INSOLVÊNCIA
MASSA INSOLVENTE
ANULAÇÃO DA VENDA
BEM IMÓVEL
TERCEIRO ADQUIRENTE
BOA FÉ
PRAZO DE PROPOSITURA DA AÇÃO
OPONIBILIDADE
Sumário


Tendo a primeira venda de um imóvel, realizada em processo de insolvência, sido anulada (por preterição do disposto no art. 164º, n.2 do CIRE), em ação proposta antes de decorridos 3 anos sobre a sua realização, o terceiro adquirente não se encontra protegido nos termos do artigo 291º do CC. Tendo, de seguida, existido uma terceira e uma quarta vendas do mesmo imóvel, estes sucessivos adquirentes também não se encontram protegidos, nos termos do art.291º do CC, porque entre as sucessivas vendas e a propositura da presente ação não passaram 3 anos.

Texto Integral




Processo n.9710/13.1TBVNG-G.P1.S1

Recorrente: AA

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. AA propôs a presente ação contra “IS.JP, Unipessoal, Ldª” (primeira ré), BB e CC (segundos réus), DD e EE (terceiros réus) e FF e GG (quartos Réus).

2. Requereu o seguinte:

- Que fosse declarada a nulidade, ou subsidiariamente a ineficácia, dos negócios jurídicos pelos quais os Réus declararam, sucessivamente, vender e comprar o direito de propriedade sobre a fração autónoma identificada pelas letras ... do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, sito na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o art....41 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n. ...22;

- Que fosse ordenado o cancelamento dos correspondentes registos, feitos pelas apresentações ...02 (de 5 de agosto de 2014), 1748 (de 14 de outubro de 2014), 2570 (de 10 de novembro de 2016), 3295 e 3296 (de 22 de maio de 2017), e a repristinação do registo feito pela apresentação n. 2768, de 20 de janeiro de 2014;

- Que fosse ordenada a restituição da fração autónoma à massa insolvente de HH e à posse ou retenção da Autora.

3. Alegou, em síntese, o seguinte:

ser titular de um crédito de € 206.000,00 sobre HH, o qual foi reconhecido, em sede de reclamação de créditos, no processo em que foi declarada a insolvência do devedor, como beneficiando da garantia dada pelo direito de retenção sobre a identificada fração autónoma, apreendida para a massa insolvente, facto inscrito no registo predial no dia 20 de janeiro de 2014 (apresentação ...68).

Na fase de liquidação, o administrador da insolvência procedeu à venda da identificada fração à primeira Ré, pelo preço de € 20.000,00.

A primeira Ré, através de escritura pública de 14 de outubro de 2014, vendeu a fração aos segundos Réus.

Estes, por escritura de 9 de novembro de 2016, venderam essa fração aos terceiros réus, os quais venderam aos quartos réus, por escritura de 22 de maio de 2017.

Esses negócios foram inscritos no registo predial nos dias 5 de agosto de 2014 (apresentação ...02), 14 de outubro de 2014 (apresentação ...48), 10 de novembro de 2016 (apresentação ...70) e 22 de maio de 2017 (apresentação ...95), respetivamente.

A venda realizada no processo de insolvência foi anulada, por acórdão de 29 de setembro de 2016 do Tribunal da Relação do Porto, que determinou a restituição da fração à massa insolvente, o que importa a nulidade das transmissões ulteriores, nos termos do disposto no art.º 289 do Código Civil.

4. Os réus contestaram afirmando, em síntese, que desconheciam os vícios que levaram à anulação da venda da fração no âmbito do processo de insolvência, tendo agido de boa-fé. Referiram ainda que sendo o registo da ação de 6 de outubro de 2017, a anulação da primitiva venda é-lhes inoponível, nos termos do art.º 291 do Código Civil.

5. Os terceiros e quartos Réus arguiram ainda a exceção dilatória da ilegitimidade ativa, argumentando que a Autora não é titular do direito de propriedade sobre a fração autónoma, pelo que não tem legitimidade para a reivindicar.

6. Os terceiros réus arguiram também a exceção dilatória da respetiva ilegitimidade dizendo que, por não serem atuais proprietários da fração, careceriam de interesse em contestar a pretensão de reivindicação.

7. A autora pediu a intervenção, como assistente, da massa insolvente de HH e a intervenção, a título principal, como associada dos quartos réus, da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL.

Alegou, em síntese, que a primeira tem interesse na procedência da ação, pois tal permitirá que a fração reingresse na massa insolvente, e que a segunda procedeu ao registo, através da apresentação 3296, de 22 de maio de 2017, de uma hipoteca sobre a fração para garantia do cumprimento de um crédito sobre os quartos Réus.

Por despacho de 17 de setembro de 2018, foi indeferido o pedido de intervenção, como assistente da autora, da massa insolvente de HH e deferido o pedido de intervenção, como associada dos Réus, da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL.

8. Em audiência prévia, foi proferido despacho saneador, que julgou improcedentes as arguições das exceções dilatórias da ilegitimidade da Autora e da ilegitimidade dos terceiros Réus, seguido da delimitação dos termos do litígio e da enunciação dos temas da prova.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento, e foi proferida sentença onde se decidiu do seguinte modo:

a). Julgou-se a ação improcedente no que tange aos Réus FF e GG e, bem assim, à chamada Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL, absolvendo estes dos pedidos formulados pela Autora, AA.

b). Julgou-se extinta, por inutilidade superveniente em função do decidido no ponto anterior, a instância no que tange aos Réus IS.JP, Unipessoal, Lda. BB, CC, DD e EE.

9. A Autora interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação do Porto proferido a seguinte decisão:

«julga-se improcedente o presente recurso de apelação e, em consequência confirma-se a decisão recorrida

10. Inconformada com essa decisão, a autora interpôs recurso de revista excecional. Nas suas alegações formulou as conclusões que se transcrevem:

«1. A presente revista tem por fundamento a violação de lei substantiva, concretamente o disposto no artigo 291º nº 2 do Código Civil, no que respeita à sua interpretação enquanto exceção à regra da retroatividade da nulidade ou da anulabilidade consagrado no artigo 289º do Código Civil, considerando a «ratio» do preceito e o circunstancialismo de estarmos já, e tão-só, a discutir as consequências de uma venda realizada pelo administrador da insolvência que foi anulada nos termos do disposto no artigo 195º do CPC em processo distinto e prévio.

