RECURSO COM ATOS PROCESSUAIS SUSPENSOS
REQUERIMENTO DEDUZIDO E TRAMITADO EM 1ª INSTÂNCIA
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
NULIDADE INSANÁVEL
Sumário


I- Estando o processo em fase de recurso do acórdão final, o requerimento apresentado pelo arguido em que suscita a nulidade da acusação, teria de ser apresentado no tribunal de recurso e dirigido ao titular respetivo, ou, se apresentado na 1ª instância deveria, de imediato, para aí ser remetido, a fim de ser apreciado.
II- Após a subida do processo ao Tribunal da Relação, e enquanto aí se mantiver, o Juiz da 1ª instância carece de competência para apreciar e decidir os requerimentos dirigidos ao mesmo, concretamente o ora em questão, em que se discutam questões, de ordem processual ou substantiva, que possam assumir consequências no desfecho da causa.
III- Após ter sido proferido o acórdão recorrido, interposto recurso e os autos subido ao Tribunal da Relação, onde se encontram pendentes, o poder jurisdicional do Juiz de 1ª instância encontra-se esgotado, precludido.
IV- Pelo que, não poderia o requerimento a suscitar a nulidade da acusação, com todas as consequências que poderiam advir do seu eventual deferimento, inclusive a violação do caso julgado formal, ser apreciado e decidido em 1ª instância, sob pena de ser cometida nulidade insanável por violação das regras de competência do tribunal.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

Relatório

Nos presentes autos de processo comum coletivo, com o nº 1420/11...., do Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central e Criminal ... – Juiz ..., o arguido AA, entre outros, foi publicamente acusado da prática.
- em coautoria material, na forma consuma e em execução continuada, de dois crimes de corrupção passiva agravada, p. e p. pelos art.ºs 28º, n.º1, art.º374-A, n.º1 e 373º, n.º1, do C.P.; bem como com a pena acessória prevista no art.º 66º, n.º 2, por referência ao n.º1, al. a), b), e c), do C.P. por referência ao Art.º 25º do D.L. 86/98, de 03/04;
- como autor material, na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art.º 86º, n.º1, alíneas c) e d), e n.º2, por referência aos artigos 2º, n.º1, al.p) e q); art.º 3º, n.º 3 (categ. B) e n.º 5, alínea e) (categ. C); e art.º 2º, n.º3, al. p), da Lei n.º 5/2006, na redacção dada pela Lei n.º 12/2011, de 27/04;
- co-autor de um crime de falsificação de documento, na forma consumada, em execução continuada, , p. e p. pelos 256º, n.º1, al. c) e d), por referência ao art.º n.º 254º, al. a), todos do C.P;

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Em primeira instância, este arguido apresentou requerimento ao processo invocando, entre o mais, e no que concerne aos crimes de corrupção, a nulidade da acusação proferida nestes autos – Ref: ...49 - alegando, para tanto, que daquela acusação não constam as normas jurídicas aplicáveis, concretamente o disposto no artigo 386.º do CP, o que fere a mesma de nulidade, nos termos do disposto no artigo 283.º nº3, do CPP. E, considerando tal nulidade insanável, por via da aplicação do art.º 119.º do CPP, é de conhecimento oficioso e arguida a todo o tempo.
Concluindo pela tomada de conhecimento dessa invocada nulidade, e pelo consequente arquivamento dos autos.
Conclusos os autos o Senhor Juiz, proferiu o seguinte despacho:
“Vem o arguido AA invocar, entre o mais, a nulidade da acusação proferida - referência ...49 - concluindo, a final, pelo arquivamento dos autos.
Alega, para tanto, que daquela acusação não constam as normas jurídicas aplicáveis, concretamente o disposto no artigo 386.º CP, o que fere a mesma de nulidade, nos termos do disposto no artigo 283.º nº3 CPP. E sendo tal nulidade insanável por via da aplicação do art.º 119.º do C.P.P. que contempla ser uma nulidade insanável todas as que, além das descritas em tais alíneas, estejam também descritas noutras disposições legais.
Conclui, por fim, que tal nulidade, sendo insanável, é de conhecimento oficioso e arguida a todo o tempo.
