I - O mecanismo processual adequado a sindicar a omissão de consideração em sede de sentença de factos que o recorrente repute de essenciais à decisão da causa, será a invocação da nulidade da mesma sentença por falta de fundamentação de facto, como previsto no art. 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal, em conjugação com o nº2 do art. 374º do mesmo código.
II - Para efeitos de preenchimento da tipicidade do crime de difamação previsto no art. 180º/1/2 do Cód. Penal, a falsidade dos factos imputados pelo agente ao terceiro a quem se dirige não consubstancia elemento típico criminal ; porém não é indiferente para a graduação da gravidade da actuação e da culpa do agente dos factos típicos a efectiva demonstração de que os factos imputados ou juízos emitidos, além de ofensivos da honra e consideração do destinatário, são objectiva e materialmente falsos.
III - No caso do crime de ofensa a pessoa colectiva, decorre da respectiva previsão, plasmada no nº1 do art. 187º do Cód. Penal, que a falsidade dos factos imputados consubstancia desde logo elemento típico objectivo do crime em causa.
IV - Se na Sentença se omite qualquer decisão, e correspondente pronúncia como estando ou não provados, sobre os factos acusados relativos à inveracidade das imputações formuladas no âmbito de crime de ofensa a pessoa colectiva, a Sentença é nula nos termos expressos no art. 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal.
V - Não é qualquer espécie de juízo de “prognose” ou “antecipação” sobre a ilicitude ou não da conduta do agente dos factos, que tutela a dispensa de pronúncia sobre os elementos de facto típicos da mesma ou sobre aqueles que se possam revelar essenciais na graduação de uma putativa culpa, pois que o tribunal em sede de julgamento deve, antes de mais, decidir sobre (toda) a matéria de facto que se mostre relevante para o caso e sem qualquer tributo àquela que seja a prognose sobre o resultado em termos de qualificação e enquadramento jurídico–penal sobre o objecto dos autos ; e só depois de fixada aquela (matéria de facto), deve partir para a análise desta (apreciação jurídica).
(da responsabilidade do Relator)
Referência: 18437423
Tribunal de origem: Juízo de Competência Genérica de Castelo de Paiva – Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO
No âmbito do processo comum (tribunal singular) nº 105/20.1T9CPV que corre termos no Juízo de Competência Genérica de Castelo de Paiva, em 22/01/2024 foi proferida Sentença, cujo dispositivo é do seguinte teor:
« DECISÃO
De harmonia com o expendido, decide-se:
- absolver o arguido AA da prática do crime de difamação com publicidade e calúnia de que vinha acusado de cometer contra o assistente BB;
- absolver o arguido AA da prática do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, com publicidade e calúnia, de que vinha acusado contra a assistente «A..., Lda.»;
- julgar totalmente improcedentes os pedidos de indemnização cível deduzidos pelos assistentes/demandantes «A..., Lda.» e BB contra o arguido/demandado AA, absolvendo este dos mesmos. »
Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 21/02/2024, o Ministério Público, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
1.º A estrutura acusatória do processo penal e o princípio da acusação em que ele assenta traz implicada a ideia de que é acusação que define o objeto do processo e, por isso, os limites da atividade cognitória e decisória do tribunal, em termos tais que cabe ao julgador conhecer e julgar na sua totalidade o objeto que lhe é submetido a julgamento.
2.º É nula, por omissão de pronúncia, a sentença que não dá expressão ao cumprimento do poder-dever de o tribunal apreciar todas as questões que lhe são submetidas, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal.
3.º A factualidade:
i. O referido pelo arguido na publicação por ele feita (e que vem elencada em 4) dos factos provados), designadamente que “desde que a nova administração patronal tomou conta da fábrica que as trabalhadoras trabalham sob um intenso controlo de um sistema de câmaras interno, em género de big brother. Para além dos baixos salários praticados e da perda de antiguidades, as idas à casa de banho são controladas por uma luz vermelha que, quando dispara, alerta as operárias que o seu tempo para necessidades fisiológicas naturais terminou e que têm de voltar à produção. Os horários de descanso não são cumpridos integralmente. Mas a coisa atinge proporções aterradoras quando se começa a registar a perda de saúde, física e psicológica, das operárias. As baixas “normais” e psiquiátricas começam aumentar ao ponto de a própria médica da Extensão de Saúde ... afirmar que “algo não está certo” para tantas operárias da mesma fábrica requererem baixas. Inclusive regista-se o aborto espontâneo de uma operária, que coincide com o último período de maior repressão na fábrica, fruto do aparecimento de uma nova chefia-encarregada proveniente dos conglomerados industriais do calçado de .... Ao que tudo indica, essa capataz da burguesia já em ... executava as mesmas práticas”, não corresponde à verdade; e
ii. o arguido sabia da falsidade das imputações que fez aos assistentes, descrita na acusação particular deduzida pelos assistentes BB e A..., Lda. em que se imputa ao arguido a prática, em concurso efetivo, de:
– um crime de difamação, com publicidade e calúnia, previsto e punido pelos artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal, contra o assistente BB; e
– um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, com publicidade e calúnia, previsto e punido pelo artigo 187.º, n.º 1 e n.º 2, al. a), contra a assistente A..., Lda.,
mostra-se relevante para
– (também) fundamentar a conduta ilícita e reprovável do arguido; e
– para servir de concreto fator a atender em sede de escolha e determinação da medida da pena.
4.º Não tendo o Tribunal a quo considerado tal factualidade como provada ou não provada, violou o seu poder-dever de pronunciar-se sobre todas as matérias relevantes para a decisão e, por isso, a sentença será nula nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal;
SEM PRESCINDIR
5.º Existe contradição insanável da fundamentação, tipificada no artigo 410.º, n.º 2, al. b), se o juiz na sentença:
– considera como provados factos de onde ressalta que o arguido teve uma conduta que preencheu os elementos do tipo objetivo e boa parte dos relativos ao tipo subjetivo, tem uma inserção social normal, não padece de qualquer patologia ou anomalia psíquico-social e, além disso, até já foi condenado pela prática de ilícitos penais similares aos que lhe são imputados;
e, ainda assim,
– considera também como não provado que o arguido agiu bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
6.º Existe ainda contradição insanável da fundamentação, tipificado no artigo 410.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal, se o juiz na sentença
– reconhece que
i. o arguido “não desconhecia (nem podia desconhecer)” que algumas das expressões que utilizou poderiam lesar a honra e consideração dos assistentes, ademais porque tal possibilidade teria de ser naturalmente prevista pelo homem médio, com as características do arguido (que inclusivamente já foi condenado por 3 vezes pela prática de ilícitos da mesma natureza dos que lhe são imputados nos autos)”; e
ii. resulta manifesto que o arguido se conformou com o resultado de lesivo da honra e consideração dos assistentes; e, ainda assim,
– considera igualmente como não provado que o arguido tinha consciência da ilicitude da sua conduta;
7.º Existe contradição insanável da fundamentação, tipificada no artigo 410.º, n.º 2, al. b), se o juiz na sentença, mais precisamente na fundamentação da decisão relativa à matéria de facto:
– considera que “julgou-se não demonstrado que o arguido tenha tido intenção de lesar a honra e consideração dos assistentes ao escrever o texto em causa”; e, contraditoriamente
– refere igualmente que “o arguido não desconhecia (nem podia desconhecer) que algumas das expressões que fez constar do referido texto pudessem ter tal resultado, uma vez que tal possibilidade teria de ser naturalmente prevista pelo homem médio, com as características do arguido (que inclusivamente já foi condenado por 3 vezes pela prática de ilícitos da mesma natureza dos que lhe são imputados nos autos).”
8.º Considerando o Tribunal como provados os factos constitutivos da materialidade objetiva dos crimes de difamação e de ofensa a pessoa coletiva, os relativos à imputabilidade do arguido e, ainda, os referentes ao tipo subjetivo concretizadores dos elementos cognitivos e volitivos do dolo, existe erro notório na apreciação da prova tipificado no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, se daí não retira ilações quanto ao elemento emocional do dolo e considera como não provado que o arguido agiu bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei
9.º Tendo o Tribunal, no texto da sentença e a propósito da fundamentação da decisão da matéria de facto, referido que “o arguido declarou haver pretendido publicar o texto em causa na rede social (agindo deliberadamente), tendo vontade de o fazer (voluntariamente), sem que tenha sido constrangido a tal (livremente) e em plena consciência” e “o arguido não desconhecia (nem podia desconhecer) que algumas das expressões que fez constar do referido texto pudessem ter tal resultado, uma vez que tal possibilidade teria de ser naturalmente prevista pelo homem médio, com as características do arguido (que inclusivamente já foi condenado por 3 vezes pela prática de ilícitos da mesma natureza dos que lhe são imputados nos autos)”, existe erro notório na apreciação da prova tipificado no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, se considera como não provado que o arguido agiu bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei;
10.º A valoração da prova produzida e disponível ao tribunal a quo, muito especialmente o confronto e análise conjunta das próprias declarações do arguido (nos termos em que é considerada pelo tribunal na fundamentação da decisão da matéria de facto) com o seu certificado do registo criminal, à luz do critério plasmado no artigo 127.º do Código de Processo Penal (as regras da experiência) impõe que se considere como provado que o arguido agiu bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
11.º Tendo o arguido
– imputado aos assistentes, sem qualquer causa de exclusão da ilicitude e sem reportar que tais factos pudessem ser verdadeiros ou verídicos, métodos de repressão sobre trabalhadores, referindo que desde que a nova administração patronal tomou conta da fábrica que as trabalhadoras trabalham sob um intenso controlo de um sistema de câmaras interno, em género de big brother. Para além dos baixos salários praticados e da perda de antiguidades, as idas à casa de banho são controladas por uma luz vermelha que, quando dispara, alerta as operárias que o seu tempo para necessidades fisiológicas naturais terminou e que têm de voltar à produção. Os horários de descanso não são cumpridos integralmente. Mas a coisa atinge proporções aterradoras quando se começa a registar a perda de saúde, física e psicológica, das operárias. As baixas “normais” e psiquiátricas começam aumentar ao ponto de a própria médica da Extensão de Saúde ... afirmar que “algo não está certo” para tantas operárias da mesma fábrica requererem baixas. Inclusive regista-se o aborto espontâneo de uma operária, que coincide com o último período de maior repressão na fábrica, fruto do aparecimento de uma nova chefia-encarregada proveniente dos conglomerados industriais do calçado de .... Ao que tudo indica, essa capataz da burguesia já em ... executava as mesmas práticas”;
– tendo-o feito numa publicação na rede social Facebook; e
– pretendendo e conseguindo que a sua publicação fosse lida e vista pelo maior número de pessoas possível, agindo de forma deliberada, voluntária, livre e consciente, ciente que algumas das expressões constantes do escrito publicado eram aptas a ofender a honra, bom nome e reputação do assistente e a imagem, confiança e prestígio da sociedade assistente, conformando-se com a produção de tal resultado e que arguido agiu bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei,
praticou, em concurso efetivo e como autor imediato,
– um crime de difamação, com publicidade e calúnia, previsto e punido pelos artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal, contra o assistente BB; e
– um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, com publicidade e calúnia, previsto e punido pelo artigo 187.º, n.º 1 e n.º 2, al. a), contra a assistente A..., Lda..
12.º Aquelas imputações não constituem o simples exercício da liberdade de expressão, enquadradas no âmbito de luta sindical, política e ideológica;
SEM PRESCINDIR
13.º Mesmo não se dando como provado que o arguido atuou sabendo que a sua conduta era ilícita, então estaríamos perante um erro sobre a consciência da ilicitude que, atendendo ao teor das imputações feitas e considerando ter o arguido já sofrido várias condenações por crimes de ofensa a pessoa coletiva e de difamação agravada, é censurável e, por isso, continua a sua conduta a merecer censura penal por força do artigo 17.º, n.º 1, do Código Penal.
14.º Considerando os factos provados (e os que se impõem que se considerem privados), deve o arguido, no entender do Ministério Público, ser condenado pela prática, em concurso efetivo e como autor imediato, de
– um crime de difamação, com publicidade e calúnia, previsto e punido pelos artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal, contra o assistente BB, na pena de 2 meses de prisão; e
– um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, com publicidade e calúnia, previsto e punido pelo artigo 187.º, n.º 1 e n.º 2, al. a), contra a assistente A..., Lda., na pena de 3 meses de prisão,
Condenando-o, em cúmulo destas, na pena única de 3 meses e 15 dias de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, condicionando tal suspensão à entrega, até ao final do período da suspensão, da quantia de 150€ à Associação ...”.