2. As instâncias condenaram ao insucesso a pretensão da recorrente ao aproveitamento dos efeitos retroactivos da anulação de venda feita pelo AI, em que os seus elementares direitos de credora garantida pelo direito de retenção haviam sido violados, por entenderem verificados em relação aos 4ºs RR., adquirentes do último negócio da cadeia de transmissão inválida, todos os requisitos do art. 291º do CC.

3. A recorrente não se conforma com o decidido, por entender injusto, desproporcionado, desconforme com a «ratio» do preceito e denegatório de uma tutela jurisdicional efectiva consagrada no artigo 20º nº 5 da CRP, na medida em que permite que o direito que lhe foi reconhecido pelo acórdão da Relação de 29-09-2016 fique completamente esvaziado.

4. No que concerne à teleologia do artigo 291º do Código Civil, e seguindo o entendimento de douto acórdão desse superior tribunal acima citado, a intenção do legislador não foi a de levar a protecção de terceiros ao ponto de sacrificar gravemente os interessados na nulidade e anulabilidade; estamos num sistema de registo meramente declarativo, cujas garantias de exatidão são distintas de outros sistemas, como o alemão (tal como recorda a citação de Rui Alarcão); pelo que só se justificará o sacrifício do direito do titular verdadeiro, na medida da sua “própria negligência ou inércia em impugnar o negócio inválido, durante um período de três anos, após a sua conclusão”; mais não pretendendo a lei, com este prazo, dar ao verdadeiro proprietário uma oportunidade de repor a verdade jurídica material, considerando que decorrido o mesmo, o seu interesse deixa de ter protecção.

5. Sendo o centro do raciocínio do legislador o comportamento do verdadeiro titular, na ponderação dos interesses em conflito, o dos terceiros adquirentes e o da recorrente, deverá prevalecer o desta, já previamente tutelado e reconhecido judicialmente pelo douto ac. Relação do Porto de 29-09-2016, de forma a garantir a estabilidade da Ordem Jurídica, tanto mais quanto nenhuma inércia ou comportamento negligente lhe pode ser assacado no sentido da impugnação do negócio inválido praticado pelo AI na insolvência (bem pelo contrário, essa inércia existiu por parte do tribunal, que não registou o pedido de anulação, nem o decidiu contemporaneamente).

6. Pela manifesta similitude para com a situação tratada na presente acção, tem toda a pertinência defender a aplicação da boa jurisprudência do douto acórdão desse Supremo Tribunal de Justiça de 26/10/2004 (P. P. 04A1504):

«Foi no art. 291º que o legislador estabeleceu para a generalidade das nulidades (...) os limites que entendeu pertinentes à regra da retroactividade dos efeitos da declaração de nulidade ou de anulação, determinando que não ficariam prejudicados por tais declarações apenas os direitos adquiridos sobre bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, a título oneroso, por terceiros de boa-fé, desde que o registo de aquisição seja anterior ao registo da acçãode nulidade ou anulação... Todavia, os referidos terceiros não beneficiarão já dessa protecção, se no prazo de 3 anos posteriores à conclusão do negócio (por via do qual adquiriram os direitos em questão) fôr proposta e registada a acção de nulidade ou de anulação. Por conseguinte, fora desta protecção ficam todos os demais direitos adquiridos por terceiro de boa fé, à sombra do negócio nulo ou anulado, aplicando-se em relação a eles o regime geral, isto é, os princípios gerais sobre a matéria.

Foi esta, ao que nos parece, a opção do legislador, que, podendo ser criticável em termos de direito a constituir, não pode ser ignorada em termos de direito constituído. É, de resto esta a orientação dominante na doutrina. (...) Estando em causa bens imóveis, adquiridos onerosamente, o Art. 291º protege dos efeitos da declaração de nulidade os direitos adquiridos sobre esses bens por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade (nº 1). Porém o nº 2 do preceito nega essa protecção se a acção for proposta e registada dentro dos 3 anos posteriores à conclusão do negócio. Como é óbvio, a acção que deve ser proposta e registada dentro dos 3 anos posteriores à conclusão do negócio, é a acção de nulidade ou de anulação do negócio originário, no caso, do negócio simulado. Trata-se, pois, do 1º negócio, pois é a nulidade dela que vai afectar a validade do 2º negócio, por via do qual o terceiro subadquirente adquiriu os direitos que se pretende proteger. É o que resulta directamente do texto do nº 2 do preceito ao referir-se à acção, que não pode ser outra senão a acção de nulidade ou anulação referenciada no nº 1. Mas, por outro lado, os 3 anos referidos no nº 2 do preceito em análise, contam-se desde a conclusão do negócio, sendo que tal negócio há-de ser o que for celebrado entre o simulado adquirente e o terceiro subadquirente, não o negócio original gerador da nulidade sequencial. É que o terceiro que está em causa quando se trata de fazer valer a protecção do art.291º é o subadquirente depois da celebração do negócio inválido, daí que só o negócio em que este interveio pode interessar. É ele que se consolida. (conf. a este respeito o elucidativo parecer do Prof. Oliveira Ascensão junto aos autos. No mesmo sentido, embora sem fundamentação quanto a este ponto concreto, cof. o parecer do Prof. Menezes Cordeiro, igualmente junto aos autos.) (...) Ora, sabemos que a Ré G (simulada adquirente) vendeu à Ré H os prédios em questão em 6/5/88, que essa aquisição foi registada na mesma data e que a acção anterior em que foi declarada a nulidade por simulação das compras e vendas que tiveram por objecto os mesmos prédios ora em causa foi proposta em 22/1/88 e registada em 16/6/88. Por conseguinte, embora o registo da acção de nulidade tenha sido posterior ao registo da aquisição pela Ré H (subaquisição), o certo é que essa acção foi registada pelos AA. dentro dos 3 anos posteriores ao negócio da terceira subadquirente (e havia sido proposta antes da celebração do negócio). Como tal, os direitos da terceira subadquirente ora recorrente, não podem ser reconhecidos nos termos do nº 1 do art. 291º, por se verificarem os pressupostos previstos no nº 2, não interessando saber se a recorrente estava ou não de boa fé.»

