REQUISIÇÃO OU JUNÇÃO DE DOCUMENTOS POR ORDEM DO TRIBUNAL
IGUALDADE DAS PARTES
Sumário

I - Se, no entendimento do tribunal de julgamento, determinados documentos (fotografias, no caso) se mostram relevantes para a apreciação do mérito da causa e o apuramento da verdade, nada obsta a que os mesmos sejam requisitos ou, se apresentados, seja permitida a sua junção, ao abrigo do disposto nos artigos 411 e 436 do CPC, mesmo que em desrespeito dos prazos previstos no artigo 423 do mesmo diploma.
II - Só assim não deverá suceder quando, perante uma manifesta negligência probatória da parte que os podia tempestivamente apresentar, a atividade inquisitória do tribunal possa revelar-se violadora os princípios da igualdade das partes no processo e da independência/imparcialidade do tribunal.

(da responsabilidade do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 1097/22.8T8VNG-B.P1



Recorrente - AA
Recorrida – BB



Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Anabela Morais e Miguel Baldaia de Morais.




Acordam na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto:


I – Relatório

BB, autora na presente ações comum na qual é réu, entre outros, AA, veio dizer e requerer o seguinte:
“1 - Em Audiência de julgamento a A. apresentou o seguinte requerimento: a. “Em virtude do depoimento de parte do Réu AA, e por ser contrário aos danos dos veículos, torna-se necessário a junção do Doc. 1 A que melhor ilustra esses danos, sendo essencial para a descoberta da verdade material e a boa decisão da causa. Pelo que se requer a Vossa Excelência, se Digne a admitir o mesmo. P.E.D.” 2 - Ora, ainda no decurso da Audiência, a A. enviou as Fotos para o email do Tribunal, fornecido pela Estimada D. CC – funcionária Judicial. 3 - No entanto, e uma vez que tal Doc. não chegou, durante o decurso da audiência, a ficar disponível no email do Tribunal vem juntar via Citius, que prontamente o faz, nos termos do n.º 3 do Art. 423.º do CPC. 4 - Com vista à Descoberta da Verdade Material e à Boa Decisão da Causa. 5 - Caso assim não se entenda, admitir tal documento, o que só por mera hipótese se coloca, pois que tal necessidade surgiu no seguimento do depoimento de parte do Réu, que alem de contraditório, foi inesperado quanto à posição de embate dos veículos e dos danos que daí decorreram, requer a V. Exa. se digne a admitir a junção nos termos do n.º 1 do Art. 423.º do CPC atento estar dentro do prazo de 20 dias que antecedem a Audiência final, dispensando para os devidos efeitos de multa com o fundamento supra”.

