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EMBARGOS DE TERCEIRO
PROVA
CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
Sumário
I- A prova da existência de um negócio jurídico [no caso um contrato-promessa de compra e venda de frações que iriam integrar um edifício que a promitente vendedora iria construir] face a um terceiro completamente alheio ao negócio [a exequente contra a qual foram deduzidos embargos de terceiro com fundamento na entrega das frações em cumprimento do contrato-promessa] tem de se fundar em elementos isentos e objetivos dos quais se possa concluir para efetiva celebração de tal negócio. II- Baseando-se a prova da existência do contrato-promessa, enquanto negócio jurídico que as partes quiseram celebrar, unicamente na existência do documento apresentado pelos embargantes, que foi assinado por eles e pela executada, e no depoimento de parte do próprio embargante, temos de concluir que não há elementos isentos e objetivos que permitam concluir pela existência de tal negócio jurídico, pelo que tal facto tem de ser considerado não provado. III- Não obstante do contrato-promessa resultarem apenas direitos do âmbito obrigacional, não sendo, por regra, a entrega da coisa prometida vender suscetível de gerar a posse que fundamenta o uso de ações possessórias destinadas à respetiva defesa, a jurisprudência tem admitido que, em determinadas circunstâncias, tal entrega possa gerar o exercício de poderes de facto suscetíveis de configurarem a posse baseadas diretamente no direito que se visa adquirir por via do contrato-promessa. IV- No entanto, não se provando a existência do invocado contrato-promessa, os embargantes de terceiro têm de ser considerados meros detentores precários, pelo que nenhum direito lhes assiste suscetível de afetar a penhora que foi efetuada na ação executiva.
Texto Integral
Acordam os Juízes Desembargadores que compõem este Coletivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
RELATÓRIO
Recorrente-embargada: H, S.A.
Recorridos-embargantes: JG e MG
Por apenso ao processo de execução para pagamento de quantia certa que é exequente a recorrente H e executada a sociedade comercial RFF Lda., os recorridos vieram deduzir oposição mediante embargos de terceiro.
Invocaram como fundamento dos embargos o seguinte:
Os embargantes, em 13/11/2001, através de um contrato-promessa de compra e venda, celebrado com a empresa executada “RFF Lda.”, prometeram adquirir e esta última prometer vender três fogos de tipologia T3, sendo dois dos fogos no piso do 1.º andar e um fogo no 2.º andar num edifício que iria a ser construído num terreno destinado a construção com a área de 1600,00 m2 (mil e seiscentos metros quadrados), sito na …, descrito na Conservatória do Registo Predial de …sobre o n.º … do Livro …, inscrito na matriz setenta e seis da secção …, pendente de retificação Matricial. O edifício já foi construído e foi também constituído em propriedade horizontal, correspondendo os 2 fogos do 1º piso às frações D e E, as quais foram penhoradas nos autos principais. Mais alegaram que as chaves das referidas frações foram entregues aos embargantes em 2006, encontrando-se as mesmas a ser habitadas por dois dos filhos dos embargantes desde 2006 (a fração D) e 2008 (a fração E), até hoje, pacificamente, de boa fé e à vista de todos. A sociedade executada não celebrou o contrato definitivo de compra e venda porque tem uma hipoteca ao banco exequente, tendo protelado sucessivamente a escritura das aludidas frações, até hoje. Alegaram ainda que pagaram integralmente o preço acordado relativo aos três mencionados fogos.
Entendem que as penhoras sobre as aludidas frações atentam contra a posse que exercem sobre as mesmas e por isso pedem o levantamento dessas penhoras.
O banco embargado contestou, impugnando o alegado pelos embargantes para sustentarem a posse que invocam. Invocou a nulidade do contrato-promessa, caso se prove a respetiva existência, dizendo que à data da celebração do mesmo a executada não era sequer proprietária do terreno onde o imóvel viria a ser construído. Invoca ainda o abuso de direito por parte dos embargantes, dizendo que eles não tomaram quaisquer providências contra a executada, como por exemplo a instauração da ação de execução específica, mas unicamente contra os credores desta.
Foi proferido despacho saneador tabelar a julgar verificados os pressupostos processuais e foi fixado o objeto do litígio.
Realizou-se a audiência final
Foi proferida sentença cujo trecho decisório é o seguinte:
“Pelo exposto, atentas as disposições legais citadas e as considerações expendidas, julgo procedentes os presentes embargos, e, consequentemente: A. Reconheço o direito de posse dos embargantes sobre as frações autónomas “D” e “E” correspondentes respetivamente ao 1º andar esquerdo e 1º andar direito, Bloco A, para habitação, do prédio urbano em propriedade horizontal sito na …, n.º 18, 18-A e 18-B, com vãos de porta para a …, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de … com n.º … e inscrito matriz artigo …, da freguesia de …. B. Determino o levantamento das penhoras que recaem sobre as referidas frações “D” e “E”. Custas pela exequente.”.
