RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
CAMINHO DE SERVIDÃO
Sumário


1- Não se pode considerar como posse correspondente ao direito de servidão de passagem a utilização de um caminho uma ou duas vezes por ano, durante pelo menos 50 anos, sem qualquer regularidade ou finalidade repetida no tempo, por falta de reiteração, visto que essa utilização tão esporádica se confunde com o exercício de uma mera passagem forçada momentânea, prevista no artigo 1349º, nº 1 do Código Civil, por não ter ínsita uma especial relação entre aqueles que passaram e o (direito ao uso do) caminho.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Apelante e Requerente AA

Apelados e Requeridos: BB e marido CC

Autos de apelação (em incidente de oposição em processo de procedimento cautelar especificado de restituição provisória de posse)

I  Relatório

 --- A Requerente deduziu o presente procedimento cautelar especificado, de restituição provisória da posse, peticionando que seja “ordenada a restituição provisoria de posse do caminho de servidão, que deve ser desobstruído, retirando-se o portão ali colocado, para permitir a passagem da Requerente e o acesso ao seu prédio ou subsidiariamente, os Requeridos condenados a entregar uma chave do portão à Requerente para permitir a sua passagem.
Mais devem serem condenados os Requeridos a, provisoriamente, absterem-se de obstaculizarem a passagem da Requerente pelo caminho identificado sob os artsº 7 a 20º supra e condenados em sanção pecuniária compulsória de 50,00€ por cada dia de atraso na retirada do portão ou entrega da chave à Requerente, após a notificação da decisão que recair sobre esta providência cautelar e ainda por cada dia que venham a impedir a Requerente de ali passar, nos termos dos artigos 829/A do CC. e 365º e 375º do CPC.”
Alegou para tanto, em síntese, que é a proprietária de um prédio, encravado, que confina com o prédio onde os requeridos habitam, onde se encontra um caminho que dá acesso ao prédio de que a requerente é proprietária, caminho que já utilizava, bem como os seus familiares e visitas, desde há 50 anos, o que fazia sem oposição ou interrupção de ninguém. O seu prédio está encravado, sendo que, o caminho de acesso sempre se fez pelo trajeto identificado no requerimento inicial, através do logradouro da casa dos requeridos. No entanto, os Requeridos colocaram dois pilares e um portão no logradouro, que impossibilitam a passagem.
Produzida a prova, foram declarados indiciariamente provados os factos alegados pela Requerente e em consequência foi decretada a restituição provisória da posse da servidão de passagem pelo caminho, com um comprimento de trinta metros e uma largura de três metros, situada no logradouro do prédio dos requeridos e melhor identificado na petição inicial (através da entrega da chave do portão), bem como foi determinado que os requeridos teriam que abster-se de praticar atos que impedissem ou dificultassem o acesso da Requerente, a pé ou de carro de bois ou trator, ao prédio de que é proprietária.
A Requerida deduziu oposição, impugnando os factos invocados e sustentando que a passagem para o prédio se fazia por um caminho situado no prédio de uma irmã da Requerente e aquela lhe impediu tal acesso em 2019.
Produzida prova, foi proferida decisão, julgando procedente a oposição deduzida e revogando a providência de restituição provisória da posse antes decretada.

