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RESPONSABILIDADE POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
CIRCULAÇÃO À NOITE
DEVER DE CUIDADO
Sumário
I - O condutor de veículo automóvel que circula durante a noite deve adequar a sua condução à visibilidade da via proporcionada pelas luzes da sua viatura, de modo a poder parar no espaço livre e visível (iluminado) à sua frente. II - Não satisfaz o dever de cuidado devido (atenção ao trânsito e à faixa de rodagem) o condutor que, circulando nas condições referidas no ponto anterior, sem outras condicionantes relevantes, numa reta, nunca vê uma viatura que circula à sua frente sem luzes de presença, antes de nela embater.
Texto Integral
Processo 3037/21.2T8PNF.P1 – Apelação
Tribunal a quo Juízo Central Cível de Penafiel – Juiz 4
Recorrente(s) AA
Recorrido(a/s) A..., S.A.
Sumário
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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório:
Identificação das partes e indicação do objeto do litígio
AA intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra A..., S.A., pedindo que a ré seja “condenada a pagar ao autor a quantia de €140.580,00, acrescida de juros legais de mora (…), bem como o que se liquidar em ampliação do pedido ou execução de sentença relativamente ao previsível agravamento das suas sequelas”.
Para tanto, alegou que foi interveniente num acidente de viação, que se ficou a dever a culpa exclusiva do condutor segurado da ré, pelo que esta é responsável pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhe advieram do aludido acidente.
A recorrida apresentou contestação, impugnando a responsabilidade da condutora do veículo segurado e os danos alegados.
Após realização da audiência final, o tribunal a quo decidiu:
Pelo exposto, de harmonia com as disposições legais citadas, julgo a presente ação totalmente improcedente, e consequentemente, absolvo a ré A..., SA. do pedido.
Inconformado, o autor apelou desta decisão, concluindo, no essencial:
3. A resposta ponto 8. da matéria de facto deverá, pelos motivos já explanados, ser corrigida e alterada no sentido de se eliminar a expressão segundo a qual o veículo ..-CP-.. circulava animado de velocidade não superior a 50 km/hora;
4. Por seu turno, com base no depoimento da testemunha BB, conjugado com os demais depoimentos testemunhais, a matéria dos pontos 10. e 11. dos factos provados deverá ser alterada no sentido de se eliminarem as referências à falta de iluminação do trator e de se dar como provado que o mesmo possuía luzes vermelhas de presença na sua retaguarda. (…)
10. Impõe-se, pois, concluir que a génese do acidente é imputável, em exclusivo, ao condutor do veículo seguro pela recorrida, visto conduzir distraída e alheada do trânsito e da condução, animada de velocidade excessiva, a qual, fosse ela qual fosse, a impediu de parar ou desviar-se no espaço livre e visível à sua frente.
11. Caso se entenda que não deverá ser introduzida qualquer alteração na factualidade apurada a douta sentença continuará a merecer reparos e críticas. (…)
17. Porque assim é, a condutora do veículo seguro pela recorrida violou o disposto no art. 24.º, n.º 1 do CE, visto que não adequou a sua velocidade por forma a poder parar no espaço livre e visível de que dispunha.
18. Será adequado fixar na proporção de 75% para a condutora do veículo seguro pela recorrida e 25% para o recorrente a culpa com que cada um contribuiu para a produção do acidente. (…)
A apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida.
II – Questões a decidir:
Face às conclusões das alegações de recurso da apelante (que – exceto quanto a questões de conhecimento oficioso – delimitam o objeto e âmbito do recurso, nos termos do disposto nos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 e n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil), são as seguintes as questões suscitadas no recurso interposto:
– impugnação dos pontos 8, 10 e 11 da decisão respeitante à matéria de facto;
– responsabilidade causal pela ocorrência do sinistro;
– avaliação dos danos sofridos pelo autor;
– responsabilidade pelas custas.
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III – Fundamentação:
A apreciação do mérito do recurso implica que se tenha em consideração a decisão proferida pelo tribunal a quo sobre a matéria de facto provada, que se passa a transcrever.
Factos provados
1. No dia 12 de novembro de 2018, pelas 17h55, ocorreu um embate na EN ..., ao km 35,300, na área da freguesia ..., concelho de Penafiel, conforme doc. n.º 1 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. 2. Nesses dia, hora e local, o autor conduzia o trator agrícola de matrícula HR-..-.. e seguia pela referida EN ..., no sentido ... – .... 3. A referida via, naquele local, descreve uma reta, atento o sobredito sentido de marcha e o seu piso, em alcatrão, estava em ‘estado regular’ de conservação. 4. Ainda nesse local, tratando-se da localidade de Croca, a velocidade máxima permitida era de 50 km/hora. 5. Seguia o autor animado de velocidade não superior a 40 km/hora, pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha. 6. Nessa ocasião, transitava também pela EN ... e no mesmo sentido que levava o autor, ou seja, de ... para ..., pela hemi-faixa de rodagem direita, o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Fiat, modelo ..., de matrícula ..-CP-... 7. Veículo este que pertencia a CC e era conduzido, na ocasião, por DD. 8. O CP levava os médios acesos e circulava a velocidade não superior a 50 Km/h. 9. Na altura do acidente já estava escuro e no local, numa extensão de 100 metros, a iluminação pública não estava acesa e a funcionar. 10. O veículo do autor era um trator Kubota, modelo ..., de 1978, a diesel, com 56.763 km, de matrícula HR-..-.. e na sua traseira não tinha qualquer tipo de luzes de circulação, refletores ou sinalização. 11. Aquele trator e seu atrelado/gamela, no local, por não terem aquelas ditas luzes, não eram visíveis, tendo a condutora do CP embatido com a sua frente na traseira da gamela/atrelado e trator. 12. O embate deu-se na referida hemi-faixa de rodagem direita, não conseguindo a condutora do CP, quando se apercebeu da presença do trator, evitar o mesmo ou desviar-se para a hemi-faixa esquerda, porque, por ela, circulava um veículo em sentido contrário. 13. No local do embate apenas ficou, como vestígio do embate, o vidro da óptica do lado direito do veículo Fiat ..., tendo o trator se imobilizado na berma do lado direito, atento o seu sentido de marcha e o Fiat imobilizou-se na mesma hemi-faixa de rodagem direita, por onde antes circulava. 14. A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ..-CP-.. achava-se transferida para a A..., S.A., ora R., através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., válido e em vigor na data do acidente. 