IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
BOA FÉ
INVALIDADE SEQUENCIAL DO NEGÓCIO NULO OU ANULADO
ANULAÇÃO DA VENDA EXECUTIVA
TERCEIRO DE BOA FÉ
REGISTO
Sumário


I - O art. 291.º protege os terceiros adquirentes de boa fé contra os efeitos retroativos da declaração de nulidade e da anulação do negócio jurídico, operando como uma exceção ao princípio da retroatividade da declaração de nulidade ou da anulação do primeiro negócio de uma cadeia de negócios inválidos, por força do princípio da conservação dos negócios jurídicos
II - Os requisitos da tutela do terceiro subadquirente são: (i) declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis ou a bens móveis sujeitos a registo; (ii) aquisição onerosa; (iii) por um terceiro de boa fé; (iv) registo da aquisição do terceiro; (v) anterioridade do registo de aquisição em relação ao registo da ação de nulidade ou de anulação.
III - Estando verificados estes requisitos legais, o terceiro só adquire o direito quando já tenha decorrido o prazo de três anos sobre a data da celebração do contrato originariamente inválido sem que tenha sido proposta e registada a respetiva ação de invalidade.
IV - O terceiro adquirente de boa fé protegido pelo art. 291.º pode ser um adquirente em venda executiva, pois o critério decisivo para o funcionamento da norma não é a forma negocial, mas a boa fé do terceiro na titularidade do transmitente.
V - Desconhecendo os réus, sem culpa, o vício da venda executiva que veio a ser anulada, aquando da celebração da compra do imóvel (negócio oneroso) e tendo obtido o registo definitivo, tendo decorrido o prazo sobre a data da celebração da venda originariamente inválida sem que tenha sido registada a respetiva ação de invalidade, beneficiam da tutela concedida pelo art. 291.º do Código Civil, vendo a sua posição jurídica prevalecer perante a do verdadeiro proprietário.
VI - A má fé posterior não prejudica o adquirente que pode dispor do direito como titular legítimo, não dependendo a eficácia ou validade da transmissão da boa fé do próximo adquirente ou da natureza do negócio celebrado.
VII - Isto porque, o adquirente de boa fé que beneficie da tutela do art. 291.º, efetivamente, adquire o direito e, consequentemente, o sujeito passivo do facto jurídico originariamente inválido, o até ali titular do direito, deixa de o ser, uma vez que sobre uma mesma coisa não podem incidir direitos reais conflituantes.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO
           
AA e BB intentaram ação declarativa de processo comum contra CC e DD, EE e FF e Herança Indivisa aberta por óbito de GG.
           
Peticionaram:

- O reconhecimento do direito de propriedade do lote de terreno situado no lugar das ..., ..., descrito na CRP ... sob o nº ...87 de ...;
- O reconhecimento de que, por força da anulação da venda efetuada em 29.06.2001, pela Fazenda Nacional, aos primeiros réus CC e DD, estes não adquiriram qualquer direito que pudessem validamente transmitir;
- O reconhecimento de que não foram transmitidos quaisquer direitos aos segundos réus e 3ª ré, no âmbito das escrituras de 18.01.2002 e 17.07.2008 (compra e venda e doação, respetivamente);
- O cancelamento do registo das aquisições correspondentes;
- A condenação da terceira ré a entregar o imóvel aos autores e a abster-se da prática de atos contrários ao reconhecimento do direito de propriedade invocados pelos autores.
           
Alegaram, para tanto que o prédio em causa foi vendido aos primeiros réus no âmbito da execução fiscal nº ...7, que correu termos pelo Serviço de Finanças ... – 1;
Que os referidos réus venderam o prédio aos segundos réus e que estes o doaram à falecida filha, cuja a herança figura como terceira ré;
Mais referiram que a referida primeira venda foi anulada por sentença proferida no dia 25.11.2008 transitada em julgado.
E que os negócios jurídicos de compra e venda e de doação celebrados em 18-01-2002 e 17-07-2008, são nulos por disposição de coisa alheia, assistindo aos autores o direito à restituição do prédio.

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Contestaram os réus defendendo a inoponibilidade da nulidade da venda fiscal efetuada ao 1º Réu, relativamente aos direitos adquiridos pelo 2º Réu e pela falecida GG, por se tratarem de terceiros de boa fé.
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Foi admitido o chamamento de HH, II, JJ e KK, no lado passivo da ação e, em consequência, a sua intervenção como associados dos Réus. 
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A final foi proferida sentença que julgou improcedente a ação e, em consequência, absolveu os réus e os habilitados dos pedidos deduzidos pelos autores.
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Inconformados com a sentença, os autores interpuseram recurso, finalizando com as seguintes conclusões:

1.- A matéria de fato dada como provada sob os números 20, 26 e 27, identificada de seguida, padece de dois erros de julgamento, um primeiro relativo à apreciação e valoração da prova produzida, testemunhal, concretamente das três testemunhas dos herdeiros do falecido EE, LL, MM e NN, conjugados com a prova documental, a saber, aquelas datas de citação dos demandados no Processo de Anulação de Venda e dos herdeiros do falecido EE, sendo que os extratos mais importantes dos seus depoimentos, produzidos em audiência de discussão e julgamento, serão transcritos, na íntegra, no artigo 24º:
20) Na data em que foi apresentada aquela proposta de compra, os réus CC e mulher DD não tinham conhecimento de quaisquer vícios que, eventualmente, tivessem sido cometidos no âmbito do referido processo de execução fiscal, designadamente quanto à citação ou a quaisquer notificações dos autores.
26) Entre a data em que os primeiros réus apresentaram aquela proposta de aquisição e a data em que procederam à venda do prédio ao segundo réu, os réus CC e mulher DD não tiveram conhecimento da existência de vício algum que fosse causa de anulação, nulidade ou ineficácia daquela venda efetuada no âmbito do referido processo de execução fiscal.
