AUTORIDADE DO CASO JULGADO
VENDA FIDUCIÁRIA EM GARANTIA
PACTO COMISSÓRIO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
ABUSO DO DIREITO
Sumário

1.Verificado os pressupostos duma situação em que se imponha o respeito pela “autoridade do caso julgado”, o Tribunal não se deve abster de decidir o pedido correspondente. Pelo contrário, deve decidir e deve fazê-lo em conformidade com a decisão anterior transitada em julgado.
2. No caso dos autos, o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão transitado em julgado, proferido relativamente à mesma relação contratual aqui “sub judice”, mas em processo anterior, sustentou que em causa estaria uma “venda fiduciária em garantia” válida, à qual não se aplicaria, designadamente, a proibição legal do pacto comissório.
3. Considerando que a consequência do incumprimento definito do contrato pelo devedor, numa venda fiduciária em garantia, determina a perda definitiva do direito de propriedade a favor do credor (beneficiário da coisa vendida em garantia), num caso em que o valor económico da coisa vendida é manifestamente superior ao crédito garantido, o afastamento da proibição legal do “pacto comissório” só se torna aceitável se for corrigido, através do instituto do enriquecimento sem causa (Art. 473.º do C.C.), o efeito pernicioso e legalmente inadmissível que decorrerá de o credor fazer definitivamente sua a coisa dada em garantia.
4. Doutro modo, seria permitir o abuso de direito (cfr. Art. 334.º do C.C.), porque a finalidade social e económica da garantia assim prestada não pode servir finalidade diversa e permitir um enriquecimento ilegítimo do credor e sem causa justificativa.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
CR e JR intentaram a presente ação de simples apreciação, de execução específica e de condenação, em processo declarativo comum, contra C.B.G.- Imobiliária, S.A., e CG, formulando os seguintes pedidos:
a) Ser reconhecido como venda fiduciária em garantia de um mútuo o contrato celebrado entre os AA. e a R. CBG e usurários os juros cobrados pela R. nesse contrato, com a sua redução à quantia de €15.256,48, ou outra que venha a resultar da aplicação da taxa legal de 7%, a liquidar em execução de sentença;
b) Ser declarada ilícita a recusa da R. na extinção da obrigação dos AA. em maio de 2009, mediante o pagamento de mais €265.000,00 e, consequentemente, culposamente incumprida a obrigação por parte da R. de retransmissão da Herdade da XX para os AA. por exigência de juros manifestamente usurários;
c) Ser proferida decisão que produza os efeitos da declaração negocial da R. CBG de venda aos AA. do prédio misto denominado Herdade da XX pelo preço de €212.756,48, correspondente ao capital mutuado de €65.000,00 e juros legais de €15.256,48, deduzidos os €67.500,00 já entregues, ou por outro que venha a apurar-se em julgamento e a liquidar em sede de execução de sentença;
d) Caso assim se não entenda, ser declarado terem os RR. impossibilitado culposamente os AA., com a exigência de juros usurários, de cumprir o contrato celebrado, com a consequente perda da Herdade da XX e, em consequência, serem os RR. condenados a indemnizar os AA. no montante de €210.000,00, correspondente à diferença entre o valor pelo qual a R. ficou com a Herdade da XX e o seu valor real, que se estima em €408.000,00, ou outro a liquidar em execução de sentença, em função do valor que vier a ser apurado para a Herdade da XX em perícia a realizar;
e) Subsidiariamente, e com fundamento em enriquecimento sem causa, serem os RR. condenados a pagar aos AA. a quantia de €210.000,00, correspondente à diferença entre o valor pelo qual a R. ficou com a Herdade da XX e o seu valor real, que se estima em €408.000,00, ou outro a liquidar em execução de sentença, em função do valor que vier a ser apurado para a Herdade da XX em perícia a realizar;
f) Ainda subsidiariamente, e caso assim se não entenda, devem os RR. ser condenados a restituir aos AA., com fundamento em enriquecimento sem causa, a quantia de €67.500,00, correspondentes à quantia efetivamente paga, acrescida dos juros de mora vencidos desde a data da citação até integral e efetivo pagamento.
Para tanto, alegou que os A.A. são casados no regime da comunhão de adquiridos e que os pais da A., por escritura de 26 de fevereiro de 2008, doaram-lhe, por conta da legítima, o prédio misto denominado “Herdade da XX”, sito na freguesia da …, concelho de Évora, relativamente ao qual o A. tinha em vista concretizar um projeto de turismo rural, precisando de liquidar vários empréstimos, que o casal tinha pendentes, a fim de conseguir obter financiamento desse projeto.
Porque se encontravam com dificuldades financeiras, para regularizar os empréstimos bancários e efetuar as despesas iniciais com o projeto, o A. decidiu pedir ao sócio e gerente da 1.ª R., o R. CG, um empréstimo no montante de €265.000,00, com o que essa R. concordou, emprestando esse montante durante o prazo de dez meses, mediante o pagamento de juros no montante total de €110.000,00.
Esse empréstimo seria garantido com a própria herdade da YY, que tinha um valor comercial de, pelo menos, €408.000,00, ficando acordado que o A. começaria logo a pagar à 1.ª R., CBG, em numerário, a título de juros, a quantia mensal de €3.750,00.
Entretanto, vieram a combinar celebrar uma escritura de compra e venda da herdade, para garantia do empréstimo, na qual se declararia como preço da venda os €265.000,00 e, nesse mesmo dia, assinariam um contrato-promessa de compra e venda, pelo qual a R., CBG, se obrigava a revender ao A., JR, na data de vencimento do empréstimo, a mesma herdade, mas pelo preço de €375.000,00, correspondente ao valor do capital mutuado e juros. O que foi feito, embora a A. mulher não tenha assinado o contrato-promessa, de que não teve conhecimento.
Ao procederem desse modo, as partes não quiseram efetivamente a transferência definitiva da herdade para a R. CBG, mas apenas garantir o empréstimo, ficando acordado que os A.A. se manteriam na posse da herdade, sem qualquer encargo, o que sucedeu.
Ocorre que os juros legalmente permitidos não poderiam exceder a taxa de 7%, sendo devidos entre 4 de agosto de 2008 e 31 de maio de 2009, a esse título, apenas €15.256,48, mas a R. CBG, e seu administrador, exigiram, porém, mais €94.743,52 de juros do que o permitido.
O A., conforme combinado, entre 4 de setembro de 2008 até 31 de maio de 2009, pagou a quantia mensal de €3.750,00, num total de €37.500,00, a título de juros, mas em 31 maio de 2009 não tinha os €375.000,00 que acordara pagar à R. CBG, tendo apenas o capital mutuado.
A R. ameaçou não restituir a herdade caso o A. não conseguisse a totalidade dos juros exigidos, tendo no dia 23 de dezembro de 2010 sido renegociadas as condições do empréstimo, mediante o pagamento imediato de mais €25.000,00, que o A. pagou ao R. Cesinando, tendo então assinado um novo “contrato-promessa”, pelo qual a R. CBG, representada pelo R. CG, prometia vender a herdade à sociedade “ABT... – Sociedade Agro Turística, Lda.”, que era uma empresa da família dos A.A., representada pelo A., JR, pelo preço de €400.000,00.
O A. marido aceitou as condições aí estabelecidas, sem o conhecimento da mulher, por se encontrar sob forte pressão da R. e em risco de perder a herdade da YY, correspondendo o pagamento dos €400.000,00, em quatro meses, ao valor do capital mutuado de €265.000 e juros de mais €135.000,00, para além dos €62.500,00 já pagos à R. entre setembro de 2008 e maio de 2009, o que seria feito sob a aparência de preço de venda da herdade da YY.
Em janeiro de 2010, o A. entregou pessoalmente ao R. CR, pelo menos, mais €5.000,00 por conta dos juros, totalizando o dinheiro a ele entregue €67.500,00, o qual não entrou para contabilidade da R. CBG, nem foi imputada à liquidação do empréstimo.
Na data estabelecida, o A. apenas conseguia obter o capital mutuado de €265.000,00, para além dos €67.500,00 que lhe havia já entregue, mas o administrador da R. recusou receber apenas €265.000,00, afirmando que só passaria a propriedade para os A.A. se estes pagassem €400.000,00.
Nessa sequência a R. instaurou contra os A.A. um ação executiva para entrega da herdade, que foi distribuída ao Juízo de Execução de Montemor-o-Novo, sob o n.º 2453/11.2TBEVR, e a A. instaurou contra a R., CBG, e o seu marido, aqui co-A.A., uma ação destinada à declaração de nulidade da venda da herdade, com fundamento em simulação, a qual correu termos no extinto 2.º Juízo Central Cível de Almada sob o n.º 1626/12.5TBMTJ e veio a ser julgada, por decisão transitada em julgado em 18-09-2017, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-06-2017, que considerou haver uma “venda em garantia fiduciária”, mais julgando haver usura dos juros, nos termos do disposto no artigo 282.º, n.º 2 do Código Civil, com lugar à sua redução para a taxa de 7%.
No entanto, a R. CBG recusou sempre retransmitir a propriedade da herdade dada em garantia, mediante o pagamento dos €265.000,00, para além dos €67.500,00 já entregues, sendo que, se aquela tivesse cobrado juros de acordo com a taxa legal, os A.A. teriam conseguido cumprir a obrigação subjacente à pretendida retransmissão da propriedade.
Sustentam assim que o negócio em causa é usurário e que, nos termos do disposto no artigo 1146.º do Código Civil, apenas estavam obrigados a restituir os €265.000,00 de capital e juros vencidos sobre aquela quantia à taxa legal máxima de 7%, os quais já se mostram pagos e em excesso.
Ao recusar a restituição da herdade, mediante o recebimento dos €265.000,00 e juros vencidos até 31-05-2009, a R. CBG ficou com a propriedade de um bem com o valor de pelo menos €408.000,00, pelo valor de €197.500,00 (€265000,00 – €67.500,00) e ficou na posse de €67.500,00, sem qualquer fundamento válido.
Por sua vez os A.A. ficaram sem uma propriedade, avaliada em 408.000,00, por €197.500,00€ (€265.000,00€-€67.500,00), na sequência da conduta culposa da R. de cobrança de juros manifestamente usurários.
Defenderam ainda que a R., ao recusar o cumprimento da obrigação de restituição da herdade, mediante a restituição do capital mutuado e juros à taxa legal de 7%, violou culposamente, o contrato celebrado, causando aos A.A. um prejuízo correspondente à diferença entre o valor real da herdade e aquele a que estariam legalmente obrigados a pagar à R..
Os R.R., citados, vieram contestar, invocando as exceções da ilegitimidade ativa e passiva, do caso julgado e da caducidade, deduzindo defesa por impugnação e formulando os seguintes pedidos reconvencionais:
a) Caso a ação venha a ser julgada procedente por provada – o que apenas se concede por razões hipotéticas, académicas, de patrocínio e de mero raciocínio – e venha a ser decretado qualquer dos pedidos formulados pelos AA. Nas alíneas a) a f), deverão os AA. Ser solidariamente condenados a pagar à R. C.B.G., S.A., a quantia de €265.000,00, acrescida do valor dos respetivos juros de mora, à taxa legal de 7%, calculados sobre a referida quantia, desde a data da escritura pública de compra e venda, isto é, 04 de agosto de 2008, até integral reembolso, ordenando-se o registo de tal ónus/obrigação de pagamento junto do Registo Predial do Imóvel, na respetiva descrição, por forma a que se evite que o mesmo seja onerado ou alienado em favor de terceiros, sem que os RR. Vejam ressarcidos os seus legítimos direitos;
b) Condenar os AA. A entregarem à R. sociedade C.B.G. todas as quantias que dizem ter recebido a título de pagamento de rendas vencidas/pagas por FC, no montante anual de €2.500,00, desde 2008, acrescido dos respetivos juros de mora à taxa legal em vigor;
c) Condenar os AA. Solidariamente a pagarem à R. sociedade C.B.G. uma indemnização a calcular/liquidar em sede de execução de sentença, correspondente/equivalente e devida ao período em que a mesma se viu privada de usar, dispor e fruir plenamente e sem quaisquer restrições e/ou limitações da Herdade da XX, isto é, desde 04 de agosto de 2008 até entrega definitiva, livre, total, devoluta e plena do imóvel.
Os A.A. responderam às exceções, pugnando pela sua improcedência, bem como da reconvenção, mas, na sequência de convite do tribunal, requereram a intervenção principal ativa da sociedade “ABT... – Sociedade Agro-Turística, Lda.”, para assegurar a legitimidade processual ativa, a qual foi admitida, tendo esta sociedade declarado fazer seus os articulados dos AA..
Findos os articulados, veio a ser proferido despacho saneador, no âmbito do qual se admitiu a reconvenção, julgou-se sanada a exceção da ilegitimidade ativa e improcedentes as exceções da ilegitimidade passiva, da caducidade e do caso julgado, mais se julgando legalmente inadmissível a discussão, no âmbito dos presentes autos, da qualificação do negócio celebrado pelas partes como uma venda fiduciária em garantia, por força da autoridade de caso julgado produzida pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no Processo nº 1626/12.5TBMTJ. No final, procedeu-se à fixação do objeto do litígio e dos temas da prova, admitindo-se os meios de prova requeridos.
Designada audiência final, depois de produzida a prova e discutida a causa, veio a ser proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, condenando a R., C.B.G.- Imobiliária, S.A., a pagar ao A. JR, a quantia de €67.500,00, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento; absolvendo no mais os R.R. dos pedidos; julgando ainda a reconvenção parcialmente procedente, condenando os A.A., CR e JR, a pagarem à R., C.B.G.- Imobiliária, S.A., uma indemnização pela privação do uso da Herdade, calculada desde 16.09.2011 até 16.03.2018, em valor a apurar em incidente de liquidação; absolvendo no mais os A.A. do pedido, inclusivamente a sociedade “ABT... – Sociedade Agro-Turística, Lda.”.
É dessa sentença que o A., JR, vem interpor recurso de apelação apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
A) O presente recurso vem interposto da douta Sentença na parte que julgou improcedentes o pedido principal e pedidos subsidiários formulados na ação instaurada pelos AA., JR e CR, limitando a condenação dos RR. Ao derradeiro pedido formulado pelos mesmos de restituição de €67.500,00 (sessenta e sete mil e quinhentos euros) com fundamento em enriquecimento sem causa.
B) Deviam ter sido julgados provados os factos julgados não provados nas alíneas q), r) s) e t) dos factos não provados, com base no depoimento prestado pela testemunha FC, gravadas no sistema “Diligência_2992-19.7T8ALM_2023_07_05_12-14-30 (1)”, de minuto 00:15:32 a minuto 00:15:12 e de minuto 00:15:32 a 00:15.37, e ainda no depoimento da testemunha LJ, gravado no sistema “Diligência_2992-19.7T8ALM_2023_07_05_11-36-23 (1)”, de minuto 00:06:50 a minuto 00:07:47 e de minuto 00:08:40 a minuto 00:08:46.
C) O Tribunal a quo devia ter julgado provado o pedido principal formulado pelos AA. Nas alíneas a), b) e c) por se estar perante uma venda em garantia fiduciária e não de um real contrato promessa de compra e venda, por ter ficado demonstrada a ilicitude da conduta dos RR. Na cobrança de juros usurários e, por conseguinte, justificado o não pagamento por parte dos AA.
D) Delimitada a real natureza do negócio celebrado como alienação em garantia fiduciária, o CPCV que as partes assinaram é um documento complementar respeitante às condições do mútuo, cuja data limite apenas pode respeitar ao vencimento da obrigação de pagamento.
E) A exigibilidade, 1.º de 110.000€ e, posteriormente, de 160.000€ de juros num período temporal máximo de parcos meses como condição de retransmissão da Herdade da XX para os AA. É ilícita, por violar de forma gritante o disposto no artigo 1146.º do Código Civil e constitui exceção de não cumprimento impeditiva da perda do benefício do prazo de pagamento.
F) Pelo que, o tribunal a quo devia ter julgado “(…) reconhecido como venda fiduciária em garantia de um mútuo o contrato celebrado entre os AA. E a R. CBG e usurários os juros cobrados pela R. nesse contrato, com a sua redução à quantia de €15.256,48, ou outra que venha a resultar da aplicação da taxa legal de 7%, a liquidar em execução de sentença;”, bem como declarar “ilícita a recusa da R. na extinção da obrigação dos AA. Em maio de 2009, mediante o pagamento de mais €265.000,00 e, consequentemente, culposamente incumprida a obrigação por parte da R. de retransmissão da Herdade da XX para os AA. Por exigência de juros manifestamente usurários”, proferindo “decisão que produza os efeitos da declaração negocial da R. CBG de venda aos AA. Do prédio misto denominado Herdade da XX pelo preço de €212.756,48, correspondente ao capital mutuado de € 265.000,00 e juros legais de €15.256,48, deduzidos os € 67.500,00 já entregues(…)“
G) Mesmo que assim se não entendesse, devia o Tribunal a quo ter julgado procedente o pedido de condenação das RR. No pagamento de €210.000 por via indemnizatória ou, caso assim se não entendesse, por via do instituto do enriquecimento se causa, correspondentes aos pedidos formulados nas alíneas c) e d):
“d) Caso assim se não entenda, ser declarado terem os RR. Impossibilitado culposamente os AA., com a exigência de juros usurários, de cumprir o contrato celebrado, com a consequente perda da Herdade da XX e, em consequência, serem os RR. Condenados a indemnizar os AA. No montante de €210.000,00, correspondente à diferença entre o valor pelo qual a R. ficou com a Herdade da XX e o seu valor real, que se estima em €408.000,00, ou outro a liquidar em execução de sentença, em função do valor que vier a ser apurado para a Herdade da XX em perícia a realizar;
e) Subsidiariamente, e com fundamento em enriquecimento sem causa, serem os RR. Condenados a pagar aos AA. A quantia de €210.000,00, correspondente à diferença entre o valor pelo qual a R. ficou com a Herdade da XX e o seu valor real, que se estima em €408.000,00, ou outro a liquidar em execução de sentença, em função do valor que vier a ser apurado para a Herdade da XX em perícia a realizar.”
H) É evidente, em face das regras da experiência comum, que a cobrança de juros num valor astronómico é causa da impossibilidade de cumprimento da obrigação de pagamento por parte dos AA., sendo despiciendo indagar se, na data de vencimento da obrigação, os mesmos tinham ou não tinham capacidade para pagar os €265.000 mutuados, já que os RR. Não aceitavam menos do que os €400.000 constantes do CPCV.
I) Os RR. Agiram ilicitamente ao cobrar juros a uma taxa de quase 50%, impedindo o cumprimento da obrigação garantida e devendo, por conseguinte, indemnizar os AA. Pelos prejuízos que essa conduta causou (perda da garantia), prejuízo esse que corresponde ao valor que excede os €210.000 do capital e juros legais em dívida.