15. Em consequência direta do acidente, o trator que o autor conduzia foi projectado para a frente e acabou por capotar e o autor foi atirado ao solo e acabou por ficar tombado debaixo do trator. 16. O autor foi assistido no local do acidente pelos serviços do INEM, que lhe prestaram os primeiros socorros e o transportaram, imobilizado em plano duro e com colar cervical, ao Hospital ..., em Penafiel. 17. Deu entrada nos serviços de urgência do mencionado hospital, politraumatizado e apresentando queixas de dores intensas na coxa e anca esquerdas, múltiplas feridas na cabeça e traumatismo facial, conforme doc. n.º 2 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. 18. Aí realizou RX dos ossos da perna esquerda e TAC cerebral, maxilofacial e cervical e no RX foi detectada fractura proximal do fémur esquerdo, fratura peri-protésica da anca esquerda B2 Vancouver e o TAC facial revelou hematoma periorbitário e da face esquerda e, ainda, pansinusopatia. 19. As feridas na cabeça foram desinfectadas e suturadas e o autor ficou internado na aludida unidade hospitalar, foi submetido a intervenção cirúrgica, sob anestesia geral, em que foi realizada artroplastia, com colocação de prótese total da anca esquerda e permaneceu internado no Hospital ... num total de 12 dias. 20. Teve alta para o domicílio, com indicação para passar a ser seguido na consulta externa de ortopedia. 21. Em fevereiro de 2019 iniciou tratamentos de fisioterapia, também no Hospital ..., num total de cerca de 25 sessões. 22. Em razão do traumatismo facial, o autor sofreu danos em diversas peças dentárias e recorreu à “B...”, em ..., onde foi submetido a tratamentos da especialidade de medicina dentária, conforme docs. n.ºs 3 a 11 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. 23. Teve de extrair e/ou tratar vários dentes, foi necessário colocar vários implantes e passou a usar prótese dentária, designadamente, extraiu os dentes 1.1, 1.2, 1.3,1.5, 2.1, 2.3, 2.4, 2.5, 2.6, 3.1, 3.2, 3.3, 3.4, 4.1, 4.2 e 4.3 e andou em tratamentos até 25/11/2019, data em que as lesões sofridas pelo autor atingiram a consolidação médico-legal e a fase sequelar. 24. O autor, em resultado das lesões que sofreu no acidente, ficou a padecer das seguintes sequelas: Crânio: cicatriz na pálpebra direita, com 3 cm; cicatriz na pálpebra esquerda, com 1 cm e cicatriz hipertrófica no lábio superior, com 1 cm; Face: provável perda das seguintes peças dentárias na sequência do trauma oral: 11, 12, 13, 15, 21, 23, 24, 25, 26, 31, 32, 33, 34, 41, 42 e 43; Membro inferior esquerdo: cicatriz cirúrgica com 30 cm na face lateral da coxa; amiotrofia de 4 cm na coxa (o diâmetro a 15 cm do polo superior da rótula esquerda é de 36 cm, sendo que o diâmetro na contra-lateral é de 40 cm); sequelas de revisão de artroplastia total da anca esquerda após fratura peri-protésica, com défice de mobilidade, com flexão a 90º e franca diminuição da abdução/adução e rotações; atrofia da perna de cerca de 2 cm (28 cm vs 30 cm); dismetria aparente de membros (1 cm). 25. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 25/11/2019. O Período de Défice Funcional Temporário Total é fixável num período de 30 dias; o Período de Défice Funcional Temporário Parcial é fixável num período 349 dias. O Quantum Doloris é fixável no grau 5/7. O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 13 pontos, implicando esforços acrescidos para a actividade agrícola. O Dano Estético Permanente é fixável no grau 3/7. A Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer é fixável no grau 2/7. E a Repercussão permanente na Atividade Sexual não foi valorizada. 26. O autor claudica e tem dificuldade em andar, correr e saltar, em subir e descer escadas e em percorrer pisos inclinados, irregulares ou desnivelados, não consegue pôr-se em bicos de pés, nem colocar-se de joelhos ou de cócoras ou estar muito tempo de pé. 27. Sente dores na anca esquerda, as quais se agravam com os esforços e com as mudanças de tempo. 28. O autor nasceu em 01/03/1951, conforme doc. n.º 12 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. 29. Na altura do acidente, o autor encontrava-se na situação de reformado, mas exercia actividade agrícola em terrenos de cultivo de sua propriedade e para terceiros. 30. O autor cavava, amanhava e cultivava a terra, semeava e plantava batatas, milho e hortaliças, fazia as colheitas, tratava das árvores de fruto, das oliveiras e das vinhas, sulfatando, enxertando, vindimando e vendia parte dos produtos agrícolas que obtinha, tais como vinho e cebolas, 31. e destinava outros produtos ao consumo do seu próprio agregado familiar, evitando os gastos correspondentes à sua aquisição em mercearias e supermercados, o que no seu conjunto equivaleria a um valor pecuniário médio mensal de pelo menos € 250,00. 32. Durante o período de ITA, o autor teve de recorrer a serviços de terceira pessoa, designadamente da sua esposa, para o ajudar na higiene pessoal e nas atividades diárias, o que foi causa de transtorno e perturbação. 33. Anteriormente ao acidente, o autor era uma pessoa activa, embora já fosse portador de artroplastia total da anca esquerda desde o ano de 2014. 34. Com o acidente, o trator sofreu danos, sendo que o seu valor comercial seria de cerca de € 5.000,00. 35. A reparação dos danos sofridos pelo trator, de acordo com vistoria levada a cabo pelos serviços técnicos e de peritagem da própria R. era viável e importava em € 4.627,00, conforme doc. n.º 13 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. 36. O autor não dispunha de meios económicos que lhe permitissem custear a reparação e a R. recusou fazê-lo, pelo que vendeu o ‘salvado’, pelo valor de € 500,00. 37. Com o acidente despareceu um aparelho auditivo que o autor usava, no valor de cerca de 2.000,00€. 38. Em despesas médicas e medicamentosas (incluindo os tratamentos dentários), o autor gastou a quantia global de € 4.680,00, conforme docs. n.ºs 3 a 11 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
a) Começa o apelante por impugnar a decisão respeitante ao ponto 8 dos factos dados por provados pelo tribunal a quo: “O CP [Fiat] levava os médios acesos e circulava a velocidade não superior a 50 Km/h”. O tribunal a quo motivou a sua convicção, no que respeita a este facto, nos seguintes termos:
“A testemunha DD (…), condutora do veículo CP que embateu no trator do autor, depôs com credibilidade e referiu que conduzia a velocidade não superior a 50 Km/h (porque antes tinha um semáforo de controlo de velocidade), que já era de noite e que não havia luz pública, nem viu o trator (‘não me consegui aperceber do trator antes de bater’), pois não se recorda de ver luzes ou refletores na traseira do trator, nem no ‘atrelado’, mas que ela própria levava os médios acesos (…).