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Inconformada com o decidido, apelou a embargada, tendo apresentado alegações e as seguintes conclusões:
a) (irrelevante pois é a mera transcrição do segmento decisório da sentença)
b) A Recorrente é a Exequente nos autos principais e cuja dívida exequenda, além da garantia da penhora dos autos beneficia ainda da garantia real da hipoteca voluntária registada pela AP. 31 de 2003/03/05 sobre o prédio urbano registado na 1.ª Conservatória do registo Predial de … sob o n.º …, Freguesia de …;
c) A constituição da hipoteca voluntária atualmente detida pela Recorrente (AP. … de 2003/03/05) foi feita em simultâneo com a aquisição da propriedade do imóvel (na altura lote de terreno onde posteriormente viria a ser edificado o prédio urbano constituído em propriedade horizontal) por parte da executada RFF Lda. Na escritura de compra e venda e empréstimo celebrada em 04/02/2003 e que serve de título executivo nos autos principais;
d) A supramencionada hipoteca voluntária (AP. … de 2003/03/05) que após a construção do edifício e instituição da propriedade horizontal passou a incidir sobre as fracções autónomas constituídas, presentemente apenas se encontra em vigor sobre as fracções C, D e E penhoradas nos autos principais, sendo que em discussão nos presentes embargos de terceiro apenas estão em causa as fracções D e E;
e) A hipoteca voluntária detida pela Recorrente foi constituída para garantir as obrigações do contrato de empréstimo destinado à construção do prédio do qual fazem parte as fracções D e E em discussão nestes embargos de terceiro;
f) O Tribunal a quo, na sentença recorrida acabou por alterar em absoluto o entendimento que havia defendido e transmitido às partes em sede de audiência prévia de embargos realizada a 02/03/2023 no sentido de que invocando os Embargantes a celebração de um contrato promessa a defesa dos seus interesses teria de ser por via de reclamação de créditos e não de embargos de terceiro;
g) O Tribunal a quo acabou por alterar por completo a posição que havia transmitido às partes, determinado o cancelamento das penhoras sobre as fracções D e E, o que apenas acaba por beneficiar a sociedade executada e em nada resolve a situação dos Embargantes que alegam já ter efetuado o pagamento na íntegra das fracções por via de uma permuta do lote de terreno onde foi construído o edifício;
h) O Tribunal a quo entendeu não existirem quaisquer factos como não provados;
i) A Recorrente nada tem a censurar que tenham sido julgados como provados os factos identificados na sentença recorrida como A, B, C, D, J e K já que resultam da prova documental idônea e objetiva constante dos autos e/ou por acordo das partes;
j) Relativamente aos demais factos dados como provados (E, F, G, H, I e L), salvo o devido respeito não houve uma devida ponderação e análise criteriosa da prova produzida, nem foi produzida prova de particular relevo requerida pela Recorrente, como por exemplo a documentação contabilística e bancária da Executada e dos Embargantes;
k) A Recorrente discorda de terem sido dados como provados os factos elencados como E e F e que respeitam aos 2 contratos promessa ambos alegadamente celebrados entre os Embargantes e a sociedade Executada em 13 de Novembro de 2001;
l) O documento intitulado “CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA” alegadamente celebrado entre a sociedade Executada na qualidade de promitente vendedora e os Embargantes na qualidade de promitentes compradores em 13 de Novembro de 2001 por documento particular sem termo de reconhecimento de assinaturas havia sido junto como Doc. 4 com a petição inicial de embargos de terceiro e foi novamente junto pelos Embargantes como Doc. 2 com o seu requerimento de 29.06.2023;
m) A Recorrente na sua Contestação aos Embargos de Terceiro, e no seu requerimento de 09.07.2023, impugnou o documento em causa (“CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA”) e invocou a sua nulidade, uma vez que se reitera que em 13 de Novembro de 2001 a promitente vendedora RFF não era proprietária do Lote de terreno em causa, nem é feita qualquer menção a que se trataria de promessa de bens futuros, é perentoriamente afirmado na Cláusula documento em causa que em 17/11/2001 a Executada RFF Lda. é “(…) dona legítima e possuidora de um terreno destinado à construção com a área de 1600,00 M2 (mil e seiscentos metros quadrados) sito na …, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de … sobre o N.º …, do Livro … (…)”, adquirido na presente data aos segundos outorgantes”;
n) A Recorrente, em requerimento de 09/07/2023 impugnou o referido documento e requereu que os Embargantes fossem notificados para juntar aos autos o original do referido documento, o que não veio a acontecer;
o) Salvo o devido respeito, da análise do documento, que se encontra digitalizado e com uma boa resolução não consegue visualizar nas páginas 1 e 2 do documento o carimbo/selo branco do Notário e que apenas é visível na página 3, pelo que eram legítimas as dúvidas suscitadas pela Recorrente e que se mantêm;
p) As testemunhas inquiridas em sede de audiência de discussão e julgamento eram ambas filhas dos Embargantes o que já por si só impunha um maior rigor na valoração dos seus depoimentos, mas além disso as mesmas residem e utilizam as fracções objecto dos embargos de terceiros, pelo que têm um especial interesse na procedência dos mesmos e em manter o atual status quo;
q) As 2 testemunhas ouvidas nesse ponto foram unânimes de que a celebração dos pretensos contratos/negociações ocorreram entre o seu pai e Embargante e a sociedade Executada, pelo que grande parte do seu depoimento foi indireto;
r) Bem paradigmático desta situação foi o que ocorreu com a testemunha JG quando a minutos 6:50 a 7:06 do seu depoimento e a instâncias do ilustre mandatário dos Embargantes a testemunha refere claramente que “(…) o contrato foi assinado pelo meu pai, supostamente, o meu pai disse-me isto informalmente (…) só tenho a palavra do meu pai, supostamente (…)”;
s) Em momento algum dos depoimentos de ambas as testemunhas, torna-se possível retirar a conclusão que foi produzida prova credível relativamente aos contornos dos negócios/acordos alegadamente celebrados entre os Embargantes e a Executada, desde logo porque as testemunhas filhos dos Embargantes seriam menores de idade e como as próprias afirmaram não tiveram qualquer intervenção direta nos contratos, relatam o que o pai lhe havia transmitido;
t) A Mma. Juiz do Tribunal a quo e depois de muitas insistências do ilustre mandatário dos Embargantes 1:28 a 4:01 mesmo considerando que não seria admissível quer como Depoimento de Parte, quer como Declarações de Parte, acabou por admitir que o Legal Representante da executada prestação Declarações como Co-Parte livremente valoradas pelo Tribunal;
u) Contrariando o que a própria já anteriormente havia julgado inadmissível este meio de prova no despacho-saneador de 16/05/2023 onde havia decidido que “(…) Prova por depoimento do legal representante do embargado/sociedade executada – não é admissível, uma vez que a sociedade executada não contestou os embargos (…)”;
v) O Embargante JG nas suas declarações de parte procurou naturalmente reproduzir a versão que havia pugnado na sua petição inicial e requerimento de resposta às excepções, porém a sua versão não deve merecer credibilidade pois é contrariada com o declarado na escritura pública de venda do lote de terreno onde foi edificado o prédio constituído em propriedade horizontal realizada a 04/02/2003 e que serve de título executivo à Recorrente;