Em vista, pronunciou-se o MP pelo indeferimento da pretensão dos arguidos.
Cumpre apreciar.
Dispõe o artigo 283.º CPP, para o que nos interessa, no seu nº3 que “A acusação contém, sob pena de nulidade: a) As indicações tendentes à identificação do arguido; b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) As circunstâncias relevantes para a atenuação especial da pena que deve ser aplicada ao arguido ou para a dispensa da pena em que este deve ser condenado; d) A indicação das disposições legais aplicáveis;
(…)”
Por sua vez, o artigo 311.º nº3 COO, sob a epígrafe “Saneamento do Processo” dispõe que “ 1 -
Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer. 2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respetivamente. 3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) Quando não contenha a identificação do arguido; b) Quando não contenha a narração dos factos; c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) Se os factos não constituírem crime.”
Da leitura das preditas normas, resulta, antes de mais, que a nulidade da acusação a que se reporta o artigo 283º nº 3 e a rejeição da acusação com fundamento nos vícios previstos nas als a), b) e c) do nº3 do art. 311º do CPP, não são momentos coincidentes entre si, ou seja, a rejeição da acusação não se confunde com nenhuma daqueloutras nulidades.
Isto porque a nulidade da acusação, e contrariamente ao propugnado pelo arguido/requerente, na falta de disposição legal em sentido contrário, e porque não consta do catálogo das insanáveis, elencado no artigo 119º CPP, assume-se como uma nulidade dependente de arguição e, nessa medida, sujeita ao regime legal previsto nos art.º 120. ° a 122.º CPP.
No que respeita ao prazo de arguição, dispõe o artigo 120. °, n.º 3 CPP, significando que se não for deduzida por algum dos interessados no prazo legalmente estabelecido, perante a autoridade judiciária competente, não pode ser conhecida enquanto tal em momento posterior. – v. nesta matéria Germano M. Silva, Curso de Processo penal III, 2ª ed-Verbo-2000 pp. 206 a 208.
Sendo ainda que, nos termos do artigo 121. °, n.º l, a nulidade sanável pode ser sanada se os participantes processuais interessados: a) Renunciarem expressamente a argui-la; b) Tiverem aceite expressamente os efeitos do ato anulável; ou c) Se tiverem prevalecido da faculdade a cujo exercício o ato anulável se dirigia.
Por seu turno, a rejeição da acusação com algum dos fundamentos enunciados no nº3 do artigo 311.º CPP, é decidida oficiosamente pelo juiz a quem o processo é distribuído, apenas no caso de o processo ser remetido para julgamento sem ter havido Instrução.
Compulsados os autos, temos que o despacho de acusação foi proferido em 4-07-2014 – referência ...49 -, tendo, em consequência, sido requerida a instrução e, após, a prolação do despacho de pronuncia, em 31-07-2014 – referência ...07, foram os autos remetidos para julgamento, e aí recebidos, em 19-02-2015 – referência ...50.
Ora, e se é certo que nos autos se não vislumbra qualquer das situações previstas no predito artigo 121.º CPP, que implicam a sanação da nulidade, também é certo que a mesma não foi invocada no prazo legal supra indicado, concretamente o previsto no artigo 120.º nº3 c) CPP, ou seja, até ao encerramento do debate instrutório ou, no limite, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito.
Por outro lado, tendo existido a fase de instrução, estava vedado ao Presidente, aquando do recebimento da acusação, despachar nos termos do nº2e 3 do artigo 311.º CPP
E por ser assim, cremos nós, e concordando-se com o doutamente promovido, ultrapassado que foi o momento legalmente definido para arguir qualquer nulidade referente ao inquérito e à instrução – artigo 120.º nº3 c) CPP e, igualmente, para a rejeição da acusação nos termos do artigo 311º CPP, se mostra agora esgotada essa possibilidade.
Neste sentido, à data da submissão daquela acusação a julgamento, não mais padecia de qualquer vicio formal que obstasse ao seu conhecimento em julgamento, sendo que, e cremos nós, que eventual vício ou omissão que na mesma ainda subsistisse, entrava já na discussão dos fundamentos, de facto e direito, subjacentes à respetiva imputação criminal, ou seja, era já uma questão de apreciação do mérito da acusação, da sua procedência ou improcedência, de acordo com o regime processual e substantivo aplicável, o que de todo se pode confundir com uma vicissitude de cariz processual suscetível de afetar a validade da acusação.