Contrapõe o recorrente a seguinte ordem de considerações:
O Tribunal a quo, neste ponto, estribou-se apenas no depoimento da testemunha DD. // (…) Vejamos a passagens mais relevantes do depoimento em causa: (…)
Advogado do A.: Olhe D. DD, a Sra. levava os faróis acesos, ligados ou desligados?
Testemunha: Acesos. Ligados.
Advogado do A.: Em que posição? Mínimos, médios ou máximos?
Testemunha: Médios.
Advogado do A.: E a Sra. diz que só deu conta do trator pelo barulho?
Testemunha: Com o embate e pelo barulho.
(08:22)
Advogado do A.: A Sra. nem viu no que é que bateu.
Testemunha: Não. (…)
Em suma, esse depoimento, desacompanhado de qualquer outro elemento de prova, designadamente testemunhal, que o apoiasse e corroborasse, torna-se manifestamente insuficiente para fundamentar a prova quanto à velocidade a que seguia a viatura segurada pela recorrida.
O depoimento invocado pelo apelante não impõe decisão diferente (art. 640.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil), dado que o seu conteúdo é no sentido dado por provado. No que toca à circulação com médios acesos, resulta ela, ainda, indiciariamente do facto de já ser noite. Mal se compreenderia que, já sendo noite e não haver iluminação pública, a condutora circulasse (ou conseguisse circular) às escuras.
Quanto à velocidade que animava a viatura, podemos, ainda, ter em consideração os danos sofridos na traseira do trator (e da alfaia nela acoplada), os quais se revelaram manifestamente reduzidos, como também atestou a testemunha invocada pelo próprio apelante, a propósito da impugnação dos pontos 10 e 11. Não pode, pois, proceder, neste ponto, a impugnação da matéria de facto.
b) Prossegue o apelante por impugnar a decisão respeitante ao ponto 10 dos factos dados por provados pelo tribunal a quo: “O veículo do autor era um trator Kubota, modelo ..., de 1978, a diesel, com 56.763 km, de matrícula HR-..-.. e na sua traseira não tinha qualquer tipo de luzes de circulação, refletores ou sinalização”. O tribunal a quo motivou a sua convicção, no que respeita a este facto, nos seguintes termos:
“[C]onsideraram-se para fundamentação da matéria de facto, também, os documentos juntos aos autos, nomeadamente (…) participação do acidente de viação e respetivo aditamento e croquis, (…) (para prova (…) que no local não ficaram vestígios de luzes do trator, designadamente de qualquer iluminação traseira, que era inexistente, referindo-se o agente da GNR, como posteriormente explicou em audiência de julgamento, quer às luzes de presença, quer a farolins traseiros, sendo certo que em relação a estes nem sequer existiam os suportes necessários para a sua colocação) (…).
“Os documentos juntos em audiência de julgamento de 24/05/2023 e os que foram juntos a 01/06/2023, na sequência do determinado na audiência de julgamento de 31/05/2023, foram importantes para se confirmar que o trator do autor não tinha luz traseira, nem sequer luz de presença, o que em conjugação com a prova testemunhal foi possível apurar. O autor refere muito en passant a existência de luzes, assim como as testemunhas que indicou e foram inquiridas na segunda audiência de julgamento, mas sem grande consistência (como a mulher do autor, que confundiu as cores e a localização) e sem conseguirem afirmar sequer que as tinha no dia do acidente ou que estariam ligadas (sendo certo que, desde já se adianta, que tendo o acidente ocorrido às 17H55 […], no dia 12 de Novembro de 2018, o habitual é já ser de noite nesta altura do ano [cfr. www.dadosmundiais.com], e não existindo luz pública a funcionar, como foi referido por algumas testemunhas e consta do auto de participação do acidente de viação da GNR, seria essencial ter luzes e levá-las ligadas).
Conforme se explicará de seguida, o agente da GNR não apurou a existência no local de quaisquer vestígios de luzes do trator e logo no dia a seguir também pôde constatar que o trator não tinha farolins traseiros (podendo muitas vezes funcionar como pisca, refletores e stop/iluminação), nem dispositivos para os ter (embora constem fios e suporte para refletores [o que é diferente dos farolins], mas que também não existiam as próprias luzes de presença ou refletores)”. (…)
“A testemunha comum, EE, agente da GNR (…), confirmou o auto de participação de acidente de viação por si subscrito, referindo que no local não havia luz pública a funcionar, que à hora indicada para o acidente já estaria escuro e que a luz do trator para auxiliar nos trabalhos não pode ir ligada, porque provoca encandeamento, e que não havia sinais de luz de sinalização traseira no trator, nem vestígios no local do acidente de ter sido partida. A testemunha viu o auto de participação e outras fotografias juntas aos autos referentes ao trator e explicou o que queria dizer com o ‘não ter luzes na traseira, nem os dispositivos adequados para as ter’, confirmando que seria dessa forma que estava o trator (posteriormente a testemunha BB, perito averiguador, confirmou também o estado do trator, como o viu, após o acidente, que também não possuía luz traseira, embora considerasse que aqueles suportes eram suficientes para indicar que já tinham existido refletores e refere um ‘arranque recente’, sem contudo se poder dizer que, efetivamente, as luzes existiam no dia e hora do acidente).