w) O Embargante a minutos 5:32 a 6:02 das suas declarações, refere expressamente que o alegado pagamento dos futuros 3 apartamentos seriam descontados do preço que teria a receber da venda à Executada do lote de terreno para construção, conforme palavras do próprio Embargante, que os futuros 3 apartamentos depois de construídos lhe seria entregues em permuta pela venda à Executada do Lote de Terreno;
x) O preço de venda declarado na escritura de 04/02/2003 do Lote de Terreno onde foi edificado o prédio em propriedade horizontal do qual fazem parte as fracções objeto dos presentes embargos, ascendeu a 200.000,00 € (duzentos mil euros) (cfr. Título Executivo junto como Doc. 6 do requerimento executivo);
y) O que contraria o declarado pelas partes no documento intitulado “CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA” alegadamente celebrado entre a sociedade Executada na qualidade de promitente vendedora e os Embargantes na qualidade de promitentes compradores em 13 de Novembro de 2001 por documento particular sem termo de reconhecimento de assinaturas que havia sido junto como Doc. 4 com a petição inicial de embargos de terceiro e foi novamente junto pelos Embargantes como Doc. 2 com o seu requerimento de 29.06.2023, junto nos presentes Embargos e onde é declarado que o preço global de venda das 3 fracções objecto de promessa de venda dos bens futuros (as fracções D e E objecto destes embargos e uma 3.ª fracção que se supõe ser a fracção F do prédio) seria pelo preço global de 105.000.000$00 (cento e cinco milhões de escudos) a que corresponde o contravalor em euros de 523.737,79 € (quinhentos e vinte e três mil setecentos e trinta e sete euros e setenta e nove cêntimos);
z) Conforme referido na sentença proferida pelo Tribunal a quo “(…) O documento de promessa de compra e venda dos três fogos não consta de documento autêntico ou autenticado nem foi provida de reconhecimento notarial. (..)”;
aa) Ao contrário da escritura pública de 04/02/2003 que se trata de um documento autêntico e que faz prova plena;
bb) Verifica-se por isso e perante a prova produzida, incluindo a documental, que os Embargantes são devedores à Executada do montante de 323.737,79 € (trezentos e vinte e três mil setecentos e trinta e sete euros e setenta e nove cêntimos) (523.737,79 € - 200.000,00 €) e não que o preço estava integralmente pago conforme decidido pelo Tribunal a quo;
cc) Nas passagens dos minutos 18:50 a 19:46 declarou o Embargante que teria de receber a diferença e que na escritura lhe havia sido entregue um cheque do Montepio de 30 e tal mil euros, referindo-se ao cheque que o Embargante juntou como Doc. 3 com o seu requerimento de 29.06.2023 e lhe foi exibido na audiência de julgamento, afirmando perentoriamente que o cheque lhe havia sido entregue no dia da escritura;
dd) O cheque em questão foi emitido em 13/11/2001, quando a escritura pública de venda do lote de terreno foi celebrada em 04/02/2003, pelo que se verifica mais uma incongruência na versão do Embargante que o Tribunal a quo não valorou devidamente no que respeita à matéria de facto dada como provada;
ee) O artigo 1251.º do Código Civil contém a definição legal de posse nos seguintes termos: “Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.” que pode ser exercida por intermédio de terceiros;
ff) No caso dos autos e admitindo-se que seja dado como provado que os Embargantes efetivamente detêm a posse das fracções D e E penhoradas (exercida por intermédio dos seus filhos) importa clarificar qual o enquadramento jurídico a aplicar;
gg) Os Embargantes ou assumem uma posição de promitentes compradores das fracções D e E penhoradas nos autos, sendo que para isso os Embargos de Terceiro não seriam o meio processual adequado para fazer valer os seus hipotéticos direitos;
hh) Conforme aqui Recorrente defendeu na sua Contestação aos embargos de terceiro e continua a defender e posição que ad initio o Tribunal a quo em sede de audiência prévia realizada a 02/03/2023 defendeu, não existe viabilidade nos presentes embargos de terceiro;
ii) Em abstrato efetivamente o artigo 1285.º do Código Civil consagra a possibilidade do possuidor, para defesa da posse, puder recorrer aos embargos de terceiro;
jj) Os Embargantes pretendem confundir, provavelmente de forma intencional, o Tribunal com posição que alegam deter relativamente aos imóveis em discussão, ou os mesmos são promitentes- compradores e o meio processual adequado para fazer valer os seus direitos seria a apresentação de reclamação de créditos contra a Executada promitente vendedora;
kk) Ou então os Embargantes são proprietários das fracções D e E adquiridas por permuta com a Executada do lote de terreno onde foi construído pela Executada o prédio constituído em propriedade horizontal que as fracções integram;
ll) Nem a não celebração da escritura de venda das fracções seria impeditivo para a transmissão da propriedade que ocorreria por via de usucapião, pelo decurso do tempo que detêm a posse das mesmas;
mm) Efetivamente no artigo 19.º da sua Contestação aos embargos de terceiro a ora Recorrente fez menção a título de exemplo de uma acção de execução específica, mas não só, foi feita uma alusão genérica à possibilidade dos Embargantes puderem por exemplo desde há muito ter intentado uma acção judicial de resolução de contrato promessa e posterior execução de sentença e/ou requerer a declaração de insolvência da insolvência da sociedade Executada RFF Lda. pelo facto da mesma não ter capacidade financeira para pagar à credora hipotecária contra a entrega dos distrates;
nn) Reforçando a convicção da Recorrente que nunca existiu, nem continua a existir um efetivo interesse da parte dos Embargantes em regularizar a situação atual e que a mesma é conveniente quer à Executada que com a decisão dos embargos de terceiro proferida vê ordenado o levantamento da penhora sobre 2 bens imóveis que respondiam pela dívida exequenda;
oo) Nem da parte dos Embargantes cujos filhos testemunharam nos autos e continuam a utilizar os imóveis alvo dos presentes embargos;
pp) Por essa razão entende a Recorrente que a apresentação dos embargos de terceiro configura um manifesto abuso de direito, já que a confirmar-se a decisão proferida pelo Tribunal a quo não pode a Recorrente obter de forma célere e integral o ressarcimento da dívida exequenda, já que a fracção C também penhorada nos autos principais é manifestamente insuficiente para cobrir a dívida exequenda;
qq) A decisão proferida na sentença de embargos do Tribunal a quo no entender da Recorrente configura uma clara violação da tutela jurisdicional efetiva na medida em que impede que um credor devidamente munido de título executivo válido, detentor de garantias reais válidas e em vigor sobre imóveis penhorados, seja impedido de fazer prosseguir uma execução para cobrança do seu crédito.
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Foram apresentadas contra-alegações, sem conclusões, nas quais os recorridos pugnam pela manutenção da decisão recorrida.
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FUNDAMENTAÇÃO
Colhidos os vistos cumpre decidir.
Objeto do Recurso
O objeto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (artº 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (artº 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pelos recorrentes, as questões a apreciar são as seguintes:
- alteração da matéria de facto nos termos pretendidos pela recorrente no que respeita aos contratos-promessa que alegadamente foram celebrados entre os embargantes e a executada;
- efeito jurídico que, em face da penhora efetuada no processo executivo, decorre da entrega das frações aos embargantes e do respetivo uso das mesmas por parte deles.