Também inconformados com aquela Sentença, dela recorreram, em 14/02/2024, os assistentes BB e “A..., Lda.”, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
A) O Tribunal a quo involuntariamente omitiu, não valorando no que concerne ao julgamento da matéria de facto, as conclusões apresentadas pelos órgãos de inspeção / fiscalizações do Estado em matéria laboral cuja produção foi requerida pelo arguido, e que melhor se encontram nos autos com entradas em juízo a 17, 20 e 25.10.22 e produzidas em audiência 26-10 e 02-11-22, renovadas a 11.12.2023;
B) A matéria de facto, designadamente, a vertida na alínea a) e l) dos factos considerados não provados deveria ter sido julgada como provada pois é a própria Sentença que admite que o arguido não tinha base factual para as imputações e juízos de valor que proferiu em relação aos assistentes referindo a pág. 32: “Note-se que, contrariamente ao aparentemente pretendido pelo arguido (apesar de não alegado concretamente na contestação), não logrou este demonstrar que os factos imputados aos assistentes na publicação fossem verdadeiros ou sequer que tivesse motivos para crer que o fossem.”;
C) Para corroborar tal prova obteve-se o depoimento de CC perentória quanto à inexistência camaras de videovigilância internas que permitissem o controlo dos trabalhadores a minutos 05:40 a 05:51 e a minutos 05:50 a 06:01. “(…) Não há (…), 11:30 a 11:56, 14:30 a 14:51 e 24:40 a 24:52; a testemunha DD a minutos 5:47 a 6:45, 5:00 a 5:38, 7:00 a 7:05, 7:18 a 8:07, 08:20 a 09:05, 09:06 a 09:17, 09:50 a 10:00, 10:00 a 10:03, 20:37 a 20:59, 22:18 a 22:29 e 33:20 a 33:26 corroboram tais circunstâncias quanto à ausência de controlo quer por CCTV quer através de luz na casa de banho, quer a perda de antiguidades quer as incapacidades para o trabalho e psiquiátricas com exponencial aumento e o aborto, assim como a testemunha EE de minutos 03:00 a 03:13 e o Assistente a minutos 01:44 a 01:55 e 43.36 a 44:00;
D) A amputação da valoração da prova produzida pela A.C.T. conjugada com o depoimento da trabalhadora EE a minutos 04:30 a 04:48 e a minutos 22:44 a 23:10 produz a nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do art.º 379 do C.P.P. dada a omissão de pronúncia de douta Sentença sobre esta questão e o impacto que da mesma resulta para a consideração como provada da matéria inserida na alínea a) dos factos considerados não provados;
E) Elegendo, em abstrato e genericamente, depoimentos testemunhais e as declarações do arguido e assistente para sustentar a decisão - vide pontos 9 e 10 dos factos provados e alíneas a), d),k) e l) dos factos não provados – creem os Assistentes que a ausência de densidade da fórmula apresentada não cumpre a garantia inerente ao dever de fundamentação de douta Sentença;
F) Tal vício, a não extração de toda a factualidade relevante para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa – mormente no que diz respeito às concretas circunstâncias que circundaram os factos - terá aptidão, pela sua não apreciação nos termos dos arts. 124º, 339 n.º4, 368 n.º 2 e 374 n.º 2 do CPP art.º 374 n.º 2, para gerar o vicio do art.º 379 n.º 1, a) do C.P.P.;
G) Para julgar provado os factos vertidos nas alíneas b), c), d), f), j) - discriminados na matéria de facto dada como não provada e interligados entre si – o Tribunal a quo deveria ter lançado mão do teor da confissão quanto à produção da publicação – 7º ao 13º parágrafos da publicação em si, e ainda a seguinte prova produzida: - O depoimento da testemunha amigo e fornecedor do grupo B..., FF de minutos 04:35 a 04:44, 04:45 a 05:00, 09:40 a 10:04, 14:40 a 14:56, 15:29 a 16:10, 23:40 a 24:11:“(…) Aquilo que estavam acusar o sr. EE era mentira mas essa é a leitura que eu fiz, que as pessoas estavam a fazer. A leitura que os outros fizeram não foi essa por os outros diziam: “Afinal!” Foi esse termo que eu utilizei e que pode não ser o mais adequado – “afinal a pessoa que pensávamos que era muito boa, já não é!” – Esses, se calhar, já não achavam que era tão fora de credível (…)”.24:40 a 25:12: E a A... ? A Empresa de calçado ? “(…) Posso responder particularmente ? Eu acho que sim. A empresa, a ser assim, eu se quisesse um funcionário ela já não vinha (…)” 25:40 a 26:10, a testemunha e trabalhadora da Assistente, EE, a minutos 19:00 a 19:04, 19:27 a 20:25 e GG, a minutos 04:55 a 05:13, 07:30 a 07:51 e o Assistente a minutos 08:18 a 08:58, 09:54 a 10:07, 22:00 a 22:26, 23:49 a 24:05, 24:15 a 24:39, 24:39 a 25:01, 26:00 a 26:58, 28:00 a 28:05, 37:15 a 37:47:Exemplos de fornecedores que tenham abordado quanto a esta questão ? Respondeu a minutos 37:15 a 37:47 “(…) Sim, a robolet que é quem faz aqui a assistência às máquinas de costura… Fornecedores de palmilhas, que é HH que é o individuo que me vende as palmilhas desde a primeira hora, HH… C..., o II. (…)”; 39:20 a 39:41, 39:52 a 40:15, 40:21 a 40:30, 40:31 a 40:35, 48:56 a 49:17, 1:05:05 a 1:05:28, 1:05:40 a 1:05:43, 1:06:50 a 1:06:55;
H) Os Recorrentes e Assistentes, demonstrando o impacto interior e exterior das imputações, impugnam o julgamento da matéria de facto efetuado pelo Tribunal a quo considerando a ocorrência de erro de julgamento quer no que respeita ao preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do crime, quer no que respeita ao pedido de indemnização civil, e, nessa medida, devia ter sido dado como provado, aditando-se - à matéria de facto - em conformidade - (tendo em conta o alegado de 18 a 25 neste recurso):
1. A Recorrente não possuía um sistema de câmaras internos, em género de big brother que lhe permitisse controlar os trabalhadores quer na área produtiva quer na área de lazer/casas de banho;
2. O Recorrente não deu qualquer ordem instrução/ordem, nem era praticado na Recorrente, ou em qualquer empresa do Grupo B..., o controlo das idas à casa de banho por uma luz vermelha que, disparando, alerta as operárias que o seu tempo para as necessidades fisiológicas naturais terminou coartando-lhes, assim, o respetivo direito;
3. O Recorrente não deu qualquer instrução/ordem, nem era praticado uma metodologia de trabalho sob intenso controlo e repressão onde, na sequência de tal metodologia/repressão, se registasse a perda de saúde física e psicológica das trabalhadoras em proporções tais que inclusive, se registasse, um aborto espontâneo;
4. Toda a atividade laboral que exige esforço físico potencia o aparecimento de patologias músculo-esqueléticas conforme referido pela testemunha: - Dr.ª JJ a minutos:“08:12 a 08:18: “(…) Queixas osteoar_culares da parte do foro de trabalho fabril isso é transversal a todas as empresas (…);
5. O arguido agiu livre e conscientemente com a principal intenção de usar factos concretos e também insinuações que são profundamente prejudicais à reputação dos Assistentes e ao bom nome da assistente no mercado, gerando contactos e pedidos de informações de fornecedores quer por amigos deste, tanto mais que se trata de uma empresa pertencente a um grupo de referência no mercado português;
6. O arguido tinha plena consciência do carater ofensivo das exposições e expressões utilizadas e das insinuações implícitas tendo, as mesmas – vertidas nos arts. 7, 8, 9 e 10º da Acusação - perdido contacto com o que as motivou atingindo a dignidade pessoal e consideração social dos Assistentes e sendo aptas a gerar dúvidas sobre a pessoa do Recorrente – suas qualidades humanas e de gestão – e os métodos de trabalho daquele e da sociedade A..., Lda., enquanto local de trabalho condigno e seguro - junto da comunidade laboral do calçado;
7. As expressões publicadas pelo arguido e consignadas nos arts. 7, 8, 9 e 10º da Acusação jamais podem ser consideradas lícitas a coberto do alegado exercício do direito de expressão sob pena de violação do princípio da dignidade da pessoa humana – princípio regulatório primário da nossa ordem jurídica – pois, para o cidadão médio, as expressões: - “contornos macabros…, trabalhadores explorados…, intenso controlo de um sistema de câmaras internos, em género big brother…, perda da antiguidade, idas à casa de banho controladas por uma luz vermelha que, quando dispara, alerta as operárias que o seu tempo para necessidades fisiológicas naturais terminou e que têm de voltar à produção…, proporções aterradoras… quando se começa a registar perda de saúde física e psicológica das operárias… e… inclusive regista-se o aborto espontâneo de uma operária, que coincide com o último período de maior repressão na fábrica…” são ofensivas pois não se baseiam em factos provados como verdadeiros e acabam por ser pejorativos, pelo que são ofensivos da honra e consideração dos Assistentes;
8. O arguido, quis escrever o que escreveu, e tinha a obrigação de conhecer a falsidade dos factos que imputou aos assistentes;
9. Os artigos em causa tiveram consequências devastadoras para o Assistente e o teor dos mesmos ganhou dimensão intermunicipal designadamente em ... e ...;
10. O teor da publicação em causa enraizou-se em muitos cidadãos que conheciam o Assistente, o seu Grupo, designadamente a Assistente A...;
I) Existiu um equívoco aquando do julgamento das alíneas k) e l) dos factos não provados quando comparados com a leitura da publicação, as declarações do arguido acerca da falta de intencionalidade em ofender os Recorrentes e a ligação afetiva daquele a trabalhadoras da Recorrente;
J) Com o devido respeito por melhor opinião, o arguido teve a intenção de ofender os Recorrentes, como o conseguiu, agindo, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei, devendo ser aditado ao julgamento da matéria de facto dada como provada o vertido na conclusão H) deste recurso - Quer a testemunha DD a minutos 14:00 14:09 quer CC a minutos 25:45 a 26:22 confirmam que mesmo colaboradora, referida agora pelo arguido, apenas chegou a estar na empresa durante meio ano (se chegou a tal) desmentindo a tese do arguido a minutos 35:30 a 35:50: “(…) Foi mais um desabafo a juntar a outros desabafos de meses anteriores e de anos (…)”.
K) O arguido, mesmo sabendo da sua conduta reprovável, imputa por um lado de forma direta e voluntária e, por outro lado, com outras expressões da mesma publicação, de forma flanqueada, um conjunto de factos e/ou insinuações inverídicas que são suscetíveis de colocar em causa o bom nome e honra daquele que é conhecido por todos como o patrão do grupo B... Lda. e da aqui Assistente que produz calçado na freguesia ... começando de forma sensacionalista: “(…) A mulher trabalhadora e os acontecimentos macabros vindos da fábrica de calçado da .... (…)”. negrito nosso;
- “(…) Andava eu pelo Porto e já lá chegavam relatos acerca dos métodos de repressão que patrão e chefias aplicavam às trabalhadoras desta “nova fábrica”….. relatos aumentaram, com contornos macabros… trabalhadores explorados (…)”. Negrito nosso
- “(…) Desde que a nova administração patronal tomou conta da fábrica que as trabalhadoras trabalham sob um intenso controlo de um sistema de câmaras interno, em género de big brother. Para além dos baixos salários praticados e da perda de antiguidades, as idas à casa de banho são controladas por uma luz vermelha que, quando dispara, alerta as operárias que o seu tempo para necessidades fisiológicas naturais terminou e que têm de voltar à produção (…). negrito nosso
- “(…) Os horários de descanso não são cumpridos integralmente. Mas a coisa atinge proporções aterradoras quando se começa a registar a perda de saúde, física e psicológica, das operárias. As baixas “normais” e psiquiátricas começam aumenta (…)”. Negrito nosso
- “(…) Inclusive regista-se o aborto espontâneo de uma operária, que coincide com o último período de maior repressão na fábrica, fruto do aparecimento de uma nova chefia-encarregada proveniente dos conglomerados industriais do calçado de .... Ao que tudo indica, essa capataz da burguesia já em ... executava as mesmas práticas. (…)”
l) Tais expressões não tiveram substrato factual – conforme decidido em douta Sentença pags. 32 “…Note-se que, contrariamente ao aparentemente pretendido pelo arguido (apesar de não alegado concretamente na contestação), não logrou este demonstrar que os factos imputados aos assistentes na publicação fossem verdadeiros ou sequer que tivesse motivos para crer que o fossem… “e indo ao encontro do propósito introdutoriamente criado refere o arguido para denegrir o Recorrente – enquanto homem - e a sociedade Assistente – na sua atividade;
M) Estas expressões do Arguido, que conhecia a proibição e punição legal da sua conduta, presentes do doc. 6 da Participação (para onde remete a prova documental junta com a acusação) e que aqui se dão novamente por reproduzidas, são realizadas com o único objetivo de rebaixar e denegrir o Assistente com tais calúnias – enquanto líder máximo da estrutura hierárquica e dinamizador do investimento – de forma pública bem como o seu bom nome, assim como, a imagem, confiança e prestígio da Assistente sociedade conforme se alcança: “(…) . Após o sucedido, o patronato abandonou a fábrica e deu-se lugar a um novo investimento conjunto entre o grupo B...,… Desde que a nova administração patronal tomou conta da fábrica que as trabalhadoras trabalham sob um intenso controlo de um sistema de câmaras interno, em género de big brother (…)” negrito e sublinhado nosso
N) Após a publicação do arguido na sua página do Facebook – para além das visualizações – de imediato foi objeto de vários comentários de outras pessoas com acesso à referida rede social, não sendo o acesso restringido, porque o arguido quis e conseguiu.
O) O arguido, com tempo e através do seu computador, fez insinuações ofensivas da dignidade, honra e consideração quanto à postura profissional e imagem do gestor de facto e aqui Recorrente enquanto ser humano e último responsável pela política de desenvolvimento e dinamização económico-social da Recorrente sociedade bem como tais afirmações são aptas a ofender a imagem da forma / métodos de trabalho da Recorrente, conforme se alcança do depoimento daquele último: - “O que é o sr. sentiu ao ler aquele texto ? Respondeu a minutos 20:42 a 21:45 “(…) Senti-me magoado e revoltado porque quando uma pessoa não se revê naquelas declarações, pá!. Fica revoltado, porque a pessoa não tinha razão nenhuma, nem de forma nenhuma, nunca me conheceu, nunca falou comigo …. Do nada provocar uma coisa, uma calúnia dessa forma (…)”.
P) O arguido sabia e não se importou do impacto das suas palavras quando responsabiliza a sociedade Recorrente e aquele que a dirige insinuando, publicamente, a responsabilidade por um aborto ocorrido, pela utilização de camaras de videovigilância no interior da empresa assim como no controlo ao segundo do tempo disponível para a satisfação das necessidades fisiológicas das funcionárias criando a ideia/imagem da Assistente sociedade de crueldade e exploração humana que é levado a cabo pelo Recorrente – enquanto líder máximo;
Q) O Tribunal a quo, creem as Recorrentes, de forma errônea julgou a atuação do arguido conforme se alcança da pag. 32: “(…) E esse contexto, no caso, é o da demonstração de solidariedade a amigas e trabalhadoras (estas vistas, à luz da ideologia veiculada no texto, como um grupo que se pretende uno), de apelo à luta pelo respeito dos direitos laborais destas…em que o arguido critica um sistema económico-social com o qual não concorda, acompanhado inclusivamente de referências a autores e pensadores de referência e de ligações eletrónicas a sítios da internet em que as mesmas são aprofundadas (…)” pois não terá atentado na produção de prova ocorrida em audiência de discussão e julgamento designadamente tendo em conta a publicação, as declarações do arguido e da sua testemunha KK;
R) O arguido realiza a sua intervenção mediante o post acima referido por cisma e antipatia ao Assistente, desde logo e derivado do status social daquele (contrário ao ideologicamente per si preconizado) e depois, conforme se alcança da publicação: “(…) É sabido que naquela fábrica trabalham pessoas que me são queridas, (…) ” negrito nosso
S) Ora, a testemunha KK no seu depoimento refere com interesse a este segmento: - Nesses jantares estavam trabalhadoras da A... ? A minutos 11:50 a 11:58 “(…) Sim. Pelo menos uma. Normalmente uma estava sempre. (…)”. - Quem é essa trabalhadora dos jantares ? A minutos 13:05 a 13:22 “(…) Isso, o nome não vou dizer. Cabe ao sr. dr. Juiz acreditar ou não. Agora, o nome da trabalhadora não vou dizer…. O sr. Dr. Juiz terá de fazer como entender mas, agora, o nome da trabalhadora eu não vou dizer. (…)”. Mais à frente a minutos 00:38 a 01:15: “(…) Eu digo o nome, não há problema nenhum. Só sei o primeiro nome. É LL… Ela era namorada do irmão do AA. E nós jantávamos muitas vezes e ela trabalhava lá. Que até depois, segundo ela, fez uma queixa no ACT. (…)” - Ela foi ao ACT juntamente com quem ? Respondeu a minutos 03:59 a 04: “(…) Eu acho que a queixa foi com o irmão do AA. Como eles namoravam ela, certamente, deve ter pedido ajuda, como é que havia de fazer ou assim (…);
T) Objetivamente não existe qualquer interesse coletivo ou altruísta do arguido para com o coletivo, a comunidade de onde é natural, (em específico a comunidade laboral daquela fábrica) conforme fundamentou a pag. 32 de douta sentença, desconsiderando-se o importante interesse pessoal do arguido com a publicação que a testemunha KK trouxe: - “O AA dedica-se aos problemas dos ... ? A minutos 03:52 a 04:08“(…) Dos ... ? Dos amigos! Se os amigos. Ele não vai qualquer ... se calhar ele não vai por nas redes sociais, ou vai dizer. Agora se for algum amigo que tenha certas conversas (…)”;
U) A perceção de um cidadão médio sobre o reflexo do depoimento da testemunha KK (testemunha de defesa) é a que existiu um interesse particular do arguido com a realização daquela publicação, nunca admitido pelo arguido no seu depoimento, apesar de referir aquando da sua inquirição, a minutos: - “Chegou a ver alguma foto ou documento que demonstrasse essa realidade ? Respondeu a minutos 37:01 a 37:12 “(…) Não. Foi tudo relatos da trabalhadora (…)”.