7. Nos presentes autos, tal como naquele caso, a anulação do primeiro negócio inválido da cadeia de negócios deu-se em processo distinto e em data anterior, quer à propositura da acção em dissídio, quer em data anterior à própria celebração do negócio pelos 4ºs RR. que pretendem usufruir do benefício do 291º, tendo, de igual forma, a acção sido registada nos três anos posteriores à celebração do negócio em que intervieram os terceiros adquirentes, e que eles pretendem consolidar.

8. Na verdade, a presente acção foi proposta escassos meses após a escritura de 22-05-2017 celebrada entre 3ºs e 4ºs RR [a acção foi intentada em 06-10-2017, registada em 09-10-2017, menos de cinco meses após o dia 22-05-2017], pelo que, no caso concreto, não faz qualquer sentido apelar ao interesse na estabilidade do negócio no âmbito do tráfico jurídico – fundamento da protecção do terceiro para efeitos do art. 291º – uma vez que, mal adquiriram, os 4ºs RR. foram confrontados com a presente acção.

9. Se alguma estabilidade há a preservar, insistimos, deve ser a decorrente da decisão proferida pelo Tribunal da Relação em 29-09-2016 que, pondo cobro a uma gravosa e intolerável situação de violação dos direitos da autora/recorrente enquanto credora reclamante em insolvência titular de crédito de natureza garantida, anulou todo o inquinado procedimento de venda e adjudicação da fracção autónoma à 1ª Ré pelo AI., decisão jurisdicional cuja força de caso julgado externo é incontestável, vinculando erga omnes e que, por isso, deverá prevalecer e, dessa sim, ser garantida a estabilidade na Ordem Jurídica, sob pena do total esvaziamento da mesma, para além de se promover uma solução em que o Direito e a Justiça não se realizam.

10. Cremos forçoso, na especificidade do caso, concluir-se que os 4ºs RR. e recorridos não merecem a protecção que as instâncias lhes reconheceram, visto que a presente acção foi proposta e registada dentro do prazo de 3 anos posteriores à conclusão do negócio por via do qual adquiriram o direito em questão e, bem assim, a recorrente peticionou a anulação da venda (por força do 195º CPC) dentro dos três anos posteriores ao 1º negócio da cadeia.

11. O acórdão recorrido erra, pois, na subsunção que faz dos factos ao direito no que concerne ao «dies a quo» do prazo a que se refere o nº 2 do preceito, bem como no que se refere à interpretação do preceito, em que não atendeu à «ratio legis» da norma, àquilo que efectivamente o legislador pretendeu com o artigo 291º do Código Civil, falhando na interpretação teleológica do normativo.

12. A vossa superior apreciação é de extrema importância, pois, para uma melhor aplicação do direito e realização da justiça.

Nos indicados termos e nos melhores de direito, por V.as Exas superiormente supridos, deve ser concedido provimento à Revista e revogado o acórdão que julgou a acção improcedente, substituído por outro que, na procedência da acção e, como pedido, declare a nulidade consequente dos negócios celebrados entre os RR. sobre o prédio identificado nos autos, ordenando o cancelamento dos correspondentes registos e a restituição da fracção autónoma a massa insolvente e à retenção/posse da recorrente, como previamente sucedia, por ser de lei de sã aplicação da justiça.»

11. Os recorridos FF e GG apresentaram contra-alegações, nas quais formularam as seguintes conclusões:

«A) - Funda a Recorrente o seu propósito recursivo no art. 672º nº 1 e 2, alíneas a) e c) do CPC, ao considerar, designadamente, que está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é necessária para uma melhor aplicação do direito, conforme al. a) dos preceitos citados, qual seja a interpretação conjugada do artigo 289º com o artigo 291º do Código Civil, quer no que respeita ao «dies a quo» da moratória a que alude o nº 2 deste preceito, quer no que respeita à teleologia da norma de exceção;

B) Ora, quanto ao conteúdo do conceito vertido na alínea a) – estar em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – vem-se sedimentando o entendimento de que a relevância jurídica de uma questão, apresentando-se como autónoma, deve revelar-se pelo elevado grau de complexidade que apresenta, pela controvérsia que gera na doutrina e/ou na jurisprudência ou ainda quando, não se revelando de natureza simples, se revista de ineditismo ou novidade que aconselhem a respetiva apreciação pelo Supremo, com vista à obtenção de decisão suscetível de contribuir para a formação de uma orientação jurisprudencial, tendo em vista, tanto quanto possível, a consecução da sua tarefa uniformizadora.

C) Ou seja, para efeitos da melhor aplicação do direito e sua clara necessidade, a relevância jurídica será de considerar quando a solução da questão postule análise profunda da doutrina e da jurisprudência, em busca da obtenção de “um resultado que sirva de guia orientadora a quem tenha interesse jurídico ou profissional na sua resolução”, havendo a necessidade de apreciação de “ser aferida pela repercussão do problema jurídico em causa e respetiva solução na sociedade em geral, para além daquela que sempre terá, em maior ou menor grau, nos interesses das partes no processo”;

D) A Recorrente, limita-se a afirmar que a especial pertinência da reapreciação está na circunstância de o primeiro negócio da cadeia de negócios inválidos – o negócio original gerador da nulidade sequencial – já ter sido anulado por douto acórdão da Relação, transitado, e em que, nos autos, apenas é peticionada a nulidade consequente das vendas posteriores, porque «a non domino»;

E) Não sendo suficiente para dar cumprimento àquele ónus, limitando-se, na sua motivação, a defender o que entende por terceiro à luz do artigo 291º do C.C. relativamente aos efeitos da anulação da venda do imóvel de 30.07.2014, omitindo, assim, a identificação da questão relativamente à qual entende verificar-se o pressuposto de excecionalidade e que pretende ver reapreciada, à qual deve dirigir-se a justificação sobre a pretendida reapreciação;

F) Verificando-se, assim, a inadmissibilidade do recurso de revista, por não preencher o pressuposto vertido na alínea a) dos n.1 e n.2 do artigo 672º do C.P.C;

G) Naufraga também a reapreciação da decisão, ao abrigo da alínea c) do mencionado normativo invocado pela Recorrente;

H) Alega a Recorrente que o acórdão proferido nos autos pelo Tribunal da Relação do Porto está, pela posição que assume em relação ao início do prazo de contagem dos três anos, em contradição com douto acórdão do STJ de 26/10/2004, proferido no P. nº 04A4504, publicado no site da dgsi, aresto tirado em situação que tem uma flagrante similitude com a tratada nos presentes autos;