Eis porque se julga a ora invocada nulidade da acusação totalmente improcedente.
Notifique.
Custas do incidente pelo arguido/requerente que se fixa em 2 UC. – artigo 7.º nº8 RCP”
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Deste despacho interpôs o arguido recurso formulando, na respetiva motivação, as seguintes conclusões (transcrição):
“CONCLUSÕES

1.ª Vem o arguido AA apresentar recurso ao despacho datado de 18 de Novembro de 2022 que decidiu julgar totalmente improcedente a nulidade da acusação requerida pelo arguido.
2.ª Quando ocorre uma enorme violação da lei, nomeadamente a falta de indicação de um dispositivo legal, como é o caso dos presentes autos, independentemente de quem são os arguidos ou do crime em causa, o que ocorre é a nulidade da acusação, tal como foi declarado judicialmente nos autos 523/17.... da Comarca ..., cuja cópia da decisão o arguido anexou no seu requerimento.
3.ª Naqueles autos 523/17.... da Comarca ... o Ministério Público já interpôs recurso, tendo a defesa do arguido BB respondido ao mesmo, encontrando-se os autos no Tribunal da Relação, sendo certo que o que venha ser decidido naquele processo, deverá, também, ser decidido aqui: a acusação é nula.
4.ª O despacho aqui recorrido, datado de 18.11.2022, entende que a nulidade da acusação se rege pelo regime do art.º 120.º do C.P.P. e que não tendo sido arguida/suscitada após o final do inquérito ou durante a fase de instrução, tal nulidade ficou definitivamente sanada.
5.ª Entende o recorrente que a nulidade da acusação se rege pelo art.º 119.º e 283.º n.º 3 do C.P.P., uma vez que o art.º 119.º prevê expressamente que “constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais”.
6.ª Esta expressão “além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais” está a referir-se, também, à nulidade da acusação prevista no art.º 283.º n.º 3 do C.P.P. onde se pode ler: “a acusação contém, sob pena de nulidade”.
7.ª O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo 368/07...., de 22.05.2013 é do entendimento de que a nulidade da acusação é do conhecimento oficioso até ao trânsito em julgado, não estando dependente de arguição por parte os sujeitos processuais, sendo este o Sumário de tal acórdão:
I - Face ao aditamento do n.º 3 do artigo 311.º do CPP, operado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no artigo 283.º, do mesmo diploma, e converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do tribunal, não estando, portanto, dependente de arguição por parte dos sujeitos processuais.
II - Sendo a nulidade em causa de conhecimento oficioso, pode ser conhecida, a todo o tempo, até ao trânsito em julgado da decisão final.
III - Uma consequência da estrutura acusatória do processo é a independência do Ministério Público em relação ao juiz na formulação da acusação.
IV - Da consagração da estrutura acusatória resulta inadmissível que o juiz possa ordenar ao MP os termos em que deve formular a acusação. Por maioria de razão, não pode também o juiz suprir os vícios de que a acusação padeça.
V - Assim, não podendo ser sanada a nulidade da acusação, a existência desse vício, verificada antes do trânsito em julgado da decisão final, produz a invalidade dessa peça processual e de tudo o que tiver sido processado posteriormente e, consequentemente, conduz ao arquivamento do processo, por inexistência de objeto.
8.ª Entende, igualmente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo 6/17...., datado de 28.11.2018, que os vícios estruturais da acusação se sobrepõem às nulidades, devendo e podendo ser conhecidas oficiosamente pelo tribunal a todo o tempo, isto é em qualquer fase do procedimento até ao trânsito em julgado da decisão final.
