mecanismo de exceção, o benefício da exoneração do passivo restante só pode ser concedido desde que o devedor demonstre que é, efetivamente, digno e merecedor dessa “segunda oportunidade”, em face, nomeadamente, do honeste vivere por si adotado no período que antecedeu a declaração da sua insolvência».
Na jurisprudência (expressivamente):
. Ac. da RC, de 02.03.2010, Gonçalves Ferreira, Processo n.º 331/09.4 TABAND-F.C1 - onde se lê que o «prosseguimento do pedido de exoneração do passivo restante pressupõe, além do mais, a rectidão do comportamento anterior do insolvente no que respeita à sua situação económica».
. Ac. da RL, de 29.09.2011, Teresa Prazeres Pais, Processo n.º 12140/10.3T2SNT-E.L1-8 - onde se lê que a «exoneração do passivo é uma medida extremamente gravosa para os credores e, como tal, deve ser analisada cuidadosamente, nomeadamente atentando-se no comportamento do devedor, na transparência e boa fé que demonstrou desde o vencimento dos débitos».
. Ac. do STJ, de 24.01.2012, Fonseca Ramos, Processo n.º 152/10.1TBBRG-E.G1.S1 - onde se lê que, sendo a exoneração «“uma segunda oportunidade” (fresh start), só deve ser concedida a quem a merecer; a lei exige uma actuação anterior pautada por boa conduta do insolvente, visando evitar que o prejuízo, que já resulta da insolvência, não seja incrementado por actuação culposa do devedor que, sabendo-se insolvente, permanece impassível, avolumando as suas dívidas em prejuízo dos seus credores e, não obstante, pretende exonerar-se do passivo residual requerendo a exoneração».
. Ac. da RC, de 06.03.2012, Arlindo Oliveira, Processo n.º 2461/10.0TBPBL-G.C1 - onde se lê que a «figura da exoneração do passivo restante tem de ser vista como uma excepção e não a regra. Como um benefício que só se pode basear num comportamento do devedor que se viu incorrer numa situação de insolvência, não obstante ter pautado a sua conduta por regras de rectidão, honestidade, transparência e boa fé».
. Ac. da RC, de 03.07.2012, Fonte Ramos, Processo n.º 1779/11.0T2AVR-C.C1 - onde se lê que só é merecedor da exoneração do passivo restante o devedor que demonstre ter adoptado um comportamento «honesto, lícito, transparente e de boa fé».
. Ac. da RC, de 07.03.2017, Jorge Manuel Loureiro, Processo n.º 2891/16.4T8VIS.G1 - onde se lê que a «exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de excepção, pois que por via do mesmo se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de por essa via se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores»; e a «excepcionalidade deste instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adoptado, à ponderação e protecção dos interesses dos credores, e ao cumprimento dos deveres para ele emergentes do regime jurídico da insolvência, em contrapartida do que se lhe concede aquele benefício excepcional».
. Ac. da RG, de 08.02.2018, Ana Cristina Duarte, Processo n.º 896/16.4T8VRL-H.G1 - onde se lê que  os «requisitos impostos pelo artigo 238.º destinam-se a decidir liminarmente sobre se o devedor não merece aquela segunda oportunidade, praticando actos que revelam, em relação à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência uma conduta ilícita, desonesta, pouco transparente e de má fé».
. Ac. da RG, de 16.02.2023, Maria Gorete Morais, Processo n.º 60/17.5T8ALJ.G1 - onde se lê que a «exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de exceção, através do qual se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de, por essa via, se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores».
Logo, a «excecionalidade desse instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adotado, à ponderação e proteção dos interesses dos credores e ao cumprimento pontual das injunções impostas no despacho inicial a que alude o artigo 239º do Código da Insolvência e da Recuperação das Empresas».
. Ac. da RG, de 16.10.2023, Gonçalo Oliveira Magalhães, Processo n.º 172/22.3T8MDL.G1 - onde se lê que a «exoneração do passivo restante, enquanto específico modo de extinção das obrigações além do cumprimento, de natureza legal e concretização judicial, cujo âmbito subjetivo se limita ao devedor singular declarado insolvente, tendo em vista a sua reabilitação financeira (o denominado “fresh start”), constitui um instituto jurídico de exceção».