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Factualidade tida em consideração pela 1ª Instância
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
A. Em 08/04/2021, foram fixados dois editais “Edital - Imóvel Penhorado”, nas frações autónomas “D” e “E” correspondentes respetivamente ao 1º andar esquerdo e 1º andar direito, Bloco A, para habitação, do prédio urbano em propriedade horizontal sito na …, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de … com n.º … e inscrito matriz artigo …, da freguesia de …, para penhora das aludidas frações no âmbito do Processo 2476/21.3T8LRS, do Tribunal de Comarca de Lisboa Norte- Loures, Juízo de Execução, Juiz 3, em que é Exequente “H” e Executada “RFF Lda.”.
B. Os embargantes, por consulta das certidões prediais permanentes, verificaram que se encontram registadas as aludidas penhoras pela Ap. … de 2021/03/22, para garantia da quantia exequenda de € 437.412,93, em que é sujeito ativo a exequente H e sujeito passivo a executada RFF Lda., no processo executivo n.º 2476/21.3T8LRS.
C. A aquisição das frações encontra-se registada a favor da sociedade executada pela Ap. … de 2003/03/05.
D. As aludidas frações autónomas têm, cada uma, o valor patrimonial de € 137.046,39.
E. Por documento particular, epigrafado de “Contrato promessa de compra e venda”, datado de 13/11/2001, outorgado entre “RFF, Lda.” (1ª outorgante) e MG, casada com JG (2ª outorgante), declararam as partes, nas cláusulas 1ª a 3ª:
PRIMEIRA A primeira outorgante é dona legitima e possuidora de um terreno destinado à construção com a área 1600.00m2 (mil e seiscentos metros quadrados), sito na …, descrito na primeira Conservatória do Registo Predial de … sobre o n. …, do Livro …, inscrito na Matriz …, pendente de rectificação Matricial, com mil seiscentos metros quadrados, adquirido na presente data aos segundos outorgantes.
SEGUNDA Pelo presente contrato a primeira outorgante vende aos segundos outorgantes, três fogos com a tipologia T3, localizados no Bloco A, sendo os dois fogos do piso do 1º andar e um fogo no piso do 2º andar esquerdo.
TERCEIRA - Na presente data a segunda outorgante entrega à primeira outorgante a quantia de 105 000 000$0 (cento e cinco milhões de escudos), como pagamento da totalidade do valor dos fogos, o qual dão a respectiva quitação, correspondente a 523 737,79 euros (quinhentos e vinte e três mil setecentos e trinta e sete euros e setenta e nove cêntimos).
F. Por documento epigrafado de “Contrato promessa de compra e venda e recibo de sinal”, celebrado em data não apurada, mas anterior a 04.02.2003, com reconhecimento notarial das assinaturas, datado de 04/02/2003, outorgado entre MG, casada com JG (1ª outorgante) e “RFF, Lda.” (2ª outorgante), declararam as partes, nas cláusulas 1ª a 4ª:
PRIMEIRA - A primeira outorgante é dona legítima e possuidora de um terreno destinado à construção com a área 1600.00m2 (mile seiscentos metros quadrados), sito na …, descrito na primeira Conservatória do Registo Predial de … sobre o n. …, do Livro …, inscrito na Matriz …, pendente de rectificação Matricial, com mil seiscentos metros quadrados.
SEGUNDA Pelo presente contrato a primeira outorgante promete vender aos segundos outorgantes, o terreno referenciado na clausula primeira, pelo preço total de 140 000 000$00 (cento e quarenta milhões de escudos), equivalente a 698 317.06 € (seiscentos e noventa e oito mil trezentos e dezassete euros e seis cêntimos).
TERCEIRA - Na presente data a segunda outorgante entrega à primeira outorgante a quantia de 114 000 000$0 (cento e quatorze milhões de escudos), como sinal e principio, de pagamento, o qual dão a respectiva quitação, correspondente a 568 629,60 suros (quinhentos e sessenta e oito mil seiscentos e vinte e nove euros e sessenta cêntimos).
QUARTA A restante quantia em divida no total de 26 000 000$00 (vinte e seis milhões de escudos), equivalente 129 687,46 (cento e vinte e nove mil seiscentos e oitenta e sete euros e quarenta e seis cêntimos), será pago no acto da escritura, sendo mesma efectuada no prazo máximo de 90 dias a contar da presente data.
G. Na data de 13/11/2001 a “RFF, Lda.” emitiu e entregou a JG um cheque no valor de € 34.915,86, para pagamento de parte do sinal e princípio de pagamento.
H. E pagou em dinheiro a quantia de € 9.975,95 [Esc. 2.000.000$00].
I. O gerente da sociedade executada entregou as chaves das frações “D” e “E” aos embargantes em 2006, encontrando-se as mesmas a ser habitadas pelos dois filhos destes, JG e SG, respetivamente, desde 2006 e 2008.
J. Foram realizados contratos de fornecimento de gás, eletricidade e água, para as aludidas frações, em nome dos filhos dos embargantes, que se mantêm até hoje.
K. Os embargantes, em 2009, deduziram Embargos de Terceiro no processo de execução fiscal n.º … sendo que, por sentença transitada em julgado em 28/11/2011, foram os embargos julgados provados e, consequentemente, determinado o levantamento da penhora sobre as frações “D” e “E”.
L. Por escritura pública epigrafada de “Compra e Venda e Empréstimo”, datada de 04/02/2003, outorgada por JG e MG (1ºs outorgantes), “RFF, Lda.” (2ª outorgante) e CE (3ª outorgante), declararam os primeiros que pelo preço de 200.000€, que já receberam, vendem à segunda o lote de terreno acima identificado.
Fundamentação jurídica
A primeira questão a apreciar é relativa à impugnação da matéria de facto.
Quanto a este aspeto, a recorrente disse o seguinte:
“j) Relativamente aos demais factos dados como provados (E, F, G, H, I e L), salvo o devido respeito não houve uma devida ponderação e análise criteriosa da prova produzida, nem foi produzida prova de particular relevo requerida pela Recorrente, como por exemplo a documentação contabilística e bancária da Executada e dos Embargantes;
k) A Recorrente discorda de terem sido dados como provados os factos elencados como E e F e que respeitam aos 2 contratos promessa ambos alegadamente celebrados entre os Embargantes e a sociedade Executada em 13 de Novembro de 2001”.