É desta decisão que a embargante apela, apresentando as seguintes 
conclusões

“A. A Requerente recorre de sentença que julgou procedente a oposição deduzida, revogando-se na íntegra a providência decretada e concretizada nos autos, com custas a seu cargo.
B. A Recorrente impugna a decisão quanto às alíneas c) e d) da matéria de facto não provado, com o seguinte teor:
c) A passagem pelo caminho pela requerente, seus familiares e antecessores era efectuada à vista e com o conhecimento de todos, sem oposição.
d) A referida passagem pelo caminho é conhecida de todos os vizinhos inclusive dos requeridos BB e CC."
C. Na verdade, não há prova de qualquer obstáculo ou oposição de quem quer que seja à utilização do caminho, sendo que, em cumprimento do disposto no artigo 1261º do Código Civil, a posse da Requerente tinha que ter sido julgada pacífica.
D. A frequência de passagem não é indício da não utilização de coacção ou da existência de oposição dos interessados.
E. Sucedendo da posse dos seus antecessores, a passagem da Recorrente foi constante ao longo de 50 anos, impossibilitando o rótulo de ocasionalidade, sendo que ademais, a classificação da passagem como ocasional é questão de direito.
F. Resulta da prova de que os passantes o faziam sem impedimento ou oposição de qualquer pessoa, sem transpor ou remover qualquer obstáculo destinado a impedir o trânsito naquele local.
G. A publicidade é cumprida na cognoscibilidade, não no conhecimento efectivo, o qual já cumprirá ao possuidor assegurar. H. Ao recusar a prova do facto com base na conjectura de que a passagem poderia não ser conhecida do proprietário do prédio serviente o Tribunal violou os mais elementares princípios do direito probatório e de aquisição processual dos factos.
I. A fundamentação da decisão da matéria de facto é deficiente porquanto não refere os a quem confere credibilidade e porquê.
J. Os meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida relativamente aos pontos acima indicados da matéria de facto correspondem aos depoimentos de Otília dos Anjos Silva Carvalho, DD, EE e FF, que, de acordo com a fundamentação da douta sentença "demonstraram conhecimento directo dos factos em causa, uma vez que a primeira é vizinha tanto da requerente como dos requeridos, os dois seguintes por serem familiares da requerente (tios) e conhecerem o prédio desde a infância, lá se deslocando frequentemente, e o último por ser pai da requerente e anterior proprietário do prédio encravado.
K. GG referiu que nunca ninguém se opôs à passagem no caminho, o que faziam sem pedir favor a ninguém, desde o tempo dos avós da Requerente.
L. DD demonstrou que era feita uma utilização regular e intensiva por banda do seu pai, avô da Recorrente e seu antepossuidor.
M. Directamente sobre a questão de impedimentos colocados à utilização do caminho, a testemunha afirmou perentoriamente "Nunca. Ninguém impediu nem ninguém perturbou" (minuto 14:41 a 14:50).
N. EE afirmou que nunca pediram favores nem nunca ninguém os impediu de lá passar, fazendo um uso livre do caminho (minuto 10:01 a 10:45).
o. FF garantiu que se passava no caminho quando era necessário, sem dar satisfações a ninguém.
P. Estas testemunhas depuseram de forma convergente, objectiva, espontânea, sem hesitações e, portanto, credível.
Q. Para além do mais, o Tribunal devia ter usado da presunção judicial inferindo o modo público e pacífico do número de anos em que a passagem se deu sem dar lugar a conflitos, colocação de vedações e demandas judiciais durante esse intervalo.
R. Deve dar-se como provado que:
"21. A passagem pelo caminho pela requerente, seus familiares e antecessores era efectuada à vista e com o conhecimento de todos, sem oposição.
22. A referida passagem pelo caminho é conhecida de todos os vizinhos."
S. A Recorrente alegou a constituição de servidão por usucapião, uma das formas de constituição de servidões prediais previstas no artigo 1547º, nº 1 do Código Civil, que há que conjugar com o artigo 1287º do mesmo diploma legal.
T. Em insanável contradição com os factos provados 7. a 13., a douta sentença considera que a Autora, por si e ante possuidores, não tem o corpus, isto é, não praticou actos materiais que correspondam a algum daqueles poderes encapsulados pelo direito de servidão de passagem.
U. Está provada a passagem pelo caminho, de forma regular e duradoura, reiterada durante mais de 50 anos, pela Recorrente e seus familiares, a pé, de carro de bois e de tractor.
V. Os factos provados confirmam, sem margem para dúvida, que a utilização não era ocasional, mas reiterada e sustentada no tempo.
W. O corpus, enquanto poder facto exercido sobre a coisa, é, neste caso, inatacável, pelo que a douta sentença violou o disposto no artigo 1251º do Código Civil. X. Também o animus deveria ter sido reconhecido, pois a utilização que a Requerente e antepossuidores fizeram do caminho demonstra a sua convicção do exercício de direito próprio.
Y. O "animus" que corresponde à actuação do possuidor com a convicção de que está a exercer um direito próprio e verifica-se, neste caso, na prática da passagem pelo caminho, durante 50 anos, sempre que necessário ou desejado, sem ocultação, sem pedir autorização a terceiros e sem a sua oposição.
Z. A posse da Requerente sobre o caminho, nos moldes em que seria exercido um direito de servidão, convicta de que o estava a exercer e que era seu e legítimo, há que avaliar as características essências da posse, manteve-se pública e pacífica até ao facto provado em 16.
AA.Como refere a decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/04/1991: "A posse é pública quando se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados", de onde resulta que o conhecimento efectivo não é requisito de publicidade.  
BB. Em boa verdade, também não foi alegado o uso de qualquer tipo de força, subterfúgio ou constrangimento por parte da Recorrente para classificar a posse da Recorrente como violenta.
cc. A passagem sempre foi realizada de modo incontestado até à colocação do portão pelos Recorridos, o que correspondeu a um período de 50 anos em que não foi oposto à Recorrente e antecessores qualquer obstáculo à utilização do caminho para aceder ao prédio, a pé, de carro de bois ou de veículo automóvel.
DD. A posse da Requerente é não titulada, de boa fé, pública e pacífica, mantida por 50 anos, o suficiente para a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação (20 anos nos termos do disposto no artigo 1296º do Código Civil).  
EE. Encontram-se, portanto, verificados todos os requisitos para o reconhecimento do direito a uma servidão de passagem que onera o prédio dos Requeridos em benefício do prédio da Requerente. 
FF. Procedendo esse pedido, deverão proceder também os demais, nomeadamente o de que os Requeridos se abstenham de qualquer tipo de condutas, de qualquer natureza, que inviabilizem a passagem da Requerente, sob comi nação de sanção pecuniária compulsória de valor não inferior a € 50,00 diários, pois que a utilidade de um direito é obtida por meios efectivos de coerção que garantam a sua inviolabilidade.
 GG. A douta sentença violou o disposto nos artigos 349, 351º, 1251º, 1253º, alínea a), 1261º, 1262º, 1287º, 1297º e 1547º, nº 1 todos do Código Civil.”