27) O falecido EE, a viúva ré FF, no momento da aquisição aos réus CC e mulher DD, desconheciam a existência de qualquer vício que determinasse a anulação da venda primitiva realizada pela Fazenda Nacional aos primeiros réus (CC e DD);
e um segundo erro, ao não ter dado como provadas as datas das citações dos herdeiros do falecido EE na presente acção, .../.../2019, bem como as datas, 02/02/2006, das citações de todos os demandados originariamente no Processo de Anulação de Venda nº 1200/04...., que correu termos na Unidade Orgânica - 3, do TRIBUNAL ADMNISTRATIVO E FISCAL de ..., identificado no documento ... junto com a petição inicial e cujo ORIGINAL, a pedido do senhor Juíz, foi junta aos autos no dia 06/07/2020, as quais foram pura e simplesmente ignoradas;
2.- esses erros podem e deve ser retificados e determinaram o desacerto quanto ao Direito aplicável e conduziram à improcedência da acção;
3.- estas testemunhas que foram ouvidas, o primeiro do segundo 1.56 ao minuto 15.11, a segunda do minuto 1.20 ao minuto 10.37 e o terceiro do segundo 0.2 ao minuto 11.31, conforme depoimentos integralmente transcritos no artigo 24º, pois só assim se pode apurar que nenhuma testemunha falou sobre a questão fundamental e que era a questão da BOA FÉ do falecido OO, aquando da compra em .../.../2002 ao arrematante CC, que por sua vez tinha comprado na Execução Fiscal, onde foi vendido o prédio urbano, lote, que os recorrentes compraram em 09/01/1987;
4.- essa reapreciação, conjugada, impõe decisão diversa da proferida, no sentido de dar como não provados os 3 fatos identificados na 1ª conclusão e provados as datas das citações dos demandados neste processo e já em 07/02/2006 no Processo de Anulação da Venda, intentado pelos recorrentes e onde foi decretada a nulidade da venda na Execução Fiscal;
5.- a nulidade da VENDA EM EXECUÇÃO FISCAL, decretada pelo TRIBUNAL ADMNISTRATIVO E FISCAL de ..., no dia 25/11/2008, transitada em julgado, do prédio urbano dos recorrentes, um lote, com a área de mais de 1.575 m2, situado no lugar das ..., ..., descrito na Conservatória sob o nº ...38, implica, por força da NULIDADE CONSEQUENCIAL, o atingimento e a destruição, com todas as consequências legais, dos efeitos jurídicos da compra efetuada pelo falecido EE e mulher, em .../.../2002 e a doação que estes efetuaram em .../.../2008, a sua falecida filha, GG, o que a doua sentença negou, decretando que os herdeiros do falecido EE estavam protegidos pelo artigo 291º do Código Civil, atenta a sua boa fá, plasmada naqueles três fatos dados como provados e aqui impugnados;
6.- a doação em causa, atenta a sua natureza jamais estaria protegida pelo artigo 291º do Código Civil, pois este prevê apenas negócios onerosos;
7.- os recorridos, concretamente os herdeiros do falecido EE, não demonstraram a sua boa fé, no momento da aquisição, .../.../2002 e só este momento importa;
8.- estes recorridos tinham que demonstrar que no momento da aquisição que estavam de boa fé, ou seja, que desconheciam os vícios da anulação da venda, todavia não o lograram fazer e não estão assim protegidos pelo artigo 291º do Código Civil, quer no que respeita à compra e venda quer à doação;
9.- como se pode comprovar pelo teor integral da douta contestação destes, não alegaram UM FATO a fim de demonstrar sua boa fé;
10.- a única preocupação dos recorridos foi em demonstrar os atos de posse praticados após a compra e que ficaram consignados nos fatos dado como provados sob os números 30 e 31, concretamente que requereram o licenciamento à Câmara Municipal ... e que procederam a essa vedação, matéria é absolutamente irrelevante para a decisão da causa;
11.- não tendo alegado tal fatualidade, jamais a podiam provar e por isso, essa matéria deve ser dada como não provada;
12.- procedendo a impugnação da matéria de fato, deve esta ser modificada nos seguintes termos:
I.- ser dados como não provados os fatos vertidos nos números 20, 26 e 27, com o seguinte teor:
20) Na data em que foi apresentada aquela proposta de compra, os réus CC e mulher DD não tinham conhecimento de quaisquer vícios que, eventualmente, tivessem sido cometidos no âmbito do referido processo de execução fiscal, designadamente quanto à citação ou a quaisquer notificações dos autores.
26) Entre a data em que os primeiros réus apresentaram aquela proposta de aquisição e a data em que procederam à venda do prédio ao segundo réu, os réus CC e mulher DD não tiveram conhecimento da existência de vício algum que fosse causa de anulação, nulidade ou ineficácia daquela venda efetuada no âmbito do referido processo de execução fiscal.
27) O falecido EE, a viúva ré FF, no momento da aquisição aos réus CC e mulher DD, desconheciam a existência de qualquer vício que determinasse a anulação da venda primitiva realizada pela Fazenda Nacional aos primeiros réus (CC e DD),
II.- ser dados como provadas as datas de citação dos demandados no Processo de Anulação da Venda, 02/02/2006 e a data de citação dos herdeiros de EE, no dia 27/03/2019.
13.- a douta sentença no julgamento da matéria de fato dada como provada, retirou consequências legais inadmissíveis, no que respeita a essa usucapião.
14.- Se porventura os herdeiros do falecido EE estivessem de boa fé - o que não se admite, nem aceita, levantando-se a questão por necessidades processuais das presentes alegações -, mas não estavam, nem estão, como se espera vir a demonstrar, tem que se contar o TEMPO em 2 momentos distintos desde .../.../2002 a 19/03/2019, data da citação na presente acção, sucede que tal contagem não se fez e contaram-se indevida e ilegitimamente 15 anos seguidos:
I
de 21/07/2002, data em que os recorrentes deixaram de ter o domínio do prédio, como diz a outa sentença, a 02/02/2006, data da citação no processo que correu também contra os recorridos, no TRIBUNAL ADMNISTRATIVO E FISCAL
II
de 25/11/2008, data da sentença deste Tribunal, transitada em julgado a 27/03/2019, data da citação nos presentes autos.