I) Ora, conforme Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo: 309/19.0T8ALM-B.L1.S1, Relator: VIEIRA E CUNHA, acessível in www.dgsi.pt: “Nesta matéria de contradições entre acórdãos, e servindo-nos do desenvolvimento do Ac. S.T.J. 7/6/2018, p. 2877/11.5TBPDL-D.L2.S1 (Maria Rosa Oliveira Tching), a jurisprudência deste Supremo Tribunal vem afirmando que importa que a invocada oposição de acórdãos seja frontal e não apenas implícita ou pressuposta: Ac. STJ 20.07.2017, p.755/13.2TVLSB.L1.S1 A; 25.05.2017, p.1738/04.PTBO.P1.S1-A; 28.01.2016, p.291/1995.L1.S1; 13.10.2016, p.2276/10.6TVLSB.L1.S1-A;26.05.2015, p.227/07.OTBOFR.C2-S1-A; 20.3.2014, p.1933/09.4TBPFR.P1.S1; 4.07.2013, p. 2625/09.0TVLSB.L1.S1-A)”.

J) “E, finalmente, que tal oposição incida sobre a mesma questão de direito fundamental, o que pressupõe que as decisões em confronto tenham subjacente um núcleo factual idêntico ou coincidente, na perspectiva das normas ali diversamente interpretadas e aplicadas – cf. Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, 9ª ed., págs. 122 e 123.”

K) Entendemos, assim, que, o caso sub judice, respeita a uma ação anulatória de contratos sucessivos de compra e venda sobre um imóvel, fundada no disposto nos arts.º 289.º e 291.º do Código Civil, com base numa alegada venda a non domino de um prédio urbano, melhor identificado nos Autos;

L) Contrapondo, para efeito da alínea c), do n.º 1, do artigo 672.º do CPC, o Acórdão recorrido face ao acórdão-fundamento do STJ, de 26-20-2004, no âmbito do processo n.º 04A1054, invocado pela Recorrente, cremos que não se verifica neste cotejo jurisprudencial o requisito da identidade das questões de facto e das normas jurídicas, rectius questões de direito, subjacentes ao acórdão recorrido e ao acórdão fundamento;

M) Não existindo a mínima correspondência factual entre as situações inerentes aos acórdãos analisados;

N) Enquanto no Acórdão-recorrido presenciamos uma sequência de negócios jurídicos, todos eles concluídos e registados antes da entrada da presente ação, na sequência de Insolvência Pessoal que correu termos no processo principal, nos quais os intervenientes agiram de boa-fé, de pleno direito registral, porquanto proprietários devidamente titulados;

O) No Acórdão-fundamento encontramo-nos perante uma situação fáctica diversa, no qual no tema de fundo encontram-se negócios jurídicos simulados, nos quais não se verifica relativamente aos terceiros, inevitavelmente, o pressuposto fundamental de aplicação do instituto da proteção de terceiros adquirentes, a sua boa-fé;

P) E, no termo desta cadeia negocial encontramos uma aquisição por terceiro, o qual nunca gozaria da proteção conferida pelo art.º 291.º CC, ou pelo também debatido art.º 243.º CC, precisamente, porque não gozaria do pressuposto fundamental, a boa-fé, pressuposto que quanto aos Recorridos, 4.ºs Réus, e ainda à Interveniente Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL, pelo contrário, nunca ficou abalado nos presentes Autos;

Q) Ou seja, inexiste qualquer contradição entre as decisões, nem sequer uma contradição frontal, relevante para efeitos do disposto no artº 672º n.1 al. c) CPCiv.;

R) Pelo exposto, por inadmissível, nos termos da alínea c) do n.1 e n.2 do artigo 672º do C.P.C., deve, também, com este fundamento, o presente recurso de revista ser rejeitado.

Sem prescindir, ainda:

S) Subscrevendo, na   integra, as Contra-Alegações            e Conclusões apresentadas pela Interveniente Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL, e porque não merece qualquer reparo ou censura o Douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, sempre será de negar provimento ao recurso interposto pela Autora, confirmando-se e mantendo-se o Douto Acórdão proferido, por ser da mais sublime justeza.

Termos em que, e nos demais de direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deve:

- ser rejeitado o recurso revista excecional interposto, por inadmissível;

- sempre será de negar provimento ao presente recurso de revista excecional, mantendo-se, consequentemente, a douta decisão proferida pelo tribunal a quo, e confirmada pelo douto acórdão proferido pelo venerando tribunal da Relação do Porto, fazendo-o, V. Ex.as estarão a fazer inteira e sã justiça

12. Tendo sido invocadas nulidades do acórdão recorrido, o TRP, por acórdão da Conferência, concluiu que as mesmas não eram procedentes. Todavia, deu provimento parcial à reclamação sobre a factualidade provada, nos termos que infra se assinalam.

13. A Formação a que alude o art.672º, n.3 do CPC admitiu a revista, como excecional, com fundamento na alínea c) do n.1 do art.672º do CPC, por ter entendido existir oposição entre o acórdão recorrido e o invocado acórdão fundamento, ou seja, o acórdão do STJ de 26.10.2004, proferido no processo n. 04A4504.

*

II. APRECIAÇÃO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. Admissibilidade e objeto do recurso

1.1. O presente recurso foi admitido como revista excecional, pela Formação a que alude o art.672º, n.3 do CPC, com base na alínea c) do n.1 do art.672º, por se ter entendido existir oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento.

1.2. Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, nos termos do art.635º, n.4 do CPC, bem como pelo âmbito de admissibilidade da revista excecional, conclui-se que são as seguintes as questões a apreciar na presente revista:

- se deve ser declarada a nulidade das sucessivas vendas da fração autónoma identificada no n.1 dos factos provados, por serem vendas a non domino, com as inerentes consequências legais;

- ou se os adquirentes se encontram protegidos pelo disposto nos números 1 e 2 do art.291º do CC, enquanto terceiros de boa-fé, por terem decorrido mais de 3 anos entre a primeira venda e a propositura da presente ação.