V) A fabricação e utilização desse aparente interesse coletivo na resolução de uma situação mal solucionada no passado com uma trabalhadora (e não um grupo ou uma comunidade laboral) que era namorada do irmão do arguido passou ao lado do julgamento de facto realizado;
W) Veja-se a manutenção da falsidade invocada quanto ao sistema de videovigilância laboral, por parte do arguido, aquando da sua prestação de declarações: “Foi relatado pelo arguido a existência de um conjunto de câmaras de videovigilância ? Pergunto se era na parte exterior ou interior da produção, respondeu a minutos 36:42 a 36:59“(…) Tem dentro e fora da fábrica pelo que me foi relatado (…)”. - O que é que o arguido entende por sistema de big brother, sistema de controlo à moda de big brother ? Respondeu a minutos 41:10 a 41:43 “(…) Acho que todos conhecemos o fenómeno do big brother e do que é o programa do big brother em que dentro de uma casa existem várias câmaras em que dá para visualizar as pessoas e os seus afazeres diários (…)”;
X) Na verdade, não é crível e contraria as regras de experiência comum, que alguém que fora condenado, conforme certificado de registo criminal junto aos autos a fls. - em processos crimes de idêntica índole como foi o arguido - não soubesse que o uso de tais expressões e insinuações – nos termos realizados – não ter carater ofensivo e que tal conduta era punida por lei;
Y) As Recorrentes defendem que a boa-fé do arguido encontrava-se contaminada - aquando da publicação – pela forte relação de amizade/relacionamento que tinha com a sua alegada fonte de informação (namorada do irmão) tendo a factualidade vertida nas expressões da publicação, ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, preenchendo, assim, os art.º 180 n.º 1, 4, 183 n.º 2 e 187 do C.P.;
Z) O Exigia-se ao arguido que, para além dessa informação vinda da namorada do seu irmão, admitindo-se que verbal, já que nenhum documento foi junto aos autos que ateste tal informação, a realização de diligências nomeadamente falando com as demais trabalhadoras, chefias, fornecedores, órgãos de fiscalização e outros operadores locais que conhecem a fábrica, antes de proferir tais expressões e formular tais juízos de valor, para se poder concluir pela sua boa-fé até pelo seu passado de condenado em crimes de idêntica índole;
AA) Não só as afirmações transcritas na pag. 30 de douta Sentença não ficaram demonstradas como não poderá ser considerada provado a circunstância de o arguido ter escrito os artigos convencido de que o que escreveu correspondia à verdade;
BB) O arguido sabia e não se importou, de forma dolosa, inserir no texto as afirmações acima referidas pois, só assim, conseguiria seduzir e captar a atenção do público à sua mensagem, misturando as com factos reais e objetivos (queda da ponte entre os ... e os graves incêndios que afetaram ... em 2017) e melhor realizar o seu interesse pessoal mediático que ainda hoje é percetível do seu mural facebokiano;
CC) Conforme resulta da matéria de facto dada como provada a referida publicação do arguido, na sua página do Facebook – além das visualizações – foi objeto de comentários e de visualizações de outras pessoas com acesso à referida rede social, permanecendo disponível para consulta;
DD) O Tribunal a quo ao interpretar e decidir que as expressões, imputações e insinuações pelo arguido proferidas (vide conclusão H deste recurso) são realizadas ao abrigo do princípio da liberdade de expressão, acaba por esmagar, violando a Constituição da República Portuguesa - arts.º 18 n.º 1 e 2 e 26º nº 1 - entre outros direitos de personalidade, o direito ao bom nome e reputação dos Recorrentes;
EE) Nas pags. 21 a 25 de douta Sentença, o Tribunal a quo, toma a orientação da jurisprudência do TEDH que, na ótica das Recorrentes, poderá ser violadora, da própria Constituição da República Portuguesa, na medida em que a mesma não permite, no seu artigo 18º, nº 3, a restrição dos direitos, liberdades e garantias, como são os direitos pessoais, de modo a diminuir o conteúdo essencial dos preceitos constitucionais que os consagram. A jurisprudência do TEDH está, verdadeiramente, a hierarquizar, em termos abstratos, os direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República Portuguesa, o que a mesma não permite por força da sua igual dignidade constitucional;
FF) O arguido, atentas as circunstâncias, - escreveu as expressões em causa na publicação - movido pela lógica de parcialidade, inerente à relação emocional/afetiva da namorada do seu irmão que terá sido trabalhadora da Recorrente e apesar da sua experiência em processos de idêntica índole nem teve o cuidado de confirmar se tais expressões / afirmações eram verdadeiras;
GG) Não pode existir tolerância referente às expressões – vide arts. 7, 8, 9 e 10º da Acusação - para os termos e para os efeitos do art.º 37 e 10 da Convenção Europeia dos direitos do homem ou Declaração universal dos direitos do homem pois, tais imputações, causam alarme social;
HH) O arguido agiu livre e conscientemente quando, de forma deliberada, publicou o seu post não podendo ignorar que a Recorrente não possuía um sistema de câmaras internos, em género de big brother que lhe permitisse controlar os trabalhadores quer na área produtiva quer na área de lazer/casas de banho nem controlava as idas à casa de banho com uma luz vermelha que, disparando, alerta as operárias que o seu tempo para as necessidades fisiológicas naturais terminou tendo que voltar à produção coartando-lhes, assim, o respetivo direito e abusando de uma posição de domínio e absoluto desrespeito de direitos e garantias laborais;
II) O arguido, ao fazê-lo, sabia e conformou-se em atuar contra o direito, podendo até – em sentido contrário - ter condão para gerar apuramento de responsabilidade, à Recorrente face à interpretação que qualquer cidadão faria de tais expressões;
JJ) A ideia criada pelo arguido de intenso controlo, contornos macabros e repressão no período em que até terá sido registado um aborto espontâneo foi produzia livre e conscientemente com a intenção de utilizar factos concretos e insinuações profundamente prejudicais à reputação das Recorrentes ao seu bom nome, tanto mais que se trata de uma empresa pertencente a um grupo de referência no mercado português do calçado e da dimensão intermunicipal gerada com a publicação;
KK) Perante a proteção penal e civil prevista nos arts. 129 do C.P. e arts. 70º, 483º e 484º, todos do Código Civil, e os factos a serem dados como provados, e que acima melhor se encontram referidos, no que respeita ao ilícito praticado pelo arguido - fundamento genérico da responsabilidade civil por facto ilícito – dúvidas não existem que o arguido está obrigado a indemnizar os Recorrentes pelos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito nos termos do disposto no artigo 496º do C.Civil;
LL) A Recorrente entende que houve uma interpretação errada em douta Sentença – ao julgar improcedente os PICs - dos arts. 180 e 187 do C.P. e do art.º 74 do CPP e 483 e 487 n.º 2 do CC;
MM) A associação da imagem do aborto e exploração à existência de uma metodologia falsa de controlo da atividade desenvolvida em desrespeito pelos mais elementares direitos dos trabalhadores (e até direitos humanos), tal imputação, de modo objetivo, ofende a credibilidade, o prestígio e o bom-nome de uma pessoa coletiva integrada num grupo de referência como é a Assistente;
NN) Também por aqui se mostra a necessidade de revogação de douta Sentença e condenação do arguido a compensar as Recorrentes conforme PIC.s deduzidos.
Nestes termos deve o Recurso proceder, revogando-se Sentença a fls. conforme as conclusões supra e, com o vosso suprimento, prolatado Acórdão, em que se:
a) condene o arguido AA pela prática em autoria material de um crime de difamação com publicidade e calúnia p. e p. pelos artigos 180 n.º 1, 182 e 183, n.º 2 do Código Penal;
b) condena o arguido AA, pela prática em autoria material, de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, com publicidade e calúnia, p. e. p. nos termos dos artigos 187º e 183 do Código penal;
c) Condene o arguido AA a publicar, a expensas suas, no jornal de Notícias, o teor da presente decisão, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado;
d) Julgar procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente/recorrente BB e, em consequência, condenar o arguido/demandado AA, a pagar aquele aí peticionada a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora, á taxa supletiva legal em vigor, desde a notificação do PIC, até efetivo e integral pagamento;
e) Julgar procedente o pedido de indemnização civil deduzida pela assistente/recorrente A... - Lda e, em consequência, condenar o arguido/demandado AA, a pagar aquela a quantia aí peticionada a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora, á taxa supletiva legal em vigor, desde a data da notificação do PIC, até efetivo e integral pagamento;
f) Determinar que o pagamento da indemnização que compõe as al.s precedentes seja feito, pelo arguido, ao Centro de Acolhimento Residencial para crianças e jovens em risco, denominado «...» no lugar de ... – ... – e gerido pela Associação ..., com sede na Rua... – ... da União de Freguesias ..., ... e ... – ...;
Os recursos foram admitidos.
A estes recursos respondeu o arguido AA.
Em resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público, concluindo da seguinte forma:
A Douta Sentença recorrida, proferida pelo Ex.mo Senhor Juiz de Direito a quo, não merece qualquer censura, porquanto:
A) Faz uma correta apreciação da prova e uma exemplar aplicação do Direito aos factos;
B) A enumeração constante da Douta Sentença permitiu e permite aferir que o Tribunal a quo tomou conhecimento de todos os factos com relevância para a boa decisão da causa;
C) Da Douta Sentença recorrida constam, claramente, as fontes probatórias que estiveram na base da formação da convicção do Tribunal a quo, quanto à decisão sobre a matéria provada e não provada;
D) No caso em apreço, o Tribunal a quo, que tomou conhecimento de todos os factos com relevância para a boa decisão da causa, segundo a sua LIVRE APRECIAÇÃO (tal como estatui o Art.º 127.º do CPP), e ASSENTE EM UM CORRECTO PROCESSO LÓGICO, com a PONDERAÇÃO, RIGOR e ISENÇÃO que lhe são exigíveis, tomou a decisão de Absolver o Arguido;
E) O Meritíssimo Senhor Juiz a quo formou a sua CONVICÇÃO em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, parcialidade, coincidências, segurança ou inverosimilhança que transpareceram dos depoimentos prestados em sede de Audiência;
F) E neste aspeto a Douta Sentença é completa e também se acha devidamente fundamentada acerca das testemunhas e da credibilidade que as mesmas lhe mereceram, dando-se o devido relevo à perceção direta que a IMEDIAÇÃO e a ORALIDADE conferem;
G) Dito de outra forma: o Senhor Juiz a quo apreciou, de forma correta, a prova produzida em Julgamento, o que fez de forma adequada ao consagrado no Art.º 127.º do CPP;
H) De forma límpida e clara, explicou a razão de ser da sua CONVICÇÃO – tomada de acordo com o QUANTO em sede de audiência se recolheu em termos de produção de prova.
I) O Tribunal a quo apreciou toda a prova de forma correta e nessa medida, no estrito cumprimento do estatuído no art.º o Art.º 374.º n.º 2 do CPP, fez constar da Douta Sentença, que não merece qualquer reparo, os factos provados e não provados, necessários à caracterização do(s) ilícito(s).
J) Inexistindo qualquer nulidade da sentença, em virtude de a mesma observar todos os requisitos do Art.º 379.º n.º 1 al. a) do mesmo Código.
K) O Tribunal a quo não violou o seu poder-dever de pronunciar-se sobre todas as matérias relevantes para a decisão.
L) Como inexiste contradição insanável da fundamentação, tipificada no artigo 410.º, n.º 2, al. b);
M) Não incorreu, o tribunal a quo no vício a que alude a al. b) do n.º 1 do artigo 410.º do CPP.
N) Em síntese conclusiva, o tribunal a quo indicou completamente as provas que serviram para formar a sua convicção e efetuou o exame crítico de tais provas.
E em resposta ao recurso interposto pelos assistentes, concluindo da seguinte forma:
A Douta Sentença recorrida, proferida pelo Ex.mo Senhor Juiz de Direito a quo, não merece qualquer censura, porquanto:
A) Faz uma correta apreciação da prova e uma exemplar aplicação do Direito aos factos;
B) A enumeração constante da Douta Sentença permitiu e permite aferir que o Tribunal a quo tomou conhecimento de todos os factos com relevância para a boa decisão da causa;
C) Da Douta Sentença recorrida constam, claramente, as fontes probatórias que estiveram na base da formação da convicção do Tribunal a quo, quanto à decisão sobre a matéria provada e não provada;
D) No caso em apreço, o Tribunal a quo, que tomou conhecimento de todos os factos com relevância para a boa decisão da causa, segundo a sua LIVRE APRECIAÇÃO (tal como estatui o Art.º 127.º do CPP), e ASSENTE EM UM CORRECTO PROCESSO PONDERAÇÃO, RIGOR e ISENÇÃO que lhe são exigíveis, tomou a decisão de Absolver o Arguido;
E) O Meritíssimo Senhor Juiz a quo formou a sua CONVICÇÃO em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, parcialidade, coincidências, segurança ou inverosimilhança que transpareceram dos depoimentos prestados em sede de Audiência;
F) E neste aspeto a Douta Sentença é completa e também se acha devidamente fundamentada acerca das testemunhas e da credibilidade que as mesmas lhe mereceram, dando-se o devido relevo à perceção direta que a IMEDIAÇÃO e a ORALIDADE conferem;
G) Dito de outra forma o Senhor Juiz a quo apreciou, de forma correta, a prova produzida em Julgamento, o que fez de forma adequada ao consagrado no Art.º 127.º do CPP;
H) De forma límpida e clara, explicou a razão de ser da sua CONVICÇÃO – tomada de acordo com o QUANTO em sede de audiência se recolheu em termos de produção de prova.
I) O Tribunal a quo apreciou toda a prova de forma correta e nessa medida, no estrito cumprimento do estatuído no art.º o Art.º 374.º n.º 2 do CPP, fez constar da Douta Sentença, que não merece qualquer reparo, os factos provados e não provados, necessários à caracterização do(s) ilícito(s).
J) O Tribunal a quo perante os crimes imputados ao Arguido, que protegem o mesmo bem jurídico - a honra – e avocam a mesma colisão de direitos, entre o direito à honra e o direito à liberdade de expressão, interpretou os factos em conformidade com o Direito da União Europeia e considerou que prevalece o direito à liberdade de expressão.
K) E assim considerou em virtude de o Arguido não ter tido a consciência, a vontade e a intenção de ofender a honra dos Assistentes.
L) A utilização de determinadas expressões, foram apreciações críticas por parte do Arguido.
M) Através dos relatos das trabalhadoras, o Arguido, na sua boa-fé, criou a forte convicção que tais factos são/eram verdadeiros.
N) O Arguido foi movido pela relação de amizade que tem com as trabalhadoras da empresa.
O) O Arguido, com o post, apenas pretendia, tão e somente, chamar a atenção da classe trabalhadora em geral.
P) O Arguido nem sequer conhecia o Assistente BB.
Q) Nunca teve qualquer ligação laboral, ou de outro tipo, à sociedade Assistente.
R) O Arguido não escreveu e publicou aquele post por “cisma e antipatia ao Assistente, desde logo derivada do status social daquele”.
S) A publicação constitui uma exposição sobre as condições de trabalho do “operariado fabril”;
T) Constitui um apelo à adoção de uma postura de união na reivindicação de respeito pelos direitos dos trabalhadores.
U) O escrito não é acusatório ou vexatório.
V) A dita publicação, em grande parte, é dirigida à consciencialização da importância da união dos trabalhadores e da luta pelo acesso a garantias e condições laborais condignas.
W) Com aquela publicação, o Arguido, emitiu juízos de valor acerca dos Assistentes.
X) Em momento algum o Arguido teve a consciência, a vontade e a intenção de ofender quem quer que seja.
Y) Não quis, o Arguido, de modo algum, rebaixar e denegrir o Assistente nem o seu bom nome;
Z) Assim como não quis humilhar e denegrir a imagem, confiança e prestígio da Assistente.
AA) O Arguido não criou qualquer ideia acerca dos Assistentes tendo, tão e somente, tecido, através do seu post, juízos de valor ao abrigo da liberdade de expressão.
BB) Em momento algum, o Arguido afirma que o aborto registado tenha ocorrido por culpa da Assistente.
CC) O Arguido, na dita publicação, não escreve/menciona o nome do Assistente - BB.
DD) O modo como o fez, (procurando expor e alertar a comunidade trabalhadora) permite mesmo que se chame à colação a latere o princípio da insignificância.
EE) A insignificância penal exclui a tipicidade e as condutas insignificantes não são típicas porque o seu sentido social não é de ofensa do bem jurídico” (In acórdão de 07-12-2012 do Tribunal da Relação de Évora, Relatora Ana Barata Brito)
FF) Fazer tábua rasa do princípio da insignificância penal, pois nas palavras de Beleza dos Santos (In “Algumas Considerações sobre Crimes de Difamação ou de Injúria”, Revista de Legislação e Jurisprudência, N.º 92, p.167) “nem tudo aquilo que alguém considera ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria puníveis”
GG) Não se entender assim é abrir uma caixa de pandora que manietará um direito constitucional e abrirá um precedente para que os Recorrentes considerem que qualquer crítica menos favorável ou mais aguçada preencha o crime previsto e punido pelo artigo 187.º do CP num mundo onde é prática corrente e salutar os frequentadores de espaços, ainda que virtuais - opinar, criticar e até avaliar.
HH) Está, in casu, em causa o exercício do direito elementar à liberdade de expressão e divulgação de pensamento através de uma publicação que teve como único propósito o alertar consciências para a questão trabalhadora que muitas vezes é “oprimida”
II) Soçobra os pedidos de indemnização civil peticionados pelos Assistentes/Demandantes.
JJ) Ao abrigo do instituto da colisão de direitos devidamente consagrado no artigo 335.º do Código Civil, o tribunal a quo decidiu, e bem, absolver o Arguido de tais pedidos.
KK) Reconhecendo que, ao abrigo do consagrado na referida norma legal, o direito à honra e consideração dos Assistentes deve ser comprimido e ceder perante o direito à liberdade de expressão.
LL) Não se demonstrou nem evidenciou que a Assistente padecesse, com a dita publicação, de um impacto negativo que afetasse e contribuísse para o afastamento de clientes.
MM) Não se demonstrou nem evidenciou, que com o Post, a Assistente sofresse uma quebra nas suas vendas.
NN) Em síntese conclusiva, o tribunal a quo indicou completamente as provas que serviram para formar a sua convicção e efetuou o exame crítico de tais provas e bem andou ao Absolver o Arguido.
Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta teve vista nos autos, tendo emitido parecer no sentido do provimento do recurso do Ministério Público, desde logo por via da existência das ali apontadas nulidades e, bem assim, dos vícios decisórios constantes do art. 410º do Cód. de Processo Penal – considerando em tais termos prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas pelos recursos quer do mesmo Ministério Público, quer dos assistentes.
Foi cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal, nada vindo a ser acrescentado no processo.
Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.
II. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS
O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como é designadamente o caso das nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento (previstas expressamente no art. 119º do Cód. de Processo Penal e noutras disposições dispersas do mesmo código), ou dos vícios previstos no art. 379º ou no art. 410º/2, ambos do Cód. de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995), podendo o recurso igualmente ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada, cfr. art. 410º/3 do Cód. de Processo Penal.
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – cfr. arts. 403º, 412º e 417º do Cód. de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 (proc. 91/14.7YFLSB.S1)[[1]], e de 30/06/2016 (proc. 370/13.0PEVFX.L1.S1)[[2]]. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
A esta luz, as questões a conhecer no âmbito do presente acórdão são as de apreciar e decidir sobre:
1. saber se a Sentença recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação ou por omissão de pronúncia nos termos do art. 379º/1/a)c) do Cód. de Processo Penal ;
[questões suscitadas pelo recorrente Ministério Público e pelos recorrentes/assistentes BB e “A..., Lda.”]
2. saber se se verifica na Sentença recorrida algum dos vícios previstos no art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal ;
[questão suscitada pelo recorrente Ministério Público]
3. saber se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal ;
[questão suscitada pelos recorrentes/assistentes BB e “A..., Lda.”]