9.ª A questão que importa decidir neste recurso é, então, a seguinte: quando uma acusação por crimes de corrupção, crimes que integram o capítulo «dos crimes cometidos no exercício de funções públicas», sendo que para punição desses mesmos crimes é obrigatória a menção da qualidade de funcionário que o arguido tenha, a fim de se verificar se esse tipo de funcionário de enquadra no regime do art.º 386.º do C.P., com a especificação do número e da alínea desse mesmo art.º 386.º, não tendo sido efectuada a identificação desse dispositivo legal no libelo acusatório, suscitada a nulidade da acusação por parte do arguido, a nulidade da acusação é do conhecimento oficioso e declarável até ao trânsito em julgado ou é uma nulidade dependente de arguição?
10.ª O recorrente entende, como se disse, que a nulidade da acusação é do conhecimento oficioso até ao trânsito em julgado, sendo esta a solução jurídica que mais se coaduna com o espírito da lei e a letra do art.º 119.º do C.P.P..
11.ª A acusação não se reescreveu, logo não pode considerar-se sanada a nulidade da acusação. Entende-se, e por isso se pugna, que o despacho de 18.11.2022 tem que ser revogado e substituído por outro que declare a nulidade da acusação nos termos requeridos pelo arguido, porque tal nulidade é insanável nos termos estatuídos no art.º 119.º do C.P.P.
INCONSTITUCIONALIDADE
12.ª O art.º 119.º do Código Processo Penal, na interpretação segundo a qual a nulidade da acusação prevista na cominação legal do art.º 283.º n.º 3 do mesmo C.P.P. não integra uma nulidade insanável a que faz referência o art.º 119.º do C.P.P. na sua expressão “além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais” é inconstitucional por violação dos princípios da legalidade, da proporcionalidade, legalidade criminal e garantias de defesa, ínsitos nos art.ºs 3.º, 18.º, 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que expressamente se invoca para todos os devidos efeitos legais.
13.ª Foram assim violados e mal interpretados os artigos 119.º, 120.º e 283.º n.º 3 alínea c) do Código Processo Penal, na medida em que, a correcta interpretação e aplicação do direito é a de que, uma nulidade da acusação prevista no art.º 283.º n.º 3 do C.P.P., por estar expressamente prevista nesta cominação legal, está contemplada pelo regime das nulidades insanáveis previstas no art.º 119.º, uma vez que esta norma refere “além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais” do C.P.P., afastando-se, por via disso, a aplicação do art.º 120.º do C.P.P.
TERMOS EM QUE, DANDO-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, ALCANÇAR-SE-Á JUSTIÇA!”
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Ao recurso interposto pelo arguido, o Ministério Público na 1ª instância, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º, nº 1, do Código de Processo Penal, apresentou resposta, com as seguintes conclusões (transcrição):
“(…)
I. O objeto do recurso.
1.- O arguido AA veio recorrer da douta decisão proferida a 18.11.2022, ref.ª ...83, que decidiu totalmente improcedente a nulidade da acusação pública requerida pelo arguido, para o efeito apresentou recurso a 06.12.2022, ref.ª ...44 (nos autos principais), cujo teor, por brevidade, aqui se dá por integralmente reproduzido.
II. Posição do Ministério Público.
2.- Desde já entende o Ministério Público, salvo melhor opinião, de que carece o recorrente de qualquer razão.
3.- Cumpre dizer que o Ministério Público, após realizada a investigação, em sede de inquérito, caso tenha recolhido indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente deduz acusação contra aquele – artigo 283º, n.º1, do Cód. De Processo Penal.
Com a prolação da acusação pública, o Ministério Público deve obedecer ao preenchimento dos requisitos enumerados no n.º 3, als. a) a h), do artigo 283º, do citado diploma, sob pena de nulidade.
4.- Não se encontrando prevista, no artigo 119.º do citado diploma, a nulidade a que se refere o normativo supra, tal nulidade é sanável, dependente de arguição, nos termos do artigo 120º, do mesmo diploma. Pelo que, se não for deduzida por algum dos interessados no prazo legalmente estabelecido, perante a autoridade judiciária competente, não pode ser conhecida enquanto tal em momento posterior, nomeadamente ao abrigo do disposto no artigo 311.º, nº1 ou no artigo 338.º, n.º1, ambos do citado diploma.
5.- No vertente caso, a acusação foi recebida, aquando o saneamento do processo, nos termos do artigo 311º, do Cód. de Processo Penal.