A parte contrária respondeu, com as seguintes
conclusões

A douta sentença fez uma correta aplicação da Lei, no que concerne ao âmbito deste recurso, tendo os factos dados como provados e os documentos juntos aos autos, pelo que a absolvição dos requeridos a não reconhecer a existência de uma servidão por usucapião a onerar o seu prédio urbano, fez uma aplicação correcta da lei, dado que:
A) Resulta dos autos que não ficou provado a existência da servidão de passagem a onerar ao prédio urbano dos requeridos, e a improcedência da providência cautelar e demais requisitos exigidos, conforme o disposto no art. 1294. a 1296. do Código Civil.
B) Não existem contradições entre os depoimentos das testemunhas e as respostas dadas aos quesitos pelo que não houve violação ao artigo 662º do C.P.C..
C) Face ao exposto não ocorreu no entender dos recorridos uma deficiente apreciação da matéria de facto e de direito, nem violação de qualquer disposição legal.”

II  Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso ou sejam de conhecimento oficioso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
 .

Face ao teor das conclusões importa verificar:
1 – Se deve ser alterada a matéria de facto no sentido pugnado pelo Recorrente;
2-  se se verificam os pressupostos para a restituição provisória de posse (enquadrando-se a situação no âmbito de uma “cedência definitiva” da parcela).