4. saber se estão reunidos os pressupostos da condenação do arguido/recorrido AA pelos crimes de difamação, com publicidade e calúnia, previsto e punido pelos arts. 180º/1 e 183º/1/a)/b) do Cód. Penal (contra o assistente BB), e de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, com publicidade e calúnia, previsto e punido pelo artigo 187º/1/2/a) do Cód. Penal (contra a assistente “A..., Lda.”) de que vinha acusado nos autos, com a correspondente determinação das respectivas consequências penais ;
[questão suscitada pelo recorrente Ministério Público e pelos recorrentes/assistentes BB e “A..., Lda.”]
5. saber se estão reunidos os pressupostos da condenação do arguido/recorrido AA no pedido de indemnização civil deduzido nos autos pelos assistentes BB e “A..., Lda.”.
[questão suscitada pelos recorrentes/assistentes BB e “A..., Lda.”]
a. É a seguinte a matéria de facto considerada pelo tribunal de 1ª Instância:
« 2. Fundamentação de Facto
2.1. Factos provados
Com relevo para a decisão da causa, resultam provados os seguintes factos:
1) O arguido possui e gere, com acesso personalizado, uma página na rede social na internet denominada Facebook, com a sua fotografia;
2) A plataforma informática Facebook foi criada para facilitar a divulgação, partilha e envio dos mais diversos conteúdos, sendo uma das redes sociais com mais utilizadores no nosso país e em todo o mundo;
3) Na sua página na referida rede social, entre outras coisas, o arguido coloca o seu perfil e dados pessoais de forma livre e voluntária, acessível a todos, designadamente os seus familiares aí presentes, aí sendo visível a interação que mantém com os mesmos, através de fotografias e publicações sobre o seu estado, os seus pensamentos e os seus interesses;
4) Na sequência de tal utilização, no dia 20 de abril de 2020, às 19:55, o arguido, de forma livre e voluntária, efetuou uma publicação, colocando uma fotografia do antes e depois do incêndio do espaço que vitimou as instalações da, agora, sociedade assistente «A..., Lda.» ocorrido em 2017, e, nessa página do Facebook, escreveu e publicou no seu mural online, que é lido por quem o visita, através da internet, além do mais, o seguinte:
«[….]
“Quem não sente não é filho de boa gente”
A mulher trabalhadora e os acontecimentos macabros vindos da fábrica de calçado da ....
Existem dois acontecimentos que para nós, habitantes do ..., ficarão para sempre marcados na nossa pele e memória: a queda da ponte de ... (2001) e os incêndios que devastaram mais de 80% do território de ... (2017). O que se segue está directamente ligado a este último desastre. A antiga fábrica de calçado da ... ardeu. Propriedade privada da empresa “D...”, contava com 90 trabalhadoras e trabalhadores. Após o sucedido, o patronato abandonou a fábrica e deu-se lugar a um novo investimento conjunto entre o grupo B..., que detém fábricas em três concelhos distintos (..., ... e ...), e incentivos de apoio por parte do Estado portu(bur)guês.(1) Os 90 postos de trabalho perdidos foram “recuperados”. Mas a que custo?
Andava eu pelo Porto e já lá chegavam relatos acerca dos métodos de repressão que patrão e chefias aplicavam às trabalhadoras desta “nova fábrica”. Calhou que recentemente tenha sido operado a um ombro, devido a um acidente de trabalho no ... em 2016-2017, e que tenha regressado à minha terra natal para a recuperação. E os relatos aumentaram, com contornos macabros. É sabido que naquela fábrica trabalham pessoas que me são queridas, mas, mesmo que assim não fosse e dado a gravidade dos relatos, uma posição e exposição pública acerca do assunto é algo que cabe na solidariedade, apoio e união entre trabalhadores explorados. Chegou a hora de o fazer.
Desde que a nova administração patronal tomou conta da fábrica que as trabalhadoras trabalham sob um intenso controlo de um sistema de câmaras interno, em género de big brother. Para além dos baixos salários praticados e da perda de antiguidades, as idas à casa de banho são controladas por uma luz vermelha que, quando dispara, alerta as operárias que o seu tempo para necessidades fisiológicas naturais terminou e que têm de voltar à produção. Os horários de descanso não são cumpridos integralmente. Mas a coisa atinge proporções aterradoras quando se começa a registar a perda de saúde, física e psicológica, das operárias. As baixas “normais” e psiquiátricas começam aumentar ao ponto de a própria médica da Extensão de Saúde ... afirmar que “algo não está certo” para tantas operárias da mesma fábrica requererem baixas. Inclusive regista-se o aborto espontâneo de uma operária, que coincide com o último período de maior repressão na fábrica, fruto do aparecimento de uma nova chefia-encarregada proveniente dos conglomerados industriais do calçado de .... Ao que tudo indica, essa capataz da burguesia já em ... executava as mesmas práticas.
Já faz tempo que a relação entre o modo de produção capitalista e a degradação das condições físicas e psicológicas do operariado industrial está documentada. Friederich Engels, através do estudo da “condição da classe trabalhadora em Inglaterra” (2), expôs que a nossa exploração às mãos da burguesia produzia doenças degenerativas que se tornavam hereditárias à próxima prole de trabalhadores, desde articulações, pernas tortas, tornozelos inchados, peito-de- pombo, etc, até ao aumento dos abortos entre as mulheres trabalhadoras. Posteriormente, feministas revolucionárias como Alexandra Kollontai (3) iriam articular toda a exploração e opressão histórica da mulher, reproductiva-laboral, nos vários contextos das sociedades de classes patriarcais, e em especial na capitalista. Não que isto seja condição exclusiva ao operariado industrial do séc. XIX, porque mesmo hoje o verificamos, quer seja na agricultura (mulheres trabalhadoras da apanha da framboesa em ... com propostas de trabalho por um euro à hora), quer seja nos serviços de call centers onde se desenvolvem doenças auditivas, até às trabalhadoras que limpam de joelhos as casas à burguesia “fozeira" do Porto. É necessário dizer a estas operárias que não estão sozinhas. Que não têm que sofrer sozinhas, individualmente, emparedadas num clima de terror fabril. Como tal, envio um conjunto de considerações que visam apoiar, ajudar, honestamente, uma luta que terá de ser travada e que, inclusive, com o agravar das condições sociais, económicas e politicas da crise capitalista, durante e pós Covid-19, será ainda mais urgente.
Para tal, as trabalhadoras têm aos seus dispor várias ferramentas que potenciam a sua organização de classe: a formação de comissões de trabalhadores, a formação de sindicatos, de grupos “informais”, dentro e fora da fábrica, fundos de greve ou caixas de resistência que possam fazer face a todos os problemas relacionados com a saúde, habitação, trabalho, etc etc, das operárias. Mas não caiamos em idealismos. Certo é que existem operários, lacaios, que tomarão o lado do patrão. E contra isso devemos ter cuidado, porque pode colocar em risco a nossa organização ou mesmo os nossos postos de trabalho. As próprias ferramentas tecnológicas dos dias de hoje oferecem às trabalhadoras métodos seguros para iniciar essa organização (mesmo na actual situação de isolamento social), desde o facebook-messenger ao whataspp. É óbvio que nós trabalhadores também temos divergências pessoais, dentro e fora dos nossos postos de trabalho. Em muitos casos chegamos mesmo a competir entre nós, como reflexo da concorrência selvagem que caracteriza o modo de produção capitalista. Contudo, quando se trata de defender os nossos interesses comuns, colectivos, enquanto classe social, devemos colocar de lado as nossas divergências pessoais. Só a luta e organização colectiva pode assegurar conquistas relevantes. O ataque a uma deve ser encarado solidariamente como um ataque a todas. Em relação à burocracia legal para a construção dos mecanismos à organização de trabalhadores, não temam. O paleio de sindicalistas iluminados ou dos burocratas partidários acerca dessa "dificuldade" não passa disso: paleio. Eles querem é que nós deleguemos a eles, por quota sindical e voto partidário, o que nos cabe a nós fazer. Enquanto mulheres trabalhadoras vocês tanto são o esteio da fábrica como de casa e família. Porque raio não conseguiriam construir o vosso próprio movimento laboral ou até mesmo colectivamente gerir uma fábrica? Servem para “gerir” uma casa e orçamentos familiares mas não servem para gerir uma fábrica? Repudio quaisquer paternalismos nesta questão, que só servem para amesquinhar as nossas capacidades. Por fim, ó gentes da minha terra, eu sei bem onde nasci e qual a mentalidade predominante desta localidade da periferia urbana do grande Porto. Ao coro de indignados por levar esta questão a público, eu vos digo que estais na mesma linha da expressão popular católica de “entre marido e mulher ninguém mete a colher”. Enquanto vocês a cantam a viva voz os números de mulheres mortas por violência machista, fruto da exploração e opressão histórica patriarcal, aumentam. Daí que o problema é social, colectivo, e não individual. E contra essa vossa ladainha eu utilizo a expressão popular no título desta redacção: “quem não sente não é filho de boa gente”»;
5) De seguida e na parte infra da publicação, o arguido postou as seguintes ligações eletrónicas:
https://www....…
6) A referida publicação do arguido na sua página do Facebook – além das visualizações – foi objeto de dezenas de comentários de outras pessoas com acesso à referida rede social;
7) O arguido tinha, na altura, 2398 amigos na referida rede social e a publicação era publicamente acessível;
8) O arguido pretendeu e conseguiu que a sua publicação fosse lida e vista pelo maior número de pessoas possível, pois o arguido, na sua página oficial de Facebook, controla as suas definições de privacidade;
9) O arguido agiu de forma deliberada, voluntária, livre e consciente;
10) O arguido sabia que algumas das expressões constantes do escrito publicado eram aptas a ofender a honra, bom nome e reputação do assistente e a imagem, confiança e prestígio da sociedade assistente, conformando-se com a produção de tal resultado;
11) A publicação levada a efeito pelo arguido e respetivos comentários à publicação ainda se encontram disponíveis para consulta naquela rede social;
12) A publicação com a referência à assistente sociedade foi muito comentada entre a população laboral da freguesia ... e ...;
13) Aí, o assistente BB é conhecido por ser o patrão do grupo «B... Lda.», um empreendedor de sucesso, com base no trabalho e mérito próprio em criar emprego (como é o caso da fábrica em A... que tinha sido destruída pelo incêndio) e apostar na criação nacional, promovendo marcas nacionais ligadas ao calçado bem como na vertente formativa e tecnológica do calçado, transformando o seu Grupo Industrial em um exportador de referência;
14) Alguns trabalhadores e outras pessoas que tomaram conhecimento desta publicação chegaram a ligar ao assistente BB e perguntar-lhe se este sabia de tal conteúdo e se conhecia o arguido;
15) O assistente BB sentiu-se mal, ofendido e ultrajado com a publicação do arguido;
16) O assistente BB ficou noites sem dormir, devido à publicação do arguido;
17) O assistente BB ficou angustiado e falava várias vezes no mesmo assunto;
Antecedentes criminais e situação pessoal e económico-financeira atual do arguido
18) O arguido já foi condenado:
- por decisão transitada em julgado em 10/05/2019, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €, pela prática, em data não apurada de 2017, de um crime de ofensa a pessoa coletiva, organismo ou serviço;
- por decisão transitada em julgado em 26/09/2019, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €, pela prática, em 01/07/2017, de um crime de ofensa a pessoa coletiva, organismo ou serviço;
- por decisão transitada em julgado em 20/01/2021, na pena de 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por 12 meses, com regime de prova, pela prática, em 18/06/2017, de um crime de difamação agravada;
19) O arguido:
- é solteiro e não tem filhos;
- vive sozinho de favor em casa de uma amiga, contribuindo com cerca de 150,00 € por mês para despesas;
- recentemente, o irmão adquiriu casa arrendada em ..., onde o arguido passará a residir;
- trabalha como aprendiz de serralheiro, numa empresa em ..., há cerca de um mês e meio, estando ainda no período experimental, auferindo mensalmente cerca de 760,00 €;
- tem despesas de medicação para tratamento à dependência do consumo de bebidas alcoólicas de cerca de 20,00 € por mês;
- beneficia do apoio do irmão, pais e restante família, bem como dos amigos.
Com relevo para a decisão da causa, consideraram-se não provados os seguintes factos:
a) O falso clima de assédio – que ocorreria na assistente sociedade – mediante introdução de meios eletrónicos de limitação ao acesso dos seus colaboradores às casas de banho, de câmaras de videovigilância instaladas internamente com o propósito de estilo “big brother” e que tal clima criado pela estrutura hierárquica diretiva onde o assistente é o último responsável originou um aborto espontâneo, continua a ser falado na comunidade laboral e social da fábrica e daqueles com que ela se relacionam e/ou dependem;
b) As alegações do arguido originaram pedidos de esclarecimento quer por parte clientes do grupo económico onde a assistente está incluída e onde o assistente BB é responsável quer pelos amigos deste, pelos seus concorrentes e até simples conhecidos, manchando a reputação do assistente BB, enquanto gestor cumpridor dos direitos dos trabalhadores, bem como da sociedade assistente, enquanto local de trabalho condigno, seguro e respeitador dos direitos dos trabalhadores;
c) A publicação com a referência à assistente sociedade foi muito comentada entre a população laboral de ... e ainda é hoje muito comentada entre a população laboral da freguesia ..., ... e ...;
d) A conduta do arguido repercutiu-se em suspeitas sobre a credibilidade dos métodos de trabalho da assistente «A... Lda.», colocando em causa a confiança inerente à responsabilidade social que a mesma possui a nível municipal e intermunicipal;
e) A conduta do arguido repercutiu-se nos lucros ou volume de negócio da sociedade assistente;
f) A conduta do arguido repercutiu-se na imagem profissional de zelo e cumprimento com que o assistente BB sempre se pautou ao longo dos últimos 30 anos;
g) A publicação do arguido causou extrema humilhação e vergonha ao assistente BB, e uma forte e estigmatizante perturbação socio-psico-emocional;
h) O assistente BB adquiriu humor depressivo gerando situações de conflito no seu próprio agregado familiar;
i) O assistente BB ficou nervoso e deixou de apresentar a sua força de viver habitual;
j) A conduta do arguido repercutiu-se na credibilidade do assistente BB e na aptidão da sociedade assistente para a captação de recursos humanos no futuro;
k) As expressões contidas na citada publicação efetuada pelo arguido na referida rede social foram escritas com o único objetivo de rebaixar, humilhar e denegrir o assistente BB – enquanto líder máximo da estrutura hierárquica e dinamizador do investimento – de forma pública, bem como o seu bom nome, assim como a imagem, confiança e prestígio da sociedade assistente, por cisma e rancor aos assistentes;
l) O arguido agiu bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
b. É a seguinte a motivação da decisão de facto apresentada pelo Tribunal de 1.ª Instância:
«2.3. Motivação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção quanto aos factos considerados provados e não provados com base na análise crítica e global de toda a prova produzida em audiência de julgamento, bem como da que consta dos autos, com recurso a juízos de experiência comum, nos termos do art. 127.º do Código de Processo Penal.
Apesar de, em regra, vigorar o princípio da livre convicção na apreciação da prova, o Tribunal não está desonerado de fundamentar lógica e racionalmente os motivos e processos cognitivos que o levaram a considerar os factos como provados/não provados, sob pena de nulidade da decisão proferida, nos termos dos arts. 374.º n.º 2 e 379.º n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal.
Assim, foram levados em conta para a formação da convicção do tribunal os seguintes meios de prova:
- Documental:
- Cópias de notícias – fls. 8 e 9 dos autos e doc. 1 junto com a acusação particular;
- Certidão permanente da empresa assistente de fls. 17 e seguintes;
- Certificado de Registo Criminal do arguido;
- Declarações do assistente;
- Depoimentos testemunhais:
Da acusação:
- FF;
- CC;
- DD;
- EE;
- GG;
Da defesa:
- MM;
- JJ;
- NN;
- OO;
- KK.
- Declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento.
Desde logo, a maioria dos factos descritos na acusação foram considerados provados com base na sua admissão pelo arguido.
Com efeito, este admitiu espontânea e livremente ter sido ele a escrever e publicar, na sua página pessoal da rede social Facebook, o texto citado no facto provado 4).
Mais admitiu ser ele quem gere tal página e que a mesma tem a sua fotografia. Referiu ainda que tinha, à data, cerca de 2500 amigos em tal rede social, que o acesso à sua página não era limitado aos amigos na referida rede social e que a publicação em causa teve vários comentários.
Neste conspecto, relevou-se ainda a prova documental junto aos autos que corrobora tal factualidade, concretamente a cópia da notícia junta a fls. 8 e 9, bem como a cópia publicação do arguido no Facebook, e respetivos comentários, junta a fls. 14 a 16.
Assim, dúvidas não restaram quanto à consideração dos factos 1) e 3) a 8) como provados.
O facto 2) configura um facto de conhecimento público e notório, sendo ainda corroborado pela cópia da notícia junta como doc. 1 com a acusação particular.