2. A factualidade assente.

As instâncias deram como provados os seguintes factos:

« 1) Por sentença de 18 de abril de 2012, proferida nos autos de ação ordinária n.542/12...., da ... Vara de Competência Mista ... Tribunal Judicial da Comarca ..., transitada em julgado a 24 de setembro de 2012, foi: (i) resolvido o contrato-promessa que a Autora havia celebrado com HH acerca da fração autónoma designada pelas letras ..., inscrita na matriz predial urbana da freguesia ... sob o art. ...41.º – CC e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...22.º – CC da freguesia ...; (ii) Condenado o promitente vendedor ao pagamento do dobro do sinal prestado (€ 103.000,00 x 2); e, uma vez que houve tradição da coisa, (iii) foi reconhecido à aqui Autora AA o direito de retenção sobre a indicada fração autónoma, para garantia do pagamento por HH do montante de € 206.000,00, acrescido de juros, tudo conforme certidão judicial apresentada com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
2) A aquisição do direito de propriedade sobre a identificada fração autónoma encontrava-se inscrita, na CRP, a favor do referido HH, conforme certidão predial apresentada com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
3) Esse HH foi declarado insolvente, por sentença de 28 de novembro de 2013, proferida na acção de insolvência n.º 9710/13...., a que a presente foi apensada, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
4) A fracção autónoma foi apreendida para a massa insolvente, conforme auto junto ao apenso de apreensão (A), sob a referência Citius ...42, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

5) Essa apreensão foi registada, no registo predial, pela apresentação ...68, de 20 de janeiro de 2014, conforme certidão predial apresentada com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
6) Por sentença de 28 de abril de 2016, transitada em julgado, proferida no apenso B (reclamação de créditos) da referida ação de insolvência, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido, foi reconhecido à Autora o indicado crédito de €206.000,00, garantido por direito de retenção sobre a identificada fração autónoma, que constitui a verba n.º 1 do auto de apreensão de bens.
7) Por adjudicação no processo de insolvência, na sequência de venda por propostas em carta fechada, foi a fração autónoma transmitida, em 30 de julho de 2014, pelo então administrador da insolvência, Dr. II, à aqui 1.ª Ré, a sociedade IS.JP, Unipessoal, Lda., pelo preço de €20.000,00, conforme documentos juntos no incidente de liquidação sob as referências Citius ...82 e ...70, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
8) Essa transmissão foi objeto de registo na Conservatório do Registo Predial ... através da apresentação ...02, de 5 de agosto de 2014, conforme certidão predial apresentada com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
9) A fração autónoma foi entregue pelo administrador da insolvência à referida adquirente, conforme referência Citius ...74, no apenso de liquidação, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
10)Por escritura de 14 de outubro de 2014, JJ, na qualidade de gerente da 1.ª Ré, declarou vender aos segundos Réus, que declararam comprar, pelo preço de € 30.000,00, a identificada fração autónoma, conforme certidão junta com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
11) Esse facto foi inscrito no registo predial no dia 14 de outubro de 2014, através da apresentação n.º ...48, conforme certidão predial apresentada com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
12) A Autora apresentou, no dia 26 de novembro de 2014, requerimento, no apenso de liquidação a pedir a anulação da venda, por não ter sido ouvida antes da sua realização, conforme documento com a referência Citius ...40.

13) Por acórdão de 29 de setembro de 2016, transitado em julgado, naquele apenso, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido, o Venerando Tribunal da Relação do Porto, declarou “a nulidade, por preterição de formalidade essenciais de todo o processado subsequente à assembleia de credores de 9 de janeiro de 2014, incluindo a venda realizada e adjudicação do imóvel vendido [rectius, da fração autónoma vendida], regressando o imóvel para a massa insolvente.

14) Na fundamentação desse acórdão escreveu-se que “resulta dos autos que o AI. em violação flagrante do disposto no art.º 164º do CIRE, desde 9 de Janeiro de 2014 (...) data em que ocorreu a Assembleia de Credores, nunca mais deu conhecimento de qualquer passo processual à credora reclamante, que bem conhecia ou devia conhecer ante a sentença de graduação de créditos proferida, na qual a mesma figura como beneficiária do pagamento do seu crédito em momento anterior ao do BCP, esquecendo por completo que a mesma existe e que tem em relação a ela, como credora com garantia real que é, especiais obrigações, designadamente de a ouvir quanto à modalidade e preço da venda, procedimento que não teve em relação ao credor BCP.

Assim (...) este notificou o credor hipotecário BCP para se pronunciar quanto ao valor a anunciar, disso dando conhecimento ao tribunal, notificou o BCP da frustração da venda por meio de propostas, da nova diligência de venda com baixa de preço (critério matemático) “ao melhor preço oferecido, na tentativa de se evitarem despesas com a publicação, convidando-se expressamente o credor hipotecário a requerer a adjudicação, a fim de futuramente não vir alegar que o prédio foi vendido ao desbarato e que ficou prejudicado na sua qualidade de garantido, e bem assim, dos demais credores (que nada recebem).” ... comunicações que nunca o AI cumpriu para com a credora ora reclamante, ela também titular de garantia real sobre o bem imóvel em causa, assim se verificando um tratamento absolutamente desigual entre e para os credores em causa, com evidente prejuízo para a credora reclamante, a qual não pôde reagir em defesa do seu crédito, designadamente requerer a adjudicação, com dispensa de depósito de preço, como lhe assiste nos termos do disposto no artigo 815º nº 1 do CPC, o que não pôde fazer, pois tal possibilidade não lhe foi concedida, por omissão de notificação pelo AI de todas e quaisquer diligências respeitantes à venda da fração (mormente sobre o preço e modalidade da venda e bem assim sobre a data da abertura de propostas e resultado desta).

Assim como também não foi, apesar de credora garantida, notificada da proposta apresentada pela sociedade adquirente, tudo em clara e manifesta violação do disposto nos nºs 2 e 3 do art. 164º e 165º do CIRE e ainda do disposto, nomeadamente, no artigo 815º nº 1 do CPC, aplicável por força do citado art. 165º e que faculta ao credor garantido a possibilidade de pedir a dispensa de pagamento do preço, ao requerer a adjudicação, para além de, nos termos do nº 3 daquele normativo, poder propor a aquisição, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado.”
15) Por escritura de 9 de novembro de 2016, os segundos Réus declaram vender aos terceiros Réus, que declararam comprar, pelo preço de € 36.000,00, a identificada fração autónoma, conforme certidão junta com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
16) Esse facto foi inscrito no registo predial no dia 10 de novembro de 2016, através da apresentação n.º ...70, conforme certidão predial apresentada com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

17) Por despacho proferido na ação de insolvência no dia 5 de maio de 2017, que aqui é dado por integralmente reproduzido, o administrador da insolvência, Dr. II, foi destituído.
18) Por escritura de 22 de maio de 2017, os terceiros Réus declaram vender aos quartos Réus, que declararam comprar, pelo preço de € 50.000,00, a identificada fração autónoma.