Apesar de ter invocado que, aparentemente, pretendia impugnar os factos provados sob as als. E, F, G, H, I e L, a verdade é que apenas veio fundamentar a impugnação dos factos constantes das als. E e F, nos termos das als. k) e segs. das conclusões. E é também quanto a essas als. dos factos provados que a recorrente cumpriu os ónus formais relativos à validade da impugnação da matéria de facto que decorrem do artº 640º do CPC, não o tendo feito quando aos demais indicados factos. Efetivamente, a recorrente veio indicar, quanto aos factos constantes das als. E e F, não só a decisão que entende ser a correta – a não prova dos mesmos – como veio ainda indicar os meios probatórios nos quais funda a impugnação. Quanto a estes, atendendo à natureza dos factos – tratam-se de factos cujo ónus da prova pertence aos embargantes-recorridos, não tendo a recorrente apresentado contraprova – a recorrente veio, neste recurso, contrariar a convicção que o tribunal a quo fez da prova que os embargantes produziram, dizendo que dessa prova, atendendo às circunstâncias que aponta nas conclusões, não pode resultar provada a matéria de facto respeitante à celebração dos contratos-promessa nos termos que constam das referidas als. E e F dos factos provados.
O tribunal a quo fundamentou da seguinte forma tal matéria de facto:
“Prova dos factos constantes das alíneas E, F, G, H, I, J, K, L Factos documentados – contratos promessa (documentos juntos com o requerimento inicial e com o requerimento de 29/06/2023), escritura pública (título executivo), vários documentos comprovativos dos contratos de fornecimento de serviços essenciais (documentos juntos com o requerimento inicial), cheque (documento junto com o requerimento de 29/06/2023). O embargante JG, atualmente reformado, e que projetista na CM Loures e com um gabinete de projetos próprio, confirmou que vendeu, livre de ónus ou encargos, à sociedade executada um terreno com projeto aprovado, em contrapartida de três fogos (a construir pela executada) e dinheiro. Afirmou que o “contrato promessa de compra e venda” do lote de terreno foi reconhecido no Cartório, tendo o cheque sido entregue no Cartório e cerca de 2 mil contos em dinheiro. Em relação à entrega das chaves, referiu que as mesmas foram entregues aquando a construção das frações, e que, para além das frações D e E, também tinha a fração F, a qual foi vendida em processo de execução fiscal. Explicou o embargante que o objetivo era cada um dos filhos ficar com uma fração, encontrando-se as frações D e E habitadas por dois dos filhos. As testemunhas SG e JG, filhos do embargante, confirmaram residir nas frações, não se encontrando efetuado o registo de aquisição no seu nome porque a construtora nunca teve dinheiro para pagar ao Banco o distrate das hipotecas. Reforçaram que o terreno onde o prédio está implantado era dos pais, que a hipoteca ao Banco é posterior à venda do terreno e negócio feito com a executada. A exequente não apresentou contraprova, mostrando-se, quer as declarações de parte, quer os testemunhos dos filhos, coerentes entre si. As regras de experiência comum ditam que é comum o tipo de negócio celebrado entre os embargantes e a sociedade executada (venda de terreno para construção em que parte ou totalidade do pagamento é feito pela “venda” de frações a construir). A exequente, no requerimento que apresentou em 09/07/2023, refere que «impugna o Documento (…) intitulado de “Contrato de Promessa de Compra e Venda e Recibo de Sinal” quanto à genuinidade do mesmo e do respetivo termo de autenticação de assinaturas”, requerendo a notificação dos embargantes para juntarem aos autos o original do mesmo. Nos termos do disposto no artigo 375º n.ºs 1 e 2 do Código Civil, se estiverem reconhecidas presencialmente, nos termos das leis notariais, a letra e a assinatura do documento, ou só a assinatura, têm-se por verdadeiras. Se a parte contra quem o documento é apresentado arguir a falsidade do reconhecimento presencial da letra e da assinatura, ou só da assinatura, a ela incumbe a prova dessa falsidade. Analisado o “Contrato promessa de compra e venda e recibo de sinal” e respetivo reconhecimento notarial das assinaturas (documento junto com o requerimento de 29/06/2023), verifica-se estar o reconhecimento das assinaturas efetuado em conformidade com as leis notariais, pelo que incumbia à exequente a prova da falsidade, o que não fez (não apresentou a exequente qualquer prova, nem contraprova, nem tão pouco reiterou o requerimento de apresentação do documento original). Tem-se o documento por regular e de prova plena quanto às respetivas declarações”.
Comecemos pelo facto constante da al. E. Dele resulta que o tribunal a quo deu como provado que em 13.11.2001 a executada prometeu vender aos embargantes 3 fogos da tipologia T3 que iriam integrar o edifício que seria construído pela executada no terreno identificado na cláusula 1ª. Dessa cláusula consta ainda que a executada declara que é proprietária desse terreno. Como resulta da fundamentação acima referida, a prova da celebração desse contrato nos termos que dele constam baseou-se unicamente na mera existência do documento e no depoimento do embargante JG. Na decisão recorrida disse-se que a embargada não apresentou contraprova, considerando ainda coerentes as declarações da parte e que é do conhecimento geral que negócios como este – de permuta entre a venda do terreno para construção e a compra de frações no edifício a construir – são comuns, daí decorrendo, no entender do tribunal a quo, a prova quanto ao aludido contrato-promessa.
Quanto à contraprova há que dizer que é óbvio que a mesma não existe, nem nunca poderia existir, desconhecendo-se até que contraprova o tribunal a quo considera que a embargada poderia apresentar. A embargada é completamente alheia a tal negócio, pretensamente celebrado cerca de ano e quatro meses antes da escritura que formalizou a aquisição do terreno pela executada e o contrato de mútuo com hipoteca que constitui o título executivo (celebrado em 04.02.2003)[1]. O argumento relativo à falta de contraprova pode ser válido nas situações em que a parte contrária está numa posição em também tem, em termos de juízo de normalidade ou por ter participado neles, um efetivo conhecimento dos factos em causa. Quando é completamente alheia a esses factos, o argumento não colhe de todo.
O documento está assinado pelos embargantes e pelo gerente da executada, todos eles com interesses comuns, os quais são opostos aos da exequente-embargada. Pergunta-se: tal documento interessa aos embargantes? Obviamente que sim, pois é nesse contrato que assentam a pretensão que vieram deduzir por via dos embargos. Ora, ponderada a prova, verifica-se que não existe nenhum elemento minimamente isento que possa sustentar a celebração de tal contrato-promessa nos termos que constam do documento que o consubstancia, quer quanto à respetiva existência enquanto negócio jurídico que efetivamente as partes quiseram celebrar, quer à data que dele consta.