Dúvidas também não se colocam quanto à veracidade do facto 9), na medida em que o arguido declarou haver pretendido publicar o texto em causa na rede social (agindo deliberadamente), tendo vontade de o fazer (voluntariamente), sem que tenha sido constrangido a tal (livremente) e em plena consciência.
Deu-se ainda como demonstrado o facto 10), tendo em conta as regras de experiência comum e as explicações fornecidas pelo arguido a este respeito. Conforme infra se explanará, julgou-se não demonstrado que o arguido tenha tido intenção de lesar a honra e consideração dos assistentes ao escrever o texto em causa. Ainda assim, julga-se que o arguido não desconhecia (nem podia desconhecer) que algumas das expressões que fez constar do referido texto pudessem ter tal resultado, uma vez que tal possibilidade teria de ser naturalmente prevista pelo homem médio, com as características do arguido (que inclusivamente já foi condenado por 3 vezes pela prática de ilícitos da mesma natureza dos que lhe são imputados nos autos). Acresce que se crê resultar manifesto que o mesmo se terá conformado com tal resultado, na medida que, apesar de conhecer o potencial lesivo das expressões escritas, decidiu publicar o texto em causa.
Por seu turno, o facto 11) resultou demonstrado com base nas declarações do próprio arguido, que referiu não ter apagado a publicação em causa nem qualquer dos comentários que outras pessoas fizeram à mesma.
Os factos 12) a 17) encontram arrimo nas declarações do assistente, bem como nos depoimentos testemunhais de FF, CC, DD, EE, GG. Os mesmos são ainda atestados, em parte, pelas cópias de notícias juntas a fls. 8 a 12.
As declarações do assistente consideraram-se credíveis, porque prestadas de modo espontâneo e desapaixonado, ainda que revelando mágoa e frustração pelo teor da publicação do arguido. As mesmas foram importantes para o Tribunal compreender algumas das consequências da atuação do arguido, essencialmente as que se prenderam com o seu estado de espírito após as mesmas, bem como para perceber os seus contornos e extensão (o que conduziu a que grande parte da factualidade alegada neste conspecto tenha sido considerada não provada, como se verá).
Os depoimentos das referidas testemunhas também se afiguraram credíveis, porque prestados de modo desinteressado e espontâneo, sem revelar tendência de beneficiar o assistente ou prejudicar o arguido. Ademais, os depoimentos foram coerentes entre si e consentâneos com as regras de experiência comum.
O facto 18) encontra suporte no Certificado de Registo Criminal do arguido.
Por fim, o facto 19), atinente às condições pessoais e socioeconómicas atuais do arguido, foi considerado demonstrado com base nas declarações por este tido arguido prestado a este respeito.
Avançando.
Por seu turno, os factos a) a j) foram considerados não provados atenta a insuficiência da prova produzida para se considerar os mesmos demonstrados. Com efeito, as declarações do assistente e os depoimentos testemunhais referidos contrariaram a maioria da factualidade em causa e, no mais, não foram suficientes para cabalmente a demonstrar.
Desde logo, atento o tempo, entretanto decorrido e o facto de o assistente e as testemunhas se terem referido no passado à circunstância de a publicação em causa ter gerado falatório na comunidade laboral (nos meses que se seguiram à publicação), considerou-se demonstrado que tal situação não se mantém à data de hoje (factos não provados a) e c), segunda parte).
Quanto aos factos b), d) e f), além de nenhuma da prova produzida os ter atestado, resultou das próprias declarações do assistente que os contactos que recebeu acerca da publicação foram de pessoas que não credibilizaram o seu teor, por conhecer a sua pessoa e carácter e a satisfação da generalidade dos trabalhadores da empresa. Assim, ficou por demonstrar que tenham sido pedidos esclarecimentos por quem quer que fosse ao assistente sobre o teor da publicação em causa, tanto que as pessoas que com o assistente falaram lhe demonstraram o seu apoio e não haver credibilizado o escrito. De resto, ficou por demonstrar que a publicação tenha gerado suspeitas sobre a credibilidade e responsabilidade social da sociedade assistente, uma vez que nenhum dos elementos probatórios produzidos o corroborou.
Também quanto ao facto não provado c) (1.ª parte) não foi produzida qualquer prova, omitindo as testemunhas qualquer referência ao impacto da publicação em ....
Igualmente, nenhuma das testemunhas inquiridas referiu convincente e sustentadamente que a publicação em causa tenha tido qualquer impacto financeiro na sociedade assistente ou na sua capacidade para captar recursos humanos, tendo inclusive o assistente referido que a empresa não teve prejuízos em decorrência da mesma, pelo que se julgou não provados os factos e) e j).
Quanto aos factos g) a i), considerou-se a prova produzida (e já atrás referida) insuficiente para considerar demonstradas tais consequências para o assistente da conduta do arguido, tanto que o próprio não as referiu. Com efeito, neste conspecto, a prova produzida apenas foi apta a demonstrar a factualidade atrás vertida como demonstrada.
Por fim, o facto k) foi considerado não provado com base, essencialmente, na leitura e análise de toda a publicação em causa e nos esclarecimentos prestados pelo arguido neste conspecto.
Com efeito, referiu o arguido que, ao escrever e publicar o texto em causa, não teve a intenção de humilhar ou denegrir o assistente nem a sociedade, mas antes alertar para as condições de trabalho dos funcionários desta. Referiu ainda ter ligação afetiva - de amizade - a trabalhadoras da empresa, a quem pretendia manifestar a sua solidariedade.
Ora, compulsado toda a (longa) publicação efetuada pelo arguido na rede social Facebook, resulta da mesma, desde logo, que o arguido não esconde que é parcialmente movido pela relação de amizade que tem com trabalhadoras da empresa (“É sabido que naquela fábrica trabalham pessoas que me são queridas”), o que foi reiterado pelo mesmo nas declarações prestadas em julgamento e corroborado pela testemunha KK.
Mais resultou das declarações do arguido que este nem sequer conhecia o assistente (o que foi por este confirmado) e que nunca teve qualquer ligação laboral ou de outro tipo à sociedade assistente. Soçobra, assim, também, a alegação de que o arguido tenha sido movido por sentimentos de rancor ou cisma para com os assistentes.
Ora, da própria leitura completa da publicação resulta claro que a mesma constitui, em grande parte, uma exposição sobre as condições de trabalho do “operariado fabril” (não apenas das funcionárias da sociedade assistente) e um apelo à adoção de uma postura de união na reivindicação de respeito pelos direitos dos trabalhadores (“É necessário dizer a estas operárias que não estão sozinhas”).
O tom do escrito não é (pelo menos unicamente) acusatório ou vexatório, sendo inclusivamente em grande parte dirigido à consciencialização da importância da união dos trabalhadores e da luta pelo acesso a garantias de condições laborais condignas.
Assim, julga-se que, contrariamente ao imputado ao arguido na acusação, as expressões utilizadas a respeito do assistente e da sociedade assistente não foram escritas com objetivo de os humilhar e denegrir a sua imagem e bom nome.
Também o facto l) se julgou não provado, atendendo à postura assumida pelo arguido em julgamento, que mantém a convicção de que as expressões utilizadas no contexto em causa eram legítimas e não constituiriam um ilícito criminal, levando ainda em consideração o que infra se exporá quanto à natureza criminal da conduta em causa. »
c. É como segue a apreciação e qualificação jurídico–penal da matéria de facto que foi efectuada pelo Tribunal de 1.ª Instância:
«3. Fundamentação de direito
3.1. Enquadramento jurídico penal
Assente a factualidade considerada provada além de qualquer dúvida razoável, cumpre dela retirar as devidas consequências jurídico-penais.
Ora, conforme já mencionado, ao arguido foi imputada a prática de um crime de difamação com publicidade e calúnia, previsto e punido pelos artigos 180.º n.º 1 e 183.º n.º 2 do Código Penal, e um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, com publicidade e calúnia, previsto e punido nos termos dos artigos 187.º e 183.º do Código Penal.
Ambos os crimes imputados ao arguido tutelam o mesmo bem jurídico: a honra de outrem.
Apesar de as normas incriminadoras não o dizerem expressamente, a subsunção da factualidade aos tipos de ilícitos criminais que tutelam tal bem jurídico deve sempre ser feita à luz da liberdade de expressão, analisando se o âmbito desta foi extravasado.
Tutelando a Constituição da República Portuguesa quer o direito à honra, quer o direito à liberdade de expressão e informação, sem que estabeleça hierarquia entre eles, deve procurar-se compatibilizá-los por forma a garantir que ambos mantêm a máxima amplitude possível, restringindo-os na estrita medida do mínimo indispensável.
Com efeito, tratando-se de direitos constitucionalmente previstos e tutelados, o conflito entre ambos deve ser dirimido de acordo com os princípios ínsitos na Constituição da República Portuguesa (cfr. arts. 1.º, 18.º n.º 2, 25.º n.º 1, 26.º n.º 1 e 37.º deste diploma).
De forma a auxiliar-nos nessa demanda, devemos recorrer a instrumentos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), conforme dita o art. 16.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, que impõe a interpretação dos preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais à luz daquele diploma.
Também a DUDH, nos seus arts. 2.º, 7.º, 12.º e 19.º, tutela a honra e reputação das pessoas, por um lado, e a sua liberdade de opinião e expressão, por outro, mais uma vez sem hierarquizar ou definir como compatibilizar o âmbito de proteção desses direitos.
Importa ainda convocar o disposto na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e o expendido na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) sobre a matéria. A importância (sobretudo desta) não deve ser menosprezada, desde logo pela influência que tem na jurisprudência nacional, ao ponto de haver invertido a tendência que nesta se verificava, no sentido de fazer prevalecer o direito à honra sobre a liberdade de expressão, salvo contadas exceções.
Ora, a CEDH, ao contrário dos outros instrumentos mencionados, não tutela, no plano geral, o direito à honra, prevendo-o apenas como uma das restrições à liberdade de expressão (cfr. art. 10.º n.º 2).
Neste conspecto, o TEDH, na sua análise dos conflitos entre os referidos direitos, assume como ponto de partida a liberdade de expressão, apreciando casuisticamente se estão reunidas as condições necessárias à sua restrição.
Assim, as decisões deste Tribunal vêm assentando num entendimento constante, cujo essencial foi sumarizado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, lavrado no processo n.º 1272/04.7TBBCL.G1.S1, datado de 30-06-2011 e relatado por João Bernardo, nos seguintes termos:
“A liberdade de expressão constitui um dos pilares fundamentais do Estado democrático e uma das condições primordiais do seu progresso e, bem assim, do desenvolvimento de cada pessoa;
As excepções constantes do art. 10.º n.º 2 devem ser interpretadas de modo restrito;
Tal liberdade abrange, com alguns limites, expressões ou outras manifestações que criticam, chocam, ofendem, exageram ou distorcem a realidade.”.
Ainda que se subscreva que a análise deve partir do princípio enunciado no parágrafo que antecede, não se pode olvidar que a liberdade de expressão não é um direito que possa ser exercido de forma irrestrita ou ilimitada (v. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 81/84, publicado na 2ª Série do Diário da República de 31 de Janeiro de 1985). Como vimos, ante a colisão de direitos fundamentais constitucionalmente tutelados, mostra-se praticamente impossível o seu exercício sem limites recíprocos.
Conforme já fomos adiantando, existem limites ao exercício do direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento e as opiniões, podendo a sua violação conduzir à responsabilização do seu autor, nomeadamente a nível criminal.
Tais limites têm necessariamente de estar legalmente previstos e visar salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Nomeadamente, dispõe o n.º 2 do já citado art. 10.º que o exercício da liberdade de expressão “implica deveres e responsabilidades” e “pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial”.
Em suma, ainda que proibida toda e qualquer forma de censura (cfr. art. 37.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), é, no entanto, lícita a repressão dos abusos da liberdade de expressão, quando necessária à garantia do respeito por outros direitos e bens jurídicos penalmente tutelados.
De acordo com a jurisprudência do TEDH, as exceções previstas à liberdade de expressão devem ser interpretadas restritivamente, na estrita medida da necessidade de garantir o exercício de outros direitos e interesses, no âmbito de uma sociedade democrática.
Assim, deve apreciar-se:
(1) se a restrição à liberdade de expressão está “prevista na lei” e
(2) se prossegue um “objetivo legítimo” e
(3) se a condenação do arguido se justifica, se é uma “providência necessária numa sociedade democrática” (“Liberdade de Expressão e Discurso de Ódio”, João Gomes de Sousa - CEJ, 5 de fevereiro de 2021, disponível online).
Tal consubstancia uma clara opção de primazia pela liberdade de expressão, por se tratar de um direito e princípio basilar da democraticidade e pluralismo de ideias e opiniões que se pretendem vigentes na sociedade em que vivemos.
Conforme se resumiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora lavrado no processo n.º 53/11.6TAEZ.E2 e por referência à decisão do TEDH “Sunday Times”, de 26-04-1979, “as formalidades, condições, restrições e sanções à liberdade de expressão previstas no nº 2 do artigo 10º devem ser convenientemente estabelecidas, corresponderem a uma necessidade imperiosa e interpretadas restritivamente”.
Não pode perder-se de vista que a referida jurisprudência do TEDH em matéria de conflito destes dois direitos é especialmente abonatória da liberdade de expressão quando está em causa a proteção da privacidade, do bom nome, da reputação e da honra de “figuras públicas” (ver, entre muitos outros, o caso JJ, S.A. v. Portugal, Proc. nº 11182/03 e 11319/03, de 26/04/2007).
Igualmente, a compressão da honra de terceiros impõe-se com mais intensidade quanto a expressões proferidas no âmbito de luta sindical ou expressão política.
Não é despicienda a dúvida relativamente ao ponto onde termina a liberdade de expressão e o inerente direto à crítica e onde começa a extrapolação desse direito, entrando-se na ofensa da honra e/ou ao bom nome e, consequentemente, na esfera dos crimes de injúria, difamação e ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva.
Com efeito, nem sempre é fácil traçar a linha divisória das referidas realidades, implicando sempre uma ponderação casuística, com necessária atenção ao contexto e às motivações do agente, principalmente quanto estas se refletem no teor do discurso (oral ou escrito).
No plano criminal, não deve ainda perder-se de vista que a condenação de um agente por um ilícito dessa natureza depende da comprovação de que as expressões proferidas revestem uma gravidade tanta que imponha a intervenção do Direito Penal, numa expressão acérrima do princípio da subsidiariedade deste ramo do direito.
Analisemos ora, brevemente, os tipos de crime imputados ao arguido.
Dispõe o art. 180.º do Código Penal que:
«Quem, dirigindo-se a terceiro imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.».
Configuram elementos do tipo de ilícito em causa:
- a imputação de um facto ou a formulação de um juízo, apresentando-os como verdadeiros/corretos e assentes numa convicção própria, ou divulgando-os, como de terceiros.
- o dolo, em qualquer das suas modalidades;
O crime em análise pode ser cometido mediante o uso de insinuações ou suspeitas desonrosas acerca de outrem.
O crime de difamação é um crime de dano, consumando-se apenas com a verificação objetiva do resultado, ou seja, quando o agente efetivamente atinge a honra e/ou reputação do visado. Donde, será necessário verificar, caso a caso, se existe um nexo de causalidade entre o resultado produzido e a conduta do agente, segundo a teoria da causalidade adequada (10.º, n.º 1 do Código Penal), por forma a saber se o resultado que se verificou configura consequência adequada, razoável e previsível daquela conduta tendo em conta, não só as regras da experiência comum, como os próprios conhecimentos individuais de cada agente em concreto.
Note-se que o art. 180.º do Código Penal prevê uma específica causa de exclusão da ilicitude, na medida em que o seu n.º 2 determina que a conduta prevista no n.º1 não é punível «quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.».
Acresce que o artigo 183.º do Código Penal dita que:
«1 - Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182.º:
a) A ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou,
b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação;
as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
2 - Se o crime for cometido através de meio de comunicação social, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias.».
Para estes efeitos, é considerado «meio de comunicação social» a internet – cf. PINTO DE ALBUQUERQUE, Paulo, ob. cit., p. 734 – e em concreto uma página do Facebook, desde que aberta ao público em geral e não apenas aos «amigos» do arguido, cf. o acórdão do venerando Tribunal da Relação do Porto de 30 de outubro de 2013, processo n.º 1087/12.9TAMTS.P1.
Diga-se, ainda, que o facto de as palavras do arguido terem sido veiculadas por escrito não impede a punição, atenta a equiparação legal ínsita no artigo 182.º do Código Penal.
Dispõe o art. 187.º n.º 1 do Código Penal, que:
«Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação, é punido com pen de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.».
Caso a ofensa seja praticada através de meios ou e circunstâncias que facilitem a sua divulgação ou, tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação, a pena é agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo (cf. o artigo 183.º, ex ui o artigo 187.º, n.º 2, a), do Código Penal).
O crime em causa visa a proteção do bem jurídico «honra» (das pessoas coletivas e demais referidas na norma), mas numa ótica distinta da das pessoas singulares, na medida e que comporta um cariz de credibilidade, de prestígio e de confiança, do público/cliente naquela entidade.