19) Nessa mesma escritura, KK, na qualidade de representante da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL, declarou, em nome da sua representada, emprestar aos quartos Réus a quantia de € 40.000,00, tendo estes declarado aceitar o empréstimo, para pagamento do preço referido no ponto anterior.
20) Os quartos Réus declararam ainda constituir hipoteca voluntária sobre a fração adquirida em garantia da restituição da quantia que lhes foi emprestada, tudo conforme certidão junta com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
21) O facto referido no ponto 19) foi inscrito no registo predial na mesma data, através da apresentação n.º ...95, conforme certidão predial apresentada com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
22) Ainda na mesma data, foi inscrita no registo predial a constituição da hipoteca referida no ponto 20), conforme certidão predial apresentada com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
23) A primeira Ré não teve qualquer outra intervenção no processo de insolvência para além da referida em 7) a 9).
24) Os segundos, terceiros e quartos Réus e, bem assim, a interveniente CCA, não tiveram qualquer intervenção no processo de insolvência e nunca foram notificados para os respetivos termos.

25) Os quartos e os representantes da interveniente CCA não tinham conhecimento dos vícios processuais referidos no acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto de 29 de setembro de 2016 quando adquiriram a fração autónoma.
26) Não tiveram conhecimento do requerimento apresentado pela Autora a pedir a anulação da venda da fração autónoma no processo de insolvência nem do processado a ele subsequente.
27) Os quartos Réus tomaram conhecimento que a fração se encontrava à venda através de anúncios divulgados pela Internet.
28) Decidiram-se pela sua aquisição com a intenção de a arrendar a terceiros, assim obtendo um rendimento.
29) A petição inicial da presente ação foi apresentada no dia 6 de outubro de 2017.

30) O seu registo foi efetuado no dia 9 de outubro de 2017, através da apresentação ...98, cf. conforme certidão predial sob a ref. Citius ...14, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.»

Em acórdão proferido pela Conferência, na sequência da interposição do recurso de revista, o tribunal recorrido, dando parcial provimento à pretensão formulada pela recorrente quanto à matéria de facto, aditou o seguinte facto provado:

«O 1º réu, JJ, é genro dos 2ºs réus, BB e CC.»

3. O direito aplicável.

3.1. A definição da solução normativa para o presente litígio tem por base factual uma sequência de acontecimentos que pode ser descrita, de modo sucinto, nos seguintes termos:

A autora dos presentes autos [AA] foi promitente compradora da fração autónoma descrita no ponto n.1 dos factos provados. O contrato-promessa, que tinha como promitente vendedor HH, foi resolvido, por decisão judicial, em 18.04.2012 (em ação movida pela mesma autora). Essa decisão condenou o promitente vendedor a pagar à autora o montante de 206.000,00 Euros (correspondente ao sinal em dobro) e reconheceu-lhe o direito de retenção sobre o referido imóvel. Em 28.11.2013, o promitente vendedor foi declarado insolvente e aquele imóvel foi apreendido para a massa insolvente. Não tendo a promitente compradora (agora autora) recebido o montante que lhe havia sido judicialmente reconhecido, reclamou o seu crédito nos autos da insolvência de HH, e viu o seu crédito reconhecido, bem como o direito de retenção.

Entretanto, o administrador da insolvência vendeu o referido imóvel, em 30.07.2014, à 1ª ré [IS.JP, Unipessoal, Ldª], por 20.000,00 Euros (tendo a adquirente registado a aquisição em 05.08.2014).

A autora não foi ouvida antes da realização desse negócio, apesar de o dever ter sido, como determina o art.164º, n.2 do CIRE, dado tratar-se de credora com direito de retenção sobre o imóvel alienado.

Em 14.10.2014, a 1ª ré vendeu aquele imóvel aos segundos réus, pelo preço de 30.000,00 Euros (tendo estes procedido ao registo no mesmo dia).

Em 26.10.2014, a agora autora, na qualidade de credora com garantia real, requereu, no apenso de liquidação da massa insolvente, a anulação da venda feita pelo administrador da insolvência, por ter havido preterição das regras aplicáveis ao processo de venda do imóvel em causa. A nulidade dessa venda veio a ser definitivamente declarada pelo acórdão do TRP, de 29.09.2016 (transitado em julgado), com o consequente regresso do imóvel alienado à massa insolvente.

Todavia, depois dessa decisão judicial, os segundos réus venderam o referido imóvel aos terceiros réus, em 09.11.2016, pelo preço de 36.000,00 Euros (tendo os adquirentes procedido ao registo em 10.11.2016).

Em 22.05.2017, os terceiros réus venderam aquele imóvel aos quartos réus, por 50.000,00 Euros (tendo os adquirentes procedido ao registo no mesmo dia).

A presente ação deu entrada em juízo no dia 06.10.2017.

3.2. Desta cronologia de acontecimentos emerge o conflito entre a pretensão da autora em ver o imóvel regressar à massa insolvente, por via da anulação das sucessivas vendas, para poder ver satisfeito o crédito que lhe havia sido reconhecido, e as pretensões dos sucessivos adquirentes em verem tuteladas as respetivas aquisições enquanto terceiros de boa-fé.

O acórdão recorrido, seguindo o mesmo entendimento que havia sido seguido pela primeira instância, centrou a sua fundamentação no modo de contagem do prazo de 3 anos, previsto no n.2 do art.291º do CC, considerando que esse prazo devia ser contado entre o momento da primeira venda do imóvel e o momento em que a presente ação entrou em tribunal. Justificou a sua decisão nos seguintes termos:

«Dúvidas não podem, pois, restar de que o referido n. 2 do art.º 291º do CC, ao dispor que os direitos do terceiro de boa-fé não serão reconhecidos se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio, se está a referir necessariamente à acção de anulação ou declaração de nulidade do acto ou negócio de que deriva o direito do alienante e não ao negócio translativo para o adquirente (terceiro de boa-fé)

E acrescentou:

«Pode, pois, dizer-se que nos casos em que tenha já decorrido o prazo de três anos, sobre a data da conclusão do negócio originariamente inválido – sem que seja proposta e registada a respectiva acção que o quer invalidar – consolida-se na esfera jurídica do terceiro, o direito que este já previamente adquiriu quando obteve o registo do respectivo “facto aquisitivo”.