Diz-se na sentença recorrida que é comum a celebração deste género de contratos, que serão de permuta entre um bem presente – o terreno onde o edifício vai ser construído – e um bem futuro – as frações que irão integrar o edifício. Isso é verdade. O que já não é nada comum é fazê-lo da forma como os embargantes dizem que o fizeram, ou seja, através de dois contratos-promessa distintos, sem que do teor de qualquer deles resulte a pretensa permuta. Desde logo consta do mesmo algo que não corresponde à verdade, que é o facto de a executada declarar que é dona e legítima possuidora do terreno, que foi naquela data – 13.11.2001 – adquirido aos segundos outorgantes, promitentes-compradores e ora embargantes. Depois temos que foi declarado que o preço devido pelas frações já se encontra integralmente efetuado, pagamento esse realizado na data em que o contrato foi celebrado. Ora, se a executada ainda não tinha adquirido a propriedade do terreno, se ainda iria celebrar a escritura e ainda tinha de pagar aos embargantes – que são os promitentes-compradores nesse contrato – pelo menos parte do preço devido pela compra do terreno (conforme teor do contrato-promessa referido na al. F), qual a razão para ter sido efetuado o pagamento das futuras frações naquela data? Se estamos perante um contrato-promessa que envolve uma permuta que ainda iria ser formalizada, estando, ademais, por pagar parte do preço devido pela compra do terreno, o pagamento integral que aí foi declarado relativo às futuras frações é contraditório com a existência de tal permuta. E quanto à cópia do cheque que foi junto com o requerimento de 29.06.2023, trata-se simplesmente de uma cópia constante do livro de cheques, não constituindo, portanto, um documento emitido pelo banco que comprova que o mesmo foi apresentado a pagamento e foi pago. Acresce que desse documento resulta evidente que o nome “JRG” foi acrescentado, pois os respetivos carateres são manifestamente distintos dos restantes (traço mais acentuado, em contraste com os demais elementos da cópia, cujos traços são mais ténues). E trata-se de um pagamento alegadamente efetuado pela executada aos embargantes. Disse o embargante que se tratou de um acerto de contas decorrente da celebração em simultâneo de ambos os contratos-promessa. Mas, tal como se referiu quanto à existência do contrato, também aqui tal factualidade – a relação entre os dois contratos-promessa e o acerto de contas – decorre de declarações de parte sem sustentáculo em qualquer outro meio de prova minimamente isento (e nem sequer resulta do texto de qualquer um dos contratos-promessa).
Como se vê, o teor do contrato-promessa em apreço é muito estranho em face das circunstâncias que o rodeiam e não existe, de todo, qualquer meio de prova isento e objetivo que possa sustentar a respetiva prova. Dado o manifesto interesse na existência desse contrato-promessa por parte dos embargantes, não havendo nenhuma referência objetiva e isenta onde basear a respetiva “celebração”, e muito menos onde esta possa ser localizada no tempo, temos que o documento pode perfeitamente ter sido elaborado em qualquer altura, como por exemplo na altura em que foram deduzidos os embargos na execução fiscal a que se alude no item K dos factos provados e exatamente para tal efeito, ou seja, ter sido elaborado unicamente para fundamentar esses embargos. A simples existência do documento junto aos autos e as declarações de parte do embargante não são, de forma evidente, meios de prova que possam sustentar, em sede de embargos de terceiro perante a exequente-embargada totalmente alheia ao contrato, a celebração entre as partes do contrato-promessa que resulta do conteúdo do documento.
Deste modo, procede na íntegra a impugnação da matéria de facto pretendida pela recorrente quanto ao item E dos factos provados, que terá necessariamente de ser remetido para os factos não provados.
Quanto à al. F, trata-se do contrato-promessa celebrado entre os embargantes, como promitentes vendedores, e a executada, como promitente-compradora, mediante o qual os primeiros prometeram vender e a segunda prometeu comprar o terreno onde iria ser construído o edifício do qual fazem partes as frações penhoradas. Tal documento, que está datado de 13.11.2001, contém um reconhecimento notarial das assinaturas que foi efetuado em 04.02.2003, que é a data em que foi celebrada a escritura pública que formalizou o contrato definitivo (cfr. facto constante do item al. L dos factos provados). No contrato-promessa o preço da venda é de 698.317,06€ (140.000.000$00) e o preço declarado na escritura é de 200.000€.
Apesar de suscitar estranheza que o reconhecimento das assinaturas tenha sido efetuado no dia em que foi celebrada a escritura pública que formalizou o contrato prometido, a divergência de valores pode explicar a necessidade de tal reconhecimento. Provavelmente o preço não estaria integralmente pago, como foi declarado, e, por essa razão, poderia eventualmente vir a ser necessário provar qual foi o valor real da venda[2].
O reconhecimento notarial constitui um elemento objetivo que permite concluir pela efetiva celebração do contrato-promessa que resulta das declarações que nele constam. E, apesar da divergência de valores, a celebração do contrato definitivo é também um elemento objetivo que leva a concluir que as partes tiveram antes efetiva intenção de fazer uma promessa de compra e venda. No entanto, tal como se referiu acima quanto ao facto constante do item E, não há elementos objetivos e isentos que permitam localizar no tempo a respetiva celebração na data que consta do documento. O cheque acima mencionado, pelos motivos que se referiram, não pode valer como prova de tal data.
Assim, o facto F tem de ser alterado no seguinte sentido:
“Por documento epigrafado de “Contrato promessa de compra e venda e recibo de sinal”, datado de 13/11/200, celebrado em data não apurada, mas anterior a 04/02/2003, com reconhecimento notarial das assinaturas, datado de 04/02/2003, outorgado entre MG, casada com JG (1ª outorgante) e “RFF, Lda.” (2ª outorgante), declararam as partes, nas cláusulas 1ª a 4ª:…”.
Desta alteração da matéria de facto resulta necessariamente a alteração do facto constante do item G dos factos provados na parte respeitante à data aí mencionada. A recorrente não impugnou de forma admissível tal facto, pelo que o mesmo terá de se manter. No entanto, a alteração do facto anterior quanto à data, impõe, a fim de evitar contradições, a alteração relativa à data do pagamento constante do item G, cujo facto passará a ser o seguinte:
G. Em data não apurada, a “RFF, Lda.” entregou a JG um cheque no valor de € 34.915,86, para pagamento de parte do sinal e princípio de pagamento.
*
A matéria de facto provada passará, portanto, a ser a seguinte:
A. Em 08/04/2021, foram fixados dois editais “Edital - Imóvel Penhorado”, nas frações autónomas “D” e “E” correspondentes respetivamente ao 1º andar esquerdo e 1º andar direito, Bloco A, para habitação, do prédio urbano em propriedade horizontal sito na …, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de … com n.º … e inscrito matriz artigo …, da freguesia de …, para penhora das aludidas frações no âmbito do Processo 2476/21.3T8LRS, do Tribunal de Comarca de Lisboa Norte- Loures, Juízo de Execução, Juiz 3, em que é Exequente “H” e Executada “RFF Lda.”.
B. Os embargantes, por consulta das certidões prediais permanentes, verificaram que se encontram registadas as aludidas penhoras pela Ap. … de 2021/03/22, para garantia da quantia exequenda de € 437.412,93, em que é sujeito ativo a exequente H e sujeito passivo a executada RFF Lda., no processo executivo n.º 2476/21.3T8LRS.
C. A aquisição das frações encontra-se registada a favor da sociedade executada pela Ap. … de 2003/03/05.
D. As aludidas frações autónomas têm, cada uma, o valor patrimonial de € 137.046,39.
E. (não provado)
F. Por documento epigrafado de “Contrato promessa de compra e venda e recibo de sinal”, celebrado em data não apurada, mas anterior a 04.02.2003, com reconhecimento notarial das assinaturas, datado de 04/02/2003, outorgado entre MG, casada com JG (1ª outorgante) e “RFF, Lda.” (2ª outorgante), declararam as partes, nas cláusulas 1ª a 4ª:
PRIMEIRA - A primeira outorgante é dona legítima e possuidora de um terreno destinado à construção com a área 1600.00m2 (mil e seiscentos metros quadrados), sito na …, descrito na primeira Conservatória do Registo Predial de … sobre o n. …, do Livro …, inscrito na Matriz …, pendente de rectificação Matricial, com mil seiscentos metros quadrados.
SEGUNDA Pelo presente contrato a primeira outorgante promete vender aos segundos outorgantes, o terreno referenciado na clausula primeira, pelo preço total de 140 000 000$00 (cento e quarenta milhões de escudos), equivalente a 698 317.06 € (seiscentos e noventa e oito mil trezentos e dezassete euros e seis cêntimos).
TERCEIRA - Na presente data a segunda outorgante entrega à primeira outorgante a quantia de 114 000 000$0 (cento e quatorze milhões de escudos), como sinal e principio, de pagamento, o qual dão a respectiva quitação, correspondente a 568 629,60 suros (quinhentos e sessenta e oito mil seiscentos e vinte e nove euros e sessenta cêntimos).
QUARTA A restante quantia em divida no total de 26 000 000$00 (vinte e seis milhões de escudos), equivalente 129 687,46 (cento e vinte e nove mil seiscentos e oitenta e sete euros e quarenta e seis cêntimos), será pago no acto da escritura, sendo mesma efectuada no prazo máximo de 90 dias a contar da presente data.
G. Em data não apurada, a “RFF, Lda.” emitiu e entregou a JG um cheque no valor de € 34.915,86, para pagamento de parte do sinal e princípio de pagamento.
H. E pagou em dinheiro a quantia de € 9.975,95 [Esc. 2.000.000$00].
I. O gerente da sociedade executada entregou as chaves das frações “D” e “E” aos embargantes em 2006, encontrando-se as mesmas a ser habitadas pelos dois filhos destes, JG e SG, respetivamente, desde 2006 e 2008.
J. Foram realizados contratos de fornecimento de gás, eletricidade e água, para as aludidas frações, em nome dos filhos dos embargantes, que se mantêm até hoje.
K. Os embargantes, em 2009, deduziram Embargos de Terceiro no processo de execução fiscal n.º … sendo que, por sentença transitada em julgado em 28/11/2011, foram os embargos julgados provados e, consequentemente, determinado o levantamento da penhora sobre as frações “D” e “E”.
L. Por escritura pública epigrafada de “Compra e Venda e Empréstimo”, datada de 04/02/2003, outorgada por JG e MG (1ºs outorgantes), “RFF, Lda.” (2ª outorgante) e CE (3ª outorgante), declararam os primeiros que pelo preço de 200.000€, que já receberam, vendem à segunda o lote de terreno acima identificado.
Fundamentação jurídica
A causa de pedir invocada pelos embargantes para fundamentarem estes embargos de terceiro decorre, tal como resulta da respetiva petição, do facto de terem celebrado com a executada um contrato-promessa de compra e venda relativo às frações que se encontram penhoradas. Tal contrato foi celebrado ainda antes da construção do edifício do qual viriam a fazer parte. Esta execução tem como título executivo exatamente o contrato de mútuo com hipoteca pelo qual a executada adquiriu – no caso aos próprios embargantes – o terreno onde levou a efeito a construção do edifício que integra as frações.
Alegaram ainda que, em cumprimento desse contrato-promessa, pagaram à executada a totalidade do preço acordado e que tais frações lhes foram entregues em 2006. As mesmas estão a ser habitadas pelos filhos dos embargantes desde 2006 (a D) e desde 2008 (a E).
Destes factos decorre, no entendimento dos embargantes, uma posse que é incompatível com as penhoras que foram efetuadas.
Situações como esta que cumpre apreciar foram objeto de vária doutrina e jurisprudência, por vezes contraditória. No acórdão desta Relação de 08.05.2008[3], está bem resumida a questão em apreço e a evolução quanto à solução propugnada pela jurisprudência, constando do sumário o seguinte:
“I- O contrato-promessa só confere, em regra, um direito de crédito ao promitente-comprador – o direito à celebração do contrato prometido e definitivo – e que, ainda que haja tradição da coisa para o mesmo, este não passa de um “detentor ou possuidor precário” nos termos e para os efeitos do artigo 1290.º, convindo conjugar esta norma com as contidas nos artigos 1253.º, que define aquele conceito e 1265.º (inversão do título da posse, que no caso dos autos não ocorreu), todos do mesmo texto legal, o que é impeditivo, em tese geral, da prescrição aquisitiva da mencionada coisa. II – Um crescente número de situações anómalas ou invulgares, que tem vindo a ser julgado pelos nossos tribunais, obrigou, contudo, a uma inflexão nessa posição de princípio, por se revelar, cada vez mais, redutora, inadequada e injusta para com os direitos do promitente-comprador. III – Importa distinguir o contrato-promessa, que só tem a virtualidade de produzir efeitos jurídicos de natureza creditícia, do acto de entrega do imóvel ao promitente-comprador, que se reconduz a um acordo jurídico diverso daquele negócio, apesar de, muitas vezes, coincidente temporalmente com o mesmo. IV – É juridicamente possível e admissível que, no âmbito de um contrato-promessa, em que houve, paralelamente, tradição da coisa e desde que verificadas determinadas circunstâncias, que indiciem, suficientemente, esse propósito e realidade, o promitente-comprador exerça poderes de facto sobre o bem em causa (“corpus”) com o “animus” correspondente ao direito de propriedade ou a outro direito real menor (que se presume, nos termos do artigo 1268.º, número1 do Código Civil), posse essa, em nome próprio, que, desde que desenvolvida pública, pacificamente e pelo período de tempo legalmente imposto, é susceptível de consubstanciar a prescrição aquisitiva da coisa possuída, passando o respectivo possuidor ou os seus sucessores a serem titulares, em termos originários, do direito real em questão. V – Logo, face ao disposto no artigo 351.º do Código de Processo Civil [atual 342º] e pretendendo a Autora invocar um direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, nada impede o recurso aos presente embargos de terceiro para afirmar esse direito, convindo recordar que o seu reconhecimento e declaração se retroage ao momento em que a posse em nome próprio sobre o bem móvel ou imóvel começou a ser exercida (artigo 1288.º do Código Civil)”.
No mesmo sentido, qual seja o de admitir a existência de posse nas situações em apreço, temos o acórdão da Relação de Coimbra de 21.05.2024[4], sumariado da seguinte forma:
“I – No contrato de permuta os contraentes atribuem-se coisas presumivelmente de igual valor, adquirindo e perdendo correspetivamente a propriedade sobre elas, nisto se consumando o contrato. II – Se a atribuição da coisa à contraparte é para pagar um preço, não há uma permuta ou troca. III – No contrato de compra e venda o pagamento do preço pode ser efetuado mediante a entrega de um prédio. IV – Nos casos em que o promitente comprador beneficiou da entrega do imóvel em data anterior à celebração do negócio translativo, a qualificação da natureza da sua posse, dependerá de uma ponderação casuística que revele o exercício de poderes de facto sobre o bem penhorado, como posse em nome próprio, como nos casos excecionais em que já se encontra paga a totalidade do preço. V – Tendo-se apurado que houve pagamento integral do preço e tradição da coisa e que os atos praticados no imóvel foram realizados à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de ninguém e na convicção dos embargantes serem donos do imóvel, estão reunidos os elementos integrantes da posse: corpus e animus, pelo que lhes assiste o direito de beneficiarem da tutela da posse, mediante embargos de terceiro”.
No sentido de ter de ser ponderada a data em que se iniciou a posse relativamente à data em que a exequente adquiriu o direito real de garantia – no caso a hipoteca – temos o acórdão desta Relação (e desta secção) datado de 27.06.2019[5], que negou à partida a possibilidade de dedução de embargos de terceiro nos casos em que a alegada posse se iniciou após a constituição da hipoteca, sumariado da seguinte forma:
“Ainda que a alegação factual inserta na petição de embargos de terceiro possa levar à qualificação da posse da embargante como em nome próprio, por transferência do primeiro embargado, justifica-se o indeferimento liminar da petição quando, da mesma alegação factual e dos documentos com ela juntos, se revela que tal posse terá sido adquirida posteriormente ao registo de hipoteca voluntária constituída pelo primeiro embargado a favor do credor hipotecário exequente e segundo embargado”.
Como se constata, não obstante do contrato-promessa resultarem apenas direitos do âmbito obrigacional, não sendo, por regra, a entrega da coisa prometida vender suscetível de gerar a posse que fundamenta o uso de ações possessórias destinadas à respetiva defesa, exatamente porque não tem por base o exercício de um direito real, a jurisprudência tem admitido que, em determinadas circunstâncias, tal entrega possa gerar o exercício de poderes de facto suscetíveis de configurarem a posse baseadas diretamente no direito que se visa adquirir por via do contrato-promessa.
Ora, é exatamente esta conceção de posse que fundamenta os embargos de terceiro deduzidos pelos embargantes e foi também com base nela que a decisão recorrida fundamentou a respetiva procedência.
No entanto, como decorre do decidido quanto à impugnação da matéria de facto, o contrato-promessa onde os embargantes baseavam a posse que invocavam foi considerado não provado. Desapareceu, deste modo, o fundamento fáctico fundamental para se poder equacionar (sendo que, em todo o caso, mesmo que os factos se mantivessem, não era certo que a decisão proferida se pudesse manter atendendo, nomeadamente, à doutrina ínsita no acórdão de 27.06.2019, acima citado) a possibilidade da existência da invocada posse.
Em face disso, não havendo qualquer sustentáculo que possa fundamentar a posse dos embargantes, estes são meros detentores precários, e não possuidores, pelo que nenhum direito lhes assiste que possa ser oposto à penhora das frações levada a efeito na execução.
Os embargos de terceiro têm, portanto, de ser considerados improcedentes, procedendo deste modo o presente recurso.
***
DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem este coletivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso procedente, e, em consequência, julgam-se os embargos de terceiro improcedentes.
Custas pelos embargantes-recorrentes em ambas as instâncias (artº 527º/1 e 2 do CPC).
TRL, 11jul2024
Jorge Almeida Esteves
Eduardo Petersen Silva
Nuno Lopes Ribeiro
_______________________________________________________ [1] E nem sequer foi a embargada que celebrou a escritura que formalizou o mútuo com hipoteca. Esta foi celebrada pelo CE. [2] Desta circunstância – a divergência entre o valor indicado no contrato-promessa e o valor constante da escritura – resulta que as partes fizeram constar do contrato-promessa o valor que efetivamente correspondia à sua vontade. Se assim é, ou seja, se as partes acautelaram no teor do contrato-promessa a sua real vontade, impõe-se perguntar por que razão não elaboraram um contrato-promessa do qual resultasse de forma evidente a alegada permuta? Por que razão fizeram dois contratos-promessa na mesma data e naqueles termos? Daqui resulta mais um elemento para concluir que, à data da escritura, só existia um contrato-promessa, que foi, aliás, o único cujas assinaturas foram reconhecidas notarialmente. [3] Proferido no procº nº 1331/2008-6 (in jurisprudência.pt) [4] Proferido no procº nº 830/04.4TBCLD-C.C2 (in dgsi.pt). [5] Proferido no prcº nº 5643/16.8T8LRS-D.L1-6 (in dgsi.pt).