Assim, «o recurso a tal instituto apenas pode ser reconhecido ao insolvente que tenha pautado a sua conduta pelo cumprimento rigoroso dos deveres de informação, apresentação e colaboração», «transversais a todas as fases do processo de insolvência, incluindo a dos articulados».
[19] Precisa-se que, em qualquer deles, o juiz tem de fazer a avaliação do preenchimento, quer de requisitos processuais, quer de requisitos substantivos (Ac. da RP, de 09.05.2019, Aristides Rodrigues de Almeida, Processo n.º 2873/15.3T8VNG.P1).
[20] No despacho inicial (de admissão ou indeferimento liminar do incidente) o insolvente tem de declarar que  preenche determinados requisitos, grosso modo, o não ter prejudicado os credores com a sua pretérita actuação (nomeadamente, não ter falseado nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência as informações pertinentes à sua situação económica por forma a obter crédito, ter-se apresentado prontamente à insolvência, não ter culposamente criado ou agravado a sua situação de insolvência, e não ter violado, com dolo ou culpa grave, os deveres de informação, apresentação e colaboração que o CIRE lhe impunha no decurso do respectivo processo de insolvência).
 Precisa-se, porém, que, no «pedido de exoneração do passivo restante, a genérica declaração imposta pelo nº 3 do art. 236º do CIRE, não assume, substancialmente, cariz determinante para se aferir da (in)existência dos legais requisitos e condições, o que, em última análise, compete ao juiz averiguar e decidir» (Ac. da RC, de 17.05.2011, Carlos Moreira, Processo n.º 479/10.2TBMGL-A.C1).
[21] Durante o período de cessão o insolvente fica sujeito ao cumprimento de várias obrigações fundamentais, discriminadas no art.º 239.º do CIRE e cujo incumprimento poderá conduzir à cessação antecipada do incidente.
[22] Na decisão final (de concessão ou recusa), tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele pediam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
[23] Precisa-se, porém, que o despacho liminar visa apenas aferir da existência de condições mínimas para aceitar o requerimento que contém o pedido de exoneração formulado pelo devedor: o juízo de mérito que então se formula destina-se tão somente a averiguar se o devedor merece que lhe seja conferida uma nova oportunidade (requisitos de admissão do pedido),  e não sobre se lhe deverá ser, ou não, concedida a exoneração (requisitos de exoneração definitiva), decisão esta,  necessária e exclusivamente, a proferir findo o período de cessão.
Compreende-se, por isso, que se afirme que «não pode deixar de se associar o despacho inicial e a subsequente abertura do período de cessão à concessão da liberdade condicional por bom comportamento - uma espécie de “período experimental”, em que, se tudo correr bem, terá lugar a libertação definitiva do sujeito» (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 616, com bold apócrifo).
No mesmo sentido:
. Assunção Cristas, «Exoneração do devedor pelo passivo restante», Themis, Edição Especial - Novo Direito da Insolvência, 2005, págs. 170-172 - onde se lê que, para o insolvente, o despacho inicial ainda «não é a oportunidade de iniciar a vida de novo, liberado de dívidas, mas a oportunidade de se submeter a um período probatório que, no final, pode resultar num desfecho que lhe seja favorável».
. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição Quid Juris, Lisboa 2015, pág. 853 - onde se lê que o benefício final pretendido pelo insolvente (isto é, a concessão efectiva da exoneração do seu passivo restante) depende ainda do preenchimento inicial de determinados requisitos, e fica subordinado ao cumprimento de determinadas obrigações, pelo que o despacho inicial «só promete conceder a exoneração efectiva», e não a garante.
. Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, Almedina, 2016, pág. 324 - onde se lê que o despacho inicial determina a abertura «do período de cessão, ou seja, o período dentro do qual, por forma a revelar-se merecedor da concessão da exoneração do passivo restante, o devedor é posto à prova, através da cessão do rendimento disponível, e da imposição e um conjunto de obrigações».
. Letícia Marques Costa, A Insolvência de Pessoas Singulares, Almedina, Teses, Maio de 2021, pág. 119 - onde se lê que no despacho inicial «apenas se irá aferir o preenchimento de requisitos substantivos que se destinam a apurar se o devedor merecerá ou não uma segunda oportunidade».