Quando perante uma pessoa coletiva, apenas poderá estar em causa a vertente exterior da honra, ou seja, o seu bom nome, passível – é claro – de proteção constitucional e, por conseguinte, penal, mas apenas na dimensão relacionada com o respetivo bom nome.
O bom nome relaciona-se com aquela tríade «credibilidade, prestígio, confiança», de forma absolutamente tautológica, ou seja: é o bom nome que espoleta a credibilidade, o prestígio e a confiança da comunidade na pessoa coletiva, sendo que a confirmação destes é o substrato da manutenção do bom nome.
Este é um crime de perigo abstrato-concreto e de mera atividade, por isso mesmo se distinguindo dos crimes de injúria e difamação, que dependem do dano efetivo à honra.
São elementos objetivos do tipo de crime em apreço os seguintes:
- a afirmação ou propalação de factos inverídicos;
- suscetíveis de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança da pessoa coletiva – apreciados à luz do homem normal e diligente (FARIA COSTA, ob. cit., p. 680);
- a inexistência de fundamento, por parte do agente de boa fé, para os julgar verídicos.
Quanto aos elementos objetivos do tipo, a conduta é punida se cometida dolosamente, em qualquer das suas modalidades (cf. o artigo 14.º, do Código Penal).
A este crime aplica-se o disposto no artigo 183.º do Código Penal, ex ui o artigo 187.º n.º 2 do mesmo diploma, valendo, aqui, mutatis mutandis, as considerações feitas supra a este propósito.
Vertendo as considerações supra expendidas ao caso concreto.
Antes de mais, impõe-se analisar o mesmo à luz da tensão atrás exposta entre o direito à liberdade de expressão e do direito à honra de outrem.
Conforme se julgou provado, o arguido realizou uma publicação no seu perfil da rede social Facebook – ao qual qualquer pessoa tinha acesso –, na qual se referiu, pelo menos em parte, aos assistentes.
Note-se, quanto ao assistente, que apesar de o arguido não ter feito constar expressamente o seu nome na publicação, o mesmo era facilmente acessível numa das ligações eletrónicas que acompanhavam o texto, tendo ainda ficado demonstrado que, pelo menos nas localidades de ... e de ..., o assistente era reconhecido como a “cara” da empresa e grupo «B..., Lda.». Assim, a expressão “patrão” utilizada pelo arguido no texto em causa era facilmente reconduzível, pelos destinatários do escrito, à pessoa do assistente BB.
Ora, no texto escrito e publicado pelo arguido, este refere-se inicialmente, de modo genérico, a «métodos de repressão que patrão e chefias aplicavam às trabalhadoras desta “nova fábrica”».
Depois, no parágrafo em que constam as (únicas) expressões que se consideram terem potencial relevo criminal, escreveu o arguido:
«Desde que a nova administração patronal tomou conta da fábrica que as trabalhadoras trabalham sob um intenso controlo de um sistema de câmaras interno, em género de big brother. Para além dos baixos salários praticados e da perda de antiguidades, as idas à casa de banho são controladas por uma luz vermelha que, quando dispara, alerta as operárias que o seu tempo para necessidades fisiológicas naturais terminou e que têm de voltar à produção. Os horários de descanso não são cumpridos integralmente. Mas a coisa atinge proporções aterradoras quando se começa a registar a perda de saúde, física e psicológica, das operárias. As baixas “normais” e psiquiátricas começam aumentar ao ponto de a própria médica da Extensão de Saúde ... afirmar que “algo não está certo” para tantas operárias da mesma fábrica requererem baixas. Inclusive regista-se o aborto espontâneo de uma operária, que coincide com o último período de maior repressão na fábrica, fruto do aparecimento de uma nova chefia-encarregada proveniente dos conglomerados industriais do calçado de .... Ao que tudo indica, essa capataz da burguesia já em ... executava as mesmas práticas».
Além disso, como se aflorou já, acompanhou o texto de ligações eletrónicas para sítios online com notícias e textos, nomeadamente sobre a sociedade assistente.
Conforme se foi adiantado, é manifesto que a análise da conduta do arguido apenas pode ser feita com uma leitura global e completa de todo o escrito publicado.
Neste conspecto, cumpre desde logo salientar que o (longo) texto escrito pelo arguido aborda uma temática mais abrangente do que as condições de trabalho na sociedade assistente, nele se tecendo considerações de índole marcadamente ideológica sobre as condições de trabalho do “operariado fabril”, fazendo um forte apelo à adoção de uma postura de união na reivindicação de respeito pelos direitos dos trabalhadores.
Assim, poder-se-á inclusivamente dizer que o texto produzido e publicado pelo arguido se insere no plano da ação política e da luta sindical, entendidos de forma ampla e lata.
Com efeito, apesar de escrito de forma pessoal e individual, isto é, desassociado de qualquer estrutura política ou sindical, no referido texto não deixa de ser veiculada uma mensagem ideológica, política e social.
Além disso, o arguido, ao escrever o texto, foi confessadamente movido, pelo menos em parte, pela relação de amizade que mantinha com trabalhadoras da empresa.
Acresce, por fim, que, no caso em apreço, atenta a posição e estatuto dos assistentes (que os próprios invocam), estes estavam num plano (pelo menos ligeiramente) mais elevado de sujeição à crítica e à exposição social, face aos demais cidadãos e sociedades comerciais. Com efeito, na qualidade de “empreendedor de sucesso” e de sociedade de renome (pelo menos a nível local), os assistentes situam-se num patamar social que os coloca mais suscetíveis de ser visados, até pela capacidade que têm de se defender das críticas que lhes são dirigidas (ainda que se reconheça que a restrição ao seu direito à honra e consideração não se equipara ao que deve ser imposto às figuras públicas e políticas, por exemplo).
Ora, tudo ponderado, não pode deixar de reconhecer-se que a situação em apreço configura um “caso de fronteira” na determinação dos limites da liberdade de expressão em confronto com os direitos à honra e consideração dos visados.
Com efeito, cumpre constatar que o arguido escreveu expressões nas quais imputa aos assistentes factos e juízos suscetíveis de, em abstrato, afetar a sua consideração e prestígio, nomeadamente as atrás citadas.
Note-se que, contrariamente ao aparentemente pretendido pelo arguido (apesar de não alegado concretamente na contestação), não logrou este demonstrar que os factos imputados aos assistentes na publicação fossem verdadeiros ou sequer que tivesse motivos para crer que o fossem.
Fê-lo, contudo, em circunstâncias específicas, que cumpre ponderar, no seu conjunto, sob pena de se perder o contexto, que nestes casos se afigura tão importante.
E esse contexto, no caso, é o da demonstração de solidariedade a amigas e trabalhadoras (estas vistas, à luz da ideologia veiculada no texto, como um grupo que se pretende uno), de apelo à luta pelo respeito dos direitos laborais destas e de sensibilização para a necessidade de organização de estruturas que permitam às mesmas fazer valer tais direitos. Um contexto de expressão clara de uma ideologia, em que o arguido critica um sistema económico-social com o qual não concorda, acompanhado inclusivamente de referências a autores e pensadores de referência e de ligações eletrónicas a sítios da internet em que as mesmas são aprofundadas.
Tendo em conta o exposto, julga-se não ser uma “necessidade social premente”, numa sociedade democrática e pluralista como a nossa, restringir a liberdade de expressão ao ponto de punir criminalmente condutas como a que se julgou demonstrada nos presentes autos.
Com efeito, pelo menos à luz do princípio da intervenção mínima do direito penal, a punição criminal dos factos cometidos pelo arguido afigurar-se-ia como desproporcional.
Com efeito, julga-se que a conduta praticada pelo arguido ainda se encontra ao abrigo do direito da liberdade de expressão, ainda que se reconheça que se situe numa zona limite.
Por tudo o exposto, cumpre concluir pela não verificação dos elementos objetivos e subjetivos dos tipos de ilícitos criminais de que o arguido vinha acusado, impondo-se a sua absolvição. »
Apreciemos então as questões suscitadas, pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem – isto é, por forma a que, por via da sucessiva apreciação de cada uma, se vá alcançando, na medida do necessário, um progressivo saneamento processual que permita a clarificação do objecto das seguintes.
1. De saber se a Sentença recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação ou por omissão de pronúncia nos termos do art. 379º/1/a)c) do Cód. de Processo Penal.
[questões suscitadas pelo recorrente Ministério Público e pelos recorrentes/assistentes BB e “A..., Lda.”]
Qualquer dos recorrentes ocupa a parte inicial das respectivas petições recursórias por invocar um circunstancialismo que, em seu entender, determina mostrar–se a Sentença recorrida afectada de invalidade processual por via da nulidade prevista no art. 379º/1 do Cód. de Processo Penal.
Por não serem coincidentes os termos e fundamentos em que cada recorrente sustenta esta sua alegação, serão as mesmas apreciadas separadamente.
Isto dito, apreciemos então das pretensões recursórias nesta parte.
i. Da alegada nulidade da Sentença por falta de fundamentação nos termos do art. 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal, suscitada pelos recorrentes/assistentes.
Começam os recorrentes/assistentes BB e “A..., Lda.” por alegar que tendo o tribunal a quo considerado, em sede de motivação da decisão sobre a matéria de facto, que «os factos a) a j) foram considerados não provados atenta a insuficiência da prova produzida para se considerar os mesmos demonstrados. Com efeito, as declarações do assistente e os depoimentos testemunhais referidos contrariaram a maioria da factualidade em causa e, no mais, não foram suficientes para cabalmente a demonstrar», não esclarece devidamente quais foram os elementos probatórios que o levaram a decidir como decidiu e não de outra forma, propugnando que, neste segmento, o tribunal deveria indicar os elementos suficientes para que através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se pudesse controlar a razoabilidade da sua convicção – sendo que, ao eleger, em abstracto e genericamente, depoimentos testemunhais e declarações do assistente para sustentar este segmento, é fórmula que não cumpre tal desígnio.
Donde, concluem, o dever de fundamentação da Sentença não foi cabalmente cumprido tendo, tal vício, aptidão para gerar a consequência prevista nos arts. 374º/2 e 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal.
Apreciando se dirá que logo o artigo 205º/1 da Constituição da República Portuguesa consagra que «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei», sublinhando-se que a necessidade de fundamentar as decisões judiciais é uma das exigências do processo equitativo, um dos Direitos consagrados no artigo 6º/1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (onde se consigna nomeadamente que «Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela.»), na medida em que se traduz num elemento de transparência da justiça inerente a qualquer acto processual.
Sumariamente se dirá que o dever constitucional de fundamentação vem plasmado desde logo no art. 97º/4 do Cód. de Processo Penal, onde se estipula que «Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão», e encontra concretização reforçada no que tange às sentenças penais nos termos do disposto nas disposições conjugadas dos arts. 374º/2 e 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal – de que decorrem em especial os motivos pelos quais a sentença penal pode ser afectada de nulidade por falta de devida fundamentação.
Na verdade, o nº1, alínea a) do citado art. 379º do Cód. de Processo Penal, comina de nula a sentença que não contiver as menções referidas no art. 374º/2/3/b), do mesmo código ; e o art. 374º do Cód. de Processo Penal, versando sobre os requisitos da sentença, estipula no seu nº2 o chamado dever de fundamentação da sentença, determinando que em tal sede «ao relatório segue-se a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
Como escreve o Conselheiro Oliveira Mendes (em “Código de Processo Penal Comentado”, 5ª edição, pág. 1168), essa fundamentação reforçada «visa, por um lado, a total transparência da decisão, para que os seus destinatários (aqui se incluindo a própria comunidade) possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e de apreciação da prova, bem como a actividade interpretativa da lei e sua aplicação e, por outro lado, possibilitar ao tribunal superior a fiscalização e o controlo da actividade decisória, fiscalização e controlo que se concretizam através do recurso, o que consubstancia, desde a Revisão de 1997, um direito do arguido constitucionalmente consagrado, expressamente incluído nas garantias de defesa - artigo 32º, nº1, da Constituição da República».
É na fundamentação da sentença, sua explicitação e exame crítico que se poderá avaliar a consistência, objectividade, rigor e legitimidade do processo lógico e subjectivo da formação da convicção do julgador, do mesmo passo se viabilizando a possibilidade de controlo da decisão, de forma a impedir a avaliação probatória caprichosa ou arbitrária e deve ser conjugada com o sistema de livre apreciação da prova.
Em aditamento a estas considerações quanto ao dever de fundamentação da sentença em especial, e agora mais a propósito da perspectiva como vem configurada a presente pretensão recursória neste segmento, realça–se que para cumprir o dever de fundamentação da decisão de facto deverá o tribunal, após ter enunciado os factos provados e não provados, alinhar as razões que estiveram na base da convicção formada de que a versão dos acontecimentos por si acolhida é correcta. Como se salienta no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 573/98 (publicado no D.R. 2ª Série de 13 de Novembro de 1998), a decisão, sobre a matéria de facto tem de «estar substancialmente fundamentada ou motivada – não através de uma mera indicação ou arrolamento dos meios probatórios, mas de uma verdadeira reconstituição e análise crítica do iter que conduziu a considerar cada facto como provado ou não provado».
Ou seja, se a fundamentação da decisão deve obedecer a uma lógica de convencimento que permita a sua compreensão pelos destinatários, e também pelo tribunal de recurso, essa lógica de convencimento e de possibilidade de controlo por via de recurso apenas se impõe na medida do necessário para a compreensão da decisão, da sua lógica intrínseca, de modo a que não possa apresentar-se como arbitrária ou injustificada.
Como, na parte que neste segmento recursório em particular releva, se decidiu no Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 09/12/2015 (proc. 9/14.7T3ILH.P1)[[3]], «O exame crítico da prova consiste na enumeração das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção. (…) A razão de ser da exigência da exposição, dos meios de prova, é não só permitir o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da convicção do julgador, mas também assegurar a inexistência de violação do princípio da inadmissibilidade das proibições de prova.»
Ora, perante o que fica dito, julga–se não merecer acolhimento a censura nesta parte efectuada pelo recorrente, pois que a Sentença recorrida patenteia um suficiente exame crítico da prova produzida nos autos e com relação a esta parte da respectiva matéria de facto não provada, sendo da leitura da mesma possível reconduzir racionalmente as razões probatórias que determinaram que o tribunal a quo formasse a sua convicção (negativa) quanto aos mesmos.
É bem verdade que, começando por aludir especificamente a esta materialidade fáctica em causa nos pontos a) a j) da matéria de facto não provada, o tribunal a quo começa por recorrer à fórmula genérica que vem recordada pelos recorrentes – isto é, referenciando que «as declarações do assistente e os depoimentos testemunhais referidos contrariaram a maioria da factualidade em causa e, no mais, não foram suficientes para cabalmente a demonstrar».
Porém, também se constata que, logo nessa sequência, e prosseguindo a sua análise, o mesmo tribunal a quo consigna nos seguintes termos, que aqui se recordam também:
«Desde logo, atento o tempo, entretanto decorrido e o facto de o assistente e as testemunhas se terem referido no passado à circunstância de a publicação em causa ter gerado falatório na comunidade laboral (nos meses que se seguiram à publicação), considerou-se demonstrado que tal situação não se mantém à data de hoje (factos não provados a) e c), segunda parte).
Quanto aos factos b), d) e f), além de nenhuma da prova produzida os ter atestado, resultou das próprias declarações do assistente que os contactos que recebeu acerca da publicação foram de pessoas que não credibilizaram o seu teor, por conhecer a sua pessoa e carácter e a satisfação da generalidade dos trabalhadores da empresa. Assim, ficou por demonstrar que tenham sido pedidos esclarecimentos por quem quer que fosse ao assistente sobre o teor da publicação em causa, tanto que as pessoas que com o assistente falaram lhe demonstraram o seu apoio e não haver credibilizado o escrito. De resto, ficou por demonstrar que a publicação tenha gerado suspeitas sobre a credibilidade e responsabilidade social da sociedade assistente, uma vez que nenhum dos elementos probatórios produzidos o corroborou.
Também quanto ao facto não provado c) (1.ª parte) não foi produzida qualquer prova, omitindo as testemunhas qualquer referência ao impacto da publicação em ....
Igualmente, nenhuma das testemunhas inquiridas referiu convincente e sustentadamente que a publicação em causa tenha tido qualquer impacto financeiro na sociedade assistente ou na sua capacidade para captar recursos humanos, tendo inclusive o assistente referido que a empresa não teve prejuízos em decorrência da mesma, pelo que se julgou não provados os factos e) e j).»
Ou seja, o tribunal acaba por, e a propósito de cada um dos pontos não provados aqui concretamente em causa, explicitar, em termos sucintos, mas ainda assim perfeitamente apreensíveis, por que motivo, quer das declarações do assistente BB, quer do depoimento das testemunhas anteriormente referidas – assinalando–se decorrer do teor deste exercício de motivação que os «depoimentos testemunhais referidos» a que o tribunal reporta são os antes identificados depoimentos testemunhais de FF, CC, DD, EE e GG –, quer de ambos os meios probatórios, entende não decorrer a demonstração da factualidade aqui concretamente imputada.