A testemunha confirmou, também, o auto de participação do acidente, onde se refere designadamente que: ‘No local do acidente não foram encontrados vidros nem outro tipo de material que estivessem relacionados ou fizessem parte das luzes da retaguarda do veículo trator. No dia seguinte o participante deslocou-se ao local para onde foi transportado o veículo trator, tendo constatado que o mesmo não possuía sequer os acessórios para a montagem da sinalização/iluminação traseira’”.
“A testemunha FF (…), que tem um estabelecimento perto do local do acidente, confirmou que estava a anoitecer e que tinha ultrapassado o trator (que tinha visto e entrar na via, de lado, onde podem ser percetíveis em parte as luzes da frente), não podendo confirmar, no entanto, se tinha luzes na parte traseira (o que credibiliza a versão da outra condutora do CP, que refere a inexistência de luzes traseiras, pois caso contrário aquela testemunha não teria dúvidas em confirmar a sua existência)”.
“A testemunha da R. BB (…), perito averiguador, tendo atestado também que o trator não tinha nem luzes, nem refletores, nem encaixes para colocar luzes na parte traseira (devendo entender-se como tal os faróis, que normalmente até trazem três tipos de luz: ‘pisca’, luz traseira ou stop e luz de presença). Referiu que a luz branca, foco traseiro, só pode ser usado para laborar e que na parte de cima do trator teria vestígios de acessórios para colocar refletores, um piloto de cada lado, mas que as luzes propriamente ditas eram inexistentes, desconhecendo se existiam as lâmpadas necessárias no dia do acidente, pois mesmo que haja vestígios de ‘arranque’ recentes, não é certo dizer-se o que havia antes e quando deixou de existir e porquê (além de que as ‘luzes piloto’ – luz fraca vermelha à retaguarda – não se confundem com o farol ou farolim traseiro, completamente inexistentes e sem acessórios para a sua existência, como já havia sido referido pelo agente da GNR, que logo no dia a seguir confirmou tal circunstância no trator, enquanto a testemunha só foi averiguar essa situação uns dias depois do acidente)”.
“Do conjunto da prova produzida, podemos verificar que apenas o autor e alguns familiares afirmaram a existência de faróis na traseira, mas tal matéria não veio a ser confirmada por quem quer que seja (e nem mesmo os próprios confirmaram que no dia do acidente existia e/ou estava ligada qualquer luz), pois mesmo que se considere que em tempos pudesse ter existido essa luz, o certo é que do depoimento isento do agente da GNR, que foi ao local no dia e no dia a seguir foi novamente verificar o trator, resulta que não existiam quaisquer vestígios no chão de ter havido faróis traseiros no trator e de terem partido por ocorrência do acidente (o farol que se vê nas fotografias é um dispositivo para trabalho, que não pode estar ligado na via pública)”.
“A testemunha GG (…) [a]pesar de referir (de forma quase ‘monossilábica’) que o trator chegou a ter um farolim de luz de presença para a traseira, o certo é que não pôde confirmar que existissem ou estivessem a funcionar no dia do acidente quaisquer luzes traseiras, uma vez que não esta estava no local, nem tal circunstância se verificou compatível com o depoimento da testemunha DD (condutora do outro veículo, que referiu que nem o atrelado nem o trator levavam luzes, ‘não me consegui aperceber do trator antes de bater’), nem com o depoimento isento do agente da GNR, que logo no local não viu quaisquer luzes no chão e logo a seguir verificou novamente o trator que também não tinha luzes traseiras (sendo estas circunstâncias compatíveis com as declarações da condutora do CP, consentâneas com a normalidade dos factos, declarando logo a mesma que o trator não tinha luzes e sendo certo que analisado o local pelo agente da GNR, que também melhor analisou o próprio trator logo no dia imediato ao acidente [para que não subsistissem dúvidas quanto ao alegado, uma vez que era uma matéria relevante, considerando que era de noite e não existia luz pública a funcionar no local], não há sinais de luzes, nem partidas no chão, nem existentes no próprio trator)”.
Contrapõe o recorrente a seguinte ordem de considerações:
A razão da nossa discordância reside no que extrai do depoimento da testemunha BB, conjugado com os depoimentos das demais testemunhas que foram ouvidas sobre esta matéria (iluminação do trator). (…) Vejamos a passagens mais relevantes do depoimento em causa: (…)
Testemunha: A única coisa que tinha e suponho que tenha sido danificada no acidente era na parte superior dos guarda-lamas uns pilotos que têm uma luz que normalmente indica a presença do veículo. (…)
Testemunha: Como expliquei há pouco, na parte superior do guarda-lamas havia a existência de dois suportes de luz piloto de cada lado. (…)
Advogado do A.: Poderiam ser luzes de presença? (…)
Testemunha: Sim. Tinha nos guarda-lamas invólucros de plástico das luzes de presença. (…)
Testemunha: Esta aqui é uma base triangular, mais ou menos deste tamanho. Esta borracha tem uma tampa vermelha à retaguarda e uma tampa incolor à frente. A lâmpada encaixa aqui neste orifício e faz o piloto. Dá uma luz fraca vermelha à retaguarda e uma luz branca para a frente. Se me der licença, aqui está mais em pormenor. (…)
Testemunha: Em cada guarda-lama tinha uma luz de presença. Este aqui nota-se que estava totalmente esmagado por causa do capotamento.
Juíza: Como sabe se era por causa do capotamento? Testemunha: Porque os fios estavam escarnados de fresco. Isto está muito fresco e seria uma coincidência.
Juíza: Consegue dizer que esta parte escarnada suportava a lâmpada? Testemunha: Sim. O propósito disso é suportar a lâmpada. Leva o casquilho e leva a lâmpada e o suporte aborrachado tem uma tampa que dá luz vermelha à retaguarda e transparente ou branca à frente. (…)
Afigura-se-nos claro que o depoimento invocado pelo apelante não impõe decisão diferente (art. 640.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil). Por um lado, de tal depoimento resulta que a testemunha não viu quaisquer luzes de presença do trator. Limitou-se a especular sobre a sua existência, a partir da visualização de uns apoios e da existência de fios “escarnados de fresco”. A extrapolação é abusiva, não se explicando como as luzes dos dois lados foram arrancadas durante o sinistro – note-se que, de acordo com os registos fotográficos juntos aos autos pela testemunha (e-mail enviado em 01-06-2023, ref. 8828985), só existem fios descarnados de um dos lados do trator, tendo o outro ponto de luz instalado o casquilho onde enrosca a base da lâmpada.