Regressando ao caso concreto, impõe-se referir o que a dado passo foi feito constar e bem na sentença recorrida:

“Enquadrando a matéria de facto que resultou provada nas considerações teóricas que antecedem, não havendo dúvida de que estamos perante negócios onerosos, afigura-se possível afirmar que os quartos Réus cumpriram o ónus de provar que, no momento em que adquiriram, desconheciam a anulação do primitivo negócio e as razões que levaram a esse resultado. E desconheciam sem culpa, tendo em conta, a um tempo, o registo de todos os negócios anteriores da cadeia e, a outro, o lapso de tempo já decorrido desde o primeiro deles, factos que são susceptíveis de gerar confiança. (…)

Uma vez que o registo dessa aquisição é anterior ao registo da presente acção e que este foi lavrado quando já haviam decorrido mais de três anos sobre a data do primeiro negócio da cadeia, tem de concluir-se que estes Réus adquiriram o direito de propriedade sobre a fracção. Dito de outro modo – e respondendo directamente à questão enunciada – é-lhes inoponível a anulação do primeiro negócio da cadeia. (…)

Perante isto, não é possível o reingresso da fracção na massa insolvente e fica prejudicado o conhecimento da validade dos negócios intermédios, cuja eventual declaração de nulidade não teria qualquer efeito prático em relação à Autora. Trata-se, portanto, nesta parte, de uma situação de inutilidade da lide de conhecimento superveniente.”

Em suma, bem decidiu o Tribunal “a quo” quando considerou que havendo já decorrido o prazo de três anos sobre a data da conclusão do negócio originariamente inválido, sem que seja proposta e registada a respectiva acção de invalidade, se consolidou na esfera jurídica dos 4ºs RR e da Interveniente CCA., o direito que estes já previamente adquiriram quando obtiveram o registo dos respectivos “factos aquisitivos/ constitutivos”.

Em conclusão, foram correctamente interpretadas e aplicadas as regras que decorrem do previsto no art.º 291º do Código Civil

A posição da recorrente, contrária à do acórdão recorrido, pode considerar-se sucintamente definida no ponto n.1 das suas conclusões, quando afirma: « A presente revista tem por fundamento a violação de lei substantiva, concretamente o disposto no artigo 291º nº 2 do Código Civil, no que respeita à sua interpretação enquanto exceção à regra da retroatividade da nulidade ou da anulabilidade consagrado no artigo 289º do Código Civil, considerando a «ratio» do preceito e o circunstancialismo de estarmos já, e tão-só, a discutir as consequências de uma venda realizada pelo administrador da insolvência que foi anulada nos termos do disposto no artigo 195º do CPC em processo distinto e prévio.»

Neste quadro, os problemas a apreciar na presente revista são, assim, os de saber se os adquirentes se encontram protegidos pelo disposto nos números 1 e 2 do art.291º do CC, enquanto terceiros de boa-fé, por terem decorrido mais de 3 anos entre a primeira venda e a propositura da presente ação ou, não existindo essa proteção, se deve ser declarada a nulidade das sucessivas vendas da fração autónoma identificada no n.1 dos factos provados, por serem vendas a non domino, com as inerentes consequências legais.

3.3. Decidindo nos termos expostos, o acórdão recorrido inscreve-se na corrente jurisprudencial e doutrinal que entende que a contagem do prazo previsto no n.2 do art.291º do CC, para efeitos de proteção do terceiro de boa-fé, deve fazer-se a partir do primeiro negócio inválido e não do último, na hipótese de existir uma cadeia de sucessivos negócios afetados pela falta de legitimidade dos transmitentes (como acontece no caso concreto).

A recorrente, pelo contrário, parece fazer apelo ao seguimento da doutrina e jurisprudência que defende que o prazo previsto no n. 2 do art. 291º do CC se deve contar, não a partir do primeiro negócio inválido, mas sim a partir da conclusão do último negócio oneroso por via do qual o terceiro de boa-fé adquiriu o seu direito.

Porém, a solução do caso dos presentes autos não passa diretamente pela tomada de posição quanto a uma ou a outra dessas correntes sobre a interpretação do modo de contagem do prazo previsto no n.2 do art.291º do CC, pois tal não seria decisivamente relevante, porquanto no caso concreto não existe apenas uma ação de anulação dos atos da cadeia de transmissões, mas sim duas ações.

O acórdão recorrido desconsiderou o facto de a 1ª venda já ter sido anulada por decisão judicial, pois não toma em conta o efeito normativo dessa decisão quando integrou esse 1º negócio na cadeia de transmissões relevantes para efeitos de contagem do prazo de 3 anos a que se refere o n.2 do art.291º do CC.

Efetivamente, para além da presente ação (entrada em tribunal em 06.10.2017), a mesma autora já tinha pedido a anulação da primeira venda, no apenso de liquidação do processo de insolvência, em 26.10.2014, tendo obtido definitivamente ganho de causa com o acórdão do TRP de 29.09.2016. Assim, a aplicação que o acórdão recorrido faz do n.2 do art.291º do CC não poderia ter desconsiderado o facto de a primeira venda já ter sido anulada quando os terceiros e os quartos réus procedem às respetivas aquisições.

O acórdão recorrido (seguindo a decisão da primeira instância) limitou-se, na essência, a fazer o seguinte raciocínio: o primeiro negócio foi realizado em 30.07.2014 (e registado em 05.08.2014) e a presente ação entrou em tribunal em 06.10.2017. Logo, já tinha decorrido o prazo de 3 anos, previsto no n.2 do art.291º do CC, pelo que os últimos adquirentes estariam protegidos enquanto terceiros de boa-fé contra a arguição da nulidade do primeiro negócio da cadeia de transmissões.

3.4. Mas não é assim. Esse é um raciocínio que desconsidera uma parte da factualidade provada, pois como consta dos factos assentes n.13 e n.14, com a anulação do primeiro negócio, o imóvel regressou à massa insolvente de HH, encontrando-se a sua prévia apreensão registada em 20.01.2014 (facto provado n.5).