III- Fundamentação de Facto

Segue o elenco da matéria de facto provada e não provada a considerar, indicando-se os factos selecionados na sentença (os quais, mantendo-se, são reproduzidos sem qualquer menção adicional):

- Factos indiciariamente provados
1.  Pela Ap. ...20 de 09.08.2022, encontra-se inscrito a favor de AA, por aquisição através de dissolução da comunhão conjugal e partilha da herança, o prédio rústico, situado em ..., União de freguesias ... e ..., inscrito na matriz sob o artigo n.º ...11, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...09.
2.  O prédio referido em 1) confronta com o prédio propriedade dos requeridos, situado em ..., União de freguesias ... e ..., inscrito na matriz sob o artigo n.º ...75, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...53.
3.  O prédio descrito em 2) tem uma área de 56 m2, com uma área de implementação do edifício de 56 m2.
4.  Ademais, ao lado do prédio descrito em 2), mais a jusante, existe uma outra casa que pertence ao pai da requerente, HH e entre essa mesma casa e a casa dos requeridos existe uma parcela de terreno que é onde se situa o caminho.
5.  O prédio mencionado em 2) só tem a configuração atual desde 2007, data em que os requeridos realizaram obras.
6.  Até 2007 o telhado da habitação dos requeridos ficava ao nível do caminho.
7.  Desde há pelo menos 50 anos, que para aceder ao mesmo, a Requerente, seus familiares e antecessores, sempre utilizaram um caminho com 30 metros de cumprimento e três de largura.
8.  O qual implica a passagem pelo prédio ...53.
9.  Essa passagem acontecia uma ou duas vezes por ano.
10. O prédio mencionado em 1) encontra-se encravado.
11. Desde há mais de 50 anos, que a requerente, seus familiares e antecessores, com a frequência descrita em 9., utilizam o referido trajeto, tratando-se de um caminho que durante muito tempo foi de terra batida perfeitamente delimitado e visível, recentemente passou a estar pavimentado.
12. A passagem era efetuada tanto a pé, como em carro de bois ou de trator.
13. Este caminho desemboca no prédio da requerente.
14. O prédio mencionado em 1) tem nele construído um palheiro, com dois andares, que serve colocar couves, feijões e batatas aí semeadas.
15. O dito prédio tem ainda duas hortas onde eram plantadas couves, batatas e outros legumes, sendo que presentemente apenas tem aí plantadas árvores de fruto.
16. No Verão de 2023, os requeridos colocaram dois pilares e um portão em ferro, fechado com chave, no início do caminho, impossibilitando a passagem de pessoas e veículos, impedindo a requerente de aí passar.
17. Por decisão proferida nos autos a fls. 50 a 56, foi determinada a restituição provisória da posse mediante entrega à Requerente do posto de transformação e edificação que o alberga, tendo a providência sido concretizada no dia 22.11.2016.
18. Pela Ap. ... de 2000.12.22, encontra-se inscrito a favor de HH, por aquisição, o prédio rústico, denominado ... ou ..., situado em ..., da Freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo n.º ...05, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...22.
19. Existe outro caminho de acesso ao prédio da Requerente, a norte, cuja passagem apenas é possível a pé, com recurso a umas escadas ingremes.
20. A irmã da Requerente, II construiu, no verão de 2023, um muro que impede a passagem pelo caminho descrito em 19).

Factos indiciariamente não provados

a) Desde há mais de 50 anos, que a requerente, seus familiares e antecessores utilizam de forma frequente o referido trajeto.
b) A Requerente pretende construir no prédio descrito em 1) uma casa de habitação.
c) A passagem pelo caminho pela requerente, seus familiares e antecessores era efetuada à vista e com o conhecimento de todos, sem oposição.
d) A referida passagem pelo caminho é conhecida de todos os vizinhos inclusive dos requeridos BB e CC.
e) O prédio descrito em 18) é aquele onde se situa o referido caminho.
f)  A circunstância descrita em 6) impedia que se transitasse no caminho com veículos de tração animal ou motorizados.
g) Até 2007 existiam aí oliveiras que impediam a passagem.
h) O prédio da Requerente confronta com a via pública do lado poente.
i)   O prédio da Requerente tem uma passagem para veículos a norte.