Pode, no limite, admitir-se o esmagamento da luz do lado da viatura para o qual capotou, mas deixando sempre, em qualquer caso, restos da lâmpada (a base metálica). Nas fotografias juntas, apenas num dos lados da viatura vemos um apoio de plástico contendo o casquilho onde enrosca a base da lâmpada (com sinais de ferrugem no interior), não contendo inserida a base metálica da lâmpada (com restos de vidro partido agarrados), como seria normal.
Por outro lado, não é qualquer luz que se qualifica como uma luz de presença, sendo impossível afirmar que tipo de luz pode, em dado momento, ter estado instalada nos referidos apoios. Aliás, a testemunha refere inicialmente tratarem-se de “luzes piloto”. Note-se que, de acordo com as fotografias juntas, pelo menos um dos apoios das luzes referidas pelo apelante encontra-se obstruído pela colocação, mais à retaguarda, de um foco de trabalho.
Nestas fotografias podem ver-se amolgadelas e raspagens nos pontos onde se encontram os apoios, com diferentes níveis de ferrugem da chapa, a indiciar outros embates anteriores – aliás, a tampa de um destes apoios está presa com um arame enferrujado. Não pode, pois, proceder, neste ponto, a impugnação da matéria de facto. c) Por último, o apelante impugna a decisão respeitante ao ponto 11 dos factos dados por provados pelo tribunal a quo: “Aquele trator e seu atrelado/gamela, no local, por não terem aquelas ditas luzes, não eram visíveis, tendo a condutora do CP [Fiat] embatido com a sua frente na traseira da gamela/atrelado e trator”. Indica o apelante, no corpo das alegações, a seguinte redação para o ponto 11. dos factos provados: “Aquele tractor e seu atrelado/gamela, no local, por terem aquelas luzes de presença de cor vermelha, eram visíveis, tendo a condutora do CP embatido com a sua frente na traseira da gamela/atrelado e tractor”.
Quer o tribunal a quo, quer o apelante não oferecem aqui melhor motivação das suas posições, relativamente à apresentada no que respeita ao ponto 10. dos factos provados.
A decisão do tribunal a quo não pode, efetivamente, ser mantida. Um trator agrícola possui massa, volume e opacidade. Não é, obviamente, invisível. Sendo iluminado e não se interpondo nenhum objeto, é, necessariamente, visível – designadamente, quando é iluminado pelas luzes de cruzamento (médios) de uma viatura automóvel. Acresce que a luminosidade ambiente não seria, ainda, de total ausência de luz – o acidente dá-se cerca de meia hora após o ocaso –, não sendo data de lua nova – cfr. https://nextfullmoon.org/pt/lua-fase-qualquer-data.
É, pois, impossível que a condutora da viatura segurada na ré não conseguisse ter visto o trator, circulando a não mais de 50 km/h, com as luzes de cruzamento ligadas (que permitem avistar a faixa de rodagem, em toda a sua largura, a 30 metros) – sendo que a “via, naquele local, descreve uma reta” –, se circulava atenta ao trânsito e à estrada que percorria. Das duas uma: ou a referida condutora estava distraída; ou, forçosamente, viu o trator, ao menos quando os faróis da sua viatura o iluminaram – tertium non datur.
Pelo exposto, deve o ponto 11 da fundamentação de facto ser alterado, passando a dispor: 11. Aquele trator e seu atrelado/gamela, no local, por não terem aquelas ditas luzes, não eram visíveis, para quem circulasse num veículo à sua retaguarda, para além do limite da luz irradiada pelo dispositivo de iluminação frontal deste veículo, tendo a condutora do CP [Fiat], por não ter inicialmente – isto é, assim que o mesmo ficou ao alcance da iluminação proveniente das luzes de cruzamento ligadas do CP [Fiat] –, e durante alguns instantes, atentado na presença do trator e atrelado sobre a via, acabado por embater com a frente da sua viatura na traseira da gamela/atrelado do trator, nos termos referidos no n.º 12.”
Análise dos factos e aplicação da lei
A decisão do recurso pressupõe a apreciação das seguintes questões de direito: 1. Contributo causal para o sinistro 2. Avaliação dos danos 2.1. Danos patrimoniais emergentes 2.2. Dano biológico (dimensão patrimonial) 2.2.1. Perda da capacidade de ganho e de produção 2.2.2. Compensação por encargos acrescidos 2.3. Rendimentos perdidos 2.3.1. Incapacidade temporária absoluta 2.3.2. Incapacidade temporária parcial 2.4. Despesas médicas, medicamentosas, protéticas e/ou ajudas técnicas futuras 2.5. Despesas com a assistência prestada pelo cônjuge 2.6. Danos não patrimoniais 3. Conclusão 4. Responsabilidade pelas custas
1. Contributo causal para o sinistro
Insurge-se o autor contra a decisão do tribunal recorrido no sentido de considerar que o demandante teve um contributo causal de 100% para a ocorrência do sinistro. Com razão, mesmo à luz dos factos já dados por provados pelo tribunal a quo. E esta razão reforça-se com a alteração, acima decidida, do ponto 11 da decisão de facto.
Deixando de lado o acessório, e entrando diretamente no cerne do litígio, resulta dos factos provados que o acidente dos autos é fisicamente causado porque a condutora do automóvel Fiat embateu na traseira do trator conduzido pelo autor, e porque o condutor do trator circulava sem as luzes de presença acionadas. Sabemos também que condutora do Fiat circulava a não mais do que 50 km/h, com as luzes de cruzamento da sua viatura acesas, tendo embatido no trator sem se aperceber da sua presença.
Podemos, pois, concluir que a condutora do Fiat não circulava atenta às condições do trânsito e da via à sua frente, designadamente após a luz dos médios irradiar o trator, tornando-o, consequentemente visível. Importa aqui desfazer um equívoco presente na decisão impugnada.
Pode ler-se na sentença:
[A luz das luzes de cruzamento permitem] avistar, para o solo, no máximo até 30 metros e, conjugando esse facto com a distância de reação (13,88m), mais a distância de travagem (25m), numa condução a 50 Km/h, temos o percurso de 38,88 m, o que significa que a condutora do CP não teria tempo para evitar o embate, não conseguindo parar antes, pois ao avistar o trator a 30 metros, acionando logo o travão, não conseguiria parar a tempo […], o que tudo credibiliza o seu depoimento).