J) Pelo que, devia o Tribunal a quo ter, subsidiariamente aos pedidos formulados em a), b) e c), julgado procedente o prejuízo sofrido pelos AA. Na sequência da conduta ilícita e culposa dos RR.
K) Em última análise, sempre deveria ter chegado à mesma conclusão por via do instituto do enriquecimento sem causa, por verificados os respetivos pressupostos legais, concretamente a inexistência de causa justificativa para a deslocação patrimonial.
L) Não existindo definição para o que se considera “causa justificativa”, a aferição da justeza ou não da causa para a deslocação patrimonial terá de fazer-se casuisticamente, tendo um campo de aplicação mais amplo que permita evitar uma solução “injusta”, tal como decorre do ac. do TRC de 02/11/2010, proferido no Processo N.º 1867/08.0TBVIS.C1 (disponível em www.dgsi.pt).
M) A deslocação de €408.000 da esfera patrimonial dos AA. para a da R. CBG, para garantia de um valor que, no máximo, era de €212.000€ (capital de €265.000 + juros de 7% - €67.500 já entregues), não pode encontrar justificação à luz dos princípios do nosso sistema jurídico, sendo, por conseguinte, injustificado, sendo evidente o locupletamento em cerca de €210.000 por parte da R. CBG a partir do momento em que existe uma sentença que decide pela manifesta usura dos juros cobrados aos AA.
N) A manutenção na esfera jurídica da R. CBG de um imóvel com o valor de €408.000 para garantia ou pagamento de uma dívida de pouco mais de €200.000 (incluindo os €67.500 entregues) e que tem por base a cobrança de juros usurários é uma decisão contrária ao direito e ofende o “comum sentido de Justiça”, o que se alcança pela simples analogia com a situação corrente de execução hipotecária, em que ao executado é sempre entregue o excedente do valor do bem alienado em garantia.
O) Estando perante uma alienação em garantia fiduciária, tendo a R. CBG recebido o bem para garantia de €400.000, mas tendo apenas direito ao capital e juros à taxa máxima de 7%, a permanência na sua esfera jurídica de um bem com o valor de €408.000 (no mínimo) consubstancia uma situação de enriquecimento sem causa em cerca de €200.000.
P) Estão verificados os pressupostos do enriquecimento sem causa, devendo haver lugar à restituição peticionada de €210.000 ao abrigo desse instituto como forma de impedir o locupletamento dos RR. E “uma solução que choque com o comum sentimento de justiça.”
Q) Ao absolver os RR. Dos pedidos, a douta Sentença viola o disposto no artigo 1146.º e 473.º do Código Civil.
Pede assim que seja concedido provimento ao recurso e revogada a sentença recorrida.
Os R.R. responderam ao recurso, sobrelevando das suas contra-alegações as seguintes conclusões:
a) Em parte alguma dos autos o recorrente faz referência ou alusão aos factos que considera incorretamente julgados. Não transcreve a gravação ou parte da gravação da audiência, e muito menos indica quais as passagens da mesma.
b) Não os individualiza, transcreve, descrimina ou assinala, por qualquer forma.
c) Limitando-se a “lançar” afirmações isoladas, descontextualizadas e desligadas sem qualquer fio condutor ou tipo de raciocínio lógico jurídico.
d) Não indica qual a decisão que seu entender se impunha quanto aos factos julgados como provados e não provados.
e) Num claro atropelo ao disposto no art.º 640.º do CPC que tem o seu máximo corolário Na mais completa omissão das exigências legais previstas no art.º 640.º n.º 1 al. a) do CPC.
f) O que implica a imediata e plena rejeição do recurso na sua íntegra, atenta a manifesta confusão do mesmo entre matéria de facto e matéria de direito.
g) A sentença recorrida obedece, estriba-se, limita-se e enquadra-se, quer de facto, quer de direito, no que já foi decidido pelo douto Acórdão do STJ proferido nos autos que correram termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Almada – Juiz 2, Proc.º n.º 1626/12.5TBMTJ.
h) Assinalar o caricato, absurdo e contraditório da situação, que nos referidos autos os ora AA. Surgem respetivamente: - JR, como Réu, e sua mulher – CR, como Autora.
i) Ou seja, nos autos que culminaram no STJ a agora Autora demandou e acusou o seu marido de, em conluio com a Ré C.B.G., terem celebrado um negócio simulado com o fim de defraudar a lei e enganar a administração tributária e a Autora CR.
j) Nesses autos a ora Autora era representada pela M.D. Advogada Dr.ª P, a mesma Ilustre Mandatária que agora, nos presentes autos, em claro conflito de interesses de patrocínio e violação das mais elementares regras deontológicas da prática da advocacia vem, igualmente, representar o co-Autor JR, em clara contradição com a tese e a defesa que pugnou nos autos que outrora correram no Tribunal de Almada culminaram no Acórdão do STJ.
l) E mais ainda, foi a advogada constituída pela ora testemunha FC, embargante no processo seguidamente identificado.
m) A testemunha FC tem interesse direto em que a presente ação seja favorável aos AA. E desfavorável aos RR., uma vez que ainda mantém abusivamente as suas vacas na propriedade em causa.
n) O mesmo não tem qualquer conhecimento direto/presencial dos factos ocorridos entre AA. e RR., apenas sabendo o que o A. JR lhe contou e que, aproveitando-se da sua avançada idade veio a juízo ofender, difamar e injuriar o Tribunal da Relação de Évora, o Supremo Tribunal de Justiça, o mandatário signatário e as RR. Devendo o seu depoimento ser totalmente desconsiderado por tais motivos.
o) A testemunha LJ, genro dos AA. Igualmente depôs de forma parcial e instrumentalizada, não relevando qualquer conhecimento direto nem presencial dos factos. Devendo o seu depoimento ser desconsiderado, porquanto o mesmo nada sabe dos negócios, nada confirmou, nunca presenciou nada, não conhece os Réus e tudo o que sabe foi o sogro que lhe contou.
p) Já quanto à matéria de direito o recurso é redutoramente miserável pois não indica uma única norma violada pelo Tribunal Recorrido. Não indica qual o sentido de interpretação das normas aplicáveis e, muito menos, que normas deveriam ter sido aplicadas.
q) Em clara violação do disposto no art.º 639.º n.ºs 1 e 2 do C.P.C..
r) Razão pela qual, sendo o recurso sub judice manifestamente infundado deverá ser objeto de decisão liminar/sumária improcedência, por aplicação do disposto no art.º 656.º do CPC, atenta a inúmera proliferação de decisões semelhantes em sede de violação do disposto nos art.ºs 639.º e 640.º ambos do CPC, negando-se, assim, provimento ao recurso.
s) Os Autores omitem, por completo, as transcrições das partes essenciais e determinantes do douto acórdão do STJ e da demais prova documental junta aos autos.
t) Olvidando e omitindo, por completo, as conclusões/decisão desse libelo, transitado em julgado, mediante o qual se decide:
“Já vimos que, no caso dos autos, perante a pretensão formulada pelas Autoras na petição inicial, era objetivo destas obter, através da via da nulidade do ato da venda do imóvel, a efetivação do seu direito no confronto da outra parte no pacto fiduciário. Pretensão essa que, no caso, se tem por legalmente inadmissível, seja por via do artigo 240.º (nulidade por simulação), seja por via do artigo 280.º (nulidade por contrariedade à lei) pelos motivos já apontados. Por outro lado, como o próprio acórdão recorrido reconheceu “não ficaram provados todos os factos invocados na petição inicial integradores do artigo 282.º n. 1 do CC e que justificariam a sua anulação ao abrigo deste artigo”. Haverá, assim, que concluir que, da matéria de facto dada como provada, resulta a celebração de um contrato de compra e venda com um fim de garantia de determinada obrigação pecuniária decorrente de um mútuo subjacente à dita venda, firmado entre o Réu e a Ré. Mais haverá que concluir que daquela matéria de facto, não resultam elementos bastantes para apurar, com segurança, a existência de uma situação que implique a nulidade ou anulação do referido contrato de compra e venda. A revista deverá, pois, proceder, havendo, deste modo, que revogar o acórdão recorrido para se julgar a ação improcedente.
3 – Decisão
Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso de revista e revoga-se o acórdão recorrido, julgando-se a ação improcedente”
Cfr. Acórdão do STJ que se dá aqui por integralmente reproduzido.
u) A decidir de forma diferente da que decidiu o Tribunal recorrido teria incorrido violação do princípio do caso julgado, como se fundamentará de seguida: Cfr. acórdão STJ 915/09.0TBCBR.C1.S1, 1.ª Secção
“A exceção de caso julgado constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, que se traduz num pressuposto processual negativo cuja função consiste em impedir o prosseguimento do processo com o objetivo de evitar que o tribunal se veja na contingência de proferir decisão de mérito que contrarie ou repita uma outra, anterior e definitiva. O trânsito em julgado imprime à decisão carácter definitivo; uma vez transitada em julgado, a decisão não pode ser alterada. Ao caso julgado está, assim, inerente a ideia de imutabilidade ou de estabilidade. O fim do caso julgado é o de evitar a reprodução ou contradição de uma dada decisão transitada em julgado. A exceção do caso julgado traduz-se em «a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais quando lhes seja submetida a mesma relação, todos tendo de acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão e de modo absoluto, com vista não só à realização do direito objetivo ou à atuação dos direitos subjetivos privados correspondentes, mas também à paz social» (cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, pp. 305-306). O caso julgado, a  verificar-se, obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e conduz à absolvição da instância (art.º 576.º, n.º 2 do CPC). …
v) Toda a fundamentação jurídica da decisão recorrida para julgar improcedentes os pedidos formulados pelos AA. Se mostra como correta, técnica e juridicamente bem fundamentada não merecendo reparo ou censura.
x) Nunca os AA. Reclamaram dos RR. O pagamento ou o reembolso de quaisquer juros, usurários, ou não.
z) Não se mostra provado que em 15 de Abril de 2011 os AA. Tinham a quantia necessária para pagar o capital e os juros à taxa legal em vigor, antes pelo contrário, os AA. Não tinham tal montante e nunca sequer se ofereceram para o pagar, logo ficando excluída a possibilidade de execução especifica do contrato.
aa) Nunca existiu qualquer enriquecimento sem causa dos RR., nem se verificam no caso concreto os requisitos de tal figura jurídica. Antes pelo contrário.
Ab) A Ré tem-se visto ininterruptamente impedida, desde a data da compra da Herdade, de ocupar e explorar o imóvel e, bem assim, de obter do mesmo quaisquer rendimentos.
Ac) Não foi alegada nem provada a usura pelo que o negócio em causa é válido e deverá ser reduzido à sua essência de compra e venda.
Ad) Ficamos assim colocados perante a questão de em caso de eventual procedência do recurso, – o que só por razões de mero raciocínio se concede – da devolução/obrigação da restituição do prestado/pago pela Ré sociedade aos Autores.
Ae) O que implicaria forçosamente que, nessa hipótese meramente académica seja ordenada a imediata e subsequentemente a devolução de todas as importâncias recebidas pelos vendedores à Ré sociedade, €265.000,00 (duzentos e sessenta e cinco mil euros) pois também é isso que decorre da lei e dos efeitos da eventual anulação dos contratos, acrescido do valor dos respetivos juros de mora à taxa legal de 7% calculados sobre a referida quantia contados desde a data da escritura pública de compra e venda, isto é, 04 de agosto de 2008, até integral reembolso da quantia em divida, ordenando-se o registo de tal ónus/obrigação de pagamento junto do Registo Predial do Imóvel, na respetiva descrição, por forma a que se evite que o mesmo seja onerado ou alienado em favor de terceiros, sem que os Réus vejam ressarcidos os seus legítimos direitos.
Em conformidade, pedem que seja negado provimento ao recurso, mantendo-se  a decisão recorrida nos seus precisos e exatos termos.
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II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos, as questões essenciais a decidir são as seguintes:
A) A impugnação da matéria de facto e sua eventual rejeição;
B) A procedência e mérito dos pedidos principais formulados nas alíneas a), b) e c) da petição inicial relativos:
1.º) Ao reconhecimento da existência duma venda fiduciária em garantia de mútuo no contrato celebrado entre os A.A. e a R. CBG e da existência de juros usurários cobrados pela R. nesse contrato, com a sua redução à quantia de €15.256,48, ou outra que venha a resultar da aplicação da taxa legal de 7%, a liquidar em execução de sentença;
2.º) Ao reconhecimento da ilicitude da recusa da R. na extinção da obrigação dos A.A. em maio de 2009, mediante o pagamento de €265.000,00 e do incumprimento culposo da R. na retransmissão da Herdade da YY para os AA., por exigência de juros usurários;
3.º) Á execução específica por decisão que produza os efeitos da declaração negocial da R. CBG de venda aos A.A. do prédio misto denominado Herdade da YY pelo preço de €212.756,48, correspondente ao capital mutuado de €265.000,00 e juros legais de €15.256,48, deduzidos os €67.500,00 já entregues, ou por outro que venha a apurar-se em julgamento e a liquidar em sede de execução de sentença;
C) A procedência e mérito dos pedidos subsidiários, relativos:
1.º) Ao reconhecimento de os RR. Terem impossibilitado culposamente os A.A., com a exigência de juros usurários, de cumprir o contrato celebrado, com a consequente perda da Herdade da YY e a condenação dos R.R. a indemnizar os AA. No montante de €210.000,00, correspondente à diferença entre o valor pelo qual a R. ficou com a Herdade da YY e o seu valor real, que se estima em €408.000,00, ou outro a liquidar em execução de sentença, em função do valor que vier a ser apurado para a Herdade da YY;
2.º) Ao enriquecimento sem causa, com a condenação dos RR. A pagar aos A.A. a quantia de €210.000,00, correspondente à diferença entre o valor pelo qual a R. ficou com a Herdade da YY e o seu valor real, que se estima em €408.000,00, ou outro a liquidar em execução de sentença, em função do valor que vier a ser apurado para a Herdade da YY; ou à restituição aos AA. Da quantia de €67.500,00, correspondentes à quantia efetivamente paga, acrescida dos juros de mora vencidos desde a data da citação até integral e efetivo pagamento.
      
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1. A A. CR é casada no regime da comunhão de adquiridos com o A. JR (1º p.i.).
2. Por escritura pública celebrada no dia 26.02.2008, os pais da A. doaram-lhe, por conta da legítima, o prédio misto denominado “Herdade da XX”, sito na freguesia da …, concelho de Évora, descrito na Conservatória do Registo Predial de Évora sob o n.º … da referida freguesia, inscrito na matriz rústica sob o artigo … da Secção cadastral F, e na matriz urbana sob o artigo … (2º p.i.).
3. O A. JR tinha em vista concretizar um projeto de turismo rural na referida Herdade da XX (3º p.i.).
4. O A. JR precisava de liquidar vários empréstimos que o casal tinha pendentes, a fim de conseguir obter financiamento para o referido projeto de turismo rural (4º p.i.).
5. À data, os AA. encontravam-se com dificuldades financeiras (5º p.i.).
6. Para regularizar os empréstimos bancários e efetuar as despesas iniciais com o projeto da XX, o A. JR decidiu pedir ao sócio e gerente da R., o R. CG, um empréstimo no montante de €265.000,00 (6º p.i.).
7. A R., através do seu administrador, concordou em emprestar ao autor os €265.000,00 durante o prazo de dez meses, mediante o pagamento de juros no montante  total de €110.000,00 (7º p.i.).
8. Ficou, assim, acordado que a R. CBG emprestaria ao A. JR €265.000,00 e que este lhe pagaria, findo o prazo de dez meses, €375.000,00 (8º p.i.).
9. A fim de concretizar o empréstimo, inicialmente, a R. CBG informou o A. marido de que deveriam formalizar o negócio mediante uma venda a retro, para o que o A. marido deveria obter uma procuração da A. mulher (12º p.i.).
10. Para o efeito, e respeitando as instruções do R., no dia 25.07.2008, no Cartório Notarial de …, em Évora, a A. outorgou a favor de seu marido uma procuração, através da qual lhe conferiu poderes para “Vender a Retro pelo preço e demais condições que entender o prédio misto, denominado Herdade da XX, na freguesia de …, concelho de Évora, descrito na Conservatória do Registo Predial de Évora sob o número … da freguesia de … e inscrita a parte urbana na respetiva matriz sob o artigo … e a parte rústica na respetiva matriz sob o artigo … da secção F” (13º p.i.).
11. Pelo mesmo instrumento notarial, conferiu-lhe ainda autorização para “outorgar e assinar a respetiva escritura, receber o preço e dar dele quitação” e ainda “expressa autorização ao ora mandatário para exercer o respetivo direito de resolução” (14º p.i.).
12. No dia seguinte, a R. CBG informou o A. marido de que não poderiam, afinal, outorgar uma escritura de venda a retro, porquanto a mesma não podia contemplar o valor dos juros que o A. teria de lhe pagar (15º p.i.).
13. A R., através do R. CG, e o A. marido combinaram, então, entre si, celebrar um contrato de compra e venda da Herdade, para garantia do empréstimo, na qual se declararia como preço os €265.000,00 (16º p.i.).
14. Combinaram ainda que, nesse mesmo dia, assinariam um contrato-promessa de compra e venda, pelo qual a R. CBG se obrigava a revender ao A. JR, na data de vencimento do empréstimo, a mesma Herdade, mas pelo preço de €375.000,00, correspondente ao valor do capital mutuado e juros (17º p.i.).
15. No referido documento, assinado sob a denominação de “contrato-promessa”, ficaram estipuladas as condições da obrigação de revenda, concretamente, o valor a pagar pelo A. marido e a respetiva data (18º p.i.).
16. Em execução do acordado, no dia 04.08.2008, no Cartório Notarial de …, o A. JR, por si e em representação da sua mulher, declarou vender à R. CBG, que declarou comprar, pelo preço de €265.000,00, o prédio misto denominado “Herdade da XX” (19º p.i.).
17. A R. CBG entregou ao A. JR três cheques sacados sobre a conta n.º 00204250646, titulada pela C.B.G. Imobiliária, S.A., na agência do Montijo do Barclays Bank, dois no montante de €100.000,00 e um no montante de €65.000,00, todos emitidos em 04.08.2008 (20º p.i.).
18. Nessa mesma data, e conforme combinado previamente, a R. CBG e o A. marido assinaram um documento particular, com mero reconhecimento da assinatura do A. marido, denominado “Contrato Promessa”, no qual a R. CBG prometeu vender ao A. JR, pelo preço de €375.000,00, a mesma Herdade (21º p.i.).
19. De acordo com o disposto no parágrafo 1.º da cláusula 3.ª do “Contrato Promessa”, o prazo para a outorga da escritura do contrato prometido foi fixado imperativamente até ao dia 31.05.2009, data limite para reembolso de capital e pagamento de juros (22º p.i.).