15.- a soma destes dois períodos de tempo ascende a 13 anos, 10 meses e 16 dias e não os 15 anos que a sentença tomou em consideração, sucede que estes anos não pode aproveitar aos herdeiros do falecido EE, por duas razões, por um lado não lograram demonstrar a boa fé no momento da aquisição e a este perído não se pode somar a posse do antepossuidor, que eram os recorrentes;
16.- decretar a aquisição do prédio pelos recorrentes, quer através da escritura pública de 09/01/1987, quer por usucapião, pois tem uma posse de 15 anos, 6 meses e 12 dias, a que acresce a posse dos antepossuidores, é aquilo que, com todas as consequências legais, se justifica, pois no dia .../.../2002, o falecido EE e mulher, não adquiriram qualquer direito válido, eficaz e legítimo, que pudessem, nomeadamente transmitir, por doação a sua filha, GG, devendo a douta sentença ser revogada e substituída por outra que julgue a acção provada e procedente;
17.- Nesse caso, os herdeiros do falecido PP devem requerer à AUTORIDADE TRIBUTÀRIA E ADUANEIRA, a retituição do preço pago no ato da arrematação, no montante de 110.723,00 euros, atualizado de acordo com o índice de desvalorização da moeda, o que alcança hoje o valor de 142.832,67 euros, acrescida ainda de outras quantias que se mostrem devidas, em virtude de aquela, sem possuir um título legítimo que lhe permitisse reter aquela quantia estes longos anos;
18.- a douta sentença decidindo no sentido em que o fez, violou, pelo menos, o disposto no artigo 291º do Código Civil e artigo 607º do Código de Processo Civil, devendo a douta sentença ser revogada e substituída por outra que julgue provada e procedente, em conformidade com a modificação da matéria de fato dada como provada, no sentido aqui propugnado pelos recorrentes.
Pugnam os recorrentes pela alteração da matéria de facto e consequente revogação da sentença substituindo-se por acórdão que julgue a ação totalmente procedente.
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Foram apresentadas contra-alegações pelos recorridos, que pugnam pela improcedência do recurso e manutenção do decido.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

São as seguintes as questões jurídicas a apreciar:
- Modificabilidade da decisão da matéria de facto;
- Nulidade sequencial e a proteção do terceiro adquirente de boa fé.
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III- FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
3.1.1. Factos Provados
Foram dados como assentes na primeira instância os seguintes factos:
1) A autora adquiriu, por compra a QQ e RR, no estado de solteira, em 09.01.1987 o lote de terreno situado no lugar das ..., ..., descrito na CRP ... sob o nº ...87 de ....
2) Posteriormente os autores casaram no régie de separação de bens.
3) No dia 21.07.2002, Domingo, os autores constataram que alguém tinha com o muro vedado o prédio referido em 1).
4) Entre 09.01.1987 e 21.07.2002 (exclusive), os autores limparam o terreno em causa, repousavam no mesmo e estacionavam lá veículos automóveis, pagando impostos e contribuições relacionadas com o mesmo, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e conscientes de que não lesavam interesses de terceiros e exerciam direito de propriedade.
5) Tal lote de terreno foi objecto de penhora no âmbito da execução fiscal nº ...7, que correu termos pelo Serviço de Finanças ... – 1, no qual era reclamada a quantia exequenda de 44 083 367$00, a título de IRS dos anos de 1991, 1992 e 1994.
6) O terreno foi vendido e adjudicado por proposta em carta fechada ao réu CC, em 29.01.2001, que o registou em seu nome em 17.08.2001.
7) No dia 16.09.2002, na execução fiscal referida em 5), os autores apresentaram no Serviço de Finanças ... – 1, uma acção dirigida ao Juiz de Direito do Tribunal Tributário de 1ª Instância de ..., no qual pediram a anulação, com fundamento na sua não citação e falta de notificação da venda do lote de terreno identificado em 1).
8) A acção foi proposta contra CC, DD, EE e FF.
9) Esta acção não foi registada na CRP.
10) Em 18.01.2002, CC, DD e EE outorgaram, no Cartório Notarial ..., escritura de compra e venda do lote referido em 1), os primeiros invocando a qualidade de vendedores, o terceiro, invocando a qualidade de comprador.
11) Na acção referida em 7), foi proferida sentença no dia 25.11.2008, que transitou em julgado, na qual se decidiu anular a venda do terreno identificado em 1), realizada no dia 29.06.2001 no processo de execução fiscal nº ...7, tendo como comprador o réu CC, casado com DD.
12) EE e FF outorgaram, em 17.07.2008, no Cartório Notarial ..., escritura de doação do lote referido em 1) a favor da filha GG, casada à data com SS, os primeiros invocando a qualidade de doadores, a segunda, invocando a qualidade de donatária.
13) EE e FF em 17.07.2008 tinham conhecimento da pendência da acção de execução fiscal referida em 11 e contestaram a referida acção.
14) GG, filha de EE e FF, faleceu em .../.../2009 e deixou como herdeiros o marido HH e os filhos II, JJ e KK.
15) A doação referida em 12) foi registada a favor de GG.
16) Os autores, pela ap.nº 1653 de 16.02.2015 procederam ao registo na CRP da sentença que anulou a venda efectuada pela Fazenda Nacional.
17) Os autores por carta registada e carta simples, ambas de 23.02.2015, notificaram os 2ºs e 3ºs réus para proceder à entrega do lote de terreno identificado em 1, mas apesar de notificados, os réus não procederam a qualquer entrega.
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18) O réu CC após ter tomado conhecimento de que o terreno destinado a construção identificado no nº 1.º se encontrava à venda no âmbito do Processo de Execução Fiscal n.º ...7 e apensos, apresentou uma proposta de aquisição, em carta fechada, tendo oferecido o preço de 20.160.000$00, que pagou integralmente.