Ainda que se aceite acriticamente que a radiação das luzes médias permite iluminar a via para a frente do veículo numa distância até 30 metros, desaparecendo depois abruptamente, nada mais permitindo vislumbrar (nem mesmo com menor nitidez), existe na conclusão do tribunal a quo um vício de raciocínio, pois resulta dos factos provados que os dois veículos circulavam no mesmo sentido. À velocidade de 50 km/h (ou 13,89 m/s), o Fiat demora 2,16 segundos a percorrer 30 metros. No entanto, à velocidade de 40 km/h (ou 11,11 m/s), por exemplo, o trator percorre 28,89 metros no mesmo lapso de tempo. Ou seja, se a condutora do Fiat estivesse atenta e reagisse a 30 metros de distância do trator, disporia de 58,89 metros para imobilizar a sua viatura (30 metros + 28,89 metros) nos referidos 2,16 segundos – ou de 48 metros (se o trator circulasse a 30 km/h ou 8,33 m/s), ou de 42 metros (se o trator circulasse a 20 km/h ou 5,55 m/s), por exemplo. E isto já sem considerar a progressiva desaceleração provocada pelo acionamento dos travões da sua viatura.
Resta acrescentar que os valores (sempre contingentes) da distância de paragem indicados pelo tribunal recorrido são extraídos de um manual que, se não estamos em erro, teve a sua última edição nos anos 80 do século passado, já só se encontrando em alfarrabistas, não correspondendo tais valores aos (mais reduzidos) atualmente considerados pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT, I.P.) – cfr. https://www.imt-ip.pt/sites/IMTT/Portugues/EnsinoConducao/ManuaisEnsinoConducao/Documents/Fichas/FT_DistanciasdeSeguranca.pdf –, sendo certo que os dispositivos de travagem das viaturas automóveis evoluíram bastante nestes últimos 40 anos.
No que toca ao comportamento do autor, importa sublinhar que este conduzia um trator agrícola, isto é, um “veículo com motor de propulsão, de dois ou mais eixos, cuja função principal reside na potência de tração, especialmente concebido para ser utilizado com reboques, alfaias ou outras máquinas destinadas a utilização agrícola ou florestal” (art. 108.º, n.º 1, do Cód. Estrada, na redação em vigor na data do sinistro). Os tratores agrícolas são considerados veículos de marcha lenta (art. 40.º, n.º 1, do Cód. da Estada), razão pela qual estão, excecionalmente, dispensados de ter instaladas luzes de travagem (art. 6.º da Portaria n.º 851/94, de 22 de setembro) – embora as possam possuir: cfr. a al. e) do n.º 1 do art. 13.º do Decreto-Lei n.º 291/2000, de 14 de novembro –, estando, em razão desta sua natureza, proibidos de circular nas autoestradas (art. 72.º, n.º 1, do Cód. Estrada). Pela mesma razão, devem possuir “avisadores luminosos especiais” (arts. 23.º, n.º 4, e 59.º, n.º 2, al. b), do Cód. Estrada).
Entre o anoitecer e o amanhecer, os condutores de tratores agrícolas devem utilizar luzes de cruzamento, dirigidas para a frente do veículo (arts. 60.º, n.º 1, al. b), e 61.º, n.º 1, al. b), do Cód. Estrada). À retaguarda (e à frente: “mínimos”), durante o período noturno, os veículos, incluindo tratores agrícolas, devem manter acesas as luzes de presença, assinalando a sua circulação (art. 60.º, n.º 2, al. a), do Cód. Estrada).
Os dispositivos de iluminação de sinalização luminosa e os refletores que devem equipar os veículos, incluindo tratores agrícolas, são fixados em regulamento (art. 59.º, n.º 1, do Cód. da Estada). Das diferentes luzes que, em geral, devem equipar os veículos de circulação terrestre (presença, estrada, nevoeiro, cruzamento, travagem, mudança de direção, matrícula e marcha atrás), os tratores agrícolas não têm de possuir algumas delas, mas entre estas não se contam as luzes de presença. Estas luzes têm obrigatoriamente de equipar tais veículos – cfr. o art. 3.º, no confronto com os arts. 4.º e 6.º, 8.º e 10.º, da Portaria n.º 851/94, de 22 de setembro.
O comportamento da condutora do Fiat e o comportamento do autor encerram perigos evitáveis, que se concretizaram no caso dos autos, sendo, pois, censuráveis. São, ainda, comportamentos ilícitos, no contexto do dever geral de prevenção do perigo e de cuidado com o património e com a pessoa de terceiros (art. 483.º e segs. do Cód. Civil), quer porque a primeira estava obrigada a adequar a sua velocidade às suas capacidades de atenção e reação, quer porque o autor estava obrigado a circular com as luzes de presença traseiras acionadas − cfr. os arts. 11.º, n.º 2, 24.º, 60.º e 61.º do Cód. Estrada.
Pelo exposto, o acidente não se encontra suficientemente caracterizado nos factos provados como resultando da culpa exclusiva do autor, nem como resultando da responsabilidade causal exclusiva deste. As características do sinistro justificam uma distribuição da responsabilidade causal na proporção de 50% para cada um dos condutores.
2. Avaliação dos danos
O autor formulou o pedido de ressarcimento dos seguintes danos:
Dano
Avaliação
proventos não obtidos durante o período de ITA
5250,00
desvalorização de 25 pontos
30 000,00
dano biológico de natureza patrimonial
20 000,00
consultas de ortopedia e medicina dentária, e medicação analgésica
5000,00
dores, tratamentos, cirúrgica, incómodos e privações, internamento, privação de convívio, transtorno e perturbação por depender de terceira pessoa, dificuldade de caminhar, correr ou saltar, apreensão e angústia sobre o futuro, dependência de medicação
50 000,00
dano estético
15 000,00
destruição do trator
5000,00
aparelho auditivo
2500,00
despesas médicas e medicamentosas
4680,00
apoio e assistência prestados pela esposa
2100,00
transportes para tratamentos
700,00
refeições
350,00
Total
140 580,00
Vejamos se estes pedidos encontram sustentação nos factos vertidos na fundamentação de facto deste aresto.
2.1. Danos patrimoniais emergentes
Dos factos provados, emerge com clareza a verificação dos seguintes danos patrimoniais emergentes:
Dano
Avaliação
destruição do trator (n.os 34 a 36 dos factos provados)
4500,00
aparelho auditivo (n.º 37 dos factos provados)
2000,00
despesas médicas e medicamentosas (n.º 38. dos factos provados)
4680,00
Total
11 180,00
Não foram apurados factos que sustentem as seguintes indemnizações:
Dano
Avaliação
transportes para tratamentos
700,00
refeições
350,00
Total
1 050,00
Tem, pois, o autor direito a ser ressarcido pelo dano sofrido avaliado em € 11 180,00, até ao limite do contributo causal da condutora da viatura segurada na ré – isto é, 50%.
2.2. Dano biológico (dimensão patrimonial)
2.2.1. Perda da capacidade de ganho e de produção
O autor reclama o pagamento de uma indemnização pelo dano biológico permanente. Liquida esta indemnização (no valor de € 750,00 mensais) com base naquele que, supostamente, seria o seu rendimento normal nos anos vindouros, se o sinistro não tivesse tido lugar. Estamos, pois, perante um dano futuro.
Ainda que não resulte provada, em dado caso, qualquer específica perda definitiva da capacidade de ganho, o esforço acrescido – geral, logo, não afastado no trabalho − tem uma repercussão económica no âmbito laboral. Por exemplo, na aquisição de calçado mais confortável, na utilização de uma cadeira ergonómica ou na necessidade de condução uma viatura com uma suspensão melhor ou com uma direção mais suave. O dano biológico constitui uma capitis deminutio relativamente a toda a dimensão humana do lesado, logo também em relação a uma das dimensões mais relevantes de qualquer pessoa adulta: a atividade laboral.
Ora, o autor ficou definitivamente afetado na sua integridade física e psíquica, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo familiares e sociais, num grau 13 (25 dos factos provados), numa escala até 100. Tanto basta para que se deva concluir pela perda da capacidade de ganho. Recorde-se que resultou provado que, na data do sinistro, para além de prestar serviços a terceiros, o autor agricultava as suas terras, assim poupando cerca de € 250,00 mensais na aquisição de produtos alimentares (29. a 31. dos factos provados).
Tem, pois, o autor direito a uma indemnização pelo dano biológico (patrimonial) sofrido. No entanto, por um lado, é perfeitamente especulativo fazer-se equivaler o esforço acrescido a uma incapacidade parcial permanente para o trabalho, decalcando-se a indemnização correspondente da indemnização devida pela perda efetiva da capacidade de obtenção de rendimentos. A liquidação desta indemnização não pode ser simplisticamente decalcada do cálculo da indemnização devida pela perda da capacidade de ganho. Aliás, em muitos casos, cumular-se-á com estoutra indemnização.
Por outro lado, haverá que ter em atenção o valor da compensação a arbitrar pelos incómodos resultantes de esforços suplementares, como danos (que são) não patrimoniais, considerando que essa compensação visa sobretudo permitir ao lesado obter meios para suavizar ou eliminar o sofrimento. A não se atentar nesta realidade, estar-se-ia, então, perante uma duplicação de vias ressarcitórias: numa via, compensação do sofrimento que será sentido no futuro; noutra via, entrega de uma indemnização para adquirir os meios a que o sofrimento não ocorra. A compensação agora arbitrada destina-se, pois, apenas a compensar o efetivo handicap do(a) autor(a) no fortemente concorrencial mercado de trabalho – isto é, no mercado dos “melhores trabalhos”, de acordo com as suas habilitações, que o(a) autor(a) tinha a legítima expetativa de integrar.
Tratando-se, como se trata, de um dano futuro, justifica-se e impõe-se o recurso à equidade (art. 566.°, n.º 3, do Cód. Civil), informada por critérios de verosimilhança e de probabilidade, considerando as balizas dadas por provadas – como as habilitações da lesada, a natureza da atividade laboral que pode exercer, a remuneração normal dessa atividade (e o nível de tributação fiscal), a sua idade (e período normal de vida ativa) e o grau de dano biológico fixado (sobre o recurso à equidade, cfr. o Ac. do STJ de 19-09-2019 (2706/17.6T8BRG.G1.S1)).
Na posse destes critérios, é ajustado arbitrar ao(à) autor(a) uma indemnização de € 15 000,00 pelo dano biológico sofrido (dimensão patrimonial).
2.2.2. Compensação por encargos acrescidos
Pede o autor uma indemnização pelas “consequências nefastas, diretas ou indiretas, ao nível das atividades pessoais, tornando a vida diária do autor mais penosa e difícil”, no valor da € 20 000,00. Ora, por um lado, esta penosidade já será considerada na fixação dos danos não patrimoniais. Por outro lado, as repercussões patrimoniais decorrentes da afetação física dadas por provadas são as que já foram consideradas na indemnização pela perda de capacidade de ganho.
Em suma, não pode proceder, nesta parte, o pedido formulado
2.3. Rendimentos perdidos
2.3.1. Incapacidade temporária absoluta
Pede o autor uma indemnização pela remuneração perdida no período em que esteve incapacitado para o trabalho (30 dias, conforme consta do n.º 25. dos factos provados). À data, o demandante efetuava trabalhos agrícolas para terceiros e agricultava as suas terras – no que poupava € 250,00 na aquisição de produtos alimentares (29. a 31. dos factos provados). Considerando os limites dados por provados, e recorrendo parcialmente à equidade (art. 566.°, n.º 3, do Cód. Civil), conclui-se que o valor do dano em análise deve ser fixado em € 500,00 – avaliando-se, pois, em € 250,00 mensais, com recurso à equidade, o rendimento perdido referido nos n.os 29. e 30. dos factos provados.
2.3.2. Incapacidade temporária parcial
O autor, trabalhador autónomo, sofreu um período de repercussão temporária na atividade profissional parcial de 349 dias. Significa isto que, entre o 30.º dia após o acidente (100% de incapacidade) e consolidação das lesões (25 de novembro de 2019) – ver n.º 25 dos factos provados –, o autor foi progressivamente recuperando a sua capacidade de ganho. Considerando a variação positiva da capacidade de ganho e da capacidade de produção, não se poderá considerar que o autor sofreu uma perda superior a 50%, em média, no período de repercussão temporária na atividade profissional parcial (art. 566.º, n.º 3, do Cód. Civil).
O valor da perda parcial de rendimentos é de € 2 908,33 − 500,00/30 x 349 x 0,5. É este o valor do seu dano.
Em geral, para tratamento (ou suavização das repercussões) do dano biológico resultante do sinistro, pode o lesado vir a necessitar vitaliciamente de ajudas medicamentosas, tratamentos médicos regulares, designadamente em consulta de especialidade, de ajudas técnicas, designadamente no seu domicílio (instalação de uma cabine de banho, delimitada por um rebordo baixo, e pela colocação de pegas de apoio de mãos na casa de banho) ou de próteses.
Dispõe o n.º 2 do art. 564.º do Cód. Civil que, “na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis”. É o que ocorre com as despesas referidas.
No entanto, no caso dos autos, sobre estes danos, nada resultou provado. Não pode, pois, proceder este pedido.
2.5. Despesas com a assistência prestada pelo cônjuge
Pede o autor uma indemnização por despesas suportadas com o auxílio prestado por terceira pessoa. O autor não afirma que suportou a remuneração de outrem, mas sim que foi auxiliado pelo seu cônjuge. Ora, para além de uma tal indemnização, por regra, não caber ao autor (art. 495.º do Cód. Civil), não resulta dos factos provados que o seu património (ou o da sua esposa) tenha sido negativamente afetado para que este auxílio fosse prestado.
Em suma, não pode este pedido proceder.
2.6. Danos não patrimoniais
Malgrado se poder afirmar a existência de um dano não patrimonial − como a dor imediatamente emergente do sinistro e dos tratamentos, a dor resultante da realização de esforços, a privação de atividades de lazer ou, no caso, a perda de dentes, a dismetria dos membros inferiores ou as cicatrizes sequelares −, de acordo com o art. 496.º, n.º 1, do Cód. Civ., só são indemnizáveis os danos não patrimoniais que, “pela sua gravidade, mereçam tutela do direito”. Ou seja, a lei tem em consideração, não apenas a dignidade do direito violado, mas também o nível da agressão ou, melhor, a dimensão do dano. Resta, pois, determinar se, no caso sub judice, a agressão ao direito de personalidade do(a) autor(a) merece tutela jurídica.
Em face de tudo o que ficou provado, conclui-se que o autor sofreu um dano e que este foi grave. Porém, dentro desta gravidade (intensidade), o montante da indemnização deve refletir a relativamente moderada extensão do mesmo em face da potencial dimensão que a agressão a um direito de personalidade pode atingir.
Não é possível pôr um preço à dor; menos ainda é possível avaliar o mero comprometimento de capacidades motoras sem repercussões patrimoniais. A este respeito, devemos ter em conta o critério legal prescrito para a liquidação deste dano: o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e as demais circunstâncias do caso designadamente, os motivos do agente, o comportamento do lesado e os restantes comportamentos do lesante. Com a utilização deste critério, pretende-se, no entanto, que a indemnização cumpra uma função compensatória e não, atenta a natureza do dano, ressarcitória em sentido próprio cfr. o Ac. do TRL de 2 de dezembro de 1993, CJ, Ano XVIII, t. V, p. 172. Por outro lado, na fixação do montante devido, dever-se-ão ter em conta os valores normalmente praticados no ressarcimento deste tipo de danos; isto é, há que ter uma perspetiva de proporcionalidade ou de justiça relativa cfr. o art. 8.º, n.º 3, do CC, bem como o Ac. do TRL de 8 de abril de 1992, CJ, Ano XVII, t. II, p. 183.
Do exposto se extrai, atento o que ficou provado, ser ajustada a compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelo autor no valor de € 50 000,00 − quantia calculada (atualizada) por referência à presente data.
Resta acrescentar que neste valor já se inclui, porque de uma afetação não patrimonial se trata, o dano estético cujo ressarcimento é também reclamado pelo autor.
3. Conclusão
O autor é titular dos seguintes créditos indemnizatórios, limitados a 50% (contributo causal da condutora do veículo segurado):
Danos patrimoniais
Avaliação
proventos não obtidos durante o período de incapacidade
3 408,33
desvalorização de 25 pontos
15 000,00
destruição do trator
4500,00
aparelho auditivo
2000,00
despesas médicas e medicamentosas
4680,00
Total
29 588,33
Danos não patrimoniais
Avaliação
danos não patrimoniais (v.g. dano biológico na dimensão não patrimonial)
50 000,00
Pelo atraso no pagamento da indemnização são devidos juros moratórios – art. 805.º, n.º 3, do Código Civil. Os juros, salvo disposição especial em contrário, são contabilizados à taxa que em cada momento vigorar por força da portaria prevista no art. 559.º do Cód. Civ., a partir da data de citação – danos patrimoniais − ou da data da liquidação atualizadora – danos não patrimoniais −, e até ao efetivo pagamento.
4. Responsabilidade pelas custas
A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Reg. Cus. Proc.).
A responsabilidade pelas custas (da causa e da apelação) cabe a ambas as partes, na proporção do decaimento (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).
IV. Dispositivo
Pelo exposto, na parcial procedência da apelação, acorda-se em revogar a decisão recorrida, decidindo-se julgar a ação parcialmente provada e procedente, condenando-se a ré, A..., S.A., a pagar a autor, AA:
a) a quantia de € 14 794,17 (catorze mil setecentos e noventa e quatro euros e dezassete cêntimos), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora contados desde a data de citação e até efetivo pagamento, sendo devidos à taxa legal que em cada momento vigorar, através da portaria prevista no art. 559.º do Cód. Civil.
b) a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros contados desde a data da presente decisão (atualizadora) e até efetivo pagamento, sendo os juros devidos à taxa legal que em cada momento vigorar, através da portaria prevista no art. 559.º do Cód. Civil.
No mais, vai a ré absolvida dos pedidos.
Custas a cargo de ambas as partes, na proporção do decaimento, sem prejuízo de apoio judiciário.
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Notifique.
Porto, 26/9/2024
Ana Luísa Loureiro
Manuela Machado
João Venade