[24] Esta «cessão determinada no despacho judicial inicial constitui uma cessão de créditos de bens futuros»; e encontra na lei a sua fonte directa, não sendo o devedor quem, por acto voluntário, cede aquele rendimento disponível, já que o fiduciário tem direito, nos termos do art. 241.º, n.º 1 do CIRE, a «haver» directamente o mesmo, o qual, porém, só pode afectar às finalidades previstas na lei (Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, 2016, págs. 601 e 606).
No mesmo sentido, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 8.ª edição, Almedina, 2015, pág. 255, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 327, Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, Almedina, 2016, pág. 327, e Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição Quid Juris, Lisboa 2013, pág. 907.
«Em consequência, os rendimentos auferidos durante este período transferem-se no momento em que são adquiridos e independentemente do consentimento dos devedores dos rendimentos (art. 577º, nº 1, do CCivil), sendo acompanhados das garantias e outros acessórios dos créditos que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente (art. 582º, nº 1, do CCivil)» (Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, Almedina, 2016, pág. 327).
[25] Compreende-se, por isso, que se afirme que a «autonomia patrimonial» do instituto justifica que, durante o período da cessão, os credores não possam executar o património que lhe está afecto, proibindo-se ainda a concessão de vantagens especiais a credores (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 8.ª edição, Almedina, 2015, pág. 257).
«Visa-se, por um lado, assegurar a efetiva realização dos fins da cessão, pelo que respeita aos rendimentos cedidos, não os distraindo da sua afectação»; e a «restrição, quanto a outros bens do devedor, também se revela adequada, quer por a sua execução poder afetar a fonte desses rendimentos, quer por esses bens constituírem a base da vida económico-social do devedor» (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição Quid Juris, Lisboa 2013, pág. 912).
[26] Com efeito, e «de acordo com o que resulta dos artºs 81º, nºs 1, 2 e 4, e 84º, nº 1, o insolvente pode - e deve na medida do possível ! - providenciar pela realização de um trabalho que lhe garanta meios de subsistência, susceptível também de gerar rendimentos que, uma vez efectivamente obtidos, integram a massa insolvente» (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição Quid Juris, Lisboa 2013, pág. 709, com bold apócrifo). Há mesmo quem considere que a obrigação prevista na al. b), do n.º 4, do art. 239.º, do CIRE (de exercer uma profissão remunerada) é a «mais importante», já que «condiciona as restantes, uma vez que só após a aquisição de rendimentos susceptíveis de penhora é que o devedor os pode entregar ao fiduciário» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, págs. 329-330).
[27] A obrigação de ceder aos credores o rendimento que seja considerado disponível é geralmente vista como consubstanciando a obrigação principal, do insolvente, que constitui a contrapartida do facto de poder vir a ser exonerado do passivo que possuía. Ora, integram o dito rendimento disponível «todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor» (exceptuados os que seja razoavelmente necessário para assegurar o seu sustento minimamente digno e do seu agregado familiar), nomeadamente os que resultem de uma profissão remunerada (conforme art. 239.º, n.º 3 e n.º 4, al. a), do CIRE).
Dir-se-á, porém, que não se está aqui «apenas perante rendimentos em sentido técnico, sendo antes abrangidos quaisquer acréscimos patrimoniais. Assim, se o insolvente receber uma herança durante o período de cessão, o património hereditário que lhe compete deve igualmente considerar-se cedido ao fiduciário. A tal não obsta o art. 2028º, nº 2, dado que a cessão do rendimento disponível constitui uma hipótese legalmente prevista» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 327, com bold apócrifo).
[28] Dir-se-á que, sendo todas as obrigações, «de alguma forma, instrumentais ao procedimento de exoneração», destaca-se, porém, «a última [não fazer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores], que se destina, além do mais, a assegurar o respeito pela igualdade de tratamento dos credores» (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 622).
[29] Compreende-se, por isso, que se afirme que «não pode deixar de se associar o despacho inicial e a subsequente abertura do período de cessão à concessão da liberdade condicional por bom comportamento - uma espécie de “período experimental”, em que, se tudo correr bem, terá lugar a libertação definitiva do sujeito» (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 620). 