19) Na sequência dessa proposta, após o pagamento, pelos primeiros réus, da totalidade do referido oferecido, dos impostos e dos demais encargos fiscais e processuais, em 29-06-2001, no âmbito do referido Processo de Execução Fiscal, tal prédio foi declarado vendido e adjudicado ao réu CC.
20) Na data em que foi apresentada aquela proposta de compra, os réus CC e mulher DD não tinham conhecimento de quaisquer vícios que, eventualmente, tivessem sido cometidos no âmbito do referido processo de execução fiscal, designadamente quanto à citação ou a quaisquer notificações dos autores.
21) Os primeiros réus não eram sujeitos processuais naquele processo de execução fiscal e a não ser apresentar aquela proposta de compra do prédio, não tiveram qualquer outra intervenção.
22) Após a compra e a adjudicação, os réus CC e mulher DD decidiram proceder à venda de tal prédio.
23) E anunciaram publicamente essa venda durante meses, tendo inclusivamente colocado um anúncio a anunciar a venda sobre o prédio.
24) Após terem recebido propostas de compra, acabaram por vender tal prédio ao falecido, EE, pelo preço de 110.723,00€, que este recebeu receberam.
25) EE não era uma pessoa do conhecimento dos primeiros réus, tendo-se conhecido apenas na sequência do anúncio da venda de tal prédio.
26) Entre a data em que os primeiros réus apresentaram aquela proposta de aquisição e a data em que procederam à venda do prédio ao segundo réu, os réus CC e mulher DD não tiveram conhecimento da existência de vício algum que fosse causa de anulação, nulidade ou ineficácia daquela venda efetuada no âmbito do referido processo de execução fiscal.
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27) O falecido EE, a viúva ré FF, no momento da aquisição aos réus CC e mulher DD, desconheciam a existência de qualquer vício que determinasse a anulação da venda primitiva realizada pela Fazenda Nacional aos primeiros réus (CC e DD).
28) A falecida GG e os habilitados HH e os filhos II, JJ e KK, no momento da aceitação da doação do prédio referido em 1), efectuada pelos pais da primeira, desconheciam a existência de qualquer vício que determinasse a anulação da venda primitiva realizada pela Fazenda Nacional aos primeiros réus CC e DD.
29) O falecido réu EE e mulher FF apenas conheceram os réus CC e DD na sequência da publicitação da venda de tal prédio.
30) O falecido réu EE e mulher FF requereram à CM de ... o licenciamento de vedação do prédio referido em 1).
31) Executaram a referida vedação, com a construção de um muro em toda a sua extensão, areado e pintado de cor ..., encimado por rede e colocaram dois portões, um dos quais automático.
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3.1.2. Factos Não Provados
Consignou-se a inexistência de factos não provados com relevo para a decisão da causa.
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3.2. O Direito
3.2.1. Da impugnação da matéria de facto
Consideram os recorrentes que foi erradamente julgada a matéria de facto quanto aos factos provados 20, 26 e 27, os quais deveriam ser dados como não provados.
Entendem, ainda, que devem ser dado como provado as datas das citações dos herdeiros do falecido EE na presente ação, .../.../2019, bem como as datas, 02/02/2006, das citações de todos os demandados originariamente no Processo de Anulação de Venda nº 1200/04...., que correu termos na Unidade Orgânica - 3, do Tribunal Administrativo e Fiscal ....
O primeiro segmento da impugnação refere-se à prova da boa fé dos réus.
Os impugnantes defendem que os réus tinham que demonstrar que no momento da aquisição desconheciam os vícios da anulação da venda, todavia não o lograram fazer e não estão assim protegidos pelo artigo 291º do Código Civil, quer no que respeita à compra e venda quer à doação, já que não alegaram tais factos na sua contestação.
Assim não é.
Os factos 20, 26 e 27 têm a seguinte redação:
20) Na data em que foi apresentada aquela proposta de compra, os réus CC e mulher DD não tinham conhecimento de quaisquer vícios que, eventualmente, tivessem sido cometidos no âmbito do referido processo de execução fiscal, designadamente quanto à citação ou a quaisquer notificações dos autores.
26) Entre a data em que os primeiros réus apresentaram aquela proposta de aquisição e a data em que procederam à venda do prédio ao segundo réu, os réus CC e mulher DD não tiveram conhecimento da existência de vício algum que fosse causa de anulação, nulidade ou ineficácia daquela venda efetuada no âmbito do referido processo de execução fiscal.
27) O falecido EE, a viúva ré FF, no momento da aquisição aos réus CC e mulher DD, desconheciam a existência de qualquer vício que determinasse a anulação da venda primitiva realizada pela Fazenda Nacional aos primeiros réus (CC e DD).
Estes factos foram expressamente alegados nos artigos 7º a 11º da contestação.
A boa fé do terceiro é entendida em sentido ético. De acordo com a letra da lei (art.º 291º, nº3), a boa fé consiste no desconhecimento, sem culpa, do vício do negócio nulo ou anulável, isto é, na ignorância dos vícios do título. O momento relevante para aferir da boa fé é o da data da conclusão do negócio de que o terceiro adquirente é parte, mas a boa fé exigida pela lei é uma boa fé em sentido ético, que equipara a ignorância culposa à má fé.
Nos dizeres de Menezes Cordeiro, «a boa fé traduz um estado de ignorância desculpável, no sentido de que, o sujeito, tendo cumprido com os deveres de cuidado impostos pelo caso, ignora determinadas eventualidades[i] »
Resultou cabalmente demonstrado do depoimento das testemunhas NN, LL e sobretudo das declarações de parte da Ré FF, que aquando da celebração dos respetivos negócios os réus não tinham conhecimento de quaisquer vícios que pudessem afetar a venda realizada na execução fiscal. Evidencia-se que o negócio de compra e venda foi celebrado muito antes de ser interposta a ação com vista à anulação da venda no âmbito da execução fiscal.
Nestes termos, mantém-se inalterada esta factualidade como provada.
Quanto aos factos que se pretendem sejam aditados, assiste razão aos impugnantes.
Na medida em que a lei admite a posse, como critério para resolver conflitos entre direitos reais, e vindo alegada factualidade atinente à aquisição prescritiva, esta matéria assume relevância de acordo com as várias soluções possíveis da questão de direito.
O conhecimento da existência de uma ação de nulidade contra o título do transmitente pode ter implicações ao nível da qualificação do possuidor como de boa ou má fé e, consequentemente, contagem do prazo para usucapir.
Assim, devem ser aditados os seguintes factos:
32. Os demandados no processo de anulação da venda, foram citados em 02/02/2006.
33. Os herdeiros de EE, foram citados para a presente ação no dia 27/03/2019.
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3.2.2. Subsunção jurídica dos factos ao direito
A questão posta em recurso pode ser resumida nos seguintes termos: resolução do conflito entre o verdadeiro titular do direito e o terceiro sub-adquirente, numa cadeia de transmissões sucessivas inválidas, através de negócios jurídicos que tenham por objeto bens imóveis ou móveis sujeitos a registo.
Sendo o primeiro negócio da cadeia declarado nulo ou anulado, extingue-se o direito do transmitente e, em consequência, por força do principio fundamental da aquisição derivada – nemo plus iuris transferre potest quam ipso habet – todos os atos subsequentes seriam destruídos pelos efeitos da declaração de nulidade ou de anulação (art. 289.º, nº1, do Código Civil), que a lei classifica de retroativos. Todavia, a lei introduziu um mecanismo de proteção dos terceiros de boa fé, consagrado no art. 291.º, do Código Civil: a inoponibilidade ao terceiro adquirente dos efeitos da declaração de nulidade ou da anulação do negócio originário da cadeia[ii].
A questão da invalidade sequencial entrecruza-se com o interesse dos terceiros, os interesses gerais da segurança do tráfico jurídico e os interesses do verdadeiro titular do direito. Por isso a solução a encontrar, no quadro da lei, terá sempre de ser perspetivada neste jogo tríplice de interesses.
No caso, estamos perante a anulação de uma venda executiva feita ao 1.º réu, pretendendo os autores, além do mais, a declaração judicial de extensão aos 2.º e 3.ª réus dos efeitos dessa anulação, cumprindo então saber quais os efeitos desta invalidade em relação aos terceiros adquirentes e os seus meios de tutela.
Na medida em que a anulação da venda ocorreu no âmbito de um processo de execução, impõe-se previamente esclarecer dois pontos: (i) o afastamento do nº3 do art. 909º, do CPC (ii) a natureza jurídica da venda executiva.
Nos termos do art. 909.º, n.º 3, do CPC (em vigor à data da anulação, correspondendo ao atual art.º 839, nº3) em caso de anulação da venda executiva, a restituição dos bens tem de ser pedida no prazo de 30 dias a contar da decisão definitiva, devendo o comprador ser embolsado previamente do preço e das despesas de compra; se a restituição não for pedida no prazo indicado, o vencedor só tem direito a receber o preço.
O fundamento deste prazo curto tem em vista assegurar a estabilidade das vendas em execução e assim proteger a confiança e a boa-fé de terceiros.
O procedimento para obter a restituição dos bens reveste natureza executiva, devendo ser deduzido contra o comprador na própria execução, tendo como condição o prévio embolso do preço e das despesas de compra.
O normativo não faz referência à situação específica dos subadquirentes.
Da letra e espirito da norma parece resultar que o procedimento previsto no art.º 909.º, n.º 3, do CPC se encontra configurado no quadro da relação processual entre as partes na ação executiva e o comprador que interveio na venda executiva entretanto anulada, o qual fica vinculado à respetiva decisão anulatória.
Por outro lado, é de evidenciar que nos casos em que, no momento da decisão anulatória definitiva, o comprador já tenha alienado a terceiro os bens que lhe foram vendidos, este comprador já não se encontrava em condições de proceder à restituição dos bens. Ora, não é lícito que à parte com direito à restituição, por motivo que não lhe é imputável, lhe seja imposta a convalidação da venda e fique limitada a haver, tão só, o preço.
Consideramos, assim, na esteira do acórdão do STJ de 20/12/2017[iii], que a pretensão de restituição dos bens contra o terceiro adquirente sucessivo, em relação à venda executiva anulada, deve ser deduzida por via de ação declarativa própria, de modo a estender o efeito anulatório dessa venda àquele terceiro adquirente que não interveio na execução para, nessa base, obter a sua condenação na restituição do bem, podendo então esse subadquirente prevalecer-se da proteção de terceiros de boa-fé nos termos do artigo 291.º do Código Civil.   
Quanto à natureza jurídica da venda executiva, a questão resume-se a saber quem é o vendedor na venda executiva. São distinguíveis três respostas: o executado; o exequente; o órgão executivo, o juiz[iv]. Não entraremos nos fundamentos da controvérsia doutrinal e jurisprudência a propósito do tema, não descurando a prolação de dois Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência (Acórdão n.º 15/97 e n.º 3/99), interessando-nos apenas redirecionar a discussão para a consideração da qualidade de vendedor na venda executiva para efeitos do artigo 291º, do Código Civil.
Maria Clara Sottomayor, entende que “o terceiro adquirente de boa fé protegido pelo art. 291.º pode ser o credor, titular de uma hipoteca judicial um credor exequente, com registo da penhora, ou um adquirente em hasta pública (venda executiva), pois o critério decisivo para o funcionamento da norma não é a forma negocial, mas a boa fé do terceiro na titularidade do transmitente”[v].
Já Oliveira Ascenção[vi] defende que, para funcionar o art. 291.º, deve verificar-se um ato de disposição negocial ferido de ilegitimidade, não se verificando o efeito aquisitivo em relação a atos não negociais, como por exemplo, a penhora ou a hipoteca judicial.
Cremos que a solução mais favorável à proteção da fé pública registal é a que considera que terceiros são não só os sujeitos que, de boa-fé e a título oneroso, adquiram do mesmo alienante direitos incompatíveis, mas também aqueles cujos direitos, adquiridos ao abrigo da lei, tenham esse alienante como sujeito passivo, ainda que ele não haja intervindo nos atos jurídicos (penhora, arresto, hipoteca judicial, venda executiva, etc.) de que tais direitos resultaram[vii].
Qualquer que seja a natureza da venda judicial é do titular executado que provém o direito que o adquirente adquire.
Retornando ao caso, estamos perante a anulação de uma venda feita ao 1.º réu, em virtude do que a venda subsequente efetuada por este, se tem por venda de bens alheios e, portanto, nula nos termos do artigo 892.º do Código Civil.
Invocam, porém, os réus a inoponibilidade da invalidade da venda, invocando a sua boa-fé na aquisição que efetuaram ao comprador, 1º réu.
Estando em causa os efeitos de anulação da venda feita ao 1º réu, bem como da consequente nulidade das transmissões subsequentes, nos termos dos artigos 289.º e 892.º do Código Civil, a questão tem de ser resolvida unicamente à luz do artigo 291.º do Código Civil, sem interferência dos normativos contidos nos artigos 5.º e 17.º, do Código de Registo Predial, na medida em que em causa não estão aquisições sucessivas de um mesmo transmitente, nem desconformidades do próprio registo, antes invalidades substanciais referentes ao próprio negócio jurídico.
A propósito desta delimitação normativa explana-se no acórdão do STJ, de 07/09/2017[viii], que:
I - O regime de tutela dos terceiros de boa fé, resultante do artigo 291.º do CC, aplica-se às hipóteses em que o interveniente num negócio substantivamente inválido pretende a respectiva invalidação, mas se vê confrontado com terceiros (não intervenientes nesse negócio) que adquiriram de boa fé e a título oneroso, direitos sobre os bens (imóveis ou móveis sujeitos a registo) cuja subsistência depende do primeiro negócio. Se esses terceiros registaram o correspondente acto aquisitivo, a invalidade não lhes é oponível, salvo se a acção de anulação ou de declaração de nulidade for instaurada e registada nos três anos posteriores à celebração do primeiro negócio, definindo, assim, a lei o equilíbrio entre a tutela da validade substancial do negócio e a confiança depositada no registo.
II – Por sua vez, o regime de tutela dos terceiros de boa fé, resultante dos artigos 5.º, n.º 4, e 17.º, n.º 2, do CRGP, supõe duas aquisições sucessivas de um mesmo transmitente, tendo sido registada a segunda transmissão, mas não a primeira, pretendendo o primeiro adquirente (que não registou) invocar a invalidade do negócio de que resultou a segunda aquisição (registada), porque, à data da sua celebração, já o direito transmitido não se encontrava na esfera jurídica do transmitente, mas antes na esfera jurídica do primeiro adquirente”.
Estabelece o art.º 291º do Código Civil que:
«1. A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da ação de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio.
2. Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a ação for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio.
3. É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável.»
Este preceito visa “proteger as pessoas que, por força da invalidade, vêem o seu direito em risco porque o seu causante ou autor, em virtude dela, careceria de legitimidade para o transmitir ou constituir (ilegitimidade do tradens)”[ix]. Se a aquisição do terceiro, além desta invalidade, padecer de uma invalidade própria ou direta, não consequencial, o terceiro já não merece tutela.
Por isso, é habitual definir-se terceiros para efeitos do art. 291.º do Código Civil como aqueles que, integrando-se numa e mesma cadeia de transmissões, veriam a sua posição afetada por uma ou várias causas de invalidade anteriores ao ato em que foram intervenientes.[x]
O terceiro apenas é protegido, perante a eficácia retractiva da nulidade ou da anulabilidade de um negócio anterior àquele em que interveio (já não, por exemplo, perante a inexistência[xi]), se tiver adquirido um bem imóvel ou um móvel sujeito a registo, de boa fé, a título oneroso e se houver obtido o registo definitivo da sua aquisição em data anterior à da inscrição da ação de nulidade ou de anulação ou ao registo do acordo das partes acerca dessa invalidade.
Mesmo verificados todos estes requisitos, o terceiro verá decair o seu direito em virtude da eficácia retractiva da nulidade e da anulabilidade se, nos três anos consecutivos ao negócio nulo ou anulável for proposta a respetiva ação de invalidade.
Através deste preceito legal, visou-se tutelar os interesses dos terceiros adquirentes de boa fé a título oneroso e os interesses do tráfico jurídico em geral, perante a eficácia retroativa da nulidade ou da anulação do negócio jurídico do seu dante causa.
Mas, como explica Mónica Jardim, em simultâneo, por um lado, pretendeu-se estimular a obtenção da inscrição registal (…), por isso a tutela dos terceiros ficou condicionada ao registo prioritário do respectivo facto aquisitivo e, por outro, não se quis desproteger por completo o verdadeiro titular do direito − privando-o imediatamente dele – e os restantes interessados na invalidade; isto é comprovado pelo facto de a protecção do terceiro – que preencha os requisitos previstos no n.º 1 do art. 291.º − não ser automática, mantendo-se a tutela do proprietário e de quem mais possa arguir a invalidade durante um período de três anos após a conclusão do negócio inválido.
Consequentemente, adianta a autora, no âmbito do art. 291.º, o critério da prioridade do registo predial, lavrado a favor do terceiro de boa fé e adquirente a título oneroso, tem apenas um valor secundário, na medida em que, apesar de a aquisição do terceiro dever ser registada antes do registo da acção de nulidade ou anulação, para que o terceiro possa beneficiar da protecção legal, a referida inscrição prioritária não se revela suficiente. De facto, mesmo que a acção seja proposta e inscrita após o registo lavrado a favor do terceiro, desde que o seja durante o prazo de três anos previsto na lei, o terceiro é afectado pela eficácia reflexa da sentença, não se verificando qualquer excepção ao princípio nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet.[xii]
No mesmo sentido, Antunes Varela em Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Março de 1982[xiii], defende que “A disciplina instituída pelo artigo 291.º do Código Civil pode ser retratada sob um duplo prisma de observação.
Por um lado, a nova disposição legal confirma a falta de valor constitutivo (autónomo) do registo, na medida em que durante os três anos posteriores à conclusão de qualquer contrato não defende o titular do direito formalmente inscrito nos livros do registo predial contra os efeitos da nulidade ou da anulação do contrato que tenha servido de pressuposto à sua aquisição. (…)
Por outro lado, o novo preceito legal representa uma primeira e significativa conquista do registo contra o regime tradicional da nulidade e da anulação.(…)
A exigência do carácter oneroso da aquisição e da boa fé do adquirente da coisa “não representa uma limitação à força anteriormente atribuída ao registo, mas, bem pelo contrário, um triunfo, uma vitória, uma conquista em suma (embora limitada e condicionada), do registo sobre a eficácia (extintiva ou destruidora) reconhecida no direito anterior à declaração de nulidade (absoluta ou relativa).”
Por sua vez, Maria Clara Sottomayor considera que «o método que fundamentou a decisão legislativa, relativamente a esta questão, terá sido o da ponderação conjunta dos interesses do proprietário na reivindicação do bem, do interesse do terceiro e do interesse colectivo da segurança do tráfico jurídico, que é também, indirectamente, o interesse do proprietário na facilidade de circulação dos seus direitos. A tutela do interesse do proprietário está limitada a um período de três anos decorridos após a conclusão do negócio inválido. A lei pretende, com este prazo, dar uma oportunidade ao verdadeiro proprietário para repor a verdade jurídica material, considerando que, após o decurso do prazo, o seu interesse deixa de merecer protecção. O centro do raciocínio do legislador é o comportamento do verdadeiro titular, justificando-se o sacrifício do direito deste, na sua própria negligência ou inércia em impugnar o negócio inválido, durante um período de três anos, após a sua conclusão»[xiv].
Para o que releva, há a considerar que o art. 291.º protege os terceiros adquirentes de boa fé contra os efeitos retroativos da declaração de nulidade e da anulação do negócio jurídico, operando como uma exceção ao princípio da retroatividade da declaração de nulidade ou da anulação do primeiro negócio de uma cadeia de negócios inválidos, por força do princípio da conservação dos negócios jurídicos[xv].
Posto isto, em face da factualidade provada, temos que a aquando da aquisição por compra do imóvel, os 2ºs réus são, à luz da lei, considerados terceiros de boa fé, não podendo a anulação da venda no processo de execução fiscal prejudicar os direitos que adquiriram sobre o imóvel.
Com efeito, os adquirentes EE e FF, no momento da aquisição, desconheciam, sem culpa, o vício de que padecia a venda executiva.
A aquisição do imóvel foi feita através do contrato de compra e venda, logo, tratou-se de um negócio oneroso.
Procederam ao registo da sua aquisição antes mesmo da propositura da ação de anulação da venda executiva.
A ação de anulação não foi registada dentro dos três anos posteriores à conclusão da venda.
Sufragamos o entendimento que vem sido defendido por Mónica Jardim[xvi], ao considerar que o art. 291.º consagra um facto aquisitivo complexo de formação sucessiva. A aquisição do terceiro de boa fé não ocorre no momento em que obtém o registo do respetivo “facto aquisitivo”, já que o decurso do prazo, sobre a data da conclusão do negócio originariamente inválido é um elemento imprescindível do facto aquisitivo.
O decurso do prazo imposto por lei, sem que seja proposta e registada a ação tendente à invalidade do negócio, é um requisito essencial para a aquisição do terceiro e não “apenas” o pressuposto para que o direito, previamente adquirido, se consolide na esfera jurídica do terceiro.
Por isso se afirma que, estando verificados os restantes requisitos legais, o terceiro só adquire o direito quando obtenha o registo e decorra, ou já tenha decorrido, o prazo sobre a data da celebração do contrato originariamente inválido sem que seja, ou já tenha sido, proposta e registada a respetiva ação de invalidade.
Decorrência desta posição resulta a conceção da natureza jurídica da aquisição a non domino, qualificando-a como aquisição derivada a non domino peculiar ou sui generis[xvii]. Na verdade, a aquisição do segundo adquirente resulta de uma facti-species aquisitiva autónoma, facti-species essa que é legal (ocorre por força da lei), complexa e de formação sucessiva, uma vez que todos os requisitos enumerados no art. 291.º se revelam elementos imprescindíveis.
Portanto, EE e FF, estando de boa fé no negócio oneroso que celebraram e tendo obtido o registo definitivo, tendo decorrido o prazo sobre a data da celebração da venda originariamente inválida sem que tenha sido no prazo legal registada a respetiva ação de invalidade, beneficiam da tutela concedida pelo art. 291.º do Código Civil, vendo a sua posição jurídica prevalecer perante a do verdadeiro proprietário.
Donde, sendo-lhes inoponível a nulidade da venda executiva, a sua aquisição é definitiva.
A eventual má fé posterior, que possa advir do conhecimento da ação de anulação aquando da citação para os termos da mesma, não releva para o efeito.
Na verdade, a má fé posterior não prejudica o adquirente que pode dispor do direito como titular legítimo, não dependendo a eficácia ou validade da transmissão da boa fé do próximo adquirente ou da natureza do negócio celebrado.
Isto porque, o adquirente de boa fé que beneficie da tutela do art. 291.º, efetivamente, adquire o direito e, consequentemente, o sujeito passivo do facto jurídico originariamente inválido, o até ali titular do direito, deixa de o ser, uma vez que sobre uma mesma coisa não podem incidir direitos reais conflituantes.
A situação descrita mostra-se exemplarmente ilustrada no exemplo dado por Mónica Jardim: A, proprietário do prédio x, celebrar com B uma compra e venda nula, porque contrária aos bons costumes e, de seguida, B alienar o dito prédio a C − “adquirente” de boa fé, a título oneroso que se torna titular registal −, caso este (C) venha a doar o referido prédio a D, decorridos três anos sobre a conclusão do negócio inválido sem que seja proposta a acção de nulidade, o D não terá de restituir o prédio a A, apesar de não ser um terceiro para efeitos do art. 291.º. De facto, se A intentar uma acção de reivindicação contra D, invocando ser o titular do direito − porque o negócio que celebrou com B teve um fim, comum a ambas as partes, contrário aos bons costumes − e solicitar a restituição do prédio x, bastará a D provar que C à data em que lhe doou o prédio x já havia beneficiado da tutela do art. 291.º e que, portanto, já era titular do direito, para legitimamente se poder recusar a entregar o referido imóvel, porquanto, desse modo, provará que adquiriu a domino. Portanto, A verá a acção de reivindicação ser julgada improcedente, não em virtude de uma qualquer excepção à sequela ou à característica da preferência do seu direito real, mas porque, desde data anterior ao negócio em que interveio D, o direito de propriedade já não existia na sua esfera jurídica, tendo passado a pertencer a C − que beneficiou da tutela do art. 291.º − e depois a D.
Aqui está a solução a dar à pretensão que os autores dirigem aos 3º réus.
De nada releva a circunstância de o negócio ser gratuito – doação – e sua boa ou má fé no momento da aquisição, na medida em que o direito de propriedade já não existia na esfera jurídica dos autores.
Em conclusão, o imóvel pertence legitimamente aos 3ºs réus.
Em face disso, a questão da usucapião suscitada não tem aplicação ao caso, mostrando-se a sua apreciação claramente prejudicada.
Pelo exposto, improcede a presente apelação.
*
SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)

I - O art. 291.º protege os terceiros adquirentes de boa fé contra os efeitos retroativos da declaração de nulidade e da anulação do negócio jurídico, operando como uma exceção ao princípio da retroatividade da declaração de nulidade ou da anulação do primeiro negócio de uma cadeia de negócios inválidos, por força do princípio da conservação dos negócios jurídicos
II - Os requisitos da tutela do terceiro subadquirente são: (i) declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis ou a bens móveis sujeitos a registo; (ii) aquisição onerosa; (iii) por um terceiro de boa fé; (iv) registo da aquisição do terceiro; (v) anterioridade do registo de aquisição em relação ao registo da ação de nulidade ou de anulação.
III - Estando verificados estes requisitos legais, o terceiro só adquire o direito quando já tenha decorrido o prazo de três anos sobre a data da celebração do contrato originariamente inválido sem que tenha sido proposta e registada a respetiva ação de invalidade.
IV - O terceiro adquirente de boa fé protegido pelo art. 291.º pode ser um adquirente em venda executiva, pois o critério decisivo para o funcionamento da norma não é a forma negocial, mas a boa fé do terceiro na titularidade do transmitente.
V - Desconhecendo os réus, sem culpa, o vício da venda executiva que veio a ser anulada, aquando da celebração da compra do imóvel (negócio oneroso) e tendo obtido o registo definitivo, tendo decorrido o prazo sobre a data da celebração da venda originariamente inválida sem que tenha sido registada a respetiva ação de invalidade, beneficiam da tutela concedida pelo art. 291.º do Código Civil, vendo a sua posição jurídica prevalecer perante a do verdadeiro proprietário.
VI - A má fé posterior não prejudica o adquirente que pode dispor do direito como titular legítimo, não dependendo a eficácia ou validade da transmissão da boa fé do próximo adquirente ou da natureza do negócio celebrado.
VII - Isto porque, o adquirente de boa fé que beneficie da tutela do art. 291.º, efetivamente, adquire o direito e, consequentemente, o sujeito passivo do facto jurídico originariamente inválido, o até ali titular do direito, deixa de o ser, uma vez que sobre uma mesma coisa não podem incidir direitos reais conflituantes.
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos Recorrentes.
Guimarães, 19 de Janeiro de 2023

Assinado digitalmente por:                                                   
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Elisabete Coelho de Moura Alves
2º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes


[i] In Da Boa Fé no Direito Civil, 1984, I, pag. 516.
[ii]Delimitação do problema por Maria Clara Sottomayor, In Invalidade e Registo, A Proteção do Terceiro Adquirente de Boa Fé, pag. 13.
[iii] Disponível em www.dgsi.pt.
[iv] Cfr.Alberto dos Reis, Processo de Execução, Vol. II, Coimbra Editora, 1985, p. 319 e ss.
[v] Ob. cit., pag. 622.
[vi] In Direito Civil, Reais, (reimpressão), Coimbra Editora, 2000, pag. 376.
[vii] Neste sentido, Rui Paulo Mascarenhas Ataíde, que defende uma clara intervenção legislativa no sentido da consagração desta solução, In Os Efeitos Substantivos do Registo Predial, Revista da Ordem dos Advogados, I-II 2017 - Ano 77, pag.
[viii] Disponível em www.dgsi.pt.
[ix] Orlando de Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil: Sumários Desenvolvidos, Coimbra, policopiada, 1981, pags. 134-135
[x] Orlando de Carvalho, ob. cit., pag. 135
[xi]Neste sentido, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, pag. 370, nota 444.
[xii] In Efeitos Substantivos do Registo – Terceiros para Efeitos de Registo, pag. 710.
[xiii] Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 118.º, pags. 310-311.
[xiv] In Invalidade e Registo -  A Protecção do Terceiro Adquirente de Boa Fé, pag. 336.
[xv] Hörster, In A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil Português, Coimbra, pag. 601.
[xvi] Posição também defendida por Oliveira Ascensão e Carvalho Fernandes, como a autora sublinha na sua obra Efeitos Substantivos do Registo – Terceiros para Efeitos de Registo, pag. 729.
[xvii] Qualificação que não é pacifica, não sendo assim considerada por Hörster, “A função do registo como meio de protecção do tráfico jurídico”, pag. 308, e Maria Clara Sottomayor, “Invalidade e Registo – A Protecção do Terceiro Adquirente de Boa Fé”, pag. 881 e segs.