20. Não foi convencionado sinal nem cláusula penal para o caso de incumprimento (23º p.i.).
21. A A. não assinou o documento (24º p.i.).
22. As partes não quiseram a transferência definitiva da Herdade para a R. CBG, mas apenas garantir o empréstimo (25º p.i.).
23. Não pretendendo os outorgantes celebrar uma real compra e venda, mas apenas garantir o empréstimo, ficou acordado que os AA. se manteriam na posse da Herdade sem qualquer encargo, o que sucedeu (26º p.i.).
24. Em 31.05.2009, o A. não tinha os € 375.000,00 que acordara pagar à R. CBG (30º p.i.).
25. A R. CBG ameaçou não restituir a Herdade caso o A. marido não conseguisse a totalidade do valor exigido (31º p.i.).
26. No dia 23.12.2010, a R. CBG renegociou as condições do empréstimo, mediante o pagamento de mais contrapartidas (32º p.i.).
27. No mesmo dia 23.12.2010 assinaram um novo documento, que designaram “contrato promessa”, pelo qual a R. CBG, representada pelo R. CG, prometeu vender à sociedade “ABT... – Sociedade Agro Turística, Lda.”, representada pelo A., pelo preço de €400.000,00, a Herdade da XX (35º p.i.).
28. Foi estipulado no contrato promessa que a venda teria de ser celebrada “imperativamente” até ao dia 15 de abril de 2011 e que o preço seria integralmente pago na escritura.
29. Mais ficou a constar do § 2º da cláusula 3ª do contrato promessa de 23 de dezembro de 2010 que “A não realização da escritura até ao prazo referido no corpo desta cláusula implicará a revogação automática do presente contrato e a renúncia dos outorgantes a reclamarem uma da outra de quaisquer direitos ou indemnizações, tudo se passando como se o presente contrato não tivesse existido”.
30. Quiseram a R. CBG e o A. marido, com a assinatura do referido documento que designaram “contrato promessa”, fixar as condições da retransmissão da propriedade da Herdade da XX para os AA., concretamente, o valor de capital e juros a pagar, e data limite para o efeito (38º p.i.).
31. O pagamento dos €400.000,00, em quatro meses, correspondia ao valor do capital mutuado de €265.000,00, e juros de mais €135.000,00 (42º p.i.).
32. O A. JR teve de aceitar as novas condições do empréstimo, sob pena de ficar sem a Herdade (43º p.i.).
33. Eram sócios da sociedade “ABT...” os AA. e os filhos, a qual iria explorar a atividade de turismo rural da XX (36º p.i.).
34. Da quantia total de €67.500,00, não entraram na sociedade R. €22.500,00, e os demais €45.000,00, apesar de terem entrado, não foram imputados ao empréstimo (46º p.i.).
35. Em 02.07.2012, a A. instaurou contra a R. CBG e marido uma ação destinada à declaração de nulidade da venda com fundamento em simulação, a qual foi distribuída e correu os seus termos pelo extinto 2.º Juízo Central Cível de Almada, sob o n.º 1626/12.5TBMTJ (51º p.i.).
36. No relatório pericial elaborado no âmbito desse Processo n.º 1626/12.5TBMTJ consignou-se que em 2008 a Herdade da XX tinha um valor comercial, na sua totalidade (parte rústica e parte urbana), de €408.406,20 (10º p.i.).
37. Na referida ação ficaram provados os seguintes factos:
“A. Por escritura pública outorgada no dia 26 de Fevereiro de 2008, os pais da 1ª autora doaram-lhe, por conta da legítima, o prédio misto denominado “Herdade da XX”, sito na freguesia da …, concelho de Évora, descrito na Conservatória do Registo Predial de Évora sob o n.º … da referida freguesia, inscrito na matriz rústica sob o artigo … da Secção cadastral F, e na matriz urbana sob o artigo …, de ora em adiante designada apenas por XX. (…)
D. Em 2008, a 1ª autora e o réu tinham dívidas bancárias que não conseguiam pagar, fruto de um envolvimento num projeto de construção de um hotel em Évora.
E. Constavam da lista de devedores do Banco de Portugal e não tinham qualquer fonte de rendimento.
F. Nessa ocasião, decidiram criar um projeto de turismo rural na referida Herdade da XX.
G. Para esse efeito, as autoras e o réu constituíram, a sociedade denominada «ABT..., Lda.», cujo contrato de sociedade se encontra a fls. 22 a 26 e cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido.
H. Autoras e réu precisavam de financiamento para iniciar aquele projeto de turismo, sendo que não conseguiam aceder a financiamento bancário.
I. Para regularizar os empréstimos bancários e suportar as despesas iniciais com o projeto, o réu decidiu pedir Presidente do Conselho de Administração da ré, CG um empréstimo de €265.000,00.
J. A ré é uma sociedade comercial que se dedica à atividade imobiliária.
K. A ré, representada por Presidente do Conselho de Administração, decidiu então emprestar ao réu a quantia de €265.000,00, comprometendo-se o réu a restituir aquela quantia no prazo de dez meses, com o acréscimo de €110.000,00.
N. Inicialmente, acordaram entre si celebrar uma venda a retro da mesma Herdade.
O. Para o efeito e respeitando as instruções do réu, no dia 25 de Julho de 2008, no Cartório Notarial de …, em Évora, a 1ª autora outorgou a favor de seu marido uma procuração, através da qual conferiu ao marido poderes para “Vender a Retro pelo preço e demais condições que entender o prédio misto, denominado Herdade da XX, na freguesia de …, concelho de Évora, descrito na Conservatória do Registo Predial de Évora sob o número … da freguesia de … e inscrita a parte urbana na respetiva matriz sob o artigo … e a parte rústica na respetiva matriz sob o artigo … da secção F”.
P. Conferiu ainda, pelo mesmo instrumento notarial, autorização para “outorgar e assinar a respetiva escritura, receber o preço e dar dele quitação” e ainda “expressa autorização ao ora mandatário para exercer o respetivo direito de resolução”.
Q. No dia seguinte, a R. CBG informou o R. marido de que não poderiam, afinal, outorgar uma escritura de venda a retro, porquanto a mesma não podia contemplar o valor dos juros que o R. teria de lhe pagar.
R. Os RR. combinaram, então, entre si, em celebrar a compra e venda da Herdade, na qual se declararia como preço da venda o capital mutuado de €265.000,00 e se assinaria, nessa mesma data, um contrato promessa pelo qual a R. CBG prometia vender ao R. JR, na data de vencimento do empréstimo, a mesma Herdade pelo preço de €375.000,00, correspondente ao valor do capital mutuado e juros.
V. No dia 28 de Julho de 2008, no Cartório Notarial de …, em Évora, a referida autora outorgou nova procuração a favor de seu marido, através da qual o constituiu seu procurador, a quem, com a faculdade de substabelecer, conferiu poderes para “Vender pelo preço de duzentos e sessenta e cinco mil euros o prédio misto, denominado Herdade da XX, na freguesia de …, concelho de Évora, descrito na Conservatória do Registo Predial de Évora sob o número … da freguesia de … e inscrita a parte urbana na respetiva matriz sob o artigo … e a parte rústica na respetiva matriz sob o artigo … da secção F”.
W. Conferiu ainda, pelo mesmo instrumento notarial, autorização para “outorgar e assinar a respetiva escritura, receber o preço e dar dele quitação”.
X. Em cumprimento do plano acordado, no dia 4 de Agosto de 2008, por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de …, o Réu, por si e em representação de sua mulher, declarou vender à Ré, que declarou comprar, pelo preço de €265.000,00 (duzentos e sessenta e cinco mil euros), o prédio misto denominado “Herdade da XX”.
Y. A R. CBG entregou ao R. JR três cheques sacados sobre a conta n.º …646 titulada pela C.B.G. Imobiliária, S.A. na agência do Montijo do Barclays Bank, dois no montante de €100.000,00 e um no montante de €65.000,00, todos emitidos em 04-08-2008.
AA. Nessa mesma data, e conforme combinado previamente, os RR. assinaram um documento denominado por “Contrato Promessa”, pelo qual a R. CBG prometia vender ao R. JR, pelo preço de €375.000,00 (trezentos e setenta e cinco mil euros), a mesma Herdade.
BB. De acordo com o disposto no parágrafo 1.º da cláusula 3.ª do “Contrato Promessa”, o prazo para a outorga da escritura do contrato prometido foi fixado imperativamente até ao dia 31 de maio de 2009.
CC. De acordo com o parágrafo 2.º da cláusula 3.ª, ficou convencionado que “A não realização da escritura até ao prazo referido no corpo desta cláusula implicará a revogação automática do presente contrato e a renúncia dos outorgantes a reclamarem um do outro de quaisquer direitos ou indemnizações, tudo se passando como se o presente contrato não tivesse existido”.
DD. As partes não convencionaram sinal.
EE. Após a outorga da escritura em causa, o R. JR efetuou várias diligências no sentido de promover o projeto de turismo rural na XX, tendo obtido o parecer de viabilidade da Câmara Municipal de Évora.
FF. E contratou os serviços de um arquiteto para elaborar o respetivo projeto.
GG. A A. CR e o R. JR mantiveram-se sempre na posse da Herdade.
JJ. Em Maio de 2009 o R. JR não tinha o restante que faltava para pagar os €375.000,00 que acordara pagar à R.
KK. A R. CBG começou a pressionar o R. para pagar, através de visitas e telefonemas feitos pelo Eng.º FP, conhecido por ser sócio de facto do gerente da R. CBG.
LL. No dia 23 de Dezembro de 2010, mediante o pagamento de mais €25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a R. CBG aceitou renegociar as condições do empréstimo.
MM. Nesse contexto, o R. JR comprometeu-se a pagar €400.000,00 (quatrocentos mil euros) até ao dia 15 de abril de 2011, sendo €265.000 referentes à quantia emprestada e €135.000,00 de juros.
OO. Nesse propósito, no dia 23 de Dezembro de 2011, assinaram um novo contrato – promessa, pelo qual a R. CBG prometia vender à sociedade “ABT... – Sociedade Agro Turística, Lda.”, representada pelo R. JR, pelo preço de €400.000,00 (quatrocentos mil euros), a Herdade da XX.
PP. A sociedade promitente compradora, denominada “ABT...” (de que as AA e o réu JR são sócios) obrigou-se a proceder à marcação da escritura “imperativamente até 15 de Abril de 2011” – o que não fez.
L., HH. e QQ. Em datas não apuradas, o réu fez entregas de numerário ao representante da ré, por conta do empréstimo, no valor global de 67.500,00 euros.
RR. O R. JR teve de aceitar as novas condições do empréstimo sob pena de ficar sem a Herdade.
SS. A Herdade da XX tem um valor de mercado avaliado em €408.406,20.
TT. Com as suas declarações na escritura de compra e venda de 4 de agosto de 2008, nem o R. JR, por si e em representação da A. CR, nem a R. CBG quiseram vender e comprar definitivamente a Herdade.
UU. Tratou-se de uma forma acordada entre os RR. para garantir o pagamento do empréstimo dos €265.000,00 e o recebimento dos juros.
VV. A R. CBG nunca quis comprar a XX para a revender no âmbito do seu objeto social.
WW. Entre 2005 e 2009, na zona do Alentejo, a “C.B.G.” comprou, para revenda, os seguintes imóveis - Herdade dos … ou … - Prédio rústico com parte urbana denominado “…” - Herdade da … - Herdade da … - Herdade da … - Prédio rústico denominado “…”.
XX. Tais aquisições ascenderam ao valor global de 5.573.181,25 € (cinco milhões setecentos e sessenta e três mil cento e oitenta e um euros e vinte e cinco cêntimos).
YY. Comprou os prédios (rústicos e urbano) que constituem a “Herdade das …” por €393.992,25 e revendeu-os por €500.000,00 (€106.007,75).
ZZ. A “C.B.G.” não revendeu, em tempo (3 anos), a Herdade da XX e perdeu a isenção de IMT – que pagou a 22-09- 2011/€ 11.213,57.
AAA. A 16 de setembro de 2011 o réu JR e a A. CR foram interpelados pela Il. Solicitadora Dra. S para procederem à entrega do imóvel.” (52º p.i.).
38. Foi proferida sentença, julgando a ação procedente e declarando a nulidade, por simulação absoluta, do contrato, tendo ainda determinado o cancelamento da inscrição de aquisição da propriedade a favor da R. CBG.
39. Em sede de recurso, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a sentença, ainda que com fundamento diferente, pois não julgou provada a simulação, entendendo, diversamente, tratar-se de uma venda fiduciária em garantia, nula por ser contrária à lei.
40. O Supremo Tribunal de Justiça revogou o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, julgando a ação improcedente, com fundamento em que não foram julgados provados os factos integradores da figura do negócio usurário, pelo que apenas assistiria às AA. a faculdade de requererem a redução da taxa de juros, o que, todavia, não fizeram.
41. A sentença transitou em julgado em 18-09-2017 (54º p.i.).
42. Os RR. nunca interpelaram os AA. para pagarem, sob pena de considerarem definitivamente incumprido o contrato celebrado (58º p.i.).
43. Nenhum dos RR. restituiu aos AA. os € 67.500,00 entregues (60º p.i.).
44. Em 10.10.2011 a R. CBG instaurou contra os AA. ação executiva para entrega da Herdade, que foi distribuída ao Juízo de Execução de Montemor-o-Novo, sob o n.º 2453/11.2TBEVR (50º p.i.).
45. Na execução acima aludida foram deduzidos embargos de terceiro por parte de FC, com fundamento da existência de um contrato de arrendamento rural celebrado com os AA., os quais foram julgados procedentes em 1ª Instância e julgados improcedentes pelo Tribunal da Relação de Évora, por não se julgar provada a celebração do aludido contrato, tendo este Acórdão sido confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão transitado em julgado a 16.11.2020 (21º a 25º cont.).
46. Na Sentença proferida nos embargos de terceiro referidos consignou-se, nos factos provados, que “15) No dia 16.03.2018, no âmbito de diligência levada a cabo pela Agente de Execução na execução principal de que estes embargos são apenso, a sociedade Exequente (Sociedade CBG – Imobiliária SA) foi investida na posse da Herdade da XX, sendo o ora embargante notificado para, no prazo de 10 dias, retirar a totalidade dos animais que se encontravam naquela Herdade, bem como outros bens que ali se encontravam e fossem da sua propriedade”.
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Foram julgados por não provados os seguintes factos:
a) Sendo o projeto de turismo rural na XX uma forma de obter rendimentos necessários à sua sobrevivência (5º p.i.).
b) O empréstimo seria garantido com a própria XX, a formalizar por meio de negócio a indicar pelos RR. (9º p.i.).
c) Ficou ainda acordado que desde a data do empréstimo até à data do seu vencimento, o A. JR começaria logo a pagar à R. CBG, em numerário, a título de juros, a quantia mensal de € 3.750,00 (11º p.i.).
d) A A. não teve qualquer conhecimento do referido documento (24º p.i.).
e) Conforme combinado, o A. entregou à R. CBG, por conta dos juros, de 04.09.2008 até 31.05.2009, a quantia mensal de €3.750,00, no total de €37.500,00 (29º p.i.).
f) Tendo apenas o capital mutuado (30º p.i.).
g) O A. pagou, nessa mesma data, em numerário, mais €25.000,00, que entregou em mão ao R. CG, a fim de prorrogar o prazo de vencimento do empréstimo (33º p.i.).
h) A R. aceitou prorrogar o prazo de vencimento do empréstimo para 15.04.2011 mediante a entrega imediata dos €25.000,00 (34º p.i.).
i) A referida sociedade não tinha qualquer atividade ou património, sendo apenas uma “capa” para o A. marido fazer negócios pessoais (37º p.i.).
j) A R. CBG já tinha recebido do A., em 23.12.2010, €62.500,00, que não imputou a juros nem capital, fazendo-os seus (39º p.i.).
k) Com efeito, tais montantes nem sequer ficaram a constar do novo documento assinado pelo R. marido em 23.12.2010 (40º p.i.).
l) O A. marido aceitou as condições, sem o conhecimento da mulher, por se encontrar sob forte pressão da R. e em risco de perder a XX (41º p.i.).
m) Para além dos €62.500,00 já pagos à R. entre setembro de 2008 e maio de 2009, que seria feito sob a aparência de preço de venda da XX (42º p.i.).
n) Em janeiro de 2010, o A. entregou, pelo menos, mais €5.000,00 ao R. CR, por conta dos juros (44º p.i.).
o) A quantia foi recebida em mão pelo R. CR (46º p.i.).
p) O A. não conseguiu obter a quantia exigida a título de juros pela R. CBG em abril de 2011 (47º p.i.).
q) O A. apenas conseguia obter o capital mutuado de €265.000,00, para além dos €67.500,00 que lhe havia já entregue (48º p.i.).
r) O administrador da R. recusou, porém, receber os €265.000,00, afirmando que só passaria a propriedade para os AA. se estes pagassem €400.000,00 (49º p.i.).
s) Caso a R. tivesse cobrado juros de acordo com a taxa legal, os AA. tinham conseguido cumprir a obrigação subjacente à obrigação assumida de retransmissão da propriedade (56º p.i.).
t) Só devido aos juros muito superiores aos legais não lograram fazê-lo (57º p.i.).
u) Entre 4 de agosto de 2008 e dezembro de 2010 (60º p.i.).
Tudo visto, cumpre apreciar.
*
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Identificadas as questões que fazem parte do objeto do recurso, cumpre agora apreciar as mesmas pela sua ordem de precedência lógica, começando pela impugnação da matéria de facto e sua eventual rejeição.
1. Da impugnação da matéria de facto e sua eventual rejeição.
O Recorrente pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto referindo explicitamente nas suas conclusões que os factos julgados por não provados nas alíneas q), r), s) e t) da sentença recorrida deveriam ser dados por provados, tendo em consideração os depoimentos das testemunhas FC e LJ, indicando os segmentos temporais das gravações dos seus depoimentos que considera relevantes para corrigir a matéria de facto no sentido por si pretendido.
Os Recorridos, por seu turno, sustentam que a impugnação da matéria de facto assim apresentada deveria pura e simplesmente ser liminarmente rejeitada, por violação do Art. 640.º n.º 1 al. a) do C.P.C., fazendo notar que o Recorrente não transcreveu nenhum segmento dos depoimentos gravados, não identifica as passagens relevantes dos mesmos, nem especifica os factos que pretende impugnar. Isto para além de referirem que as duas testemunhas mencionadas pelo Recorrente têm interesse no mérito da causa, não têm conhecimento direto dos factos e nada sabem sobre a situação concreta do litígio dos autos.
Apreciando desde logo a questão prévia da rejeição liminar da impugnação, cumpre ter em atenção que, nos termos do Art. 662.º n.º 1 do C.P.C., o Tribunal da Relação pode alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa. Mas, nos termos do Art. 640º n.º 1 do C.P.C., quando seja impugnada a matéria de facto, deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito concretiza-se que, quanto aos meios probatórios invocados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso (v.g. al. a) do referido n.º 2 do Art. 640.º do C.P.C.). Para o efeito, estabelece-se mesmo que o Recorrente poderá transcrever os excertos relevantes, sendo que, ao Recorrido, por contraposição, caberá o ónus de designar os meios de prova que infirmem essas conclusões do recorrente, indicar as passagens da gravação em que se funda a sua defesa, podendo também transcrever os excertos que considere importantes, isto sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
A lei impõe assim, a quem apela, específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro deles o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância, mas concretizando os concretos meios de prova que levariam a decisão diversa e especificando qual a decisão que se impunha em termos factuais.
A este propósito, nunca é de mais relembrar o que a propósito se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/5/2016 (Proc. n.º 1393/08 – Relatora: Maria Amélia Ribeiro, disponível em www.dgsi.pt), onde se pode ler que: «É ao impugnante que cumpre convencer o Tribunal de recurso que a primeira instância violou as regras de direito probatório aquando da apreciação dos meios de prova. Não basta uma mera contraposição de meios de prova (ainda que não constantes dos indicados na fundamentação do tribunal): é necessário que a parte que recorre proceda, ela própria, a uma análise crítica da apreciação do tribunal a quo, demonstrando em que pontos o Tribunal se afastou do juízo imposto pelas regras legais, dos princípios, das regras da racionalidade e da lógica ou da experiência comum».
No mesmo sentido, no acórdão da Relação do Porto de 6/3/2017 (Proc. n.º 632/14 – Relator: Miguel Morais, disponível no mesmo sítio), afirma-se que: «tal como se impõe que o Tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas, nos termos do Art. 607º, nº 4), também o recorrente, ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando, designadamente, reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos ou indicar, de forma acrítica, um determinado documento. / Deste modo, na motivação de um recurso, para além da alegação da discordância, é outrossim fundamental a alegação do porquê dessa discordância, isto é, torna-se mister evidenciar a razão pelo qual o recorrente entende existir divergência entre o decidido e o que consta dos meios de prova invocados. / Nesse sentido tem sido interpretado o segmento normativo “impunham decisão diversa da recorrida” constante da 2ª parte da al. b) do n.º 1 do Art. 640º, acentuando-se que o cabal exercício do princípio do contraditório pela parte contrária impõe que sejam conhecidos de forma clara os concretos argumentos do impugnante».
Em suma, não basta especificar os factos pretendidos impugnar, nem qual a decisão pretendida fazer valer com a impugnação, nem limitar-se o Recorrente a arrolar meios de prova de maneira acrítica, sustentado a sua pretensão só na mera expectativa de que o Tribunal da Relação irá indagar oficiosamente sobre a correção do julgamento de facto constante da sentença recorrida. É preciso, antes de mais, demonstrar que efetivamente se impõe uma decisão diversa quanto aos factos concretamente impugnados, expondo os argumentos que deverão sustentar essa convicção de forma plausível, sob pena de rejeição da impugnação assim apresentada, por ser manifestamente inepta para alcançar o resultado pretendido.
Ocorre que, no caso, na motivação do recurso, foi dito explicitamente pelo Recorrente que: «Os referidos factos [reportando-se aos factos constantes das alíneas q), r), s) e t) dos factos não provado] deviam ter sido julgados provados com base no depoimento prestado pelas testemunhas FC e LJ.
«FCo, cujo depoimento está gravado na Diligência_2992-19.7T8ALM_2023_07_05_12-14-30 (1), apesar dos seus 94 anos, descreveu com grande clareza e assertividade o negócio celebrado entre os AA. e os RR., tendo afirmado ter-se disponibilizado para emprestar dinheiro ao A. para pagar ao “Sr. CG” os €265.000, mas que o administrador da CBG só aceitava €400.000:
“E eu emprestei-lhe o dinheiro para ele pagar” (00:14.20 a 00:15:12)
“Disse-me que foi para pagar os duzentos e sessenta e cinco mil ou duzentos e sessenta mil e tal e que o CG queria quatrocentos mil ou quatrocentos mil e tal. Eu não tinha mais dinheiro. Não estava para lhe emprestar mais dinheiro, e então a coisa ficou assim” (00:15:32 a 00:15.37).
«Também a testemunha LJ, genro dos AA., perguntado sobre se os AA. tinham o dinheiro para pagar aos RR., disse ao Tribunal que o sogro só tinha, para além dos €67.500 que já tinha pago aos RR., os €265.000 do empréstimo, quantia que se dispôs a arranjar, mas que o sogro transmitiu que o Sr. FC “Quando o meu sogro nos falou disso, já estava completamente desesperado e falou-nos no negócio. Em casa, num daqueles jantares normais de família, falou-me da sua preocupação. Disse-me que já tinha pago sessenta e poucos mil euros impercetível) e que o restante valor, que o iria conseguir arranjar. Eu falei-lhe nele e no sogro dele, que era o avô da minha esposa, que poderíamos talvez ajudá-lo nesta situação. Arranjar a restante verba para se liquidar. O meu sogro disse que não, que já estava tudo resolvido 8º meu sogro sempre tentou resolver as coisas sempre à maneira dele) e falou com o Sr. FC, ao qual ele lhe iria arranjar o restante valor para lhe pagar (Gravado na Diligência_2992-19.7T8ALM_2023_07_05_11-36-23 (1), de minuto 00:06:50 a minuto 00:07:47).
«Confirmou que tinham os duzentos e sessenta e cinco mil euros para pagar aos RR. (Gravado na Diligência_2992-19.7T8ALM_2023_07_05_11-36-23 (1), de minuto 00:08:40 a minuto 00:08:46)» (sic).
Visto isto, a argumentação expedida é suficiente para se perceber quais os meios de prova em que deveria assentar o julgamento diverso pretendido ver consagrado com a impugnação assim apresentada.
Em todo o caso, na verdade, não foi este o concreto vício identificado pelos Recorridos nas suas contra-alegações, que no seu entender deveria determinar a rejeição do recurso nesta parte.
De facto, os Recorridos vêm invocar explicitamente, e em conclusão, que foi violado o disposto na al. a) do n.º 1 do Art. 640.º do C.P.C., porque alegadamente o Recorrente não especificou os factos que pretenderia impugnar. No entanto, como decorre da leitura da conclusão “B)” das alegações de recurso que supra transcrevemos, facilmente se percebe que isso não corresponde à verdade.
Efetivamente, decorre textualmente dessa conclusão que: «B) Deviam ter sido julgados provados os factos julgados não provados nas alíneas q), r) s) e t) dos factos não provados, com base no depoimento prestado pela testemunha FC, gravadas no sistema “Diligência_2992-19.7T8ALM_2023_07_05_12-14-30 (1)”, de minuto 00:15:32 a minuto 00:15:12 e de minuto 00:15:32 a 00:15.37, e ainda no depoimento da testemunha LJ, gravado no sistema “Diligência_2992-19.7T8ALM_2023_07_05_11-36-23 (1)”, de minuto 00:06:50 a minuto 00:07:47 e de minuto 00:08:40 a minuto 00:08:46».
Portanto, foram assim identificados de forma explicita e concretizada os factos visados impugnar, bem como a decisão que sobre eles o Recorrente pretenderia que o Tribunal da Relação deveria tomar.
O problema será outro, tendo em atenção os termos como a questão é colocada na motivação das contra-alegações pelos Recorridos. Percebe-se que estes colocam o seu assento tónico, não tanto na violação da al. a) do n.º 1 do Art. 640.º do C.P.C., mas sim na al. a) do n.º 2 do mesmo preceito, que se refere explicitamente à necessidade de o Recorrente indicar com precisão as passagens relevantes dos depoimentos testemunhais gravados e à possibilidade de transcrever essas passagens.
Este ónus de impugnação, previsto no Art. 640.º n.º 2 al. a) do C.P.C., está mais ligado ao disposto na al. b) do n.º 1 do mesmo preceito, servindo como um complemento e desenvolvimento dele, devendo ambos ser compreendidos dentro do mesmo espírito da lei, tendo em atenção as finalidades processuais que os mesmos devem servir.
Conforme decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 28/4/2016 (Proc. n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1 - Relator: Abrantes Geraldes), relevam as seguintes justificações para os ónus legais impostos às partes:
«- A Relação é um tribunal de 2.ª instância, a quem incumbe a reapreciação da decisão da matéria de facto proferida pela instância hierarquicamente inferior;
«- A Relação não procede a um segundo julgamento da matéria de facto, reapreciando apenas os pontos de facto enunciados pelos interessados;
«- O sistema não admite recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, cumprimento do recorrente designar os pontos de facto que merecem uma resposta diversa e fazer a apreciação crítica dos meios de prova que determinam um resultado diverso;
«- Importa que seja feito do sistema um uso sério, de forma a evitar impugnações injustificadas e, como isso, os efeitos dilatórios que são potenciados pelo uso abusivo de instrumentos processuais».
Abrantes Geraldes (in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4.ª Ed., pág. 153) explicita que na nossa lei: «foram recusadas soluções que pudessem reconduzir-nos a um repetição dos julgamentos, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente» - (Vide, no mesmo sentido: Ac. do T.R.L. de 13/11/2001 in C.J. – Tomo V, pág. 84; e Ac. do T.R.P. de 19/9/2000 in C.J. – Tomo V, pág. 186).
Assim, o Supremo Tribunal já decidiu que os Recorrentes que pedem na apelação a reapreciação da matéria de facto, mas não indicam os meios de prova que impõem decisão diversa, não cumprem o ónus previsto no Art. 640.º n.º 1 do C.P.C. (vide: Ac. S.T.J. de 8/10/2019 – Proc. n.º 3138/10.2TJVNF.G1.S2 – Relatora: Maria João Vaz Tomé).
Acrescente-se que o não cumprimento dos ónus de impugnação dos factos é insuscetível de despacho de aperfeiçoamento, por ser o recurso a este expediente processual restrito à matéria de direito e nunca à matéria de facto (Vide: Ac. S.T.J. de 13/9/2016 - Revista n.º 166472/13.7YIPRT.P1.S1 – Relator: Hélder Roque – disponível em sumário do S.T.J.; e Ac. S.T.J. de 18/6/2019 – Proc. n.º 152/18.3T87GRD.C1.S1 – Relator: José Rainho – disponível em www.dgsi.pt).
É certo que está firmemente assente no Supremo Tribunal de Justiça o entendimento de que não se deverá ser excessivamente formalista na apreciação do cumprimento dos ónus de impugnação estabelecidos na lei processual, devendo a possibilidade de rejeição ser moderada por princípios de proporcionalidade e razoabilidade (cfr. acórdão do S.T.J. de 11/9/2019 - Proc. n.º 42/18.0T8SRQ.L1.S1 – Relator: Ribeiro Cardoso).
De igual modo, no Acórdão do STJ de 11/7/2019 (proc. n.º 334/16.2T8CMN-G1.S2 – Relator: Ricardo Costa) se defendeu que não poderá ser extraído o efeito gravoso da rejeição ou não conhecimento da impugnação da matéria de facto «se o julgador compreenda o tema recursivo para a apreciação do mérito do recurso, tendo em conta e desde que o mesmo seja percetível e/ou dedutível das conclusões apresentadas, ainda que com prejuízo para o intuito de a parte recorrente inverter a decisão recorrida». Embora se deva acrescentar que neste acórdão em menção se expressou o entendimento de que deveria ser rejeitado o recurso quando, ainda que se identificassem os concretos pontos de facto julgados incorretamente, se manifestasse apenas discordância quanto à valoração de um certo meio probatório, sem oferecer com exatidão meio de prova alternativo para se obter o resultado pretendido e sem se especificar a decisão diversa sobre a questão de facto impugnada.
Cumpre ainda realçar que o Supremo Tribunal de Justiça também tem defendido de forma recorrente que os Art.s 640.º e 662.º do C.P.C. impõem ónus de impugnação de densidade diversa que importa distinguir. Por um lado, haveria “ónus primários”, que são os estabelecidos nas alíneas do n.º 1 do Art. 640.º do C.P.C., relativos à exigência de concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, à especificação dos concretos meios probatórios convocados para esse efeito e à indicação da decisão a proferir. Por outro, os “ónus secundários”, estabelecidos no n.º 2 do Art. 640.º do C.P.C., que visariam apenas facilitar o acesso aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. Por regra, só a violação dos primeiros implicaria a rejeição automática e necessária do recurso nessa parte. Já a violação dos “ónus secundários” só poderia levar a rejeição se a omissão ou inexatidão das alegações for de tal modo grave que dificultasse fortemente o exercício do contraditório e/ou o exame da prova pelo tribunal de recurso (vide: Ac. STJ de 3/10/2019 – Proc. n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2 – Relatora: Maria Rosa Tching e Ac.s STJ de 29/10/2015 e de 2/6/2016 – Proc.s n.º 233/09.4TBVNBC.G1.S1 e n.º 725/12.8TBCHV.G1.S1 – ambos relatados pelo Senhor Conselheiro Lopes do Rego).
Os mesmos argumentos foram utilizados no acórdão do S.T.J. de 17/3/2016 (Proc. n.º 124/12.1TBMTJ.L1.S1 – Relator: Tomé Gomes) quando nele se afirma que a impugnação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação não visa propriamente um novo julgamento da causa, mas apenas a reapreciação do julgamento proferido pelo Tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão recorrida, ficando a apreciação do erro de julgamento «circunscrita aos pontos impugnados». É esse o sentido da imposição ao recorrente do ónus de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre tais pontos, sob pena de rejeição do recurso na parte afetada, nos termos do Art. 640.º n.º 1 al.s a) e c) do C.P.C.. Por isso, nesse acórdão também se decidiu que não se observa esse ónus quando o impugnante se limita a convocar e analisar determinados meios de prova, nomeadamente depoimentos de parte e de testemunhas, sem especificar, de forma inteligível quais os pontos concretos da decisão de facto que impugna, nem que decisão sobre eles deve ser proferida, concluindo-se que «não compete ao tribunal de recurso inferir, sem mais, dos depoimentos assim convocados, quais os pontos de facto que o recorrente pretende impugnar, sob pena de violação dos princípios do dispositivo, do contraditório e da imparcialidade do julgador, como corolários que são do princípio latitudinário do processo equitativo».
Ora, no caso, julgamos ser evidente que o Recorrente cumpriu de forma bastante os ónus de impugnação constantes do Art. 640.º n.º 1, al.s a) a c), do C.P.C.. Já no que se refere à al. a) do n.º 2 do mesmo preceito é verdade que aquele não faz uma transcrição integral dos depoimentos pretendidos relevar, limitando-se a referir uma ou outra frase que aí tenha sido produzida, embora se especifique os tempos em que esses depoimentos se referem explicitamente aos factos pretendidos impugnar.
Em todo o caso, cumpre dizer, a este propósito, que a lei não impõe o ónus de transcrição, parcial ou integral, dos depoimentos gravados tidos por relevantes. O Art. 640.º n.º 2 al. a) “in fine” do C.P.C. prevê efetivamente que o recorrente pode proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, mas não impõe o ónus de transcrição. O ónus legal aí previsto limita-se a estabelecer que o Recorrente deve «indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso». Ora, isso foi cumprido no caso concreto, como decorre claramente dos excertos das alegações de recurso e da conclusão “B)” que supra transcrevemos, o que é acompanhado por menções perfunctórias ao conteúdos desses depoimentos. Pelo que, não existe qualquer fundamento para rejeitar liminarmente a impugnação por falta de cumprimento dos ónus previstos nos n.º 1 e n.º 2 do Art. 640.º do C.P.C.. Em conformidade, cumprirá apreciar do bem fundado da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Em termos sucintos, os factos impugnados, constantes das alíneas q) a t) dos factos não provados na sentença recorrida, reportam-se à circunstância de o A. ter conseguido apenas obter o capital mutuado, de €265.000,00 (al. q); do administrador da R. ter recursado receber esse valor, só aceitando retransmitir o imóvel se lhe fossem pagos €400.000,00 (al. r); e ainda às considerações de que se tivessem sido cobrados juros apenas à taxa legal, os A.A. teriam conseguido cumprir as suas obrigações contratuais (al. s); e que os A.A. só não cumpriram o acordado, porque os juros eram superiores aos legais (al. t).
A sentença recorrida sustentou a sua convicção em termos conjuntos relativamente às alíneas p) e t), deixando consignado o seguinte:
«O quadro financeiro dos aqui AA. que está provado no Processo n.º 1626/12.5TBMTJ é de grandes dificuldades – alude-se aí ao facto dos aqui AA. constarem da lista de devedores do Banco de Portugal e não terem qualquer fonte de rendimento (facto F.) -, o que, aliás, foi referido também na nossa audiência, designadamente, pelo seu genro.
«Ora, não está provado que os AA. tenham melhorado a sua situação, por exemplo, por via da realização de um negócio muito proveitoso, ou da obtenção de um empréstimo bancário ou outro.
«Sublinhe-se que não ficou demonstrado nos embargos de terceiro deduzidos por FC que tenha sido celebrado um contrato de arrendamento rural com o A., pelo que por força do caso julgado material aí formado não podemos aqui entender o contrário.
«Assim, a afirmação, por parte do A., de que tinha angariado €265.000,00 não é verosímil, razão pela qual estes factos não foram julgados provados».
Como vimos, o Recorrente põe em causa esta valoração da prova sustentado nos depoimentos das testemunhas FC e LJ, indicando os segmentos temporais das gravações dos seus depoimentos que considera relevantes para corrigir a matéria de facto no sentido por si pretendido.
Por seu turno, os Recorridos vêm realçar que a testemunha FC tem interesse na causa, porque deduziu embargos de terceiro por apenso à ação executiva instaurada pela R. contra os A.A., invocando uma alegada qualidade de arrendatário da herdade a que os autos se reportam, sendo que não provou sequer ter título legítimo para esse efeito, encontrando-se a ocupar esse prédio de forma abusiva com as suas vacas. Por sua vez, a testemunha LJ é genro dos A.A. e, portanto, o seu depoimento não seria independente. Em todo o caso, defendeu que qualquer das testemunhas em menção também não tinham conhecimento direto do factos, tendo-se limitado a veicular a versão que lhes foi transmitida pelo A..
Ouvida a prova gravada, nomeadamente os depoimentos das testemunhas em menção, não podemos deixar de compreender a valoração feita pelo tribunal recorrido e as reservas que os Recorridos fizeram relevar nas suas contra-alegações.
Desde logo, facilmente se constata que a testemunha LJ apenas referiu saber dos factos, porque o seu sogro (o A. na ação) os contou em conversas de família, quando já estaria aflito e depois do negócio já ter sido celebrado com os R.R., o que repetiu diversas vezes ao longo do seu depoimento, aos minutos 4:02, 4:32, 6:40. 6:55 e 10:24 a 10:40 da gravação.
Quanto à testemunha FC, claramente prestou um depoimento parcial, desequilibrado e mostrando-se particularmente muito irritado, tendo o tribunal sido obrigado a interromper a sua inquirição para evitar evidente escalada emocional que já se verificava. Por um lado, esta testemunha revelou que foi ela quem emprestou ao A. €265.000,00, referindo que levantou esse dinheiro, de propósito, no banco, apesar de reconhecer que não tinha prova desse levantamento. É certo que esta testemunha também disse que o A. lhe referiu que afinal do Sr. CGo queria 400 mil euros, mas rematou essa afirmação com a menção a que não sabia se ela era verdadeira ou não (cfr. gravação aos minutos 15:30 a 17:00). Por outro, de forma recorrente esta testemunha expressou o seu desagrado pela forma como foi tratado no processo de entrega judicial da propriedade aos R.R. (a que se reportam os factos provados 44 a 46), não deixando de libertar o seu fel contra os tribunais e contra o Sr. CG (R. na ação). Por outro lado ainda, o seu depoimento é titubeante e algo contraditório, porque inicialmente revelou que não tinha dinheiro para dar ao A., admitindo que este também não teria dinheiro para pagar as suas dívidas, mas depois revelou uma estranha abundante disponibilidade financeira para lhe emprestar €265.000,00, sabendo que o A. não tinha condições financeiras para pagar esse empréstimo, embora o fizesse na expectativa de poder hipotecar a herdade de que alegou ser arrendatário, embora isso não tenha sido reconhecido nos embargos de terceiro que deduziu por apenso à execução para entrega de coisa certa instaurada pela R. contra os A.A. da presente ação (ação a que se reportam os factos provados 44 a 46).
Em suma, existem fundadas razões para nos questionarmos sobre a credibilidade dos depoimentos testemunhais em que o Recorrente sustenta a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e, neste pressuposto, julgamos não existiram razões atendíveis para alterar a apreciação feita pelo tribunal a quo sobre a prova produzida, devendo os factos que constam das alíneas q) a t) da sentença recorrida subsistir no rol dos factos não provados, improcedendo a impugnação apresentada in totum.

2. Do mérito dos pedidos principais.
Fixada a factualidade provada e não provada, cumpre então apreciar o mérito da causa.
O Recorrente convocou para reapreciação na presente apelação o mérito de praticamente todos os pedidos formulados na petição inicial, pugnando pela revogação da sentença no sentido de todos eles deverem ser julgados por procedentes, nomeadamente, e desde logo, os 3 pedidos principais.
É verdade que a sentença recorrida julgou a ação parcialmente procedente, condenando a R., C.B.G.- Imobiliária, S.A., a pagar ao A., aqui Recorrente, a quantia de €67.500,00, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento. Mas tal só corresponde à apreciação feita do pedido subsidiário constante da al. f) da petição inicial, pois quanto aos demais pedidos, a decisão final constante da sentença foi no sentido da absolvição dos R.R. “do pedido”.
Sucede que que a sentença recorrida, na verdade, não apreciou nenhum dos pedidos constantes das alíneas a) e b) da petição inicial, apesar de os enunciar (cfr. fls. 239 verso), debruçando-se praticamente em exclusivo sobre o pedido de execução específica, que constava da al. c) do petitório, dele fazendo uma apreciação que é objetivamente conforme à decisão final de absolvição dos R.R. desse pedido.
A sentença não inclui uma única linha para fundamentar a improcedência do pedido formulado na alínea a) da petição inicial, limitando-se a concluir que não poderia haver execução específica de contrato-promessa cujo prazo de vigência cessou (cfr. fls. 240). Ora, o pedido da alínea a) nada tem a ver com o pedido de execução específica que se julgou improcedente.
Dito isto, temos de reconhecer, no entanto, que poderia existir uma razão para essa omissão pronúncia, decorrente do contexto do processado dos autos. Simplesmente essa hipotética razão não é atendível e só poderia resultar dum claro equívoco.
Efetivamente, no que concerne ao pedido da alínea a) da petição inicial, ele suporta-se na alegação de factos e de qualificações jurídicas que já haviam sido apreciadas em anterior ação judicial, que correu termos no extinto 2.º Juízo Central Cível de Almada, sob o n.º 1626/12.5TBMTJ, no qual figuravam, como A.A.: CR e MJ, respetivamente a co-A. nesta ação e a filha do aqui Recorrente; e como R.R.: a C.B.G. – Imobiliária, S.A. e JR, que são, respetivamente, a 1.ª R., que é um dos aqui Recorridos, e o A., que é Recorrente na presente apelação.
Nessoutra ação, relativamente à qual, patentemente, não havia coincidência absoluta entre as partes aí em litígio por reporte às da presente, também não havia coincidência de pedidos, pois ali pretendia-se apenas que fosse declarada a nulidade, por simulação, do contrato de compra e venda da herdade de … celebrado entre C.B.G. – Imobiliária, S.A. e JR, com o consequente cancelamento da inscrição do registo da propriedade a favor da sociedade R..
Não havendo coincidência absoluta das partes, nem havendo sequer uma mínima semelhança entre os pedidos formulados nas duas ações, existia, no entanto, uma coincidência parcial dos factos que serviam de causa de pedir às mesmas. Por isso, muitos dos factos dados por provados na presente ação são precisamente os mesmos que foram provados no processo n.º 1626/12.5TBMTJ, tal como se mostra refletido na factualidade da sentença aqui recorrida (v.g. factos provados 1 a 34 e facto 37, alíneas “A” a “AAA”).
Mais, a ação anterior, que correu termos sob o n.º 1626/12.5TBMTJ, veio a ser julgada improcedente por não provada, sendo os ali R.R. absolvidos do pedido de declaração de nulidade do contrato de compra e venda, por alegada simulação, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de junho de 2017, transitado em julgado em 18 de setembro de 2017 (cfr. certidão junta de fls. 41 verso a 61 verso), porque se julgou que não se verificavam os requisitos da simulação, mas também por se ter feito uma qualificação jurídica diversa do negócio efetivamente celebrado, configurando-o como um “venda fiduciária em garantia” (cfr. págs. 23 a 39 do cit. doc. n.º 12 junto com a petição inicial – v.g. fls. 53 a 61).
Precisando melhor a situação, verificamos que, em função do teor desse acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, percebe-se que o tribunal de 1.ª instância julgou a ação procedente, reconhecendo a existência de simulação e, portanto, que haveria divergência entre a vontade real e a declarada, com o propósito de enganar terceiros, fundada num acordo simulatório (cfr. Art. 240.º n.º 1 do C.C.), porque os vendedores não queriam vender, nem os compradores pretenderiam comprar a dita herdade da YY (cfr. cit. doc. pág. 17 a fls. 50). No entanto, o Tribunal da Relação alterou a matéria de facto e julgou não se verificarem os requisitos da simulação previstos no Art. 240.º n.º 1 do C.C. (cfr. cit. doc. págs. 17 e 18  a fls. 50 e verso), considerando antes que estaria em causa a figura típica da “venda fiduciária em garantia” (cfr. cit. doc. a págs. 19 e 20 a fls. 51 e verso). Só que, nessa sequência, ponderou a circunstância de, subjacente a esse negócio, estar um contrato de mútuo suscetível de ser tido por inválido, seja por usura, seja por ser abusivo ou contrário à lei, ao abrigo dos Art.s 280.º, 282.º, 294.º e 334.º do C.C. (cfr. cit. doc. a pág. 20 a fls. 51 verso), sendo que no caso haveria negócio usurário por terem sido violados os limites legais impostos à taxa de juro aplicável aos contratos de mútuo, nos termos do Art. 282.º, 1146.º n.º 1 e 559.º do C.C. (cfr. cit. doc. a pág. 20 a fls. 51 verso) e, caso o imóvel se mantivesse na esfera da R., o contrato de compra e venda seria contrário à lei, com conteúdo ilícito proibido pelo Art. 280.º do C.C. (cfr. cit. doc. pág. 21 a fls. 52). Foi por esse motivo que o Tribunal da Relação manteve a decisão recorrida, proferida pela 1.ª instância, de declarar a nulidade do negócio jurídico de compra e venda, mas com uma fundamentação jurídica completamente diversa, que na verdade nem sequer havia sido alegada pelas A.A. dessa ação, segundo se depreende.
O Supremo Tribunal de Justiça veio a revogar o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, julgando a ação improcedente, confirmando a apreciação feita pela Relação relativamente à falta de verificação dos requisitos da simulação (cfr. cit. doc. pág. 22 a fls. 51 verso) e concordando também com a qualificação jurídica feita em termos de entender que os factos apurados se deverem subsumir a uma “venda fiduciária garantida” (cfr. cit. doc. pág. 23 a fls. 53). No entanto, considerou que não colhiam os argumentos aí expedidos no sentido da nulidade do contrato de compra e venda, mesmo reconhecendo que ao mútuo da quantia de €265.000,00, pelo prazo de 10 meses, não poderia corresponder o reembolso da quantia mutuada acrescida de €110.000,00, porque tal implicaria juros muito superiores ao limite legal de 7% (4% + 3%), que decorreria da aplicação dos juros legais previstos no Art. 559.º do C.C., conjugado com a Portaria n.º 291/2003 de 8/4 e tendo em atenção o disposto no Art. 1146.º n.º 1 do C.C. (cfr. cit. doc. pág. 31 a fls. 57).
Do teor desse douto acórdão do Supremo percebe-se que a questão foi apreciada nesses termos, porque não havia sido formulado pelas A.A. o pedido de redução dos juros, ao abrigo do Art. 1146.º n.º 3 do C.C., mas apenas de nulidade da compra e venda por simulação (cfr. cit. doc. a pág. 31 a fls. 57). Também se discordou que houvesse usura do contrato de mútuo subjacente, caso a venda se mantivesse e o prédio continuasse na esfera jurídica da R., porque se os juros fossem reduzidos, nos termos do n.º 3 do Art. 1146.º do C.C., deixaria de haver usura, sendo que a circunstância de o valor do prédio ser superior ao valor do mútuo e dos juros com o limite legal, não implica só por si a nulidade da compra e venda (idem pág. 31 a fls. 57).
No final, o Supremo Tribunal de Justiça afirma explicitamente que: «Haverá, assim, que concluir que, daquela matéria de facto, não resultam elementos bastantes para apurar, com segurança, a existência duma situação que implique a nulidade ou anulação do referido contrato de compra e venda» (cfr. cit. doc. a pág. 39). Ou seja, julgou-se que não havia nulidade por simulação, porque não se provaram os factos integradores dos pressupostos desse tipo de vício do negócio jurídico, nem qualquer outra invalidade que pudesse ser conhecida “com segurança”, sustentada na existência de um contrato de mútuo usurário ou de compra e venda usurária, abusiva ou contrária à lei.
Em que é que releva esta decisão para o caso dos autos?
É que os R.R., na sua contestação, vieram alegar a exceção do caso julgado, com fundamento na existência de repetição da mesma ação, com discussão dos mesmos factos e das mesmas pretensões que estavam subjacentes aos dois processos em menção.
Sucede que, no despacho saneador, e como era por demais evidente, essa exceção foi julgada por improcedente, desde logo, por não haver identidade entre as partes, mas fundamentalmente porque os pedidos eram completamente diversos nas duas ações. No entanto, no final, reconheceu-se que haveria que ponderar a “autoridade do caso julgado”, de tal forma que não poderiam as partes discutir neste processo que a relação contratual estabelecida entre A.A. e a R. CBG seria uma “venda fiduciária garantida”.
Efetivamente, ficou aí consignado que:
«4. Relativamente à questão da autoridade do caso julgado, verificamos que os RR. declaram, na contestação, a sua discordância relativamente ao enquadramento jurídico efetuado pelo Supremo Tribunal de Justiça, no sobredito Processo nº 1626/12.5TBMTJ, quanto ao negócio celebrado pelas partes.
«Porém, tendo ambas as partes intervindo no referido Processo, mostram-se vinculadas aos fundamentos da decisão aí proferida, sendo certo que a qualificação de negócio como fiduciário em garantia constitui pressuposto lógico indispensável da improcedência dessa ação, logo, impõe-se às partes no âmbito da figura da autoridade do caso julgado.
«Não é, consequentemente, lícito aos RR. discutir essa qualificação, a qual se mostra definitivamente assente por força do trânsito em julgado daquele Acórdão.
«5. Em conclusão:
«a) Julga-se improcedente a exceção dilatória da exceção de caso julgado, invocada pelos RR.;
«b) Julga-se legalmente inadmissível a discussão, no âmbito dos presentes autos, da qualificação do negócio celebrado pelas partes como uma venda fiduciária em garantia, por força da autoridade de caso julgado produzida pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no Processo nº 1626/12.5TBMTJ» (cfr. fls. 209 verso).
Sucede que, se é com base nesta decisão que se defende que não poderia ser apreciado o mérito do pedido formulado na alínea a) da petição inicial da presente ação, tal traduz-se num erro de julgamento sustentado em raciocínio que não tem qualquer fundamento.
Efetivamente, a “autoridade do caso julgado” não tem como consequência legal que o tribunal deva abster-se de conhecer os pedidos que tenham sido formulados em coerência com o julgamento de ação anterior, onde foi proferida decisão definitiva, transitado em julgado. Muito pelo contrário, seria por força da autoridade do caso julgado que parte substancial desse primeiro pedido deveria ser julgado por procedente, e logo no despacho saneador, já que o tribunal a quo entendeu que as partes não mais poderiam discutir entre si a qualificação jurídica do negócio que as vinculava.
O que não poderia acontecer era, como aconteceu nos autos, reconhecer que se verificava uma situação de “autoridade do caso julgado”, impondo às partes a inibição de discutirem a qualificação jurídica do negócio, nomeadamente no que se refere à existência duma “venda fiduciária em garantia” e depois, perante um pedido dos A.A., pelo qual se pretendia explicitamente que fosse reconhecido como “venda fiduciária em garantia” o contrato celebrado entre A.A. e R., não julgar logo esse pedido como procedente, acabando por, laconicamente, absolver os R.R. de todos os pedidos principais dos A.A., sem fundamentar minimamente essa decisão, que até é contraditória com o que havia sido expressamente decidido no despacho saneador que, nessa parte, por não ter sido objeto de qualquer recurso, até fez caso julgado formal no processo (cfr. Art. 620.º do C.P.C.).
Como é sabido, as decisões judiciais transitam em julgado logo que não sejam suscetíveis de recurso ordinário ou reclamação (cfr. Art. 628.º do C.P.C.).
Prevê o Art. 619.º n.º 1 do C.P.C. que: «Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º».
O caso julgado traduz assim a força obrigatória da estabilidade das sentenças ou dos despachos que recaiam sobre a relação controvertida objeto da ação e tem como finalidade imediata evitar que, em novo processo, o juiz possa validamente apreciar e considerar um direito, situação ou posição jurídicas, em termos distintos dos já concretamente definidos por anterior decisão, vinculando-o desse modo a essa decisão.
Neste contexto, identifica a Doutrina a verificação de um efeito positivo e negativo do caso julgado. Do efeito positivo, também denominado por “autoridade de caso julgado”, resulta a conclusão de que a decisão assim proferida vincula ou impõe ao tribunal uma decisão na apreciação do mérito do objeto de outra decisão posterior. Já o efeito negativo, configurado como “exceção de caso julgado”, determina uma proibição ou impedimento de o tribunal voltar a decidir, do mesmo modo ou de modo distinto, uma questão já decidida (vide, a propósito: Rui Pinto, in Revista Julgar on line, novembro 2018; Ac. do TRC de 20/10/2015, Proc. n.º 231514/11.3YIPRT.C1; e Miguel Teixeira de Sousa em anotação ao Ac. do TRP de 6/6/2016 - Proc. n.º 1226/15.8T8PNF.P1, disponível em https://blogippc.blogspot.com).
Estas duas vertentes do caso julgado têm consequências jurídicas diversas e sustentam-se em pressupostos não coincidentes.
O caso julgado, enquanto exceção dilatória nominada, pressupõe a verificação necessária da repetição da mesma causa, no pressuposto de que existe identidade das partes, do pedido e da causa de pedir, tendo como consequência legal a absolvição do R. da instância, devendo o tribunal, por força dela, abster-se repetir a mesma decisão (cfr. Art.s 577.º al. i), 578.º, 580.º e 581.º do C.P.C.). Nesta vertente negativa, o caso julgado funciona como proibição de repetição da causa e como proibição de contradição (vide: João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa in “Manual de Processo Civil”, Vol. I, AAFDL, 2022, pág. 641).
O mesmo não sucede exatamente com a vertente positiva do caso julgado, decorrente da verificação duma situação de respeito pela “autoridade do caso julgado”, que impõe a decisão judicial anterior no julgamento do novo processo, condicionando o seu sentido, em situações em que não exista uma efetiva repetição da mesma causa, nomeadamente por não existir uma identidade absoluta das partes, do pedido e causa de pedir, mas pressupondo que haja uma relação de prejudicialidade, subsidiariedade legal ou de consunção entre o objeto de uma decisão anterior e o objeto da ação posterior.
Conforme foi reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 20/12/2017 (Proc. n.º 2377/12.6TBABF.E1.S1 – Relatora: Fernanda Isabel Pereira, disponível em www.dgsi.pt): «I- Residindo o fundamento do caso julgado no prestígio dos tribunais e em razões de certeza e segurança jurídicas, vêm-se distinguindo na doutrina e na jurisprudência duas figuras: (i) a exceção dilatória do caso julgado; e (ii) a autoridade do caso julgado. II- Enquanto a exceção do caso julgado requer a verificação da tríplice identidade estabelecida no art. 581.º do CPC (de sujeitos, pedido e causa de pedir), a autoridade do caso julgado, segundo a doutrina e a jurisprudência atualmente dominantes, pode dela prescindir, estendendo-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado, implicando o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior, cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa».
Nesta vertente positiva, como referem João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa (in “Manual de Processo Civil”, Vol. I, AAFDL, 2022, pág. 641 a 642): «Se se repropuser a questão como fundamento (e não como objeto do pedido), o juiz tem de decidir a questão nos termos do julgado estabelecido (…) se o caso julgado for favorável ao autor, isso implica que o tribunal da causa posterior tem de repetir a decisão anterior (…) se o caso julgado for favorável ao réu, o tribunal da segunda ação tem de o absolver de qualquer pedido incompatível  com a decisão anteriormente transitada (…)» (sublinhados nossos).
Em suma, verificados os pressupostos duma situação em que se imponha o respeito pela “autoridade do caso julgado”, o Tribunal não se deve abster de decidir. Pelo contrário, deve decidir e deve fazê-lo em conformidade com a decisão anterior transitada em julgado.
No caso dos autos, tudo leva a crer que o tribunal não decidiu o pedido constante da alínea a) da petição inicial – é só essa a conclusão a retirar do despacho saneador que omite qualquer decisão condenatória ou declaratória do reconhecimento do direito – e, se o decidiu na sentença final, nomeadamente quando absolveu os R.R. “do pedido”, decidiu precisamente em sentido contrário da decisão transitada em julgado anterior, tendo em atenção o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no Proc. n.º 1626/12.5TBMTJ e, bem assim, o despacho saneador proferido nestes autos, que nessa parte, como vimos, também transitou em julgado.
Dito isto, no caso dos autos, poder-se-ia discutir se se poderia falar duma situação efetiva de “autoridade de caso julgado”, porque na verdade, na ação anterior, que correu termos sob o n.º 1626/12.5TBMTJ, tendo em atenção o teor do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que aí veio a ser produzido e que supra resumimos, a questão da existência duma “venda fiduciária em garantia” era, em princípio, completamente irrelevante para a improcedência do pedido de declaração de nulidade da compra e venda com fundamento na simulação absoluta desse negócio jurídico.
A procedência do pedido formulado naquela ação estava dependente, apenas e só, da prova da existência de divergência entre a vontade real e a declarada e dum acordo simulatório com vista a enganar terceiros (cfr. Art. 240.º n.º 1 do C.C.). No final de contas, a improcedência desse pedido sustentou-se na mera constatação de que as A.A. nessa ação não provaram nenhuma divergência entre a vontade real e a declarada, nem que tivesse existido qualquer acordo simulatório para enganar terceiros, como era seu ónus (cfr. Art. 342.º n.º 1 do C.C.).
Numa apreciação sumária da questão de fundo, poderíamos facilmente concluir que a configuração dessa relação jurídica como uma “venda fiduciária em garantia” nem sequer se poderia dizer como correspondente à prova duma factualidade nova suscetível de integrar uma “exceção perentória” que levaria à inevitável improcedência da ação. No fundo, a ação improcederia apenas, porque as A.A. não provaram os factos constitutivos do seu direito (cfr. Art. 342.º n.º 1, conjugado com o Art. 240.º n.º 1 do C.C.) e, isso, era quanto bastava.
No entanto, o Tribunal da Relação, ao apreciar o mérito da sentença recorrida no n.º 1626/12.5TBMTJ, sustentou que esse negócio jurídico seria de qualquer modo nulo, porque a ele estaria subjacente um contrato de mútuo usurário e uma venda abusiva e contrária à lei (imperativa). É nesse contexto que aparecem, pela primeira vez – ao que tudo indica sem que as partes sobre tal se tenham pronunciado antes –, as qualificações jurídicas relacionadas com a “venda fiduciária em garantia” e a relevância da existência dum “contrato de mútuo usurário”, nomeadamente no que se refere aos juros.
Na prática, a “venda fiduciária em garantia” acaba por funcionar como o “negócio jurídico real” efetivamente querido pelas partes outorgantes, afastada que ficou a alegada existência duma “venda simulada”.
Por seu turno, o “mútuo usurário” foi chamado à colação como causa nova de invalidade do negócio jurídico da venda da herdade da YY, por a esta estar subjacente.
Em qualquer caso, a matéria de facto alegada e provada permitia estes enquadramentos jurídicos, que foram aceitos e discutidos, precisamente nesses termos, quer pelo Tribunal da Relação, quer pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr. doc. n.º 12 junto com a petição inicial de fls. 41 verso a 61 verso), ainda que com consequências finais diversas quanto à apreciação do mérito da causa, que se prendia apenas com a apreciação a validade da compra e venda da herdade da YY.
No final, propiciou-se uma legitima discussão jurídica, permitida no quadro legal do Art. 5.º n.º 3 do C.P.C., que enlaçou as partes nos seus termos, sem que se tenha suscitado qualquer invalidade sobre as pronúncias assim feitas.
Neste contexto, “cum grano salis”, poderá quando muito dizer-se que a “venda fiduciária em garantia” poderia também funcionar, em parte, como causa de exclusão dos pressupostos de facto da existência duma “venda simulada”, que levou à improcedência do pedido de nulidade do negócio sustentado no vício da simulação absoluta, e, por outro lado, que foi julgado pelo Supremo Tribunal de Justiça que o contrato de mútuo, com “juros usurários”, que estaria subjacente a essa venda, seria válido, ao contrário do que havia sido decidido pelo Tribunal da Relação, por se considerar que a taxa de juros estipulada poderia considerar-se reduzida ao limite legal de 7%, por força do Art. 1146.º n.º 3 do C.C., o que condicionou a decisão de improcedência da ação sustentada na invalidade da venda, quando fundada na usura ou em negócio “abusivo” ou “contrário à lei”. No final, ambas estas apreciações de fundo serviram de pressupostos jurídicos ao julgamento sobre a validade do contrato de compra e venda da herdade da YY, que era o único pedido em apreciação no processo n.º 1626/12.5TBMTJ.
Nos presentes autos, não se discute a validade da compra e venda. Pelo contrário, os A.A. pressupõem a validade de todos esses negócios jurídicos, em respeito pela decisão final, transitada em julgado, no Proc. n.º 1626/12.5TBMTJ. Mas pedem, em coerência com essa mesma decisão final, produzida pelo Supremo Tribunal de Justiça, para: «a) Ser reconhecido como venda fiduciária em garantia de um mútuo o contrato celebrado entre os AA. e a R. CBG e usurários os juros cobrados pela R. nesse contrato, com a sua redução à quantia de €15.256,48, ou outra que venha a resultar da aplicação da taxa legal de 7%, a liquidar em execução de sentença».
Em bom rigor, se se entender que é devido o respeito pela autoridade do caso julgado, a decisão final que se impunha era reconhecer que a relação contratual formalizada entre os A.A. e a R. CBG, através da escritura de compra e venda de 4 de agosto de 2008 (cfr. doc. de fls. 31 verso a fls. 34), conjugada com o contrato promessa para recompra da mesma herdade, outorgado na mesma data (cfr. doc. de fls. 122 verso a fls. 124 verso), é uma “venda fiduciária em garantia”. Sendo certo que à mesma conclusão se chegaria, mesmo que se entendesse não se verificar no caso efetiva necessidade de respeito pela autoridade do caso julgado, porque os factos provados constantes dos pontos 6 a 8 e 13 a 23 na sentença recorrida são suficientes para se chegar a essa configuração jurídica.
No que se refere ao segmento seguinte da alínea a) do pedido formulado pelos A.A. na sua petição inicial – relativo ao reconhecimento de que os juros do contrato de mútuo, subjacente à compra e venda e promessa de recompra, são usurários – a sua procedência deve resultar do simples cálculo aritmético e da coerência da decisão com o exposto no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo n.º 1626/12.5TBMTJ.
De facto, a R. emprestou €265.000,00 aos A.A., através do pagamento do preço de compra da herdade da YY, mas os A.A. teriam de restituir o capital mutuado, acrescido de juros, através da recompra da herdade, pelo pagamento do preço de €375.000,00, tal como convencionado no contrato-promessa outorgado no mesmo dia da escritura de compra e venda (4 de agosto de 2008), devendo a escritura de “recompra” ser outorgada até 31 de maio de 2009 (cfr. cláusula terceira do cit. doc. a fls. 123). Portanto, o valor de recompra correspondia ao reembolso do capital mutuado, de €265.000,00, acrescido de €110.000,00, estes últimos devidos a título de juros.
Como foi reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do processo anterior, a taxa de juros não poderia exceder os juros legais (à taxa de 4% de acordo com a Portaria n.º 291/2003 de 8/4) em mais de 3%, sob pena de serem havidos por usurários (cfr. Art. 1146.º n.º 1 do C.C.). Pelo que, facilmente se constata que entre 4 de agosto de 2008 (data em que os A.A. receberam o preço/quantia mutuada) e 31 de maio de 2009 (data em que deveriam recomprar o imóvel, por força do contrato-promessa), os juros não poderiam exceder €15.246,58 (calculado no sítio: https://www.calculodejuros.pt/juros-taxa-variavel.aspx pela inserção dos seguintes dados: quantia: 265.000; taxa de juro: 7%; data de início de contagem: 4/8/2008; data de fim da contagem: 31/5/2009).
Consequentemente, o acordo nos termos do qual implicaria que os A.A. tivessem de pagar, no caso concreto, €110.000,00 a título de juros no dia 31 de maio de 2009, permite-nos concluir, sem margem para dúvida, que os juros cobrados pela R. eram usurários, devendo proceder, também nesse segmento, do pedido constante da alínea a) o pedido formulado.
Quanto ao segmento final desse pedido, em que se pretendia ver reconhecida a redução dos juros para a quantia de €15.256,48, tendo em atenção o disposto no Art. 1146.º n.º 3 do C.C., deve ser corrigido esse valor para 15.246,58, tendo em conta a data de vencimento da obrigação inicialmente estabelecida para o dia 31 de maio de 2009.
Resta ainda dizer que o pedido dos A.A., tal como formulado na petição inicial, reportava-se apenas ao cálculo dos juros até ao termo do contrato-promessa inicial outorgado em 4 de agosto de 2008. Ora, resulta da matéria de facto que depois houve uma renegociação posterior que levou à outorga de um segundo contrato-promessa, que tinha outra data de termo final. No entanto, como o pedido formulado referia-se ao cálculo dos juros até 31 de maio de 2009, a decisão de reconhecimento da usura dos juros e do cálculo da correspondente redução dos juros devidos deve respeitar os limites objetivos desse pedido (cfr. Art. 609.º n.º 1 do C.P.C.).
É neste termos que deverá proceder o pedido formulado na alínea a) da petição inicial.
Passando agora ao pedido da al. b) do mesmo articulado, por ele se visava reconhecer, em primeiro lugar, que a recusa da R. em extinguir a obrigação em maio de 2009, mediante o pagamento de €265.000,00, era ilícita.
Sucede que, os A.A. apenas provaram que em 31 de maio de 2009 não tinham os €375.000,00 (cfr facto provado 24), não tendo alegado que nessa data tivessem disponibilidade financeira para pagar €265.000,00, relativos ao capital mutuado, acrescidos de €15.246,58 de juros (não usurários).
O que alegaram, e provaram, é que acabaram por renegociar as condições do empréstimo (cfr. facto provado 26), o que levou à celebração de um novo contrato-promessa em 23 de dezembro de 2010 (cfr. facto provado 27), no qual se fixou um novo termo para a liquidação da quantia mutuada, que passou a ser no dia 15 de abril de 2011 (cfr. facto provado 28).
Ora, foi julgado por não provado que o A. tenha conseguido obter o capital mutuado em abril de 2011 e assim pudesse cumprir as suas obrigações (cfr. factos não provados nas alíneas q), s) e t) da sentença recorrida). Tal como ficou também não provado que a R. se tenha recusado, nessa data, receber €265.000,00, afirmando que só passaria a propriedade para os A.A. se estes lhe pagassem €400.000,00 (cfr. facto não provado na alínea r) da sentença). Consequentemente, fica claro que, a procedência do pedido da primeira parte da alínea b) da petição inicial estava dependente da procedência da impugnação da matéria da facto. O que, no caso, não se verificou. Pelo que, a conclusão só pode ser que a sentença recorrida deve ser mantida nesta parte.
A segunda parte do pedido da alínea b) é largamente consequente da primeira. Por ela se pretende o reconhecimento de que a R. incumpriu culposamente a obrigação de retransmissão da herdade da YY, por motivo de exigir o pagamento de juros usurários.
Sobre a existência objetiva de “juros usurários” já dissemos o que tínhamos para dizer, mas a procedência desta parte do pedido tem como pressuposto que a R. incumpriu o contrato-promessa, nomeadamente por se recusar a celebrar o contrato prometido. Sucede que, isso não está provado. A matéria de facto não permite tirar essa conclusão e, portanto, todo o pedido contante da alínea b) deve ser julgado por improcedente, mantendo-se nessa parte a sentença recorrida.
Passando agora ao pedido da alínea c), o que se pretende pelo mesmo é a execução específica do contrato-promessa, devendo o tribunal proferir decisão que produza os efeitos da declaração negocial da R. no sentido da venda aos A.A. do prédio denominado Herdade da YY pelo preço de €212.756,48, que corresponderiam aos €265.000,00 a título de capital e €15.256,48 a título de juros, deduzido do valor de €67.500,00, que o A. já havia previamente entregue aos R.R..
Estabelece a este propósito o Art. 830.º n.º 1 do C.C. que: «Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida».
A sentença recorrida julgou este pedido improcedente, porque o contrato promessa estabelecia um prazo final para a celebração do contrato-prometido até 15 de abril de 2011.
De facto, é certo que a cláusula terceira do contrato promessa de 23 de dezembro de 2010, estabelecia que a marcação da escritura competiria à promitente compradora (no caso, a interveniente “ABT... – Sociedade Agro Turística, Lda.”), a qual deveria ser celebrada “imperativamente” até 15 de abril de 2011 (cfr. cit. doc. a fls. 37 verso), sendo que no parágrafo 2.º da mesma cláusula é dito ainda que: «A não celebração da escritura até ao prazo referido no corpo desta cláusula implicará a revogação automática do presente contrato e a renúncia dos outorgantes a reclamarem uma da outra de quaisquer direitos ou indemnizações, tudo se passando como se o presente contrato não tivesse existido» (cfr. doc. loc. cit. – com sublinhado nosso).
Semelhante cláusula já existia no contrato anterior, datado de 4 de agosto de 2008 (cfr. cláusula terceira a fls. 123), mas tal não impediu a renegociação do aí acordado. Por outro lado, deve notar-se que o segundo contrato já foi celebrado entre a 1.ª R., SBG, e a interveniente, “ABT...”, e não com os A.A., pelo que, estes, formalmente, não beneficiavam da promessa de celebração do contrato de compra e venda.
Sem prejuízo, a questão central é que não está provado o pressuposto de facto necessário à procedência do pedido de execução específica relativo ao incumprimento do contrato pela R. CBG enquanto promitente vendedora.
Veja-se que, não era a R. quem estava contratualmente onerada com a obrigação de marcar a escritura até 15 de abril de 2011 (cfr. cláusula terceira do cit. doc. a fls. 37 verso), sendo que não consta dos autos provado que alguém tenha marcado qualquer escritura, seja por que valor de (re)compra fosse.
Em face do exposto, a ação não poderia proceder quanto ao pedido de execução específica, por falta de verificação dos pressupostos de facto do direito pretendido fazer valer, nos termos do Art. 830.º n.º 1, conjugado com o Art. 342.º n.º 1, ambos do C.C..
Em suma, a sentença recorrida, no que se refere aos pedidos principais, apenas deve ser alterada na parte em que julgou improcedente o pedido formulado na al. a), devendo a absolvição desse pedido ser substituída pela decisão de reconhecer como venda fiduciária em garantia de um mútuo o contrato celebrado entre os A.A. e a R. CBG e usurários os juros cobrados pela R. nesse contrato, os quais deveriam ser reduzidos à quantia de €15.246,58, quando calculados apenas até à data de 31 de maio de 2009.
No mais, deve manter-se a absolvição dos R.R. quanto aos demais pedidos principais.

3. Do mérito dos pedidos subsidiários.
Passando agora aos pedidos subsidiários, releva-se desde logo que o pedido da alínea d) da petição inicial, na sua parte inicial, apesar de formulado a título subsidiário, tem como pressuposto de facto o reconhecimento de que os R.R. impossibilitaram os A.A. de cumprir o contrato, o que está umbilicalmente dependente do reconhecimento de que os R.R. recusaram aos A.A. o cumprimento das suas obrigações, tal como peticionado na alínea b), a título principal. Pelo que, tudo o que se disse a propósito da improcedência do pedido principal constante da alínea b) da petição inicial tem aqui plena aplicação.
Em todo o caso, também não está provado que os R.R. impossibilitaram o cumprimento do contrato pelos A.A., tal como não está provado que os A.A. quiseram cumprir, ou sequer que alguma vez tivessem tido condições para o cumprir, mesmo que não fossem exigidos juros usurários.
Dito isto, a segunda parte do pedido da alínea d) e o pedido da alínea e) têm subjacentes um mesmo “racio” económico. Os A.A. pretendem ser indemnizados, ou pelas regras da responsabilidade civil, ou pelas regras do enriquecimento sem causa, pelo valor correspondente à diferença entre o valor de venda da herdade de YY à R. e o valor real desse imóvel, como consequência da perda desse bem, uma vez que estão impedidos de cumprir o contrato.
Pedem assim o pagamento de €210.000,00, como correspondendo a essa diferença, sendo certo que haviam alegado que a propriedade foi avaliada em €408.000,00, receberam por ela o preço de €265.000,00, mas já pagaram €67.500,00 de juros.
Portanto, o cálculo subjacente a esse dois pedidos seria o seguinte: 408.000,00 – 265.000 + 67.500,00 = €210.500,00. O que corresponde, vagamente, descontando a diferença de €500,00, aos €210.000,00 peticionados.
A sentença recorrida julgou o pedido de indemnização fundado na responsabilidade civil improcedente, por falta de prova dos factos em que assenta essa pretensão. Sendo que, quanto ao enriquecimento sem causa, relevou que o Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do proc. n.º 1626/12.5TBMTJ, entendeu que o negócio jurídico em causa era válido, por não ser simulado ou usurário, sendo que também não havia sido alegado erro, dolo ou coação, e, em consequência, o mesmo corresponde à livre vontade das partes, não havendo portanto falta de justificação para o alegado enriquecimento.
O Recorrente vem agora sustentar, em via de recurso, que a cobrança de juros usurários é ilícita e impeditiva do cumprimento do contrato, o que deveria obrigar ao pagamento de indemnização aos A.A., que perderam o bem dado em garantia, no valor der €408.000,00, com base numa conduta que se traduziu na exigência do pagamento de €160.000,00 de juros e, por isso, os A.A. sofreram um prejuízo de €200.000,00.
Lidas e relidas as alegações do Recorrente, é muito difícil acompanhar este raciocínio, na estrita medida em que altera e obscurece significativamente o que era alegado na petição inicial.
Seja como for, não se discute que os contornos deste negócio implicavam que a R. pudesse vir a receber juros que excediam largamente o permitido por lei, nomeadamente tendo por referência o disposto no Art. 1146.º n.º 1 do C.C., como já demonstrámos supra. Mas, como foi apreciado pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão proferido no âmbito do Proc. n.º 1626/12.5TBMTJ, a consequência jurídica desse facto seria apenas a redução dos juros ao máximo previsto na lei, por força do Art. 1146.º n.º 3 do C.C., ainda que fosse outra a vontade dos contraentes. Por outras palavras, o contrato deveria subsistir nos seus mesmos precisos termos, mas a obrigação de pagamento de juros deveria ser reduzida ao limite legal permitido, numa solução em tudo semelhante à prevista no Art. 292.º do C.C..