[30] Precisa-se, porém, que aqui estão apenas em causa «os credores da insolvência, ou seja os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data da declaração de insolvência (art. 47º, nº 1). (…) Já os novos credores, cujos créditos se tenham constituído após a declaração da insolvência, não são abrangidos pelo art. 242º, podendo em consequência executar livremente os bens do devedor. Essa faculdade de execução apresenta-se, no entanto, como destituída de efeito prático, uma vez que o devedor não terá em princípio bens penhoráveis, dado que todo o seu activo patrimonial é cedido ao fiduciário, que o afecta à satisfação dos credores da insolvência» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 332, com bold apócrifo).
[31] Qualificando este prazo de seis meses como um prazo de caducidade, e pronunciando-se sobre a possibilidade do seu conhecimento, Ac. da RC, de 28.09.2022, Paulo Correia, Processo n.º 4832/19.8T8CBR.C1.
[32] Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição Quid Juris, Lisboa 2015, pág. 868.
Na jurisprudência: Ac. da RG, de 03.04.2014, Isabel Rocha, Processo n.º 1062/12.3TBFAF.G1; Ac. da RC, de 06.03.2018, Emídio Francisco Santos, Processo n.º 3221/12.0TBLRA.C1; ou Ac. da RG, de 22.10.2020, José Flores, Processo n.º 1335/17.9T8GMR.G1.
Expressando, porém, reservas quanto a esta solução, Ac. da RC, de28.02.2023, Paulo Correia, Processo n.º 951/21.9T8CRB-F.C1.
[33] Neste sentido, Ac. da RP, de 11.10.2017, Rodrigues Pires, Processo n.º 1050/13.2TBOAZ.P1, onde se lê que o requerimento de cessação antecipada do passivo restante «deve ser fundamentado, o que significa que o requerente deve invocar e provar as causas justificativas da cessação antecipada do procedimento».
Ainda Ac. da RP, de 14.07.2020, Fátima Andrade, Processo n.º 797/12.5TBGDM.P1, onde se lê que recai «sobre o fiduciário ou credor requerente de tal cessação antecipada, o ónus de alegação fundamentada (…) da violação e circunstancialismo exigidos e mencionados» na lei para o efeito».
[34] Neste sentido, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 625, onde se lê que, «atendendo ao art. 11.º e a algumas menções específicas no regime da exoneração (cfr., por exemplo, art. 236.º, n.º 1, 2.ª parte), o juiz mantém a disponibilidade dos seus poderes de averiguação». 
[35] Neste sentido, Ac. da RP, de 07.12.2018, Fátima Andrade, Processo n.º 1063/14.7TBFLG.P1, onde especificamente se analisa a questão do ónus da prova, citando jurisprudência conforme (embora pronunciando-se a propósito do indeferimento liminar do incidente, mas concluindo que, «se assim é nesta fase da admissão liminar, o mesmo se aplica à situação em que o credor vem pugnar pela cessação antecipada do incidente em curso, invocando em tal fase o que antes não alegou por desconhecimento ou verificação superveniente»).
Ainda Ac. da RC, de 06.03.2018, Emídio Francisco Santos, Processo n.º 3221/12.0TBLRA.C1, onde se lê que àquele «que requer a cessação antecipada do procedimento cabe fazer a prova dos factos que fundamentam o pedido».
[36] Consagra o art.º 342.º, do CC, a doutrina da «construção da proposição jurídica» ou «teoria das normas», segundo a qual a repartição do ónus da prova decorre das relações das normas entre si, estando cada parte onerada com a prova dos factos subsumíveis à regra jurídica que lhe atribui um efeito favorável.
«Tudo assenta, pelo menos na formulação mais originária, na distinção entre normas de base e contra-normas as quais funcionam, respectivamente como regra e exceção, pelo que a aplicação da teoria e consequente distribuição do ónus probatório nela baseada implica identificar, em cada caso concreto, a que tipo de norma pertence o facto em prova. Para Leo Rosenberg, não há nem pode haver outra solução do problema do ónus da prova que o princípio por ele defendido, segundo o qual, “cada parte suporta o ónus do preceito jurídico cujo efeito faz valer no processo”, sendo que, “somente mediante a interpretação do direito material é possível acertar o alcance dos factos que devem ser provados”».