Uma eventual rejeição da acusação com algum dos fundamentos enunciados no nº 3 daquele mesmo artigo 311.º, é decidida oficiosamente pelo juiz a quem o processo é distribuído, apenas no caso de o processo ser remetido para julgamento sem ter havido Instrução, constituindo aquela rejeição consequência específica, sui generis, dos vícios das als a), b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do citado diploma, quando conhecidos no despacho de saneamento e recebimento dos autos.
6.- Após deduzida a acusação pública, a 04.07.2014, foi requerida a instrução e, após, a prolação do despacho de pronuncia, a 31.07.2014, foram os autos remetidos para julgamento com a intervenção do Tribunal Coletivo, e aí recebidos, a 19.02.2015.
7.- E, ultrapassado o momento legalmente definido para a rejeição da acusação (artigo 311.º do citado diploma) - exceto se tiver ocorrido a fase da instrução, não se aplicando a rejeição da acusação como o impõe o n.º 2, do citado artigo, tal como se verifica nos presentes autos -, fica precludida tal possibilidade, o que, aliás, é conforme com o estabelecimento legal de fases e momentos próprios para o saneamento do processado, a partir dos quais fica precludida a possibilidade de invocar a infração cometida e os efeitos produzidos pelo ato processual imperfeito sofrem uma modificação, passando de precários a definitivos.
8.- Assim, no vertente caso, s.m.o., a acusação nos presentes autos tornou-se definitivamente apta para suportar a ação penal em julgamento e os vícios previstos no nº3 do artigo 311.º - incluindo a al. d)-, apenas relevariam na apreciação do mérito da causa (e já não enquanto vício formal lesivo da validade da acusação), de acordo com o regime processual aplicável em audiência e o direito substantivo igualmente aplicável.
9.- E, caso se verifique um eventual vício formal, como alegado pelo arguido - seja ele a falta de narração de factos, ou a falta de indicação de provas ou dos preceitos legais aplicáveis - não inutiliza a funcionalidade do ato viciado (in casu, a acusação), pois aquela pode cumprir ainda a sua função, nomeadamente no que respeita à satisfação dos interesses de índole material inerentes ao processo penal, como seja a condenação dos arguidos, com respeito pelas suas garantias de defesa, sendo de novo apreciada no decurso da audiência de discussão e julgamento, e solucionada em momento ulterior, como sejam as previstas nos artigos 358.º e 359.º, do Cód. De Processo Penal - tanto mais que o artigo 339.º. nº4 do citado diploma inclui no objeto da discussão da causa os factos que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos.
10.- Em face ao exposto, bem andou o Tribunal a quo ao julgar totalmente improcedente a invocada nulidade da acusação por parte do aqui arguido e recorrente AA.
NESTES TERMOS,
E salvo melhor opinião em contrário, em reposta ao recurso interposto pelo aqui recorrente, o Ministério Público entende que deverá ser mantido o douto despacho que julgou totalmente improcedente a invocada nulidade da acusação pública, mantendo-se intato o Douto Acórdão proferido a 13.12.2017, que condenou o aqui recorrente numa pena de 7 anos e 6 meses de prisão, fazendo-se assim, uma vez mais, a costumada
J U S T I Ç A”
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Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso interposto, nos seguintes termos: (Transcrição)
“(…)
Pretende este que a questão a decidir neste recurso é a seguinte: Quando uma acusação por crimes de corrupção - crimes que integram o capítulo «dos crimes cometidos no exercício de funções públicas», sendo que para punição desses mesmos crimes é obrigatória a menção da qualidade de funcionário que o arguido tenha, a fim de se verificar se esse tipo de funcionário de enquadra no regime do art.º 386.º do C.P., com a especificação do número e da alínea desse mesmo art.º 386.º - não é feita a identificação desse dispositivo legal no libelo acusatório, estaremos perante uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso e declarável até ao trânsito em julgado da Sentença?
Na óptica do recorrente a falta da menção do artigo 386º do C. Penal (conceito de funcionário), num caso de acusação por prática de crime de corrupção cometido por funcionário acarreta uma nulidade insanável e, como tal de conhecimento oficioso e invocável a todo o tempo.
Não concordo com a tese defendida pelo recorrente a qual me parece insustentável e demasiado rebuscada.