Ou seja, da fundamentação da Sentença resulta que foi em face do teor de quanto resultou destes meios de prova – ou não resultou, conforme vai sendo referido nesta parte da Sentença –, que o tribunal a quo chega à conclusão da não demonstração destes factos.
Não se justificam, pois, as dúvidas dos recorrentes nesta parte, e no que à compreensão dos motivos pelos quais o tribunal a quo, no seu exercício de análise dos elementos de prova que referencia, concluiu nos termos em que o fez nesta parte.
Naturalmente que questão bem diversa, e que se situa a jusante da omissão de explicitação dos motivos pelos quais se chegou às conclusões em sede de matéria de facto aqui em causa, é a de saber se esse exercício se mostra adequadamente efectuado, e se tais conclusões probatórias a que chega o tribunal recorrido são passíveis de censura. Ou seja, a nulidade que aqui vem suscitada, e prevista no art. 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal ocorrerá quanto se verificar ausência de exame crítico das provas produzidas, e não quando o exame efectuado pelo tribunal seja em si mesmo susceptível de censura.
Ora, lida a fundamentação na parte aqui em causa, temos que o tribunal elenca e justifica os motivos em que sustenta, na sua convicção, a demonstração de toda a matéria de facto provada – e, nesta medida, fica aquém da fronteira que delimita a existência da falta de fundamentação.
Considera–se, pois, que através da análise que efectuou, o tribunal a quo faz, de forma adequada e suficiente, a descrição exigida pelo art. 374º/2 do Cód. de Processo Penal do percurso lógico seguido na decisão que tomou e das razões da sua convicção quanto a estes específicos factos referenciados pelos recorrentes, não merecendo tal decisão a consideração do vício de nulidade por falta de exame crítico da prova invocado.
Pelo exposto, é de julgar improcedente igualmente esta parte do recurso.
ii. Da alegada nulidade da Sentença nos termos do art. 379º/1 do Cód. de Processo Penal, suscitada pelos recorrentes Ministério Público e assistentes.
Vêm ainda os recorrentes Ministério Público e também os assistentes BB e “A..., Lda.” suscitar padecer a Sentença recorrida de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos previstos no art. 379º/1/c) do Cód. de Processo Penal, alegação que configuram em contornos não coincidentes entre si.
Assim, e no que tange ao recorrente Ministério Público, invoca que determinada e concreta matéria de facto que se mostra elencada em sede de acusação (deduzida nos autos pelos assistentes e oportunamente objecto de acompanhamento pelo Ministério Público) reveste especial importância e efectivo interesse para a decisão sobre o objecto do processo, não tendo, contudo, o Tribunal a quo considerado tal factualidade como provada ou não provada.
Recorta concretamente o recorrente/Ministério Público a factualidade traduzida no seguinte:
i. que o referido pelo arguido na publicação por ele feita (e que vem transcrito no ponto 4. dos factos provados), não corresponde à verdade; e
ii. e que o arguido sabia da falsidade das imputações que fez aos assistentes.
Assim, conclui, não se tendo o Tribunal a quo pronunciado quanto a tal matéria de facto, considerando–a como provada ou como não provada, violou o seu poder-dever de pronunciar-se sobre todas as matérias relevantes para a decisão e, por isso, a sentença será nula nos termos do invocado art. 379º/1/c) do Cód. de Processo Penal.
Já no que se reporta á alegação dos recorrentes/assistentes BB e “A..., Lda.”, vêm alegar que o tribunal a quo omitiu no que concerne ao julgamento da matéria de facto, as conclusões apresentadas pelos órgãos de inspecção/fiscalizações do Estado (A.C.T.) em matéria laboral que melhor se encontram nos autos, e bem assim o depoimento designadamente da testemunha EE quando se refere às mesmas.
Ora, alegam, a pronúncia sobre tal questão, que entronca na gravidade das imputações do arguido às recorrentes (no que concerne à introdução de meios electrónicos de limitação ao acesso dos seus colaboradores às casas de banho, da instalação de câmaras de videovigilâncias internas com o propósito de estilo big brother e que tal clima criado pela estrutura hierárquica coincidiu com um aborto de um funcionária) permitiria julgar como provado o facto em causa no ponto a) da matéria de facto não provada, entendendo assim os recorrentes estar-se perante a nulidade prevista no art. 379º/1/c) do Cód. de Processo Penal dada a aludida omissão de pronúncia.
Vejamos.
Como já acima ficou enunciado, o artigo 205º/1 da Constituição da República Portuguesa impõe que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”, princípio constitucional que encontra consagração nos termos do disposto no art. 379º do Cód. de Processo Penal, o qual prevê em especial os motivos pelos quais a sentença penal pode ser afectada de nulidade.
Ora, e no que agora aqui releva, a alínea c) do nº1 deste art. 379º do Cód. de Processo Penal trata da chamada omissão de pronúncia, que existirá, tornando igualmente nula a sentença, quando nesta «O tribunal deixe de pronunciar–se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
Este vício processual verifica–se, pois, quanto o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou questões que a lei impõe o tribunal conheça, ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar – havendo que excepcionar as questões cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outra ou outras (cfr. também art. 660º/2 do Cód. de Processo Civil).
A falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide, pois, sobre as questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais. Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/02/2012 (proc. 131/11.1YFLSB)[[4]], «A nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, sendo certo que não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte na defesa da sua pretensão. ».
Aspecto relevante na consideração do vício processual aqui em causa, e que se deixa antever em face de tudo quanto acaba de se referir, é o de que são planos de análise diferentes, e que não devem por isso confundir–se, a omissão de pronúncia. por um lado, e a sindicância sobre a matéria de facto considerada em sede de sentença ou sobre o respectivo julgamento, por outro.
A omissão de pronúncia, porque referida a questão ou questões submetidas ao conhecimento do tribunal, deverá ser aferida por reporte às questões sobre as quais deveria ter incidido o julgamento e, logo, a pronúncia decisória do tribunal ; já a sindicância sobre a matéria de facto considerada em sede de sentença e sobre o exercício de julgamento da mesma, coloca–se num plano posterior, e que se mostra regulado essencialmente nos arts. 410º/2 e 412º/3 do Cód. de Processo Penal, permitindo, reunidos que estejam os necessários pressupostos, a modificação da mesma matéria de facto, nos termos do art. 431º do Cód. de Processo Penal.
A distinção afigura–se clara se se pensar que, a não ser assim, qualquer alteração introduzida pelo tribunal de recurso na decisão sobre a matéria de facto provada na sentença – nomeadamente por aditamento –, nos termos permitidos pelo art. 431º do Cód. de Processo Penal, redundaria quase inevitavelmente no reconhecimento a posteriori de uma omissão de pronúncia por parte do tribunal recorrido. E, manifestamente, assim não sucede, mesmo quando essa alteração na matéria de facto determina uma alteração aos termos em que o tribunal a quo decidiu alguma das questões submetidas ao seu julgamento.
Revertamos estas considerações ao caso presente, e às concretas alegações recursórias nesta parte.
E começando pela pretensão dos assistentes BB e “A..., Lda.”, logo se dirá que a própria fórmula como se mostra configurado, pelos recorrentes, o vício aqui invocado permite antever a falta de razão da respectiva invocação.
Na verdade, a circunstância de o tribunal, em sede de Sentença, não aludir em específico a determinado meio de prova – como as aqui invocadas conclusões da ACT em conjugação com determinada passagem de um depoimento testemunhal –, só por si, não configura omissão de pronúncia sobre determinada a questão concreta, mostrando–se esta decidida num sentido divergente daquele que o recorrente propugna seria o adequado.
Aquilo que os assistentes aqui invocam e alegam é, afinal, que a devida ponderação de determinados meios de prova teria como efeito a inversão de sentido de um facto considerado na Sentença como não provado.
Ora, isso é nada menos que o epítome daquilo que é a impugnação ampla do julgamento da matéria de facto, tal como prevista no art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal.
Ou seja, a circunstância de o tribunal a quo se pronunciar sobre determinada matéria por via de um exercício de julgamento que o recorrente considera passível de censura, mas não deixando, porém, de se pronunciar e decidir quanto à mesma, não configura processualmente alicerce de verificação da invalidade aqui de omissão de pronúncia aqui em questão – devendo antes ser devidamente apreciado em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto.
Não assiste, pois, razão aos recorrentes/assistentes nessa sua alegação.
Diversa deverá ser, todavia, a decisão no que toca à alegação recursória do Ministério Público nesta parte, pois que aí se julga flagrante a evidência da razão que assiste à mesma – ainda que por via de um enquadramento jurídico–processual diverso (mas não substancialmente) daquele que vem alegado.
Recorde–se vir alegado que concreta matéria de facto elencada em sede de acusação (deduzida nos autos pelos assistentes e objecto de acompanhamento pelo Ministério Público) reveste importância e efectivo interesse para a decisão sobre o objecto do processo, não tendo, contudo, o Tribunal a quo considerado tal factualidade como provada ou não provada. Recorta o recorrente/Ministério Público em especial a factualidade traduzida no seguinte:
i. que o referido pelo arguido na publicação por ele feita (e que vem transcrito no ponto 4. da matéria de facto provada, designadamente que “desde que a nova administração patronal tomou conta da fábrica que as trabalhadoras trabalham sob um intenso controlo de um sistema de câmaras interno, em género de big brother. Para além dos baixos salários praticados e da perda de antiguidades, as idas à casa de banho são controladas por uma luz vermelha que, quando dispara, alerta as operárias que o seu tempo para necessidades fisiológicas naturais terminou e que têm de voltar à produção. Os horários de descanso não são cumpridos integralmente. Mas a coisa atinge proporções aterradoras quando se começa a registar a perda de saúde, física e psicológica, das operárias. As baixas “normais” e psiquiátricas começam aumentar ao ponto de a própria médica da Extensão de Saúde ... afirmar que “algo não está certo” para tantas operárias da mesma fábrica requererem baixas. Inclusive regista-se o aborto espontâneo de uma operária, que coincide com o último período de maior repressão na fábrica, fruto do aparecimento de uma nova chefia-encarregada proveniente dos conglomerados industriais do calçado de .... Ao que tudo indica, essa capataz da burguesia já em ... executava as mesmas práticas”) não corresponde à verdade ; e
ii. que o arguido sabia da falsidade das imputações que fez aos assistentes.
Donde, não se tendo o Tribunal a quo pronunciado quanto a tal matéria de facto, considerando–a como provada ou como não provada, violou o seu poder-dever de pronunciar-se sobre todas as matérias relevantes para a decisão.
Sendo assim, conclui o recorrente, a sentença será nula nos termos do art. 379º/1/c) do Cód. de Processo Penal.
A enumeração, em sede de decisão recorrida, dos factos provados e não provados revela quais os factos que foram efectivamente considerados e apreciados pelo tribunal e sobre os quais recaiu um juízo probatório.
Num caso – como aquele que é, afinal, o aqui vertente e nesta parte – em que o recorrente (Ministério Público) entende assumirem relevância para a decisão da causa determinados factos, expressamente alegados em sede de acusação, não considerados pelo tribunal recorrido em sede de Sentença, esse entendimento é passível de reacção processual.
Ora, e como já acima se enunciou, o nº1, alínea a) do art. 379º do Cód. de Processo Penal, comina de nula a sentença que não contiver as menções referidas no art. 374º/2/3/b), do mesmo código ; e, na parte do nicho temático que aqui agora nos ocupa, o art. 374º/2 do Cód. de Processo Penal, versando sobre os requisitos da sentença, estipula o chamado dever de fundamentação da sentença, determinando que em tal sede «ao relatório segue-se a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
Assim, se é certo que aquela reacção à omissão de factualidade tida por relevante, passa, efectivamente, pela invocação da nulidade da sentença nos termos do art. 379º/1 do Cód. de Processo Penal, certo é que, como se referencia no Acórdão do Tribunal Constitucional nº312/12, de 20/06/2012 (proc. 268/12)[[5]], «o mecanismo processual que possibilite essa reação não passa necessariamente pela consagração do direito de solicitar a um tribunal de recurso que ajuíze, em primeira mão, se os factos omitidos, face à prova produzida, resultaram demonstrados, sendo suficiente que o arguido tenha a possibilidade de invocar a nulidade resultante da respetiva omissão de pronúncia, cabendo ao tribunal de recurso verificá-la e determinar o seu suprimento (…). Esse meio de reação encontra-se, aliás, previsto no artigo 379.º, do Código de Processo Penal, que no n.º 1, a), sanciona com a nulidade a sentença que não contenha as menções referidas no n.º 2, do artigo 374.º, onde consta a enumeração dos factos provados e não provados, o que inclui aqueles que resultaram da discussão da causa (artigo 368.º, n.º 2), devendo essa nulidade ser arguida ou conhecida em recurso, sem prejuízo do tribunal recorrido a poder suprir (n.º 2, do artigo 379.º)».
Ou seja, o mecanismo processual adequado a sindicar a omissão de consideração em sede de sentença de factos que o recorrente repute de essenciais à decisão da causa, será a invocação da nulidade da mesma sentença por falta de fundamentação de facto, como previsto no art. 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal, em conjugação com o supra transcrito nº2 do art. 374º do mesmo código.
Ora, pese embora o ora recorrente/Ministério Público não tenha revertido expressamente a tal nulidade – mas sim àquela de omissão de pronúncia prevista na alínea c) do mesmo art. 379º/1 do Cód. de Processo Penal –, deverá apreciar–se a questão assim suscitada em sede de recurso em conformidade com a sua materialidade – e independentemente, portanto, da qualificação formal da mesma que vem efectuada.
Donde, entende–se ser a agora referenciada a devida configuração substancial e material da alegação e conclusões do recorrente nesta parte.
Sempre se diga, aliás, e de acordo com a jurisprudência largamente maioritária nesta matéria – e que se subscreve – que as nulidades da sentença previstas no art. 379º/1 do Cód. de Processo Penal são de conhecimento oficioso. Neste sentido se cita, por todos, o Cons. Oliveira Mendes, no “Código de Processo Penal Comentado”, ed. 2014, a pág. 183, onde escreve «Quanto ao seu conhecimento pelo tribunal de recurso a lei, mediante a alteração introduzida em 1998, com o aditamento do nº 2, estabelece que «as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso», o que não pode deixar de significar que o tribunal de recurso, independentemente de arguição, está obrigado a conhecê-las. A letra da lei é unívoca: «as nulidades da sentença devem ser... conhecidas em recurso». Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Outubro de 2010, proferido no Processo nº 70/07.0JBLSB.L1.S1, as nulidades da sentença, conquanto não sejam insanáveis, uma vez que não incluídas nas nulidades previstas no artigo 119º, do CPP, são cognoscíveis em recurso, mesmo que não arguidas, visto que as nulidades da sentença enumeradas no artigo 379º, nº 1, têm regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades dos restantes actos processuais.
Aliás, nem poderia ser de outra forma, sob pena de o tribunal de recurso, na ausência de arguição, ter de confirmar sentenças sem qualquer fundamentação, violadoras do princípio do acusatório e mesmo sem dispositivo. A não serem as nulidades da sentença susceptíveis de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, passaríamos a ter decisões, quer absolutórias quer condenatórias, eivadas de vícios e de anomias, algumas inexequíveis, apesar de sindicadas por tribunal superior».
Assim devidamente emoldurada em termos processuais a alegação do recorrente, prossigamos – apreciando então se se verifica a nulidade da sentença recorrida nos termos das disposições conjugadas dos arts. 379º/1/a) e 374º/2 do Cód. de Processo Penal.
Como já vimos, de acordo com o disposto no nº 2 do art. 374º do Cód. de Processo Penal, a fundamentação da sentença consta, nomeadamente, da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal.
Por seu lado, em face do disposto no art. 368º/2 do Cód. de Processo Penal, a enumeração dos factos provados e dos factos não provados traduz-se na tomada de posição por parte do tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua apreciação e sobre os quais a decisão terá de incidir, isto é, sobre os factos constantes da acusação ou da pronúncia, da contestação e do pedido de indemnização, e ainda sobre os factos com relevância para a decisão que, embora não constem de nenhuma daquelas peças processuais, tenham resultado da discussão da causa – resultando do nº 4 do art. 339º do Cód. de Processo Penal que a discussão da causa tem exactamente por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência.
Quanto ao critério de acordo com o qual deve aferir–se se determinado facto é ou não relevante para a decisão da causa, temos desde logo o vislumbre do mesmo no art. 124º/1 do Cód. de Processo Penal, onde se prevê que «Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis» –complementando o nº2 que «Se tiver lugar pedido civil, constituem igualmente objecto da prova os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil».
É este critério da relevância de determinado facto que se encontra também presente, por exemplo, no art. 283º/1/3/b)c) ou no art. 308º/1 do Cód. de Processo Penal, quando se definem os pressupostos de que depende, respectivamente, a dedução de acusação pelo Ministério Público ou a prolação de decisão instrutória de pronúncia ; ou ainda no já aludido art. 368º/2 do Cód. de Processo Penal quando se define o âmbito necessário do exercício de deliberação probatória por parte do tribunal de julgamento.