O réu, AA, em contraditório, veio expor e requerer:
“1 - Em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, a Autora, através do seu mandatário, veio em desespero de causa, requerer, nos termos do n.º 3 do artigo 423.º do Código de Processo Civil, a junção aos autos de um documento; 2 - Para tanto, alegou que tal documento era essencial para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa; 3 - Acontece que, o referido documento poderia e deveria ter sido junto com a Petição Inicial; 4 - Ainda assim, poderia a Autora ter apresentado o dito documento até 20 (vinte) dias antes da data da audiência final, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 423.º do Código de Processo Civil; 5 - Porquanto, a Audiência de Discussão e Julgamento que decorreu durante a manhã de hoje estava agendada desde 26.01.2024;
6 - A Autora teve tempo e oportunidade para vir aos presentes autos juntar os documentos que, na sua opinião, seriam essenciais para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa; 7 - Ora, ultrapassado o momento inicial da ação (n.º 1 do artigo 423.º) e o dos 20 dias antes do início da audiência (n.º 2 do artigo 423.º), a junção de documentos, para ser admitida, pressupõe a presença de dois requisitos cumulativos (que deverão ser alegados e provados pelo/a requerente): i - o não ter sido possível fazê-lo até esse momento; ii - que essa junção/apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior. 8 - Em nenhum dos dois primeiros momentos a Autora procedeu à junção de documentos, para além da prova documental junta com a Petição Inicial; 9 - A ser admitida a junção no dia da audiência, deveriam estar verificados, cumulativamente, os requisitos acima elencados, todavia não se verificam na presente situação; 10 - Pelo que, tal junção tardia é inequivocamente intempestiva; Sem prescindir, 11 - Foi pelo douto Tribunal agendada nova data para a segunda e última sessão de Audiência de Discussão e Julgamento, a fim de serem ouvidas as restantes testemunhas, ora faltosas; 12 - Nesse seguimento, veio a Autora, mediante via Citius, requerer a junção do documento por, alegadamente, estar dentro dos 20 (vinte) dias que antecedem a audiência final (20.06.2024); 13 - Note-se que, primeiramente, a Autora requer a junção do documento invocando o n.º 3 do artigo 423.º do Código de Processo Civil e, posteriormente, atento o conhecimento da nova data da segunda sessão de audiência final, vem invocar o n.º 2 do artigo 423.º do mesmo diploma; 14 - Porém, e não obstante o supra alegado pela Autora, entende o Réu, AA, ser a junção do documento inadmissível por extemporânea, como infra melhor se explanará; 15 - Neste conspeto, atente-se ao Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que refere o seguinte: “(...) ou seja, a legal expressão “até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final”, deve ser entendida e interpretada como a data em que efetiva e realmente se inicie/realize a audiência final, com a prática dos atos inscritos naquele n.º 3, do art. 604.º; todavia, uma vez iniciada a audiência final, com a produção de atividade probatória, e ainda que tenham sido designadas várias sessões temporalmente escalonadas por mais de 20 dias, já não legalmente admissível, nas sessões contínuas, a junção de prova documental nos quadros do n.º 2, do art. 423.º; nesta situação, aquele prazo regressivo de 20 dias tem como início de contagem a data designada para a primeira sessão, não se replicando em relação a cada uma das demais sessões agendadas.” - Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22.06.2023, processo n.º 2855/17.0T8PTM-B.L1-2, disponível em dgsi.pt.; 16 - No mesmo sentido, sublinha o Tribunal da mesma Relação que “num caso em que para a audiência final foram agendadas três sessões, a realizar em 07.02.2023, 28.02.2023 e 28.03.2023, respetivamente, tendo, na primeira sessão, havido lugar à efetiva produção de prova por depoimentos e declarações de parte, o limite do prazo de 20 dias para apresentação de documentos tem como referência aquela primeira data, apesar de a 2.ª e a 3.ª sessões terem sido posteriormente objeto de reagendamento, vindo a realizar-se nos dias 28 de março de 2023 e 11 de abril de 2023, respetivamente.” - Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10.10.2023, processo n.º 11962/21.4T8SNT-A.L1-7, disponível em dgsi.pt. 17 - In casu, na primeira sessão houve lugar à efetiva produção de prova no que diz respeito às declarações/depoimentos de parte, bem como à inquirição de prova testemunhal; 18 - A este respeito, importa salientar que o agendamento da segunda sessão apenas se deveu ao facto de as testemunhas arroladas pela Autora e pelo Réu, CC, terem faltado à primeira e, bem assim, por entenderem que as mesmas deverão ser ouvidas; 19 - De referir que, nos termos do n.º 3 do artigo 423.º do mencionado diploma, a apresentação de um documento torna-se necessária em virtude de ocorrência posterior, nomeadamente, no caso de se destinar à prova ou contraprova de factos ocorridos após o termo do prazo previsto no número anterior; 20 - O que não se sucedeu no caso em apreço; 21 - Ademais, a junção inopinada dos documentos apresentados pela Autora, é contrária à boa-fé e cooperação processual entre as partes, na definição das suas estratégias; 22 - Por todo o exposto e atentas as normas legais supra elencadas e, bem assim, a posição adotada pela jurisprudência, o Réu opõe-se à junção do documento apresentado pela Autora por desrespeitar o prazo estipulado no n.º 2 do artigo 423.º do Código de Processo Civil e, por conseguinte, ser extemporâneo. Assim, Nestes termos e nos melhores de Direito, se requer a V. Exa. se digne a não admitir a junção do documento apresentado pela Autora e, consequentemente, ser o mesmo desconsiderado e desentranhado dos presentes autos”.

Na sequência, foi proferido o despacho de que se recorre: “Visto. Julga-se que o réu AA tem razão quando alega que as fotografias que a autora veio agora exibir já deveriam ter sido juntas ao processo, não se conseguindo sequer compreender a razão pela qual não o foram com a petição inicial. Todavia, não obstante a falta de cumprimento destes prazos processuais, entende-se que poderão ser necessárias para habilitar o tribunal a proferir a decisão final, designadamente para poder aferir com que partes é que os veículos intervenientes terão embatido, havendo aqui uma razão de mérito que se sobrepõe a questões formais, tanto que se soubesse antecipadamente da existência de tais documentos já se teria determinado oficiosamente a sua junção, razão pela qual admite a sua apresentação”.


II – Do Recurso

Inconformado, o réu veio apelar. Pretendendo a revogação do despacho antes transcrito, apresenta as seguintes Conclusões:
I - O recurso tem como objeto a matéria de direito do despacho proferido nos autos, que o tribunal julgou, salvo o devido respeito, erradamente.
II - O tribunal proferiu despacho nos termos e fundamentos seguintes: “(...). Julga-se que o réu AA tem razão quando alega que as fotografias que a autora veio agora exibir já deveriam ter sido juntas ao processo, não se conseguindo sequer compreender a razão pela qual não o foram com a petição inicial. Todavia, não obstante a falta de cumprimento destes prazos processuais, entende-se que poderão ser necessárias para habilitar o tribunal a proferir a decisão final, designadamente para poder aferir com que partes é que os veículos intervenientes terão embatido, havendo aqui uma razão de mérito que se sobrepõe a questões formais, tanto que se soubesse antecipadamente da existência de tais documentos já se teria determinado oficiosamente a sua junção, razão pela qual admite a sua apresentação. (...).
III - A autora, em audiência, veio apresentar um novo documento, isto é, umas fotografias, que até então nunca havia feito menção das mesmas nem junto aos autos.
IV - O tribunal declarou que não tomara conhecimento do mencionado documento, uma vez que até àquele momento não tinham sido apresentadas nem juntas ao processo.
V - Não obstante a posição tomada, após a realização da audiência de discussão e julgamento por requerimento enviado via Citius veio a Autora requerer a junção do aludido documento, nos termos do n.º 3 do artigo 423 do CPC.
VI - O recorrente pronunciou-se, apresentando a sua posição sobre a junção das fotografias, no sentido de não serem as mesmas admitidas e, consequentemente, ser o documento desconsiderado e desentranhado dos presentes autos.
VII - O tribunal decidiu pela admissão das mencionadas fotografias.
VIII - A apresentação do documento é manifestamente extemporânea.
IX - Uma das inovações do Código de Processo Civil de 2013 traduz-se na obrigatoriedade de as partes indicarem os respetivos meios de prova logo na petição inicial e na contestação.
X - Está consignado no n.º 1 do artigo 423 do CPC que os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
XI - O autor deve fazer constar da petição inicial o seu requerimento probatório.
XII - No caso em apreço, a autora aquando da apresentação da petição inicial não fez constar o documento que, segundo a mesma, são “essenciais para a descoberta da verdade material e a boa decisão da causa”.
XIII - Se tais fotografias fossem assim tão essenciais para a descoberta da verdade teria, indubitavelmente, procedido à sua junção na fase dos articulados, e não aguardava pela realização da audiência final para apresentar o documento.
XIV - Ainda que não tivesse apresentado na fase dos articulados, poderia ter apresentado o dito documento até 20 (vinte) dias antes da data da audiência final, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 423 do CPC.
XV - Atente-se ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que clarifica que “Não sendo os documentos juntos com os articulados, nos quais se aleguem os correspondentes factos – o n.º 1, do art. 423.º, do Cód. de Processo Civil -, podem ainda ser juntos no precedente prazo de 20 dias relativamente à data em que se realize a audiência final – o n.º 2, do mesmo art. 423.º” – Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22.06.2023, proc. n.º 2855/17.0T8PTM-B.L1-2, disponível em dgsi.pt.
XVI - A audiência decorreu no passado dia 09 de abril de 2024, sendo que a mesma encontrava-se agendada desde 26.01.2024.
XVII - A autora poderia, assim, ter juntado o documento até ao dia 20 de março de 2024.
XVIII - O que não veio a suceder-se.
XIX - De facto, em nenhum dos momentos a autora procedeu à junção das fotografias (para além da prova documental já junta com a petição).
XX - A autora, sustenta a apresentação do documento sem, contudo, se se dignar a provar o alegado por si, fazendo apenas referência ao n.º 3 do artigo 423.º do C.P.C.
XXI - A junção do documento em apreço, para ser admitido nos aludidos termos, pressupõe a presença de dois requisitos cumulativos (que deveriam ter sido alegados e provados pela autora): i- o não ter sido possível fazê-lo até esse momento; ii- que essa junção/apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior.
XXII - Veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora o qual sublinha que “A junção de documentos ao abrigo do n.º 3 do artigo 423.º do CPC encontra- se sujeita a dois requisitos alternativos: a) admitem-se «os documentos cuja apresentação não tiver sido possível até àquele momento»; (b) «bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior». II. As circunstâncias enquadráveis no primeiro requisito verificam-se quando a impossibilidade de apresentação até ao vigésimo dia anterior à realização da audiência final resultar de um impedimento que não foi possível ultrapassar ou da superveniência objetiva ou subjetiva do documento, devidamente alegada e comprovada. III. As circunstâncias enquadráveis no segundo requisito («ocorrência posterior») reportam-se a factos instrumentais ou a factos relativos a pressupostos processuais. IV. Não se enquadra na previsão do preceito a junção de documentos que visam provar os fundamentos da ação ou da defesa (factos essenciais), nem os factos supervenientes, nem os que visam instruir a impugnação de testemunhas, o incidente de contradita, a impugnação da genuinidade de documento, a ilisão da autenticidade ou da força probatória do documento, porquanto tais incidentes têm regime específicos próprios para a junção dos meios de prova.” – Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 24.11.2022, proc. n.º 3211/16.3T8STR-A.E1, disponível em dgsi.pt.
XXIII - As mencionadas fotografias, que demonstram o estado dos veículos após o acidente, tinham total relação com os fundamentos (factos essenciais) invocados pela autora.
XXIV - A autora fundamenta o seu pedido de admissão das fotografias com base no “depoimento de parte do Réu AA”.
XXV - Contudo, em sede de audiência final, o depoimento de parte do réu, ora recorrente, no que diz respeito à descrição do acidente, em nada se contradiz ao já alegado em sede de contestação.
XXVI - É, pois, totalmente falso que o seu depoimento tenha sido “contrário” e “inesperado” aos danos dos veículos.
XXVII - O réu relatou sempre a mesma versão dos factos.
XXVIII - É, por isso, absolutamente desprovido de sentido quando a autora alega que tornou-se essencial a junção das fotografias aos presentes autos em virtude do depoimento de parte do réu.
XXIX - A autora teve mais do que tempo para vir indicar todos os meios de prova que considerasse pertinentes e essenciais para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
XXX - A autora não se dignou, sequer, a fazer prova de que a apresentação do documento não tinha sido possível até àquele momento (do dia da audiência final); bem como que a apresentação do mesmo se tinha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior (cfr. n.º 3 do artigo 423 do CPC).
XXXI - E não o fez porque, na realidade, sempre teve na sua posse as aludidas fotografias e que, por qualquer razão que se desconhece, não as pretendeu juntar.
XXXII - O tribunal andou mal quando deferiu o requerimento em causa.
XXXIII - A autora com vista a contornar a situação por si causada requereu que, caso o seu pedido nos termos do n.º 3 do artigo 423 do CPC não procedesse, então que atendesse ao seu pedido por via do n.º 2 do artigo 423 do mesmo diploma.
XXXIV - No mesmo requerimento veio peticionar, em alternativa, o seguinte: “Caso assim não se entenda, admitir tal documento, o que só por mera hipótese se coloca, pois que tal necessidade surgiu no seguimento do depoimento de parte do Réu, que alem de contraditório, foi inesperado quanto à posição de embate dos veículos e dos danos que daí decorreram, requer a V. Exa. se digne a admitir a junção nos termos do n.º 1 do Art. 423.º do CPC atento estar dentro do prazo de 20 dias que antecedem a Audiência final, dispensando para os devidos efeitos de multa com o fundamento supra indicado”.
XXXV - Foi pelo tribunal agendada nova data para a segunda e última sessão da audiência, para o para o próximo dia 20.06.2024.
XXXVI - Certo é que a autora muniu-se do facto de o tribunal ter agendado uma segunda data para poder invocar o n.º 2 do artigo 423 e assim poder juntar o documento, visto estar, alegadamente, dentro dos 20 dias que antecedem a audiência final (20.06.2024);
XXXVII - Entende a maioria da Jurisprudência que “uma vez iniciada a audiência final, com a produção de atividade probatória, e ainda que tenham sido designadas várias sessões temporalmente escalonadas por mais de 20 dias, já não legalmente admissível, nas sessões contínuas, a junção de prova documental nos quadros do n.º 2, do art. 423; V - nesta situação, aquele prazo regressivo de 20 dias tem como início de contagem a data designada para a primeira sessão, não se replicando em relação a cada uma das demais sessões agendadas.” – Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22.06.2023, proc. n.º 2855/17.0T8PTM-B.L1-2; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12.05.2015, proc. n.º 7724/10.2TBMTS-B.P1, disponíveis em dgsi.pt.
XXXVIII - Sublinha ainda o Tribunal da mesma Relação que “num caso em que para a audiência final foram agendadas três sessões, a realizar em 07.02.2023, 28.02.2023 e 28.03.2023, respetivamente, tendo, na primeira sessão, havido lugar à efetiva produção de prova por depoimentos e declarações de parte, o limite do prazo de 20 dias para apresentação de documentos tem como referência aquela primeira data, apesar de a 2.ª e a 3.ª sessões terem sido posteriormente objeto de reagendamento, vindo a realizar-se nos dias 28 de março de 2023 e 11 de abril de 2023, respetivamente.” - Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10.10.2023, proc. n.º 11962/21.4T8SNT- A.L1-7, disponível em dgsi.pt.
XXXIX - No caso em apreço, foi na primeira sessão de julgamento produzida grande parte da prova, nomeadamente, foram prestadas as declarações e depoimentos de parte, bem como procedeu-se à inquirição de uma das testemunhas.
XL - Ademais, o prazo dos 20 dias tem como referência a primeira sessão de julgamento e não as seguintes que eventualmente sejam agendadas.
XLI - Pelo que, os fundamentos invocados pela autora para a apresentação do documento na fase final do processo (audiência final) não têm qualquer sustentação no disposto no n.º 2 do artigo 423 do CPC.
XLII - Não se concebe nem se compreende como o tribunal confirma a falta de cumprimento dos prazos processuais, bem como que as fotografias deveriam ter sido juntas ao processo em momento anterior, referindo, até, que não se consegue sequer compreender a razão pela qual não o foram com a petição inicial mas, ainda assim, admitiu a sua junção aos autos por existir uma razão de mérito que se sobrepõe a questões formais.
XLIII - Nesta senda, importa atender ao Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que esclarece o seguinte: “(...) a invocação do princípio do inquisitório não deve, em regra, sobrepor-se aos deveres das partes na apresentação tempestiva de documentos nos autos que têm em seu poder. (...) na conjugação do dever de procura da verdade material (art. 411.º CPCiv) com a necessidade de uma justiça tempestiva e menos formal, foram estabelecidos pelo art. 423.º CPCiv, nos seus diversos números, de 1 a 3, diversos momentos temporais para a apresentação de documentos no processo, podendo os mesmos ser apresentados seja com o articulado onde são invocados determinados factos, seja até 20 dias antes da audiência final (com condenação em multa, exceto com a prova da impossibilidade de obtenção na fase dos articulados), e finalmente, após o limite temporal de 20 dias, p.e., no decurso da audiência de julgamento, quando a sua apresentação não tenha sido possível até ao momento ou só se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior. Portanto, como primeira conclusão, debalde se pode esgrimir o princípio do inquisitório contra a apresentação intempestiva de documentos no processo, posto que as normas atinentes, do Código de Processo Civil, foram elaboradas na previsão e conjugação das ocorrências processuais com a necessidade de justa composição do litígio.” - Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14.07.2020, proc. n.º 8097/18.0T8PRT-A.P1, disponível em dgsi.pt.
XLIV - Não pode o recorrente concordar com a posição tomada pelo tribunal, porquanto ao admitir a junção de um documento numa fase final do processo está “a abrir portas” ao incumprimento, em toda a linha, das normas legalmente previstas no CPC. (cfr. artigo 423.º).
XLV - As normas legais não podem ser ultrapassadas nem desconsideradas, pelo que, com o devido respeito, não pode o tribunal sobrepor-se ou até substituir a Lei.
XLVI - Sublinha o Tribunal da Relação de Lisboa que, se por um lado “o Código de Processo Civil contém diversos preceitos legais que permitem “equilibrar” o regime consagrado no art. 423.º do CPC, em que assume preponderância a consagração do princípio do inquisitório, no art. 411.º do CPC, assim ficando assegurado o direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva e a um processo equitativo (artigos 20.º da CRP e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem); (...) por outro, tal princípio (...) não pode servir para colmatar toda e qualquer “falta” das partes a respeito da apresentação dos meios de prova, pois se assim fosse estaria a fazer-se do mesmo uma interpretação normativa e aplicação prática em colisão com outros importantes princípios, do processo civil e até constitucionais, mormente o dispositivo, a igualdade das partes, a independência do tribunal e a imparcialidade do juiz (20.º e 62.º da CRP).” – Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06.06.2019, proc. 18561/17.3T8LSB-A.L1-2, disponível em dgsi.pt.
XLVII - Refere ainda o Tribunal da Relação do Porto que o princípio do inquisitório previsto no artigo 411 do CPC não pode ser utilizado para, objetivamente, auxiliar uma das partes, prejudicando a outra, permitindo àquela introduzir no processo documentos que não apresentou atempadamente nos termos do artigo 423 do C.P.C. – Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18.02.2016, proc. 788/14.1T8VNG, disponível em dgsi.pt.
XLVIII - Atento o entendimento amplamente maioritário da jurisprudência e, bem assim, a previsão e conjugação das normas legais, andou muito mal o tribunal quando admitiu, na fase final, a junção das fotografias alegando que, não obstante a falta de cumprimento destes prazos processuais, o dito documento poderá habilitar o tribunal a proferir a decisão final.
XLIX - Face a todo o exposto, atenta a fase final em que o documento foi apresentado pela autora e não existindo, no caso em concreto, enquadramento legal para a admissão do mesmo, deveria o tribunal ter declarado a sua junção impreterivelmente intempestiva e, por conseguinte, não admitir o requerimento e o documento que o acompanha com ref.ª via Citius n.º 38701058, datado de 09.04.2024.

Não houve resposta ao recurso, recebido nos termos legais. Atento o objeto da apelação, dispensaram-se os Vistos. Nada observamos que obste ao conhecimento do objeto do recurso, o qual, atentas as conclusões apresentadas, consiste em saber se o despacho recorrido deve ser revogado, uma vez que os documentos apresentados pela autora não deviam ter sido juntos aos autos, ainda que pelos fundamentos daquele despacho.

III – Fundamentação

III.I – Fundamentação de facto

A factualidade constante do relatório, conciliada com as conclusões do apelante, mostra-se bastante ao conhecimento do mérito da apelação.

III.II – Fundamentação de Direito

Importa, antes de mais, clarificar o que não está em questão no presente recurso, para melhor sabermos o que está em causa.

Não está em causa o (in)cumprimento do prazo de apresentação dos documentos, nem sequer se o prazo de vinte dias (artigo 423, n.º 2 do Código de Processo Civil – CPC) deve ser contado apenas antes do início da primeira sessão de julgamento ou se o pode ser atendendo à data, posterior, de outras e eventuais sessão de julgamento, questão, aliás, que não obtém consenso da doutrina nem da jurisprudência.

Efetivamente, em relação à intempestividade da pretensão da autora, o tribunal recorrido acompanhou o entendimento do apelante, pois não deixou de dizer: “Julga-se que o réu AA tem razão quando alega que as fotografias que a autora veio agora exibir já deveriam ter sido juntas ao processo” e, por ser assim, nem o réu ficou vencido, nem essa é a questão a dirimir nesta sede.

O que está em causa é saber se o tribunal recorrido podia admitir os documentos, pelas razões constantes do despacho recorrido: “não obstante a falta de cumprimento destes prazos processuais, entende-se que poderão ser necessárias [as fotografias] para habilitar o tribunal a proferir a decisão final, designadamente para poder aferir com que partes é que os veículos intervenientes terão embatido, havendo aqui uma razão de mérito que se sobrepõe a questões formais, tanto que se soubesse antecipadamente da existência de tais documentos já se teria determinado oficiosamente a sua junção, razão pela qual admite a sua apresentação” (sublinhados nossos).

Por ser assim, a generalidade das conclusões apresentadas pelo apelante, mesmo admitindo o seu acerto, estão fora do objeto que cumpre apreciar.

Mas o recorrente, compreendendo adequadamente que o fundamento da junção dos documentos se ancora no poder oficioso do tribunal e, não explicita, mas necessariamente, na incumbência prevista no artigo 411 do CPC, imputa à decisão um desrespeito pelos princípio processuais e uma incompreensível substituição à responsabilidade probatória da parte.

Nesse enquadramento, o apelante cita jurisprudência, nomeadamente deste Tribunal da Relação do Porto que afasta a possibilidade de o princípio do inquisitório poder socorrer a parte negligente.

Tenha-se presente, no entanto, o que não nos parece despiciente: quer no acórdão de 14.07.2020 [Relator, Desembargador Vieira e Cunha], quer no que, em idêntico sentido, agora, exemplificativamente, citamos [Processo n.º 43063/22.2YIPRT-A.P1, Relatora, Desembargadora Teresa Fonseca, dgsi] este Tribunal da Relação confirma decisões da primeira instância que não admitiram a junção de documentos, não tendo invocado, evidentemente, os fundamentos que emanam do despacho aqui apelado.