Em primeiro lugar considero que a acusação não padece de uma falta integral de indicação das disposições legais aplicáveis, tal como é exigido pelo art. 283º, nº 3 d) do CPP, mas apenas e tão só de uma insuficiente indicação das disposições legais, consubstanciada na ausência de indicação de uma norma que, na realidade, se mostra apenas como definidora conceptual de uma expressão – funcionário - contida em vários tipos penais incriminadores.
Considero pois que a disposição legal em falta não se tem como fundamental e a sua omissão não assume uma dimensão que justifique sancionar a acusação como padecendo de uma nulidade insanável.
Na verdade, a falta de indicação de tal preceito não coloca em causa a posição do arguido; não afecta o seu direito de defesa, não traduz a existência de qualquer sombra ou dúvida quanto aos factos que lhe são imputados e, no desenvolvimento do julgamento, sempre, se tal acontecer e se justificar, por intervenção do mecanismo previsto no art. 358º, nºs 1 e 3 do CPP, pode o Tribunal proporcionar o esclarecimento e a definição total e completa da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido.
Esta insuficiência, nos termos assinalados apresentar-se-ia como uma irregularidade, enquadrável na previsão do art. 123º do CPP e, não tendo sido arguida em tempo útil – três dias seguintes à notificação da acusação – ter-se-á como sanada.
Caso se concorde que a falta de indicação de uma norma de referência e definição, na acusação, como é a do art. 386º do CP configura uma nulidade importa definir como qualificar a mesma e definir qual o seu regime de arguição.
Em resposta a tais questões permito-me apelar a uma decisão jurisprudencial que, em meu entender, dá resposta cabal e completa, ás duas interrogações assinaladas.

Diz o aresto:
“…
1. Não se encontrando prevista no art. 119.º do CPP, a nulidade de acusação é sanável, pelo que se não for deduzida por algum dos interessados no prazo legalmente estabelecido, perante a autoridade judiciária competente, não pode ser conhecida enquanto tal em momento posterior, nomeadamente ao abrigo do disposto no art. 311.º, nº1 ou no art. 338.º, n.º1, ambos do CPP.
2. Por seu lado, a rejeição da acusação com algum dos fundamentos enunciados no nº3 daquele mesmo art. 311.º, é decidida oficiosamente pelo juiz a quem o processo é distribuído, apenas no caso de o processo ser remetido para julgamento sem ter havido Instrução, constituindo aquela rejeição consequência específica, sui generis, dos vícios das als a), b) e c) do n.º3 do art. 283.º do CPP quando conhecidos no despacho de saneamento e recebimento dos autos.
3. Ultrapassado o momento legalmente definido para a rejeição da acusação (art. 311.º do CPP), fica precludida tal possibilidade, o que, aliás, é conforme com o estabelecimento legal de fases e momentos próprios para o saneamento do processado, a partir dos quais fica precludida a possibilidade de invocar a infracção cometida e os efeitos produzidos pelo acto processual imperfeito sofrem uma modificação, passando de precários a definitivos.
4. No caso vertente, a acusação tornou-se definitivamente apta para suportar a acção penal em julgamento e os vícios previstos no nº3 do art. 311.º (incluindo a al. d)), apenas relevarão na apreciação do mérito da causa (e já não enquanto vício formal lesivo da validade da acusação), de acordo com o regime processual aplicável em audiência e o direito substantivo igualmente aplicável….”
Cfr. Ac. do TR de Évora de 10-12-2009 in proc. 17/07.4GBORQ.E1
E de certa forma, aqui num caso de falta de elemento subjcetivo do tipo, no mesmo sentido:
“…
I - A nulidade da acusação emergente da ausência de qualquer um dos elementos previstos na al. b) do nº3 do artº 283 e 284ºnº2 do CPP nomeadamente o elemento subjectivo do tipo legal de crime, está dependente de arguição no prazo de 5 dias, nos termos do artº120º1, 2 e 3 c) CPP….”
Cfr. Ac. do TR do Porto de 11-11-2015 in proc. 245/12.0GBBAO.P1.
Temos que a invocada nulidade não consta do elenco das nulidades constante do art. 119º do CPP, qualificadas como insanáveis e, por outro lado, no art. 283º nº 3 do mesmo diploma, não é a mesma classificada como insanável.
Afastada a sua consideração como nulidade insanável temos que a mesma, para poder ser considerada, deveria ter sido arguida, na fase e em tempo próprios, tal como se define no art. 120º, nº 3 al. c) do CPP.
O recorrente deveria ter suscitado a existência de nulidade após o encerramento do inquérito ou, na fase de instrução como o preceito indicado postula.
Não o tendo feito a nulidade sanou-se e a acusação consolidou-se e apenas, em sede de decisão final, na sua eventual relevância para a solução de mérito, tal como consta do acórdão transcrito supra, poderia o Tribunal apreciar a mesma.
Suscita o recorrente que o art.º 119.º do Código Processo Penal, na interpretação segundo a qual a nulidade da acusação prevista na cominação legal do art.º 283.º n.º 3 do mesmo C.P.P. não integra uma nulidade insanável a que faz referência o art.º 119.º do C.P.P. na sua expressão “além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais” é inconstitucional por violação dos princípios da legalidade, da proporcionalidade, legalidade criminal e garantias de defesa, ínsitos nos art.ºs 3.º, 18.º, 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa, se apresenta como inconstitucional.
Não vislumbramos como se possa argumentar a existência de uma interpretação do art. 119º do CPP como inconstitucional nos moldes em que o recorrente o faz.
Na verdade o que este afirma como inconstitucional é uma leitura natural, adequada e coerente de uma situação – nulidade da acusação por falta de indicação das disposições legais aplicáveis – como sendo apenas uma nulidade sanável porquanto se deve considerar que o art. 283º não comina tal situação com a qualificação de nulidade insanável mas tão só como nulidade e, cotejando as situações tidas como insanáveis, se tem de concluir que as mesmas se reservam para casos em que o vício anotado se revela como estrutural, de elevada dimensão formal susceptível de inquinar, de forma irremediável, o acto onde ele ocorreu.
Em conclusão, considerando o exposto e remetendo para o teor da posição do Colega da primeira instância que acompanhamos entendemos que o recurso não merece provimento.”
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Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal.
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O recorrente aprestou resposta ao parecer, concluindo como no recurso interposto.
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Procedeu-se a exame preliminar. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso
De acordo com o disposto no artigo 412º, do Código de Processo Penal e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19-10-95, publicado no D.R. I-A de 28-12-95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria) o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.

No caso em apreço, atendendo às conclusões, a questão que se suscita é a seguinte:
- Nulidade da acusação, relativamente aos crimes de corrupção, por não constarem as normas jurídicas aplicáveis, concretamente o disposto no artigo 386.º CP, por violação do disposto no artigo 283.º nº3 CPP.
- Nulidade insanável, por via da aplicação do art.º 119.º do C.P.P. de conhecimento oficioso, a todo o tempo, com o consequente arquivamento dos autos.
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Questão Prévia

Compulsados os autos principais, de que o ora em análise é apenso, verificamos que:
Incidências processuais.
A acusação cuja nulidade é invocada foi proferida no dia 04.07.2014 - Ref: ...39 – cujo teor se dá aqui por reproduzido;
Foi requerida a abertura de instrução pelo arguido, tendo alegado, e veio a ser proferido despacho de pronuncia, datado de 31.10.2014 – Ref: ...07, que pronunciou o arguido pela prática dos crimes de que vinha acusado.