Logo, e «sendo este critério de distribuição derivado diretamente da função desempenhadas pelas normas invocadas pelas partes para fundamento da ação ou da defesa, o mesmo é distribuído abstraindo do caráter positivo ou negativo do facto a demonstrar. Pela mesma razão, a repartição não depende da probabilidade da verdade do facto, ou seja, o encargo probatório não é distribuído em função da maior ou dificuldade que a parte terá em demonstrar em abstrato determinado tipo de factos» (Elizabeth Fernandes, «A prova difícil ou impossível (a tutela judicial efetiva no dilema entre a previsibilidade e a proporcionalidade», Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, Outubro de 2013, págs. 824-825).
[37] Neste sentido, Ac. da RP, de 30.04.2020, Pedro Damião e Cunha, Processo n.º 1866/10.1TJPRT.P1, onde se lê que «da análise dos comandos normativo aplicáveis (arts. 238º, nº 1, 239º, nº 4 e 243º do CIRE) decorre indubitavelmente que nela se constrói uma previsão de factos que impedem o deferimento do pedido, em razão do que não se nos oferecem dúvidas de que, tratando-se, portanto, de factos impeditivos do benefício que, por via dele, o insolvente pretende alcançar, será sobre os credores e/ou o administrador que impende o ónus de provar que o insolvente não se encontra em condições (ou deixou de ter as condições) de beneficiar da exoneração, em conformidade com o previsto no art. 342º, nº 2, do CC».
Ainda Ac. da RG, de 05.11.2020, de José Alberto Moreira Dias, Processo n.º 1565/14.5TTBGMR.G1, onde se lê que «os credores do insolvente, o administrador de insolvência ou o fiduciário (…) terão de alegar os factos concretos em que o fundamentam esse pedido de cessação antecipada do procedimento de exoneração, além de lhes caber o ónus da prova desses mesmos factos fundamentadores dessa cessação antecipada, porquanto são factos impeditivos do direito do devedor, pessoa singular, a ser exonerado do passivo restante (art. 342º, n.º 2 do CC)»; ou Ac. da RP, de 07.06.2021, Fernanda Almeida, Processo n.º 930/15.5T8VNG.P1, onde se lê que, tratando-se «de factos impeditivos do direito do devedor à dita exoneração, é sobre o fiduciário ou sobre os credores requerentes de tal recusa que recai o ónus de alegação fundamentada e prova da violação e circunstancialismo exigidos» para o efeito.
[38] Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição Quid Juris, Lisboa 2015, pág. 868, onde se lê que deve entender-se, naturalmente, que, destes, só tem de ser ouvido quem não tenha sido o requerente da cessaão antecipada do procedimento de exoneração».
[39] Neste sentido, Ac. da RP, de 24.01.2022, José Eusébio Almeida, Processo n.º 665/16.1T8AVR.P1, onde se lê que, independentemente «de estarem, ou não, representados por mandatário, os devedores (insolventes) devem ser notificados para se poderem pronunciar sobre a cessação antecipada do procedimento de exoneração, requerida por um dos credores».
[40] No mesmo sentido, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 621, onde se lê que a «cessação antecipada do procedimento» ocorrerá sempre que se verifique a existência de alguma circunstância que torne o credor indigno da tutela que a exoneração representa».
Na jurisprudência, Ac. da RG, de 04.03.2021, Ramos Lopes, Processo n.º 3872/19.9T8STS.G1 (com bold apócrifo), onde se lê que «o instituto (desde o despacho inicial até à decisão final, passando pela eventual decisão da cessação antecipada do procedimento e até pela revogação da exoneração – art.s 239º, 243º, 244º e 246º do CIRE) tem como padrão referencial de comportamento ético-normativo (a usar no despacho inicial, na decisão final, na decisão da cessação antecipada do procedimento ou na revogação da exoneração)a licitude, honestidade, transparência e boa fé na vertente económico-financeira da vida do devedor.
Assim que a hermenêutica dos vários trâmites em que se decompõe o instituto (e, por isso, também o despacho liminar – art. 238º do CIRE) há-de ter por alicerce o seu fundamento (em que o princípio do ‘fresh start’ é conjugado e compatibilizado com o princípio fundamental do ressarcimento dos credores, devendo exigir-se ao devedor que demonstre merecer o benefício da exoneração), convocando a ponderação de elementos reveladores da circunstância do devedor ser merecedor, face à sua conduta honesta, lícita, proba e transparente, de que uma nova oportunidade lhe seja – à luz do direito (e, logo, à luz do fundamento axiológico que é o seu suporte), esta nova oportunidade, novo começo, azzeramento da situação passiva, só se justifica para os devedores probos e honestos (para os que não tiveram condutas tidas - no plano económico e financeiro - por ilícitas, desonestas ou não transparentes) e para os que cumprem, no período da cessão, todas as obrigações impostas».
[41] Reconhecendo a «força atractiva» de exoneração, enquanto «medida de protecção do devedor, tornando o recurso a ela uma verdadeira tentação», com naturais «efeitos perversos», podendo conduzir a «“abusos de exoneração”», Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 612.
Explicando, e como «aconteceu a certa altura nos Estados Unidos, pode, de facto, haver a tendência para ver na exoneração um recurso normal, que a lei disponibiliza para a desresponsabilização do devedor. Consequentemente, há o risco de o processo de insolvência se transformar num refúgio ou numa protecção habitual contra os credores (bankruptcy protection)».
[42] No mesmo sentido, Ac. da RG, de 24.09.2015, Jorge Teixeira, Processo n.º 880/15.5T8VNF-B.G1, onde se lê que são «comportamentos desconformes ao proceder honesto, lícito, transparente e de boa fé, os que, a verificarem-se na conduta do devedor, impedem que a este seja reconhecida a possibilidade de, preenchidos os demais requisitos do preceito, se libertar de algumas das suas dívidas, para dessa forma lograr a sua reabilitação económica»; e «o que se sanciona são os comportamentos que impossibilitem (ou diminuam a possibilidade de) os credores obterem a satisfação dos seus créditos, nos termos em que essa satisfação seria conseguida caso tais comportamentos não ocorressem».
[43] Há quem adicione a estes dois requisitos um terceiro: o da existência de um nexo causal entre a conduta dolosa ou gravemente negligente do insolvente e o dano para a satisfação dos seus credores (conforme L. M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, Volume I, 2.ª edição, 2012, Almedina, Coimbra, pág. 163).
Ainda Ac. da RP, de 14.07.2020, Miguel Baldaia de Morais, Processo n.º 6127/10.3TBVFR.P2.
A jurisprudência vem enfatizando (de forma generalizada) que não é qualquer incumprimento dos deveres a que o insolvente ficou adstrito que justifica a cessação antecipada da exoneração do passivo restante, mas antes um incumprimento reiterado, doloso ou com culpa grave, e causador de prejuízos aos credores.
Neste sentido, Ac. do STJ, de 09.04.2019, Ana Paula Boularot, Processo n.º 279/13.8TBPCV.C1.S2, onde se lê que, não «se mostrando apurado que o comportamento do Devedor tenha sido voluntariamente encetado, isto é, que tenha querido violar as imposições que lhe foram cominadas e consequentemente a Lei; e de outro lado, que o tenha feito, voluntária e consciente, com a intenção de prejudicar os credores, maxime, o Credor/Requerente, sendo que esses elementos, um subjectivo (o dolo do devedor) e outro objectivo (o prejuízo relevante para os credores), têm de estar devidamente enunciados e provados, sem embargo de podermos constatar que o Recorrente incumpriu determinados deveres, ao não entregar ao fiduciário parte do seu rendimento, o apontado incumprimento não é susceptível de gerar, a se, a cessação antecipada requerida, porquanto esta pressuporia um comportamento doloso do Devedor, que tivesse sido causa de um dano relevante para os seus credores, e o nexo de imputação deste à conduta daquele».
Ainda Ac. da RE, de 22.10.2020, Tomé de Carvalho, Processo n.º 779/14.2TBOLH.E1, onde se lê que a «cessação antecipada do instituto da exoneração do passivo restante exige a verificação de três pressupostos: a reiterada existência de negligência grave ou dolo das suas obrigações, a ocorrência de prejuízo efectivo para a satisfação dos créditos e a verificação de um nexo causal entre a violação das obrigações cometidas ao insolvente e a criação do dano na esfera jurídica dos credores».