IV Apreciação da Impugnação da matéria de facto

Dos critérios para a apreciação da impugnação da matéria de facto
Na reapreciação dos meios de prova deve-se assegurar o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância -, efetuando-se uma análise crítica das provas produzidas.
É á luz desta ideia que deve ser lido o disposto no artigo 662º nº 1 do Código de Processo Civil, o qual exige que a Relação faça nova apreciação da matéria de facto impugnada.
Como explanado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-10-2012 no processo 649/04.2TBPDL.L1.S1, (sendo este e todos os acórdãos citados sem menção de fonte consultados no portal www.dgsi.pt) “A reapreciação das provas que a lei impõe ao Tribunal da Relação no art. 712.º, n.º 2, do CPC, quando haja impugnação da matéria de facto que haja sido registada, implica que o tribunal de recurso, ponderando as razões de facto expostas pelos recorrentes em confronto com as razões de facto consideradas na decisão, forme a sua prudente convicção que pode coincidir ou não com a convicção do tribunal recorrido (art. 655.º, n.º 1, do CPC).
A reapreciação da prova não se reduz a um controlo formal sobre a forma como o Tribunal de 1.ª instância justificou a sua convicção sobre as provas que livremente apreciou, evidenciada pelos termos em que está elaborada a motivação das respostas sobre a matéria de facto.”
 Assim, visto que vigora também neste tribunal o princípio da livre apreciação da prova, há que mencionar que esta não se confunde com a íntima convicção do julgador.
A mesma impõe uma análise racional e fundamentada dos elementos probatórios produzidos, estribando-se em critérios de razoabilidade e sensatez, recorrendo às regras da experiência e aos parâmetros do homem médio.
A formação da convicção não se funda na certeza absoluta quanto à ocorrência ou não ocorrência de um facto, em regra impossível de alcançar, por ser sempre possível equacionar acontecimento, mesmo que muito improvável, que ponha em causa tal asserção, havendo sempre a possibilidade de duvidar de qualquer facto.
É obvio que “as provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma absoluta certeza acerca dos factos a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida”, como explica  Vaz Serra in Provas – Direito Probatório Material”, in BMJ 110/82 e 171.
Por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz – meio da apreensão e não critério da apreensão – a ideia de que mais do que ser possível (pois não é por haver a possibilidade de um facto ter ocorrido que se segue que ele ocorreu necessariamente) e verosímil (porque podem sempre ocorrer factos inverosímeis), o facto possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso. Donde resulta que se a prova produzida for residual, o tribunal não tem de a aceitar como suficiente ou bastante só porque, por exemplo, nenhuma outra foi produzida e o facto é possível.” cf. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-06-2014 no processo 1040/12.2TBLSD-C.P1.
A convicção do julgador é obtida em concreto, face a toda a prova produzida, com recurso ao bom senso, às regras da experiência, quer da vida real, quer da vida judiciária, à diferente credibilidade de cada elemento de prova, à procura das razões que conduziram à omissão de apresentação de determinados elementos que a parte poderia apresentar com facilidade, a dificuldade na apreciação da prova por declarações e a fragilidade deste meio de prova.
Igualmente importa a “acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da ação.” (mesmo Acórdão).
Isto posto, entremos no mérito da questão.

Concretização
Afirma o Requerente que não há prova de qualquer obstáculo ou oposição de quem quer que seja à utilização do caminho, pelo que não tem suporte probatório a afirmação que “a passagem ocasional pelo referido caminho não é suficiente para se afirmar que tal uso era realizado de forma pacífica (isto é, sem oposição) e à vista de toda a gente (nomeadamente os proprietários do prédio)”.
No entanto, carece de razão. Uma passagem que se faz uma ou duas vezes por ano (e dizemos nós que também ouvimos toda a prova, nem sequer todos os anos), sem o conhecimento daqueles que utilizam o prédio, nem dos seus vizinhos, para uma situação pontual, como efetuar umas obras, não pode ser considerada reiterada e cognoscível proprietários do prédio ou dos vizinhos, nem uma utilização à vista de toda a gente.
Não basta uma eventual convicção dos que utilizaram o caminho   numa ou outra ocasião, mas se a mesma foi o suficientemente reiterada para que se possa entender que foi suportada, sem oposição, pelos proprietários do terreno, o que não se vê que tenha sido o caso.
Ora, toda a descrição de um facto implica a sua qualificação, embora não possa ser exposta, no âmbito da seleção da matéria de facto, a categorias de conteúdo jurídico (que não tenham entrado na linguagem comum, já com um sentido fático).
Otília dos Anjos Silva Carvalho referiu-se a factos com mais de 50 anos e mal precisou os atos de utilização em causa, referindo que passou lá um carro de vacas, não sendo credível que as vacas fossem pastar para a horta. Assim, este tribunal deu pouca credibilidade ao seu depoimento, baseado em factos de outro século que não se vê que tivessem tido qualquer continuidade ou reiteração, durante muitos anos. O mesmo ocorreu com o depoimento de DD. No âmbito da acareação, FF remeteu para o uso efetuado pelo seu sogro, em tempos idos, sem que se perceba durante quanto tempo decorreu tal uso, mas quanto à utilização que a testemunha e sua mulher teriam dado ao caminho quedou-se em menos de cinco nos últimos 11 ou 12 anos, sendo que o prédio veio para a sua propriedade em 2012 ou 2013 na sequência de partilhas.
Do depoimento das testemunhas JJ, KK, LL e HH resultou que os pais da ora Requerente  para acederem ao prédio usavam um caminho que se situa a norte e que passa mesmo ao lado da habitação que era dos mesmos, como salientou a sentença: “O que a nova prova veio infirmar foi que tal seja o caminho que tanto a Requerente como os seus antepossuidores usem para aceder ao prédio encravado …
E era por terem acesso directo entre a sua casa e o prédio rústico que as testemunhas afirmaram peremptoriamente que os antepossuidores do prédio rústico que agora é da Requerente não utilizavam o caminho que se situa ao lado da casa dos Requeridos. …
Simplesmente, a prova testemunhal agora citada foi no sentido de que a Requerente e os seus pais (antepossuidores) nunca ali passaram porque dispunham de outro acesso ao prédio mais directo e cómodo, situado imediatamente atrás da casa daqueles.
Com efeito, não é fácil de conceber que alguém circule por determinado local situado no meio de uma povoação, entre casas habitadas e terrenos cultivados, sem que essa passagem seja do conhecimento de todos quantos ali habitam pelo menos nos últimos 20 anos.
Assim, está provada a ausência de utilização com um mínimo de regularidade desse caminho, resultando da prova que tal ocorre há dezenas de anos.
Não se conseguiu concretizar a frequência e quanto tempo durou alguma utilização que existiu, nos anos que lhe antecederam.
A conclusão que a passagem ocorrida há cerca de 50 anos podia ou não ser esporádica, visto que a prova não foi especifica nesse aspeto, somada à atual (de dezenas de anos) ausência de utilização não esporádica, impede que se considere que ocorreu um uso repetido do caminho, quanto mais cognoscível e sem oposição.
Mantém-se a matéria de facto não provada.

V- Fundamentação de Direito

Não se alterou a matéria de facto provada no sentido pretendido pela Recorrente.
De qualquer forma, porque não é claro se a Recorrente entende que os factos provados seriam suficientes para a procedência da sua pretensão possessória, analisemos o direito e os factos indiciados em busca da exatidão desse parecer.
O artigo 377º do Código de Processo Civil estabelece que "no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência".
Em consonância, o artigo 1279º do Código Civil dispõe que "o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador".
De onde resulta que o requerente da providência cautelar tem que alegar que era possuidor ou detentor com tutela possessória de um determinado bem e que foi dele privado através de um esbulho praticado com violência, o que é seu ónus demonstrar, mas tendo em conta que, atenta a natureza provisória que esta providência concede (artigo 368º nº 1 do Código de Processo Civil) o seu deferimento está subordinado à prova sumária do direito (posse ou detenção com tutela possessória).
Deste modo, os requisitos de que depende a procedência do pedido de restituição provisória da posse são: a posse, o esbulho e a violência.

Da posse ou direito real de gozo como pressuposto desta providência

O artigo 1251º do Código Civil define a posse como o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao direito de propriedade ou de outro direito real. Adquirida a posse, mesmo que não sejam exercidos atos materiais sobre a coisa, a mesma mantém-se enquanto o possuidor tiver a possibilidade de a exercer, como decorre do artigo 1257º n.º 1 do Código Civil.
A posse adquire-se: a) Pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito; b) Pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor; c) Por constituto possessório; d) Por inversão do título da posse, diz-nos o artigo 1263º do Código Civil.
Para distinguir a posse da mera detenção importa ainda que o corpus (os atos matérias públicos e reiterados) sejam acompanhados do elemento subjetivo, o qual é revelado através de factos demonstrativos da intenção e convicção da titularidade do direito real correspondente.
A posse e a aquisição nela fundada tem como pressuposto a publicidade inerente à fruição evidente, à vista de todos (pública e notória) de uma coisa ou direito, por um determinado tempo. Funda-se numa manifesta aparência do direito.  Exercidos os atos materiais à vista de todos pode entender-se a criação de uma presunção de titularidade. Protege-se a posse, porque em regra o possuidor tem o direito que a justifica.
A Recorrente invoca a titularidade de uma servidão de passagem do seu prédio através do prédio dos recorridos e a respetiva posse.
 Constitui servidão predial o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia - cfr. artigo  1543.º do Código Civil.
A servidão, como direito real de gozo sobre coisa alheia, limita o gozo efetivo do proprietário dessa coisa, na medida em que inibe este titular de praticar atos que possam prejudicar o exercício daquele direito, em beneficio do titular do direito de servidão, beneficio que se traduz em utilidades para o dono do prédio dominante, mas que este só pode gozar como tal e por intermédio do seu prédio. 
O direito real de servidão predial pode ser adquirido por usucapião, mediante a demonstração de uma situação de posse que tenha determinadas características (sendo que aqui se invoca a prevista na alínea a) artigo 1263º do Código Civil – a prática reiterada, com publicidade, dos atos correspondentes ao exercício do direito) e perdurado pelo período legalmente necessário (artigo 1547, nº 1, do Código Civil).
A lei exige ainda a existência de sinais visíveis para toda e qualquer pessoa, permanentes e inequívocos para a constituição de uma servidão por usucapião – artigo 1548º nº 1 do Código Civil.
Quanto à extensão e exercício da servidão, determina o artigo 1564º do Código Civil que estas são reguladas pelo título; sendo invocada a usucapião como o modo da sua constituição há que concluir que o conteúdo do direito foi modelado pela forma como a posse foi exercida (tantum praescriptum quantum possessum).
Assim, a Requerente tinha o ónus de demonstrar que exercia a posse correspondente à servidão de passagem, da qual foi esbulhada com violência, pelos Requeridos.
É certo que a atuação não tem que ser ininterrupta ou ter uma periocidade certa, mas tem que existir uma “acumulação significativa dos atos necessários ao surgimento da relação possessória”, que decorram da sua “natureza, intensidade e frequência”, “tendo em conta, designadamente, a especificidade do objeto em questão, o conteúdo do direito real em cujos termos se visa possuir e as particulares circunstâncias do caso sub judice”. cf Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, p. 294 Neste sentido também Penha Gonçalves, Curso de Direitos Reais, 2ª ed, p. 170 que afastando a necessidade de prática contínua dos atos, explana que para “surtirem efeitos aquisitivo da posse, sejam praticados reiteradamente e com publicidade, o que naturalmente só poderá ser definido casuisticamente, face às circunstâncias de casa situação concreta”.
Os atos materiais correspondentes ao exercício de uma servidão predial, in casu, de uma servidão predial de passagem …, não podem corresponder a passagens meramente ocasionais, de significado indefinido, exigindo-se uma utilização pautada por uma certa regularidade, pois só desta forma o proprietário do prédio serviente pode distinguir os atos que poderão vir a ser invocados para sustentar a constituição de um direito real de servidão predial daqueles que não ultrapassam a categoria de atos de mera condescendência justificados designadamente por razões de mera cortesia ou pelas vantagens de se preservar uma boa relação de vizinhança… Na verdade, passagens meramente casuais ou fortuitas, para além de poderem confundir-se com atos de mera condescendência do proprietário do outro prédio justificados pela necessidade de serem preservadas boas relações de vizinhança, não reúnem as características da reiteração que é exigida pelo art. 1263º, al. a), do CC..”   cf o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça no processo 165/19.8T8AVV.G1.S1, de 02/10/2022.