A primeira venda foi realizada em 30.07.2014 e a ação de anulação dessa venda foi proposta em 26.10.2014. Logo, nunca o segundo adquirente (que adquiriu em 14.10.2014) poderia ser protegido como terceiro de boa-fé, porque não havia ainda decorrido o prazo de 3 anos a que se refere o art.291º, n.2 do CC. Por outro lado, entre a data em que os segundos adquirentes vendem o imóvel, em 09.11.2016, e a data em que a presente ação é proposta, 06.10.2017, também não havia passado o prazo de 3 anos. E ainda que se contasse o prazo a partir da aquisição dos segundos alienantes, 14.10.2014, esse prazo de 3 anos não se encontraria esgotado quando esta ação é proposta e registada.

Deste modo, aqueles que adquiriram a non domino, de boa-fé, não poderão beneficiar da proteção prevista no art.291º do CC.

3.5. No art.291º do CC está tipicamente prevista a hipótese de existir uma única ação de anulação, cujo resultado conflitua com os direitos adquiridos por terceiros de boa-fé. Porém, no conflito a que respeitam os presentes autos existem duas ações, nas quais a mesma autora, enquanto terceira interessada, invocou a nulidade das vendas realizadas. Face a esta especificidade do caso concreto, a contagem do prazo previsto no n.2 do art.291º do CC não pode ser feita como se a primeira ação não tivesse existido, pois a correspondente decisão, tendo transitado em julgado, produziu efeitos, quanto à primeira venda, dentro e fora do processo de insolvência (como decorre do art.619º, n.1 do CPC).

A tutela da confiança dos terceiros adquirentes de boa-fé (fundada na aparência da legitimidade do transmitente ou transmitentes), que decorre da solução consagrada no art.291º do CC, não poderá prevalecer sobre uma decisão judicial (transitada em julgado) que anulou a primeira venda antes de terem sido realizadas as vendas nas quais foram adquirentes, respetivamente, os terceiros e os quartos réus, porque não é essa a hipótese legalmente prevista.

Aquela norma tutela a estabilidade de uma situação fáctica que não é posta em causa por qualquer interessado durante o prazo de 3 anos. O legislador entendeu, assim, que esse era um tempo suficiente para que os interessados na nulidade do negócio reagissem judicialmente. Decorrido esse lapso de tempo, sem haver reação judicial, a inércia dos eventuais interessados na nulidade do negócio faz com que a tutela se transfira para o lado dos adquirentes de boa-fé.

No caso concreto, não se pode afirmar que tenha havido inércia da autora, pois esta invocou a nulidade da primeira venda (em 26.11.2014), no âmbito do processo de insolvência, nos termos do art.164º do CIRE, tendo essa nulidade sido judicialmente decretada por preterição das formalidades legais [nos termos dos artigos 195º e 839º, n.1, alínea c) do CPC, aplicável ex vi do art.17º do CIRE]. A primeira venda não foi, assim, anulada por falta de legitimidade do alienante, mas sim por violação de regras que disciplinam a venda em processo de insolvência (sendo, por isso, normas de ordem pública), que determinam a prévia audiência dos credores com garantia real sobre o imóvel a ser vendido (art.164º do CIRE).

Não tutelar o interesse da autora, que fez o que estava ao seu alcance, propondo atempadamente duas ações em tribunal, seria uma flagrante injustiça, pois o crédito que lhe foi reconhecido (e garantido com direito de retenção) seria incobrável, dada a insolvência do promitente vendedor.

É certo que a revogação do acórdão recorrido não acolhe os interesses dos adquirentes de boa-fé. Todavia, a solução que o legislador consagrou é clara (como supra exposto) e, sem pretendermos extravasar o âmbito do presente recurso, sempre se pode afirmar que, em termos gerais, os “adquirentes” em negócios a non domino (art.892º do CC) sempre terão direito a reaver o preço que pagaram nos termos dos artigos 289º e 894º do CC, enquanto efeito retroativo da nulidade.

3.6. Concluindo-se, nos termos supra expostos, que, no caso concreto, o prazo de 3 anos, previsto no n.2 do art.291º do CC, não se pode contar de forma linear, entre a data da primeira venda e a data da propositura da presente ação, porque a primeira venda foi anulada antes das aquisições dos terceiros e dos quartos réus, estes últimos não tinham ainda adquirido a tutela de terceiros de boa-fé quando a presente ação entrou em juízo.

Nestes termos, tem de ser declarada a consequência das vendas a non domino, prevista no art.892º do CC, ou seja, a nulidade dos negócios que tiveram como intervenientes os segundos, os terceiros e os quartos réus, pois o primeiro negócio, no qual foi adquirente a primeira ré, já havia sido anulado pelo acórdão do TRP, de 29.09.2016. Consequentemente, o imóvel objeto de tais negócios terá de ser restituído à massa insolvente de HH, com repristinação do registo da inerente apreensão.

Eliminando-se, assim, o efeito translativo dos negócios realizados, devem ser, de igual modo, cancelados os inerentes registos de aquisição bem como o registo da hipoteca inscrita sobre o imóvel em causa pelos quartos réus.

*

DECISÃO: Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o acórdão recorrido, e decide-se nos seguintes termos:

a) Declara-se a nulidade de todos os atos de alienação e de oneração do direito de propriedade sobre a fração autónoma descrita no ponto n.1 da factualidade provada, ocorridos depois da primeira venda (a qual já foi anulada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 29.09.2016);

b) Ordena-se o cancelamento dos registos inerentes a esses atos;

c) Ordena-se a restituição daquela fração à massa insolvente de HH, bem como a repristinação do registo da apreensão efetuado em 20.01.2014.

Custas: pelos recorridos, em partes iguais.

Lisboa, 17.01.2023

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Ricardo Costa (Declaração de Voto - Voto favoravelmente o acórdão, mas não acompanho a totalidade da fundamentação expressa no ponto 3.4., tendo em conta o desenquadramento entre a matéria assente nos factos provados 7) a 12) e os requisitos de aplicação do art. 291º, 1 e 2, do CCiv., tal como devidamente sublinhado nos pontos 3.3., 3.5. e 3.6.)

António Barateiro Martins

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).