Por outro lado, outra jurisprudência evidencia a possibilidade da junção documental resultar da oficiosa e inquisitória decisão do tribunal. Efetivamente, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.09.22 [Processo n.º 3202/18.0T8PDL-C.L1-2, Relatora, Desembargadora Laurinda Gemas, dgsi] sumaria-se, além do mais, que “As regras do art.º 423.º podem não ser aplicáveis quando ao caso convierem outros princípios ou regras, em particular as relativas ao dever de gestão processual ou aos princípios da cooperação e do inquisitório (cf. arts. 6.º, 7.º e 411.º, do CPC)”. E, por sua vez, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.10.21 [Processo n.º 852/20. 8T8FIG-A.C1, Relator, Desembargador Fonte Ramos, dgsi] confirma a decisão da primeira instância que admitiu a junção ao abrigo do disposto no artigo 411 do CPC e deixa sumariado: “1. Desde a fase da instrução do processo (arts. 410º e seguintes do CPC) até à sentença (art.º 607º, n.º 1 do CPC), o juiz poderá/deverá realizar ou ordenar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (art.º 411º do CPC). 2. Salvaguardado o dever de imparcialidade (equidistância), tal poder-dever, inerente ao indeclinável compromisso do juiz com a verdade material, emerge e justifica-se independentemente da vontade das partes na realização das diligências/produção de meios de prova (e da tempestividade dessa iniciativa). 3. Ponderados os princípios do dispositivo, do inquisitório e da auto-responsabilidade das partes, situações de conduta grosseira e indesculpavelmente negligente da parte (v. g., na junção tempestiva dos documentos) poderão ditar a inobservância daquela regra”.

Como resulta dos autos, está em causa a junção de fotografias que se referem a veículos intervenientes num acidente de viação. O tribunal recorrido determinou, já depois da primeira sessão de julgamento (e, naturalmente, da audição da prova aí prestada) que as fotografias ficassem juntas aos autos, louvando-se na apreciação do mérito da causa e acrescentando que, se soubesse da sua existência, já antes tinha determinado (oficiosamente) a junção.

Nos termos do artigo 436 do CPC, o tribunal, por iniciativa própria ou a requerimento pode requisitar... fotografias... ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade. E, de acordo com o artigo 411 do mesmo diploma, incumbe-lhe realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é lícito conhecer.

É consabido que o nosso processo civil comunga, entre outros, e por vezes de modo conflituante, dos princípios do dispositivo e do inquisitório. As partes têm que alegar os factos essenciais que fundamentam a sua pretensão, além de, naturalmente, terem de a formular: o tribunal não pode condenar em objeto diverso ou em quantidade superior do que se pedir (artigo 609, n.º 1 do CPC). Mas, por outro lado, e com relevo acentuado em sede de instrução da causa, o tribunal deve diligenciar, mesmo oficiosamente, com vista ao apuramento da verdade (artigo 411 do CPC).

Há que reconhecer que o princípio do dispositivo não pode constituir um alibi para a negligência ou desresponsabilização das partes e, inequivocamente, nunca poderá comprometer o princípio da igualdade das partes no processo, garantia da independência do próprio tribunal.

Mas vejamos o caso presente: o tribunal recorrido fundamentou a junção na necessidade de melhor perceção dos factos, com vista ao conhecimento do mérito da causa e salientou que as fotografias, soubesse delas, sempre seriam, já antes, oficiosamente juntas aos autos. Note-se que a autora (recorrida) não invocou a aludida oficiosidade na sua pretensão, foi o tribunal, por sua iniciativa, que seguiu esse caminho e, esse caminho, com todo o respeito por outro saber, mostra-se perfeitamente legitimado no disposto nos citados artigos 411 e 436 do CPC.

Não vemos, aliás, como se possa censurar à primeira instância a necessidade/utilidade da junção aos autos das fotografias.

Assim, considerando o concreto objeto do recurso e ponderando as razões do despacho sob censura, entendemos que o mesmo deve ser confirmado.

O recurso mostra-se improcedente. As custas, atento o decaimento, são devidas pelo apelante.



IV – Dispositivo

Pelo exposto, acorda-se na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) em julgar improcedente a apelação e, em conformidade, confirma-se o despacho recorrido.

Custas pelo apelante.





Porto, 23.09.2024
José Eusébio Almeida
Anabela Morais
Miguel Baldaia de Morais.