concretização
Demonstrou-se que há pelo menos 50 anos, uma ou duas vezes por ano, a requerente, seus familiares e antecessores, utilizavam um caminho de terra batida perfeitamente delimitado e visível, que recentemente passou a estar pavimentado, com 30 metros de cumprimento e três de largura, a pé, como em carro de bois ou de trator. Salienta-se que apenas se provou um uso que se resumiu a uma ou duas vezes por ano, sem que se percebesse qualquer regularidade no tempo ou no tipo e finalidade dessas esporádicas utilizações.
Há que perceber se estas utilizações, por tão fortuitas e isoladas, embora se alargassem nos anos, podem ser consideradas suficientemente reiteradas para se poder entender que conferem a posse àqueles que ali passaram.
Tiveram lugar uma ou duas vezes por ano, sem que se lhe apurasse uma finalidade ou regularidade (vg para determinada finalidade repetida anualmente).
Ora, a própria lei prevê no âmbito dos deveres do proprietário a passagem forçada momentânea, para reparar algum edifício ou construção ou atos análogos, no artigo 1349º, nº 1 do Código Civil, não se podendo considerar que esse tipo de passagens, por esporádicas e sem qualquer regularidade e logo sem a capacidade de em termos objetivos criar expetativa de impor uma relação especial com a coisa, atribuam posse a quem dela se aproveite.
Da matéria de facto provada nada distingue as utilizações que tiveram lugar do exercício desse direito de passagem momentâneo.
Para que se verifique a posse é necessário um uso repetido, mais ou menos constante, como se um titular do direito fosse, por parte do seu beneficiário, o que não se verifica neste caso.
Desta forma, não se tendo provado a posse justificadora da pretendida restituição, nem qualquer outro direito real de gozo que goze da proteção possessória concedida pelo artigo 377º do Código de Processo Civil, tem, efetivamente, que proceder a oposição e improceder o procedimento.
Ficam, desta forma, prejudicadas todas as demais questões levantadas no recurso.

VI- Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a presente apelação, e, em consequência confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente (artigo 527º nº 1 do Código de Processo Civil).

Guimarães, 17-10-2024

Sandra Melo
José Manuel Flores
Fernanda Proença Fernandes