[44] Neste sentido, numa jurisprudência unânime: Ac. da RC, de 22.11.2016, Fernando Monteiro, Processo n.º 152/13.0TBMIR.C1; Ac. da RG, de 04.04.2017, Maria Amália Santos, Processo n.º 838/12.6TBGMR.G1; Ac. da RG, de 04.05.2017, António Sobrinho, Processo n.º 3931/10.6TBBCL.G1; Ac. da RG, de 14.06.2018, Amílcar Andrade, Processo n.º 4706/15.1T8V.G1; Ac. da RP, de 10.02.2020, Eugénia Cunha, Processo n.º 1066/13.9TJPRT.P; Ac. da RE, de 13.02.2020, Vítor Sequinho, Processo n.º 482/12.8TBACN.E1; Ac. da RG, de 05.11.2020, de José Alberto Moreira Dias, Processo n.º 1565/14.5TTBGMR.G1; Ac. da RG, de 21.01.2021, António Sobrinho, Processo n.º 3534/12.0TBGMR.G1; Ac. da RP, de 12.04.2021, Jorge Seabra, Processo n.º 866/14.7T8STS.P1; Ac. da RP, de 25.05.2021, Carlos Querido, Processo n.º 334/17.5T8VNG.P1; Ac. da RP, de 07.06.2021, Fernanda Almeida, Processo n.º 930/15.5T8VNG.P1; Ac. da RP, de 07.06.2021, Manuel Domingos Fernandes, Processo n.º 236/11.9TJPRT.P1; Ac. da RP, de 01.07.2021, Filipe Caroço, Processo n.º 1201/11.1TBGDM.P1; ou Ac. da RL, de 15.07.2021, Manuela Espadaneira Lopes, Processo n.º 4949.14.5TCLRS.L1-1.
[45] O Código do Trabalho foi aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro.
[46] Compreende-se, por isso, que se afirme que o subsídio de refeição não tem natureza de remuneração, mas sim de benefício social, destinado a compensar o trabalhador das despesas acrescidas (já que as normais seriam sempre a seu cargo) com a refeição principal, tomada fora da residência habitual (onde ficaria eventualmente mais barata, por os respectivos custos se diluírem nas despesas gerais da refeição familiar), em dia em que presta serviço efectivo (uma vez que a dita refeição é normalmente intercalada no seu período normal de trabalho).
Neste sentido: Ac. da RL, de 01.02.2006, Isabel Tapadinhas, Processo n.º 9563/2005-4; Ac. da RC, de 17.10.2016, Azevedo Mendes, Processo n.º 3336/15.2T8CBR.C1; Ac. da RG, de 01.03.2018, Eduardo Azevedo, Processo n.º 5989/16.5T8VNF.G1; Ac. do STA, de 03.02.2021, José Gomes Correia, Processo n.º 0865/12.3BELRS; ou Ac. da RL, de 14.07.2021, Sérgio Almeida, Processo n.º 196/12.9TTBRR.2.L1-4.
Contudo, em sentido contrário, Ac. da RP, de 12.09.2019, Judite Pires, Processo n.º 1206/16.6T8STS.P1, onde se lê que, no «âmbito da exoneração do passivo restante as quantias recebidas pelo insolvente a título de subsídio de alimentação, integrando, enquanto prestações periódicas e regulares, a remuneração por ele auferida enquanto trabalhador por conta de outrem, não estão excluídas, pela sua natureza, do conceito de rendimento disponível enquanto objecto de cessão à massa insolvente».
[47] Assinala-se que, mesmo retirando dos cálculos as quantias alegadamente auferidas a título de subsídio de transporte (€ 27.300,81 - € 11.694,96 = € 15.605,85), sempre subsistiria um montante a ceder à fidúcia (€ 15.605,85 - € 13.680,00 = € 1.925,85).
Contudo, e face ao respectivo montante, poderia o Insolvente decidir pela sua restituição à fidúcia; e ter possibilidade de o fazer (ao contrário do que poderá ter sucedido com o outro montante, bem mais elevado, que lhe fosse indicado para o efeito).