Tendo todas estas considerações presentes, e revertendo, enfim, directamente à concreta alegação do recorrente/Ministério Público, julga–se na verdade que a sentença ora recorrida padece da referida nulidade.
Desde logo se assinala que a matéria de facto aqui concretamente em causa, e cuja omissão de pronúncia por parte do tribunal a quo o recorrente suscita, é objecto de ampla imputação em sede da acusação deduzida nos autos pelos assistentes ao abrigo do disposto no art. 285º do Cód. de Processo Penal, e acompanhada pelo Ministério Público nos termos do nº 4 da mesma disposição legal.
Assim, na parte aqui relevante, e sempre por referência ao teor do escrito publicado em 20/04/2020, cuja autoria vem assacada ao arguido (em termos e com o conteúdo que – como bem assinala o recorrente Ministério Público – se mostram dados por assentes no ponto 4. da matéria de facto provada em sede de Sentença recorrida) naquela acusação se imputa in concretu:
– que o arguido «imputa … um conjunto de factos e ou insinuações inverídicas…» (artigo 6. da acusação),
– que «De forma falsa … refere o arguido: “(…)” » (artigo 7. da acusação),
– que «o arguido realiza a sua intervenção mediante o post acima referido … mesmo sabendo que as mesmas eram inverídicas …» (artigo 14. da acusação),
– que é «falso o clima de assédio que ocorreria na sociedade assistente …» (artigo 19. da acusação),
– que «estas alegações de crueldade e desumanidade no trabalho … desprovidas de fundamento…» (artigo 20. da acusação),
– que «o arguido teceu comentários e fez insinuações e imputações, que sabia ser inverídicas …» (artigo 22. da acusação),
– que «o arguido, conforme aquando das imputações/factos inverídicos referidos nos artigos 5, 6, 7, 8 e 9 desta acusação, agiu de forma deliberada, voluntária livre e consciente … bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei …» (artigo 23. da acusação),
– que «o arguido sabe da falsidade das imputações que faz aos assistentes …» (artigo 30. da acusação).
E assim se mostra imputada tal factualidade, diga–se, muito bem.
É que, como desde logo assinala o Ministério Público na sua alegação recursória, tal factualidade assim descrita no libelo acusatório mostra-se relevante quer para (também) fundamentar a conduta típica, ilícita e culposa do arguido, quer para, na eventualidade de se ter esta por demonstrada, servir de concreto e muito relevante factor a atender em sede de escolha e determinação da medida da pena eventualmente a aplicar ao arguido.
Assim, e quanto ao primeiro aspecto, é verdade que, no que toca ao crime de difamação (imputado acusatoriamente e de que é ofendido o assistente BB), nos termos do art. 180º/1/2 do Cód. Penal, a falsidade dos factos imputados pelo agente ao terceiro a quem se dirige não consubstancia elemento típico criminal, funcionando antes a demonstração da respectiva veracidade factor que exclui a punibilidade da conduta.
Porém, de todo é indiferente para a graduação da gravidade e da culpa do agente dos factos típicos a efectiva demonstração de que os factos imputados ou juízos emitidos, além de ofensivos da honra e consideração do destinatário, são objectiva e materialmente falsos e que o mesmo agente disso estava bem ciente – sendo que o art. 71º/1 do Cód. Penal manda atender, no exercício de determinação da medida concreta da pena a aplicar, «a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele», apontando–se no nº2 da mesma disposição, em especial e desde logo, nomeadamente a consideração sobre «o grau de ilicitude dos factos» (al. a)), «a intensidade do dolo» (al. b)) e «os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinam» (al. c)).
Julga–se de liminar evidência que a falsidade das imputações e a consciência da mesma são factores que acentuadamente funcionam em desfavor do agente da conduta típica em causa.
Mais flagrante ainda é a relevância da imputação fáctica aqui em equação no caso do crime de ofensa a pessoa colectiva (também imputado acusatoriamente e de que é ofendida por seu turno a assistente “A..., Lda.”), pois que decorre da previsão típica em causa, plasmada no nº1 do art. 187º do Cód. Penal, que a falsidade dos factos imputados consubstancia desde logo elemento típico objectivos do crime em causa – na verdade, ali se prevê a criminalização e punição da conduta de «Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação» – destaque agora aposto.
É, pois, indiscutível a razão da alegação do recorrente Ministério Público no que tange à determinante essencialidade dos factos aqui em causa para a boa e correcta decisão sobre o objecto dos autos, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 124º, 339º/4, 368º/2 e 369º/2, todos do Cód. de Processo Penal.
E não é, diga–se, qualquer espécie de juízo de “prognose” ou “antecipação” sobre a ilicitude ou não da conduta do agente dos factos, que tutela a dispensa de pronúncia sobre os elementos de facto típicos da mesma ou sobre aqueles que se possam revelar essenciais na graduação de uma putativa culpa.
Dito de outro modo mais claro e por forma a não suscitar dúvidas, o que se afigura resultar da decisão recorrida é que o tribunal a quo, como que antecipando aquele que vem a ser o seu entendimento de que sempre a conduta do arguido veria excluída a respectiva ilicitude (pelos motivos que depois vem a exarar em sede de apreciação eminentemente jurídica), desconsiderou, em termos de fundamentação de facto, a apreciação e decisão sobre a factualidade aqui em causa.
Tal, contudo, traduz uma inversão de percurso lógico no que à apreciação e decisão da causa diz respeito que não se tem por adequada.
Na verdade, o tribunal em sede de julgamento deve, antes de mais, decidir sobre (toda) a matéria de facto que se mostre relevante para o caso e sem qualquer tributo àquela que seja a prognose sobre o resultado em termos de qualificação e enquadramento jurídico–penal sobre o objecto dos autos ; e só depois de fixada aquela (matéria de facto), deve partir para a análise desta (apreciação jurídica).
É que só dessa forma a decisão a final adoptada permite a sua ampla impugnação por parte dos sujeitos processuais interessados na mesma, e a respectiva sindicância se solicitada.
Pois bem, e prosseguindo, facilmente se constata, percorrida a decisão recorrida em sede da respectiva fundamentação de facto, que na mesma se omite em absoluto qualquer decisão, e correspondente pronúncia como estando ou não provados, sobre os factos aqui em questão – e que se mostram muito adequadamente sintetizados pela alegação do recorrente Ministério Público.
Em tais termos, e fazendo aqui presentes todas as considerações já acima expendidas, é flagrante a omissão de pronúncia do tribunal a quo sobre questões (de facto) que se mostram determinantes para a decisão sobre a configuração jurídico–penal da conduta imputada ao arguido.
E, por tal motivo, a Sentença recorrida é nula, nos termos expressos no art. 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal, o que se declara – concedendo–se, assim, provimento a esta liminar parte do recurso interposto pelo Ministério Público.
No que tange às consequências processuais da nulidade agora verificada, é verdade que do nº 2 do art. 379º do Cód. de Processo Penal – de acordo com a redacção introduzida pela Lei 20/2013, de 21 de Fevereiro –, decorre que o tribunal de recurso pode levar a cabo o suprimento das nulidades da sentença recorrida.
Porém, o exercício de tal poder/dever de suprimento pelo Tribunal da Relação impõe um prévio juízo de cautela processual, por forma a evitar uma situação de supressão de um grau de jurisdição, e o desrespeito do princípio do contraditório e do direito de defesa quanto à questão concreta em equação no caso – situação para que alerta designadamente Paulo Pinto de Albuquerque, no seu “Comentário ao Cód. de Processo Penal à luz da CRP e da CEDH – Volume II”, 5ª ed. (2024), pág. 494 (onde, aliás, exprime uma interpretação acentuadamente restritiva do âmbito de aplicação do poder/dever de suprimento pela segunda instância, previsto no nº2 do art. 379º do Cód. de Processo Penal, limitando–o aos casos de nulidade por excesso de pronúncia verificada nos termos da alínea c) do nº1 do mesmo art. 379º/1.
Ora, no presente caso julga–se inevitável que deva ser o tribunal recorrido a suprir o vício em causa.
E tal entendimento assenta precisamente nos motivos para os quais o recorrente/ Ministério Público alerta na sua alegação, quando, de forma cirúrgica, deixa anotado que «o Ministério Público está convencido que, em face da prova produzida, haveria o Tribunal a quo dar como provado aqueles factos. Contudo, não está em condições de, no que especificamente diz respeito àquela factualidade, de apreciar a decisão do tribunal relativamente à mesma, justamente porque não sabe se tal factualidade foi considerada “provada” ou “não provada”, assim invocando um qualquer vício da prova. Aliás, só será possível impugnar “a decisão proferida sobre a matéria de facto”, indicando “os concretos pontos de facto que foram incorretamente julgados” (artigo 412.º, n.º 3, al. a), do Código de Processo Penal), havendo “decisão sobre a matéria de facto” e “julgamento”/tomada de posição (ainda que errada) sobre concretos pontos de facto.».
E assim é, efectivamente.
Num caso como aquele aqui configurado, a eventual e legítima pretensão de que seja dado como provado (ou não) um facto novo (no sentido de não constar do elenco de factos decididos em sede de fundamentação da Sentença), que se entende assumir relevância para a decisão da mesma, não é susceptível de ser alcançada através da invocação do erro de julgamento nos termos do art. 412º do Cód. de Processo Penal, sob pena de se estar a permitir a realização de um novo julgamento pelo tribunal de recurso, face às provas produzidas perante o tribunal a quo.
Efectivamente, tal impugnação ampla prevista no art. 412º do Cód. de Processo Penal não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, mas sempre por reporte aos concretos pontos de facto recortados na decisão.
E é exactamente por o recurso em que se impugne, por tal via, a decisão sobre a matéria de facto não constituir um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, os aludidos erros, que se impõe ao recorrente o ónus de proceder a uma especificação sob três vertentes, conforme estabelecido no art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal, onde se impõe que, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar (a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, (b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, e (c) as provas que devem ser renovadas.
Os «concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados» são só, naturalmente, aqueles (provados ou não provados) já considerados e elencados em sede de sentença, pois o que se visa é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorrectamente julgados, sindicando o juízo probatório feito pela primeira instância.
Daí que não possa essa impugnação abranger factos sobre os quais o tribunal a quo não se pronunciou, não os dando nem como provados nem como não provados.
Neste sentido se pronunciou desde logo o Acórdão do S.T.J. de 21/03/2012 (proc. 130/10.0JAFAR.F1.S1)[[6]], consignando nomeadamente que «Quando, então, impugne a decisão proferida ao nível da matéria de facto tal impugnação faz-se por referência à matéria de facto efetivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspetiva interessada, não equidistante, com o devido respeito, em relação àquilo que o tribunal tem para si como sendo a boa solução de facto, entende que devia ser provada. Por isso, segundo os termos da lei, a impugnação é restrita à ‘decisão proferida’, e realmente prolatada, e não a qualquer realidade virtual, de sobreposição da sua convicção probatória, pessoal, intimista e subjetiva, à convicção desinteressada formada pelo tribunal.».
No mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22/11/2011 (proc. 130/10.0JAFAR.E1)[[7]], podendo aí ler–se que «Embora constituam objeto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis e ainda os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil (cf. art. 124.º do CPP) e em julgamento, sem embargo do regime aplicável à alteração dos factos (art. 358.º e 359.º), a discussão da causa tenha por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os art. 368.º e 369.º do CPP, a impugnação da matéria de facto não pode extravasar os limites vertidos na sentença ou acórdão e que, em obediência ao disposto no n.º 2 do art. 374.º do mesmo diploma, hão de ser enumerados na sentença, sob pena de nulidade.
Se a sentença não enumera factos, que eventualmente resultaram da discussão da causa e tinham relevância para a decisão, essa omissão não pode ser suprida por uma reapreciação da prova pelo tribunal de recurso. Não foi essa a solução processual querida pelo legislador. A motivação do recurso não é o meio adequado para introduzir factos novos no objeto da ação penal.
Assim, não se pode dizer que o tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento da matéria de facto que o recorrente visa aditar, pois o tribunal só pode incorrer em erro de julgamento nesta matéria, quando julga mal factos concretos invocados por um dos sujeitos processuais e sobre os quais houve deliberação e votação, nos termos do art. 368.º do CPP.
A impugnação da matéria de facto pressupõe, pois, que os factos submetidos à apreciação do tribunal superior tenham sido apreciados na 1.ª instância e, como tal, tenham sido enumerados na decisão de que se recorre, seja nos factos provados, seja nos não provados.»
Esta interpretação normativa foi inclusive submetida à apreciação do Tribunal Constitucional, com vista a aferir se a mesma punha em causa as garantias do direito de defesa, sendo em resultado proferido o já acima aludido Acórdão nº 312/12, de 20/06/2012 (proc. 268/12)[7], em que se decidiu «Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 410.º, n.º 1, 412.º, n.º 3, e 428.º, conjugados com os artigos 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, e 374.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal, na interpretação de que não pode ser objeto da impugnação da matéria de facto, num recurso para a Relação, a factualidade objeto da prova produzida na 1ª instância, que o Recorrente-arguido sustente como relevante para a decisão da causa, quando tal matéria não conste do elenco dos factos provados e não provados da decisão recorrida».
Deve, pois, concluir-se que a designada impugnação ampla da matéria de facto, efectivada nos termos do art. 412º do Cód. de Processo Penal, apenas poderá incidir sobre os factos (provados e não provados) que constam da sentença recorrida e não sobre quaisquer outros.
Por isso, no caso vertente, não é viável a supressão da nulidade de falta de fundamentação em causa por esta instância de recurso: qualquer alteração à factualidade considerada pelo tribunal a quo a que se procedesse nesta instância e pela via da supressão da nulidade detectada, confrontaria os sujeitos processuais com uma modificação contra a qual não teriam eles, já, a possibilidade de reagir se assim o entendessem.
Devem, assim, os autos retornar ao tribunal a quo para que nele se proceda à elaboração de nova Sentença, incluindo na mesma a necessária decisão sobre a matéria de facto aqui em causa – isto é, deverá o tribunal de primeira instância elencar em sede de fundamentação de facto, considerando–os como provados ou não provados, os acusados factos relativos:
– à inveracidade dos factos imputados, ou de quais deles, pelo arguido no seu escrito em causa no ponto 4. da matéria de facto provada – designadamente os seguintes: que “desde que a nova administração patronal tomou conta da fábrica que as trabalhadoras trabalham sob um intenso controlo de um sistema de câmaras interno, em género de big brother. Para além dos baixos salários praticados e da perda de antiguidades, as idas à casa de banho são controladas por uma luz vermelha que, quando dispara, alerta as operárias que o seu tempo para necessidades fisiológicas naturais terminou e que têm de voltar à produção. Os horários de descanso não são cumpridos integralmente. Mas a coisa atinge proporções aterradoras quando se começa a registar a perda de saúde, física e psicológica, das operárias. As baixas “normais” e psiquiátricas começam aumentar ao ponto de a própria médica da Extensão de Saúde ... afirmar que “algo não está certo” para tantas operárias da mesma fábrica requererem baixas. Inclusive regista-se o aborto espontâneo de uma operária, que coincide com o último período de maior repressão na fábrica, fruto do aparecimento de uma nova chefia-encarregada proveniente dos conglomerados industriais do calçado de .... Ao que tudo indica, essa capataz da burguesia já em ... executava as mesmas práticas”,
– e à consciência por parte do arguido da falsidade dessas imputações que fez aos assistentes e à vontade livre de as efectuar,
assim cumprindo integralmente o disposto no art. 374º/2 do Cód. de Processo Penal – e permitindo, a jusante, o adequado escrutínio (desde logo pelos sujeitos processuais) dessa decisão.
Naturalmente que, em resultado de tal supressão da aludida nulidade, poderá, no âmbito do amplo poder jurisdicional que, assim, lhe volta a estar cometido, o tribunal a quo determinar qualquer alteração que se lhe afigure adequada na decisão jurídico–penal adoptada.
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em declarar a nulidade da sentença nos termos do disposto no art. 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal, devendo o tribunal recorrido proferir nova Sentença que, nos termos acima indicados, obedeça integralmente ao normativo do art. 374º/2 do Código de Processo Penal.
Sem custas (cfr. art. 513º a contrario e 515º/1/b) a contrario, ambos do Cód. de Processo Penal).
Porto, 11 de Setembro de 2024
Pedro Afonso Lucas
Maria do Rosário Martins
Lígia Trovão
_______________________________
[[1]] Relatado por Nuno Gomes da Silva, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[[2]] Relatado por Arménio Sottomayor, acedido em https://www.stj.pt
[[3]] Relatado por Eduarda Lobo, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[[4]] Relatado por Oliveira Mendes, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[[5]] Relatado por Cura Mariano, acedido em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120312.html
[[6]] Relatado por Armindo Monteiro, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[[7]] Relatados ambos por Fernando Ribeiro Cardoso, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf