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DOCUMENTO AUTÊNTICO
VALOR PROBATÓRIO
Sumário
A veracidade do conteúdo de um documento autêntico pode ser posta em causa por prova testemunhal.
Texto Integral
Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação do Porto:
Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Vila do Conde, foi julgada improcedente a acusação e, em consequência, absolvido o arguido B.........., da prática do crime de falsas declarações p. p. pelo art.º 359º, nº 1 e 2, do C. Penal.
Inconformado recorre o Ministério Público rematando a pertinente motivação com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1. O princípio fundamental sobre a regra da apreciação da prova em processo penal, é o da livre apreciação das prova - a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente - consagrado no art.º 127º do Código Processo Penal;
2. Tal princípio não é porém absoluto, já que a lei estabelece excepções ao mesmo, designadamente quanto ao valor probatório dos documentos autênticos ou autenticados (art.º 169º), ao caso julgado (art.º 69º), à confissão integral a sem reservas no julgamento (art.º 344º) e à prova pericial (art.º 163º).
3. Tal princípio só valerá em absoluto quando se verifique a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir aos meios de prova e, ainda assim, tem de entender-se que essa apreciação que o julgador faça, segundo os dois critérios enunciados no art.º 127º do Código Processo Penal, não é arbitrária.
4. Uma vez que, mesmo sendo discricionária tem limites que não podem ser ultrapassados, devendo em concreto ser recondutível a critérios objectivos, susceptível de controlo e motivação, por esse motivo sendo obrigatória a fundamentação da decisão nos termos do art.º 374º n.º 2 do Código Processo Penal.
5. O auto de interrogatório do arguido exarado por funcionário dos Serviços do Ministério Público a exercer a competência delegada por Magistrado do Ministério Público constitui documento autêntico, nos termos do art.º 363º do Código Civil.
6. Como tal, subtraído ao princípio da livre apreciação da prova enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa, nos termos do art.º 169º do Código Processo Penal, ex vi art.º 99º n.º 5 do mesmo diploma legal, o que resultava já dos artºs 369º e segts do Código Civil.
7. Não bastando para afastar o valor probatório do auto de interrogatório de arguido e por este devidamente assinado, que o mesmo arguido, em audiência de julgamento, alegue que as perguntas que lhe foram feitas o foram de forma deferente da que vem descrita no auto.
8. A credibilidade de tal auto só pode ser afastada nos termos do art.º 170º do Código Processo Penal, devendo o tribunal para tal descrever quais os factos que a fundamentaram.
9. Valorizando a Mmª juíza a quo as declarações do arguido em audiência contra o conteúdo do Auto de Interrogatório pelo mesmo assinado e que deu origem ao crime do qual vem acusado, sem que o mesmo em sede do inquérito respectivo ou mesmo na contestação (que não apresentou) tenha alguma vez invocado a falsidade do seu conteúdo, e sem considerar como provado que o conteúdo do auto é falso, violou o art.º 169º do Código Processo Penal e, logo, incorreu em erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.º 410º, al. c.) do Código Processo Penal.
10. Violou, assim, a decisão recorrida ao interpretar e valorar de forma diferente os elementos de prova constantes dos autos os artºs 127º, 169º e 374º n.º 2 do Código Processo Penal.
Admitido o recurso o arguido não respondeu.
Nesta instância o Ex.mo Procurador Geral Adjunto teve vista nos autos conformando-se com a posição do Ministério Público na 1ª instância.
Após os vistos realizou-se audiência. Nas alegações não foram suscitadas novas questões.
Factos Provados:
1. No dia 20 de Fevereiro de 2003, pelas 11h27 m, nos Serviços do Ministério Público da Procuradoria da República da comarca de Vila do Conde, o arguido foi interrogado como arguido no inquérito n.º .../02.6PAVCD que correu termos nesta comarca;
2. Nessa diligência, após ter sido constituído arguido, foi informado dos direitos e deveres, nos termos do art. 61.º do CPP, e, designadamente, que estava obrigado a responder com verdade às perguntas sobre os seus antecedentes criminais;
3. Ao ser-lhe perguntado sobre os seus antecedentes criminais o arguido disse que nunca respondeu e que nunca tinha estado preso;
4. O arguido no processo n.º ../02.9PAVCD, no ..º Juízo Criminal da Comarca de Vila do Conde, o arguido havia sido condenado na pena de 150 dias de multa pela prática de um crime de condução do veículo em estado de embriaguez e pela prática de um crime de desobediência;
5. O arguido foi condenado numa pena de multa em processo sumaríssimo pelos crimes de condução de veículo em estado de embriagues e desobediência.
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Matéria de facto não provada:
- que o arguido agiu voluntária e conscientemente com o intuito de ocultar aquela condenação de que tinha sido alvo prestando, assim, declarações falsa quanto aos seus antecedentes criminais.
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Fundamentação da decisão de facto:
A convicção sobre a matéria de facto provada baseou-se nas declarações do arguido o qual referiu ter respondido quando perguntado se respondeu perante Juiz ter respondido que não por que de facto nunca esteve perante Juiz.
Da certidão cuja junção foi por nós requerida, resulta que o aqui arguido respondeu em processo sumaríssimo, o que condiz com o CRC de fls. 33, do que se concluiu não ter o arguido efectivamente chegado a estar perante juiz, pelo que relevou ainda os documentos constantes dos autos.
Foi ainda fundamental o esclarecimento da oficial de justiça, relativamente ao Auto de Interrogatório de Arguido junto aos autos a fls. 4, à volta do qual se fundou os presentes autos, ouvida como testemunha, a qual referiu ter por costume perguntar aos arguidos relativamente aos antecedentes criminais se responderam perante o juiz, pois muitas vezes as pessoas respondem que responderam em tribunal só porque foram chamadas a tribunal no âmbito de uma inquirição.
Do referido documento (Auto de Interrogatório de Arguido) de fls. 4, consta como respostas do arguido relativamente aos dizeres do auto acerca dos antecedentes criminais, apenas: "Nunca respondeu nem esteve preso.".
Relativamente aos antecedentes criminais, servimo-nos do CRC de fls. 33.
O Direito
Segundo o recorrente, ocorre erro notório, porque, no seu entender, a Mmª juíza a quo valorou as declarações do arguido em audiência contra o conteúdo do Auto de Interrogatório pelo mesmo assinado e que deu origem ao crime do qual vem acusado, sem que o mesmo em sede do inquérito respectivo ou mesmo na contestação (que não apresentou) tenha alguma vez invocado a falsidade do seu conteúdo, e sem considerar como provado que o conteúdo do auto é falso, violando assim o art.º 169º do Código Processo Penal e incorrendo em erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.º 410º, al. c.) do Código Processo Penal.
A alegação do recorrente necessita de uma primeira correcção não despicienda. Conforme expressamente consta da motivação que aqui recuperamos: A convicção sobre a matéria de facto provada, na parte questionada, baseou-se não apenas nas declarações do arguido, mas também:
a) nas declarações do arguido o qual referiu ter respondido quando perguntado se respondeu perante Juiz [ter respondido] que não, porque de facto nunca esteve perante Juiz;
b) na certidão (...) resultando que o arguido respondeu em processo sumaríssimo, o que condiz com o CRC de fls. 33, do que se concluiu não ter o arguido efectivamente chegado a estar perante juiz; c) no esclarecimento da oficial de justiça, relativamente ao Auto de Interrogatório de Arguido junto aos autos a fls. 4, (...) ouvida como testemunha, a qual referiu ter por costume perguntar aos arguidos relativamente aos antecedentes criminais se responderam perante o juiz, pois muitas vezes as pessoas respondem que responderam em tribunal só porque foram chamadas a tribunal no âmbito de uma inquirição.
Depois, cumpre lembrar, sobre o arguido não impende qualquer ónus de prova, daí que se perceba menos bem, a afirmação do recorrente de que o arguido nem em sede de inquérito nem mesmo na contestação (que não apresentou) invocou a falsidade do conteúdo do auto.
Seguramente que o auto de interrogatório em causa é neutro quanto ao elemento subjectivo. E o que está em questão, é saber se, ao afastar o elemento subjectivo do crime de falsas declarações, incorreu a Ex.ma juíza em erro notório na apreciação da prova.
Consubstancia erro notório na apreciação da prova, a falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, talvez melhor por um juiz normal [com a cultura e experiência da vida e dos homens, que deve pressupor-se num juiz chamado a apreciar a actividade e os resultados probatórios, na sugestão de C. Neves, Sumários de Processo Criminal, 1968, pág. 50-1,] denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si. Há um tal vício quando um homem médio, rectius, um juiz normal, perante o que consta do texto da decisão, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova ou das leges artis.
Dispõe o art.º 169º do Código Processo Penal que se consideram provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa. Daí resulta como menos correcta a afirmação do recorrente de que a credibilidade do questionado auto só poder ser afastada nos termos do art.º 170º do Código Processo Penal; ao contrário do sustentado pelo recorrente, o tribunal pode afastar o valor probatório dos documentos desde que a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo sejam fundadamente postas em causa, não sendo necessário para tal que o tribunal declare o documento como falso. O regime relativo à prova documental do Código Civil não pode ser acriticamente transplantada para o processo penal, quando o Código Processo Penal, como no caso, tem disposições próprias.
Como vimos, na audiência de julgamento o arguido referiu que quando perguntado sobre se respondeu perante Juiz respondeu que não, porque nunca esteve perante Juiz. A Ex.ma juíza, com o respaldo do princípio da investigação, averiguou então e constatou que o arguido respondeu em processo sumaríssimo, o que condizia com o CRC, concluindo não ter o arguido efectivamente chegado a estar perante juiz. Este quadro foi completado com o esclarecimento da oficial de justiça, relativamente ao Auto de Interrogatório de Arguido, que ouvida como testemunha, referiu ter por costume perguntar aos arguidos relativamente aos antecedentes criminais se responderam perante o juiz, pois muitas vezes as pessoas respondem que responderam em tribunal só porque foram chamadas a tribunal no âmbito de uma inquirição.
O quadro assim desenhado bastou à Ex.ma juíza para, desconsiderando a literalidade do auto de interrogatório, dar relevo ao que os seus intervenientes disseram ser a realidade e depois concluir pela falta de dolo do arguido. E entendemos que bem. Estavam preenchidos ao requisitos para fundadamente pôr em causa, que a técnica de justiça adjunta tenha perguntado ao arguido se já esteve alguma vez preso, quando e porquê, se já foi alguma vez condenado e por que crime...
O auto em causa é do tipo texto automático, modelo pré-existente, conforme resulta do confronto de fls. 4 e 16, razão pela qual é perfeitamente admissível que ocorra uma discrepância entre o que pretende documentar e a realidade; depois é a própria funcionária que executou a diligência em causa quem expressamente refere que não perguntou do modo que do auto consta, corroborando a versão do arguido. Ora que mais será preciso para considerar que o auto foi fundadamente posto em causa?
Contrariamente ao que refere o recorrente, o auto de interrogatório de arguido na parte relativa aos seus antecedentes criminais, pode ser posto em causa, nos termos do art.º 169º do Código Processo Penal, apenas com as declarações do arguido, se as mesmas convencerem o tribunal, ou com depoimentos de testemunhas, não sendo necessário para afastar a credibilidade de tal auto, nesse particular, que se declare que o mesmo é falso nos termos do art.º 170º do Código Processo Penal.
Conclui-se que não ocorreu erro notório na apreciação da prova e consequentemente, pela total improcedência do recurso.
Decisão:
Julga-se improcedente o recurso e confirma-se a decisão recorrida.
Sem custas.
Honorários da tabela.
Porto, 4 de Maio de 2005
António Gama Ferreira Ramos
Luís Eduardo Branco de Almeida Gominho
José do Nascimento Adriano
Arlindo Manuel Teixeira Pinto