Daí decorre que a exigência de juros usurários é ilícita, mas a consequência dessa ilicitude esgota-se no direito que assiste ao devedor à redução da correspondente obrigação de pagamento ao valor legalmente devido. Na mesma medida, daí não resulta um efetivo prejuízo para o devedor, que sempre estaria vinculado ao cumprimento da obrigação de reembolso do capital mutuado, acrescido de juros (dentro dos limites legais).
Retorque o Recorrente que os A.A. acabaram por perder o imóvel para a 1.ª R., porque não puderam cumprir o contrato nos termos convencionados e de acordo com a lei. No entanto, esses factos não resultam demonstrados nos autos, sendo que parte substancial dos mesmos até constam dos factos não provados, como decorre das alíneas q) a t) da matéria de facto não provada na sentença recorrida (v.g. fls. 238).
Facto é que, nos termos do contrato-promessa, celebrado em 23 de dezembro de 2010, era à promitente-compradora – uma empresa cujo capital social é detido pelos A.A. e os seus filhos (cfr. facto provado 33) – que competia marcar a escritura de compra e venda para “recompra” da herdade da YY (cfr. cláusula terceira do cit. doc. a fls. 37 verso) e os A.A. não alegaram, e logo não provaram, ter marcado essa escritura até à data aí estabelecida (15 de abril de 2011), tal como não provaram que houvesse recusa de celebração do contrato prometido pela promitente vendedora.
Assim sendo, pressupondo a obrigação de indemnização a prova de um incumprimento ilícito por parte do devedor, fica patente que os A.A. não lograram demonstrar esse pressuposto da responsabilidade civil, improcedendo necessariamente o pedido de indemnização, seja nos termos do Art. 483.º do C.C., seja nos termos do Art. 798.º do C.C. (recordando-se que os A.A. também não especificaram o tipo de responsabilidade civil que estaria aqui em causa).
Resta assim a apreciação da mesma pretensão nos termos do enriquecimento sem causa.
Nos termos do Art. 473.º n.º 1 do C.C., aquele que, sem justa causa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou. Esclarecendo depois o n.º 2 que a obrigação de restituição por enriquecimento sem causa tem por objeto, de modo especial, o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de causa que deixou de existir, ou que tinha em vista um efeito que não se verificou.
Entende a doutrina que são pressupostos do enriquecimento sem causa: a existência de um enriquecimento; sem causa justificativa; e à custa de quem requer a restituição (vide, a propósito: Antunes Varela in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 10.ª Ed., págs. 480 e ss.; Almeida Costa in “Direito das Obrigações”, 12ª Ed., pág. 491; Menezes Leitão, Direito das Obrigações in “Direito das Obrigações”, Vol. I, 2ª Ed., pág. 381).
O enriquecimento representa uma vantagem, ou benefício de carácter patrimonial e suscetível de avaliação pecuniária, produzido na esfera jurídica da pessoa obrigada à restituição e traduz-se numa melhoria da sua situação patrimonial. Deve corresponder a um enriquecimento real, por corresponder ao valor objetivo da vantagem adquirida, e a um enriquecimento patrimonial, que reflete a diferença, para mais, produzida na esfera económica do enriquecido e que resulta da comparação entre a sua situação efetiva (real) e aquela em que se encontraria se a deslocação se não houvesse verificado (situação hipotética) (vide: Almeida Costa, in Ob. Loc. Cit., págs. 492 e 493; e Pereira Coelho in “O enriquecimento e o dano”, separata dos anos XV e XVI, Direito e Estudos Sociais, 2ª reimpressão, Coimbra 2003, págs. 24 e ss. e 36 e ss.).
De igual modo, como escreveu Vaz Serra (in RLJ, ano 102º, pág. 337, nota 2): «o enriquecimento consiste numa melhoria da situação patrimonial do obrigado a restituir, representando a diferença entre o estado atual do seu património e o estado em que ele se encontraria se não tivesse tido lugar a deslocação, sem causa, de valores».
O enriquecimento consiste, pois, na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista, podendo traduzir-se, quer num aumento do ativo patrimonial, quer no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio.
É tradicional aditar-se ainda a um outro requisito para haver lugar à obrigação de restituição, sustentando-se que será necessário que o enriquecimento seja obtido imediatamente à custa daquele que se arroga o direito à restituição. No fundo, entende-se que deve ser relevado o caráter da unicidade, ou unidade do facto de enriquecimento, suportado no efeito imediato da deslocação patrimonial.
Menezes Cordeiro (in “Tratado de Direito Civil Português”, volume II, Tomo III, págs. 226, 228, 230, 231 e 234), a propósito dos requisitos gerais deste instituto, referindo-se ao enriquecimento e depois de elencar as situações em que ele pode traduzir-se, escreveu que: «o instituto do enriquecimento só pode ser ativado quando algo transite de uma pessoa para a outra», ademais, referindo-se ao empobrecimento, depois de mencionar que ele pode traduzir-se nas figuras inversas às apontadas a propósito do enriquecimento, bastando o dano em abstrato, acrescentou ser necessária «a deslocação patrimonial ou o acervo de vantagens que se destinariam ao empobrecido mas que, mercê do fenómeno em estudo, surgem na esfera do enriquecido».
Quanto à relação entre o enriquecimento e o empobrecimento defende que ela deve existir, por decorrer da expressão «à custa de outrem», a qual tem utilidade desde que seja devidamente integrada, devendo ser entendida como «uma proposição específica de enriquecimento sem causa, que exprime uma relação entre os futuros credores da obrigação de restituir o enriquecimento e o devedor da mesma».
O mesmo autor (in Ob. Loc. Cit., pág. 234) sustenta ainda a necessidade da imediação entre o enriquecimento de uma das partes e o empobrecimento da outra e que a relação entre o enriquecido e o empobrecido deve ser direta, na medida em que «um certo enriquecimento pressupõe uma precisa relação jurídica (logicamente) entre dois sujeitos. Essa relação é determinada por um juízo de valor…», o qual «vai ter por base a ideia fecunda do conteúdo da destinação».
No mesmo sentido, de exigir que enquanto o património de um valoriza, aumenta ou deixa de diminuir, na medida em que no outro se dá o inverso, porque desvaloriza, diminui ou deixa de aumentar, veja-se também: Galvão Telles in “Direito das Obrigações”, 7ª edição, Reimpressão, 2010, págs. 197 e 198; Almeida Costa in “Direito das Obrigações”, 12.ª Ed., págs. 495 e 496.
No que respeita à ausência de causa justificativa, sobreleva o disposto no n.º 2 do Art. 473.º do C.C., onde se identificam a título exemplificativo três situações especiais de enriquecimento desprovido de causa: 1) a condictio in debiti (repetição do indevido), 2) a condictio ob causam finitam (enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir) e, 3) a condictio ob causam datorum (enriquecimento derivado da falta de resultado previsto) – vide, a propósito: Galvão Telles in “Direito das Obrigações”, 7.ª Ed., pág. 205; Almeida Costa in “Direito das Obrigações”, 12.ª Ed., pág. 505; e Menezes Leitão in “Direito das Obrigações”, Vol. I, 2.ª Ed., pág. 395).
A falta de causa justificativa pode resultar da circunstância de nunca ter existido ou, tendo existido, entretanto, se ter perdido. Ou seja, a causa do enriquecimento pode resultar do fim imediato da prestação e do fim típico do negócio, donde, se a obrigação não existiu ou se o fim do negócio falhou, deixou de haver causa para a prestação e a obrigação resultante do negócio, importando ainda saber, em cada caso concreto, “se o ordenamento jurídico considera ou não justificado o enriquecimento e se portanto acha ou não legítimo que o beneficiado o conserve” (neste sentido: Galvão Telles in Ob. Loc. Cit., págs. 199 e 200), ou, então, se “o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, ou se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa” (neste sentido: Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4.ª Ed., págs. 454 e ss.; e Diogo Leite de Campos in “A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir e Enriquecimento”, págs. 317 e 412; e Ac.. do S.T.J. de 3 de Novembro de 2016 (Proc. n.º 390/09.0TBBAO.P1.S1), de 3 de Maio de 2018 (Proc. n.º 175/05.2TBALR.E1.S1), ambos disponíveis no sítio da “dgsi”).
Ora, no caso concreto, o que se passou foi que houve uma “venda fiduciária em garantia”. Nesta, em vez de se ter acordado formalmente num contrato de mútuo, com constituição de garantia real sobre um imóvel, como seria mais normal, optou-se pela transmissão do direito de propriedade sobre esse bem, que servia de garantia do crédito, a favor do credor, ficando este último obrigado a retransmitir o mesmo bem, uma vez que se mostrasse cumprida a obrigação correspondente.
Como escreve Catarina Monteiro Pires (in “Alienação em Garantia”, 2009, pág. 99) a alienação em garantia é o «negócio nos termos do qual um sujeito (prestador de garantia) transmite a outro (beneficiário da garantia) a totalidade de um bem ou se um direito, com a finalidade de garantia de um crédito, ficando o beneficiário da garantia obrigado, uma vez extinta esta finalidade, a retransmitir-lhe aquela mesma titularidade».
A doutrina tradicional falava em “fidutia cum creditore” e era genericamente admitida como válida, no quadro da autonomia privada (vide: Manuel de Andrade in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, pág. 175; e Castro Mendes in “Teoria Geral do Direito Civil”, Vol. II, 1979, AAFDL, págs. 170 e ss.).
Havendo incumprimento por parte do devedor, a garantia do crédito opera funcionalmente através da consolidação do direito de propriedade na titularidade do credor, com a consequente extinção da obrigação de pagamento da dívida, que se dará nos precisos termos que forem acordados.
No caso concreto, nos termos do parágrafo 2.º da cláusula terceira do contrato-promessa (cfr. cit. doc. a fls. 37 verso), a não realização da escritura no prazo convencionado implicava a revogação automática desse contrato (de promessa) e «a renúncia das outorgantes a reclamarem um da outra de quaisquer direitos ou indemnizações, tudo se passando como se o presente contrato não tivesse existido» (sic). Pelo que, o incumprimento definitivo do contrato-promessa, decorrente do facto objetivo de não ter sido celebrada a escritura prometida no prazo convencionado, tinha como consequência que a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel se consolidava na esfera patrimonial pessoal da 1.ª R..
Este efeito prático pode conduzir à admissibilidade, de forma indireta, do pacto comissório que, nos termos do Art. 694.º do C.C., é fulminado por lei com a nulidade.
Sucede que tal foi devidamente ponderado pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão que proferiu no processo n.º 1626/12.5TBMTJ.L1.S1, numa longa citação do Prof. Januário Gomes (in “Assunção Fidejussória de Dívida”, 200, págs. 92 a 96) e no contexto da reprodução doutro acórdão do Supremo, de 16/3/2011, prolatado no Proc. n.º 279/2002.E1.S1, doutamente relato pelo o Sr. Conselheiro Lopes do Rego (disponível em www.dgsi.pt). Aí pode ler-se:
«Consigna o artº 694º do CC a proibição absoluta do pacto comissório, oriunda, como lembra Menezes Cordeiro, da "velha constituição de Constantino" "Direitos Reais", Lex, 1993, pág. 765), proibição essa, nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, fundada "no prejuízo que do pacto comissório pode resultar para o devedor, que seria facilmente convencido, dado o seu estado de necessidade, a aceitar cláusulas lesivas dos seus interesses", tal fundamento sendo "paralelo ao da proibição da usura", a proibição abrangendo "também, pelo seu espírito, o pacto pelo qual e convencione o direito de venda particular", o pacto comissório, "por sua própria natureza", só se compreendendo "quando anterior ao vencimento do crédito (para o caso de não cumprir)"o sublinhado nosso cfr. Código Anotado" - 4ª Edição Revista e Atualizada -, vol. I, pág. 718.)
«Acompanhamos, antes, a respeito da ratio da proibição do pacto comissório, o sustentado por Manuel Januário da Costa Gomes, quando escreve:
"A ideia dominante entre nós é a de que a proibição do pacto comissório é justificada pela necessidade de proteger o devedor face a eventuais extorsões por parte do credor, identificando-se com a ratio do art. 1146º que pune a usura, bem como com o pensamento subjacente à condenação dos negócios usurários (art. 282º).
«No entanto, como observa ROPPO, esta justificação é suscetível de provocar perplexidades por razões de ordem sistemática, já que na lógica do sistema, a tutela de quem contrata em estado de necessidade ou coagido não passa pela nulidade, para além de que não se furta à sanção da nulidade um pacto que se mostre em concreto vantajoso para o devedor (em virtude, v.g., da desproporção existente entre o valor do bem que é objeto de garantia e o montante da obrigação garantida).
«Daí que tenham surgido na doutrina e jurisprudência italianas outras justificações para a proibição do pacto comissório. Assim, BETTI associa a proibição à atribuição exclusiva ao Estado do controlo sobre o não cumprimento das obrigações; LOJACONO explica-a à luz da necessidade de efetivação do princípio par conditio creditorum; BIANC4 invoca a existência de um interesse geral em evitar um "prejuízo social", ideia grosso modo retornada por CARNEVALI, quando se reporta a um interesse geral no regular e correto desenvolvimento das relações jurídicas; finalmente, the last but not the least, COSTANZA considera que muito provavelmente devem ser relevadas todas as razões apresentadas, que não são entre si incompatíveis ou contraditórias, "respondendo, antes, à lógica unitária da correção negocial.
«Aderindo, grosso modo, à ideia de COSTANZA, parece-nos que a ratio da proibição do pacto comissório é plúrima e complexa, relevando, a um tempo, o propósito de proteger o devedor da (possível) extorsão do credor e a necessidade, que corresponde a um interesse geral do tráfego, de não serem falseadas as "regras do jogo", através da atribuição injustificada de privilégios a alguns credores, em objetivo (seja ele efetivo ou potencial) prejuízo dos demais. A correção negocial não se compadece com mecanismos que possam legitimar, direta ou indiretamente, a institucionalização de "castas" entre os credores, fora das vias transparentes e objetivas que justificam as exceções ao princípio par conditio creditorum ("Assunção Fidejussória de Dívida"- Almedina 2000 -, pág. 92 a 94).
«Importa, por outro lado, realçar que a absoluta proibição legal do pacto comissório tem sido recentemente temperada ou mitigada – particularmente após ter sido introduzido no nosso ordenamento jurídico o regime especial do penhor financeiro, através do DL 105/04, cujo preâmbulo proclama, como relevante inovação, ter sido aceite, no âmbito do contrato aí regulado, o pacto comissório, em frontal desvio à regra imposta pelo art. 694º do CC: a doutrina tem, porém, notado que tal afirmação do legislador peca por excessiva, face ao estatuído no nº2 do art. 11ºdesse diploma legal , ao impor ao beneficiário a obrigação de restituir, a quem presta a garantia, a diferença entre o valor objeto do penhor e o montante das obrigações financeiras garantidas , consagrando, afinal, a lei, em bom rigor, um regime próprio do velho «pacto marciano».
«É esta, aliás, a posição adotada no parecer apresentado nos autos –generalizando tal entendimento para além do âmbito restrito do penhor financeiro - ao sustentar que o negócio fiduciário cum creditore só é válido se da cláusula fiduciária resultar a obrigação de restituição que caracteriza o pacto marciano, análogo, nas suas consequências, às estatuídas no nº2 do art. 11º do DL nº105/04. Se tal não se verificar, a transmissão atípica em função da garantia é nula.
«Em sentido análogo, Catarina Monteiro Pires (ob. cit., pág. 272) define o âmbito do pacto comissório, efetivamente proibido, como a convenção mediante a qual ocorre a perda ou a extinção da propriedade de um bem do devedor, a favor do respetivo credor, em virtude do incumprimento de uma obrigação a cargo daquele e sem que estejam previstos mecanismos que assegurem, com efetividade e atualidade, que valor do bem apropriado não é superior ao valor da dívida garantida ou que, sendo aquele superior a este, o credor não se apropriará do valor que exceda o necessário para a satisfação do seu crédito.
«7. Sem embargo das semelhanças que se possam descortinar entre a típica funcionalidade de um verdadeiro pacto comissório – facultando ao titular de um direito real de garantia a apropriação dos bens por ela onerados, em caso de incumprimento – e a venda tendo como função indireta a garantia de um crédito, consubstanciada no «pactum fiduciae» acordado entre vendedor e comprador (frequentemente dissimulado, encoberto ou oculto pelos contraentes, não constando ou transparecendo minimamente do contrato formal de alienação que celebraram), importa acentuar a radical e estrutural diversidade de situações jurídicas subjacentes a cada uma de tais hipóteses.
«São, na realidade, vias jurídicas estruturalmente diferenciadas a que, por um lado, se traduz em onerar um bem do devedor (ou de terceiro), vinculando-o à garantia de um crédito mediante constituição de um direito real e garantia, e estipulando-se que – se ocorrer incumprimento da obrigação e só nesse preciso momento – poderá o titular do direito real de garantia apropriar-se do bem hipotecado, «convertendo» a garantia real em direito de propriedade ; e a que, por outro lado, se traduz em proceder-se à imediata alienação de certo bem ao credor - produzindo, naturalmente, tal negócio de venda efeitos reais imediatos, transferindo sem mais a propriedade do bem para a esfera jurídica do comprador – estando, porém, subjacente a tal alienação um pacto «fiduciário» celebrado entre os contraentes, do qual resulta a vinculação do credor/comprador às obrigações de conservação do bem transmitido e de posterior revenda ou retransmissão em benefício do anterior proprietário, logo que o fim de garantia do crédito se mostre exaurido.
«Esta diversidade estrutural das situações jurídicas em confronto – hipoteca com pacto comissório e venda em garantia, tendo subjacente o «pactum fiduciae» entre os contraentes - impede, desde logo, que se possa pretender «converter» ou convolar livremente de uma situação para a outra; como se afirma no Ac. de 19/9/06, proferido pelo STJ no P. 06A2092:
«O nº 1 do art. 238º citado prescreve que tratando-se de negócio formal, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
«Daqui resulta que nunca poderia ser interpretada a declaração negocial de compra e venda como de hipoteca, pois estando esta sujeita a forma especial - escritura pública, nos termos do art. 80º, nº 2 al. g) do Cód. do Notariado – nenhuma correspondência havia no texto que, mesmo que imperfeitamente, correspondesse à pretendida vontade real.
A natureza jurídica de ambos os institutos jurídicos é de tal modo diversa que nunca uma compra e venda poderia traduzir, sem mais, a vontade de dar de hipoteca, pois a declaração bilateral de compra e venda não contém o mínimo de correspondência com uma declaração unilateral de dar de hipoteca.
«Consideramos, aliás, que a radical e estrutural diversidade entre a constituição de direitos reais de garantia ( ainda que a oneração do bem seja acompanhada de uma inadmissível estipulação do pacto comissório) e a alienação ou venda fiduciária em garantia, imediatamente geradora de um efeito transmissivo do direito de propriedade, obsta à direta subsunção desta segunda categoria normativa no âmbito do art. 694º do CC, cujo programa normativo se dirige – e confina - claramente ao plano das garantias reais das obrigações, vedando ao credor a autotutela que resultaria da faculdade de apropriação da «coisa onerada» no caso – e no momento - em que o devedor não cumprisse a obrigação garantida.
«O que, deste modo, está verdadeiramente em causa é saber se se justificará a efetivação de uma verdadeira operação de «extensão teleológica» da proibição contida no citado art. 694º, de modo a nela incluir situações que, sendo embora, de um ponto de vista jurídico, estruturalmente diferenciadas da hipótese ali prevista, têm com ela alguma conexão funcional relevante: e a admissibilidade de realização de uma tal extensão teleológica da norma proibitiva dependerá naturalmente do balanceamento ou ponderação de todos os interesses envolvidos, tendo particularmente em conta os reflexos que a tese da nulidade da venda ou alienação fiduciária de imóveis – estabelecida com o fito essencial de proteção dos interesses do devedor/vendedor - poderá envolver no plano da tutela do princípio fundamental da confiança e da segurança do comércio jurídico.
«Na verdade, não pode olvidar-se que, enquanto a proscrição do pacto comissório, confinada ao estrito âmbito das garantias reais, não tem reflexos negativos relevantes na segurança do comércio jurídico e na legítima confiança dos subadquirentes do bem imóvel indevidamente apropriado pelo credor, a sua extensão à venda fiduciária é suscetível de implicar lesão relevante desse princípio fundamental do ordenamento jurídico, ao conduzir à aplicação do típico regime da nulidade a uma venda de imóveis, aparentemente consolidada e definitiva (se atendermos ao teor da escritura pública e ao consequente registo predial), facultando aos outorgantes a invocação entre eles e a consequente oponibilidade a terceiros de boa fé do «pactum fiduciae», muitas vezes oculto e dissimulado relativamente às cláusulas contratuais do negócio formal de alienação ( como, aliás, o caso dos autos bem ilustra e documenta).
«Assim, no caso de constituição de hipoteca, acompanhada da ilegal estipulação de pacto comissório, ainda que o credor consiga, em termos fácticos, apropriar-se do bem onerado no momento em que ocorrer o incumprimento da obrigação garantida, não logrará naturalmente registar a aquisição do direito de propriedade que lhe resultaria da cláusula ou convenção nula – sendo evidente que os serviços de registo predial rejeitarão seguramente inscrever uma pretensa aquisição do direito de propriedade pelo credor que tivesse como título jurídico uma convenção que a lei categoricamente fulmina com o valor negativo da nulidade : e daqui decorre que o credor hipotecário que, prevalecendo-se do ilegal pacto comissório convencionado, tenha logrado - em termos puramente práticos ou fácticos - apropriar-se do bem hipotecado , não conseguirá normalmente inscrever tal aquisição no registo predial, ficando por isso inibido de se apresentar no comércio jurídico como aparente titular de um direito de propriedade sobre tal bem, em termos de poder frustrar a confiança de terceiros subadquirentes no teor daquele registo.
«Como é evidente, a situação é radicalmente distinta no caso da venda fiduciária em garantia, já que:
«- o credor/comprador adquire imediatamente a propriedade do bem , através do ato de alienação, documentado por escritura pública e obviamente suscetível de imediata inscrição no registo predial, podendo passar a apresentar-se no comércio jurídico como legítimo proprietário do prédio;
«- ulteriormente – se e quando não for cumprida a obrigação que se pretendia indiretamente garantir através da venda fiduciária realizada – é lícito ao interessado invocar o «pactum fiduciae», informalmente acordado com o credor, opondo-o, não apenas à contraparte, mas - pela via do art. 291º do CC - a eventuais subadquirentes de boa fé dos bens, entretanto transmitidos pelo credor/comprador a terceiros, em violação das obrigações pessoais de conservação e revenda do imóvel que lhe resultavam do pacto fiduciário;
«- tal invocação e oponibilidade é possível mesmo nos casos – como o dos autos – em que o «pactum fiduciae» foi oculto, encoberto ou dissimulado pelos contraentes, não deixando qualquer rasto ou indício nos instrumentos que titulavam a alienação realizada - sendo, pois, absolutamente impossível que terceiros dele se pudessem ter apercebido.
«Cumpre apurar se tais relevantes limitações ou restrições ao princípio fundamental da confiança e segurança no comércio jurídico, decorrentes da extensão teleológica da proscrição do pacto comissório à venda fiduciária em garantia, são necessárias, proporcionais e adequadas, face aos interesses contrapostos – desde logo, o interesse do devedor/ vendedor ( sujeito ao risco de significativa desproporção entre o valor do débito indiretamente garantido pelo ato de alienação e o valor real dos bens transmitidos) e o interesse de terceiros subadquirentes do prédio, sujeitos, através da via da nulidade do ato de alienação, à invocação e oponibilidade de um verdadeiro «ónus oculto», suscetível de destruir a consistência jurídica dos direitos que fundadamente supunham ter adquirido.
«Deve, desde logo, notar-se que a alienação fiduciária tem uma margem incontornável de aleatoriedade , repousando decisivamente numa relação de confiança pessoal entre os outorgantes do «pactum fiduciae» – e devendo tal álea ou risco inelutável – decorrente da eventualidade de as obrigações de conservação e revenda dos bens transmitidos poderem não ser cumpridas - ser prioritariamente assumida no plano das «relações internas» entre os contraentes, em vez de, em primeira linha, recaírem os custos da possível infidelidade do fiduciário sobre terceiros de boa fé: na verdade, ao aceitar uma estipulação puramente informal do pacto fiduciário, o devedor (no caso dos autos, um advogado, agindo profissionalmente no comércio imobiliário) tem necessariamente a noção da fragilidade da tutela do seu interesse na reaquisição do bem vendido e do risco que inelutavelmente irá correr, ao transmitir – em termos reais – a propriedade do imóvel, em troca de uma vinculação, puramente obrigacional e pessoal, de revenda ou retransmissão por parte do comprador.
«E tal risco podia ter sido eliminado ou minimizado, optando as partes pela celebração de uma venda «a retro», estipulando, para tal, em termos formalmente válidos, a cláusula resolutiva e procedendo ao respetivo registo, de modo a conciliar plenamente a tutela do seu interesse em readquirir efetivamente a propriedade do bem vendido com a garantia da confiança de terceiros, nos termos do art. 932º do CC.
«Não parece, por outro lado, que a não aplicação do regime de nulidade à venda fiduciária, sempre que se não mostre adequadamente assegurado o direito à restituição da diferença entre o valor do imóvel alienado e o montante das obrigações indiretamente garantidas, conduza a uma absoluta desproteção dos interesses do devedor/vendedor – dispondo este, ainda assim, de meios de tutela jurídica que, ao menos nos casos de maior gravidade, poderão ainda satisfazer minimamente os seus interesses.
«Assim, e em primeiro lugar, poderá dispor o vendedor/devedor da via da efetivação da responsabilidade civil obrigacional, decorrente do incumprimento das obrigações «pessoais» de conservação e retransmissão do imóvel alienado em garantia, assumidas no seu confronto pelo adquirente do bem, através do pacto fiduciário acordado: ao contrário do que ocorreria se tal pacto - ou a própria venda fiduciária - fossem fulminadas com o vício da nulidade – em que assistiria ao vendedor o direito a ser ressarcido pelo «dano negativo» decorrente da invalidação do negócio, - a subsistência jurídica e o incumprimento de tais obrigações de conservação e revenda dos bens transmitidos fiduciariamente poderá implicar, nos termos gerais, o surgimento na esfera jurídica do comprador de um dever de ressarcir o vendedor pelos danos decorrentes do incumprimento de tais obrigações, nomeadamente quando tenha entretanto alienado os bens transmitidos a terceiros, colocando-se em situação de impossibilidade de cumprimento da obrigação de revenda.
«Por outro lado – e pelo menos nas situações de mais gravosa desproporção entre o valor da dívida indiretamente garantida e o «preço» por que os bens foram alienados «fiduciariamente» - não excluímos que a situação possa ser enquadrada normativamente no âmbito da disciplina dos negócios usurários, contemplada no art. 282º do CC – por essa via se obtendo a anulação da venda realizada : porém, e como é evidente, para poder beneficiar deste particular regime jurídico, será indispensável que o A. alegue factos que preencham a «fattispecie» ali prevista, não podendo limitar-se a invocar a natureza fiduciária da venda e a sustentar a aplicabilidade do regime de proibição do pacto comissório, fora do âmbito dos direitos reais de garantia». (sublinhados nossos).
No final, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de junho de 2017, proferido no âmbito da ação anterior, como vimos, entendeu que a proibição absoluta do pacto comissório não se aplica à venda fiduciária em garantia, mas também concluiu que a venda era válida, por não se verificarem factos integradores do Art. 282.º do C.C., sendo que relativamente à questão da diferença entre o valor real do imóvel (€408.000,00) ser superior ao valor do mútuo e respetivos juros, com o limite legal e por referência às datas do incumprimento dos mútuos, foi essa situação completamente desconsiderada, porque a R. nunca usufruiu do imóvel, pelo qual pagou €265.000,00 em 4 de agosto de 2008, tendo em troca recebido apenas €67.500,00 (cfr. cit. acórdão a fls. 56 verso).
Este último argumento perdeu o seu sentido, no caso da presente ação, porque a R. deduziu pedido reconvencional de indemnização relativamente à alegada privação do uso da coisa, o qual até foi julgado procedente por provado na sentença recorrida, sem que sobre essa parte da decisão tenha sido interposto qualquer recurso. Portanto, a questão tem de ser necessariamente apreciada noutros termos.
Em primeiro lugar, não há dúvida, em função da matéria de facto provada que os A.A. venderam o imóvel à 1.ª R. por €265.000,00 (cfr. facto provado 16), sendo que esse imóvel, à data dessa venda, tinha o valor de €408.406,20 (cfr. facto provado 36). Pelo que, objetivamente houve um enriquecimento da 1.ª R., obtido à custa do empobrecimento dos A.A., na mesma proporção do valor da diferença assim verificada.
Em segundo lugar, não há dúvida que esse valor de venda decorreu da vontade expressa por ambas as partes, que subscreveram a escritura de compra e venda de 4 de agosto de 2008 de forma livre e consciente, não havendo que considerar a existência de qualquer situação de erro, dolo ou coação, sendo que também se mostra excluída a possibilidade de haver negócio usurário, nos termos do Art. 282.º do C.C., pelas razões que largamente foram expedidas pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão que proferiu no processo n.º 1626/12.5TBMTJ.
Ainda assim, deve reconhecer-se que a causa do contrato de compra e venda não foi a vontade de transmissão (definitiva) do direito de propriedade sobre esse imóvel. A causa desse contrato foi que esse imóvel servisse de garantia ao cumprimento do mútuo de €265.000,00, como decorre claramente dos factos provados nos pontos 3 a 18, 22 e 23 da sentença recorrida.
Subjacente à venda estava um acordo “fiduciário”, nos termos do qual o adquirente do direito de propriedade sobre o imóvel ficaria pessoalmente vinculado a devolver esse prédio, retransmitindo a sua titularidade aos A.A., logo que fosse reembolsada a quantia mutuada, acrescida de juros.
Na verdade, as partes não fixaram um “preço” de venda para o imóvel. O pagamento do “preço” não servia a finalidade direta da aquisição do imóvel, limitando-se a corresponder ao valor do capital mutuado.
Correspetivamente, também o preço de “recompra” não cumpria uma finalidade de retribuição, por equivalência, ao valor económico da coisa. O preço da “recompra” só poderia corresponder, nos termos acordados, à extinção das obrigações pecuniárias emergentes do mútuo.
Tudo ponderado, temos de concluir que, na “venda fiduciária em garantia”, em caso de incumprimento do devedor, que determine a perda definitiva do direito de propriedade a favor do credor (beneficiário da garantia), só poderemos defender que a ela não se aplica a regra da nulidade decorrente da proibição legal do “pacto comissório”, caso se permita corrigir, de acordo com as regras gerais e princípios do direito, o efeito pernicioso e legalmente inadmissível que decorre da possibilidade de o credor poder fazer sua uma coisa (dada em garantia) por valor manifestamente superior ao crédito de que é titular. Doutro modo, seria permitir o abuso de direito (cfr. Art. 334.º do C.C.), porque a finalidade social e económica da garantia prestada deste modo nunca pode servir uma forma de enriquecimento ilegítimo do credor e sem causa justificativa.
Julgamos, por isso, que o pedido subsidiário formulado na al. e) da petição inicial, deve proceder, devendo a 1.ª R. – e apenas a 1.ª R., porque foi apenas na esfera jurídica desta que se verificou o enriquecimento patrimonial –, ser condenada a pagar aos A.A., a título de enriquecimento sem causa, aquilo que injustificadamente se locupletou à custa destes (cfr. Art. 473.º do C.C.).
Quanto ao valor do enriquecimento ilegítimo, ele deve corresponder certamente à diferença entre o valor efetivo da venda (€265.000,00) e o valor real desse imóvel (€408.406,20) à mesma data, ou seja: €143.406,20.
No entanto, há ainda que ponderar o facto de os A.A. terem beneficiado da disponibilidade financeira de €265.000,00 desde 4 de agosto de 2008 (data da celebração da escritura de compra e venda outorgada entre os A.A. e a 1.ª R.) até 15 de abril de 2011 (data em que se cessou a vigência do segundo contrato-promessa – cfr. doc. a fls. 37 verso – e, concomitantemente, se extinguiu o mútuo subjacente, por incumprimento dos A.A., com a consequente consolidação definitiva do direito de propriedade na esfera jurídica da 1.ª R.).
Assim, fazendo uso dos mesmos critérios de cálculo que estiveram subjacentes ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no âmbito do processo anterior, a taxa de juros a considerar não poderia exceder em mais 3 % os juros legais (devidos à taxa de 4% de acordo com a Portaria n.º 291/2003 de 8/4), tendo em atenção o disposto no Art. 1146.º n.º 1 e n.º 3 do C.C..
Ora, os A.A. receberam da 1.ª R. €265.000,00 em 4 de agosto de 2008 e tinham acordado remunerar essa disponibilidade financeira, pelo menos até ao termo do segundo contrato-promessa, resultante de renegociação da dívida, com a consequente prorrogação do prazo para cumprimento. Pelo que, apenas em 15 de abril de 2011 se consolidou o direito de propriedade do bem entregue em garantia da venda fiduciária a favor da 1.ª R..
Neste pressuposto, o valor efetivamente disponibilizado pela 1.ª R. não correspondeu apenas aos €265.000,00, pagos a título de “preço”, mas aos €265.00,00, acrescidos dos juros acordados, mas reduzidos aos limites legais admissíveis, durante todo o período de tempo em que não só não teve a disponibilidade do imóvel que comprou, mas também ficou desapossado do capital investido.
Nessa medida, o valor do enriquecimento da R. e do correspondente empobrecimento dos A.A. deve corresponder apenas à diferença entre 408.406,20 (valor real do imóvel) e o valor da compra (€265.000,00) corrigido pelo valor dos juros que seriam devidos desde 4 de agosto de 2008 até 15 de abril de 2011, que correspondem a €50.008,77 (calculado no sítio: https://www.calculodejuros.pt/juros-taxa-variavel.aspx pela inserção dos seguintes dados: quantia: 265.000; taxa de juro: 7%; data de início de contagem: 4/8/2008; data de fim da contagem: 15/4/2011). Ou seja, a 1.ª R. deverá reembolsar apenas €93.397,43.
Tenha-se em atenção que o valor do enriquecimento que não se considera sem causa (€50.008,77) engloba todo o juro remuneratório devido na vigência do mútuo, desde 4 de agosto de 2008 até 15 de abril de 2011, o que significa que abrange os €15.246,58 acima liquidados (correspondentes ao período parcelar entre 4 de agosto de 2008 e 31 de maio de 2009). Portanto, com a não restituição do primeiro valor referido (€50.008,77), fica também satisfeito (extinto) o direito aos €15.246,58 acima liquidados.
Em face do exposto, deve ser confirmar a sentença recorrida, quando julgou improcedente o pedido subsidiário constante da alínea d) da petição inicial, mas o pedido da al. e) deve ser julgado parcialmente procedente, devendo a 1.ª R., C.B.G. – Imobiliária, S.A., pagar aos A.A. €93.397,43, com fundamento em enriquecimento sem causa.
Quanto à alínea f) da petição inicial, que como vimos mereceu acolhimento na sentença recorrida, não tendo sido suscitada qualquer questão nas alegações de recurso relativamente a ela, não faz parte do objeto desta apelação. O mesmo se passando com a procedência parcial da reconvenção, relativamente à qual o Recorrente também nada alegou.
Em suma, julgamos dever alterar a sentença recorrida na parte dispositiva no que se refere aos pedidos constantes das alíneas a) e e), procedendo as conclusões em conformidade com o exposto. No mais, improcede a apelação, devendo manter-se a sentença recorrida nos mesmos termos.
Resta dizer que a responsabilidade por custas da presente apelação deve ser na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 56% para os Recorridos e 44% para o Recorrente (cfr. Art. 527.º n.º 1 do C.P.C.), tendo por referência o valor da ação constante da petição inicial (valor: €210.000,00 – cfr. fls. 13 verso e fls. 207), já que a reconvenção não foi objeto de qualquer reapreciação. Isto sem prejuízo, do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa total de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo que foi deferido ao Recorrente (cfr. fls. 144).
      
V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente por provada, revogando a sentença recorrida na parte em que absolveu os R.R. dos pedidos constantes das alíneas a) e e) da petição inicial, substituindo-a nessa parte pelas decisões de:
a) Reconhecer como venda fiduciária em garantia de um mútuo o contrato celebrado entre os A.A. e a R. CBG e usurários os juros cobrados pela R. nesse contrato, os quais devem ser reduzidos à quantia de €15.246,58 (quinze mil, duzentos e quarenta e seis euros, e cinquenta e oito cêntimos), calculados até à data de 31 de maio de 2009; e
b) Condenar a 1.ª R., C.B.G. – Imobiliária, S.A., pagar aos A.A., a quantia de €93.397,43 (noventa e três mil, trezentos e noventa e sete euros, e quarenta e três cêntimos), com fundamento em enriquecimento sem causa, correspondente à diferença entre valor real desse imóvel e o valor de venda da herdade de YY, corrigido nos termos supra enunciados.
No mais, mantém-se a sentença recorrida.
- Custas do recurso por Apelante e pelos Apelados, na proporção do decaimento, que se fixa em 44% para o primeiro, e 56% para os segundos (cfr. Art. 527º n.º 1 do C.P.C.), sem prejuízo da dispensa de pagamento decorrente do benefício de apoio judiciário que foi deferido ao Apelante (cfr. fls. 144).
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Lisboa, 11 de julho de 2024
Carlos Oliveira
Paulo Ramos de Faria
Cristina Silva Maximiano