Com data de 22/02/2015, foi proferido despacho de saneamento do processo, nos termos do art. 311º do CPP, e designadas datas para realização do julgamento: Ref: ...50
Efetuado julgamento, no dia 13/12/2017 foi proferido acórdão que condenou o arguido/recorrente: Ref: ...97
“em co-autoria material na forma consumada de 112 crimes de corrupção passiva, p. p pelo art. 373º, n.º 1, do C.Penal; e ainda pelas mesmas razões cometeu em co-autoria material de 103 crimes de falsificação de documento, na forma consumada, p. e p. pelos art.s 256º, n.º1, al. c) e d), por referência ao art.º n.º 255º, al. a), todos do C.Penal; finalmente ainda cometeu em autoria material, na forma consumada, um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art.º 86º, n.º1, alíneas c) e d), e n.º2, por referência aos artigos 2º, n.º1, al. p) e q); art.º 3º, n.º 3 (categ. B) e n.º 5, alínea e) (categ. C); e art.º 2º, n.º3, al. p), da Lei n.º 5/2006, na redação dada pela Lei n.º 12/2011, de 27/0.” Tendo aplicado, em cúmulo jurídico:
“Vai assim condenado na pena única de 8 anos e 6 meses de prisão”
Sobre este acórdão foi interposto recurso pelo arguido AA, e, por acórdão desta Relação datado de 30/09/2019, foi o mesmo julgado parcialmente procedente, tendo sido absolvido da prática de seis crimes que lhe eram imputados e reduzida a pena aplicada para 8 anos de prisão. Ref:6583863
Após várias incidências processuais, (como recurso para o STJ do acórdão da Relação; despacho a não admitir esse recurso; reclamação deste despacho, que foi indeferida; recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, que não foi admitido; recurso do acórdão final proferido nesta Relação para o Tribunal Constitucional (11/06/2020), que também não foi admitido (19/06/2020)), veio a ser proferido despacho, com data de 14/07/2021, que declarou o trânsito em julgado da decisão final (caso julgado condicional) prolatada neste Tribunal da Relação relativamente ao arguido AA. Ref:7629512
Este despacho ainda não transitou, uma vez que, por causa de um incidente de recusa instaurado contra o Sr. Desembargador Relator, veio este a declarar suspensos os termos do processo e prazos processuais em curso, até que o incidente seja decidido - Ref: ...96.
Esse incidente ainda se encontra pendente, agora no Tribunal Constitucional.
O processo principal continua, pois, pendente neste Tribunal da Relação, aguardando decisões de tribunais superiores, designadamente do Tribunal Constitucional.
O Juiz titular deste processo é o Sr.º Juiz Desembargador Dr.º Pedro da Cunha Lopes, a quem se encontra distribuído.
Estando aquele processo em fase de recurso o requerimento apresentado pelo arguido AA, teria de ser instaurado neste tribunal e dirigido ao titular respetivo, ou, se apresentado na 1º instância deveria, de imediato, para aí ser remetido, a fim de ser apreciado.
Após a subida do processo a esta Relação, e enquanto aqui se mantiver, o Juiz da 1ª instância carece de competência para apreciar e decidir os requerimentos dirigidos ao mesmo, concretamente o ora em questão, em que se discutam questões, de ordem processual ou substantiva, que possam assumir consequências no desfecho da causa. Sendo certo que após ter sido proferido o acórdão recorrido, interposto recurso e os autos subido ao Tribunal da Relação, onde se encontram pendentes, o seu poder jurisdicional encontra-se esgotado, precludido.
Pelo que, não poderia o requerimento a suscitar a nulidade da acusação, com todas as consequências que poderiam advir do seu eventual deferimento, inclusive a violação do caso julgado formal, ser apreciado em decidido em 1ª instância.
Ora, nos termos do disposto no art. 119º al. e) do CPP, a violação das regras da competência do tribunal, material, funcional ou territorial, constitui uma nulidade insanável, com as exceções previstas no art. 32º, nº 2, do meso diploma, que para o caso não interessam.
A consequência dessa nulidade afeta o próprio ato, o despacho proferido, como todos aqueles que dele dependem, que aquela invalidade afeta, por existência de uma dependência substancial.
É este o caso do recurso interposto sobre aquele despacho, e do subsequente que o admitiu, que não vincula o tribunal superior – art. 414º, nº 3, do CPP.
Assim sendo, estando feridos de nulidade insanável, que é de conhecimento oficioso, e a qualquer momento do processo antes do trânsito em julgado, por violação das regras da competência funcional do tribunal, tanto o despacho recorrido como o recurso interposto e o que o admitiu, carecem de validade, o que se declara.

III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes que integram a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

Declarar nulos, e de nenhum efeito:
- O despacho recorrido proferido no âmbito do processo com o nº 1420/11...., do Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central e Criminal ... – Juiz ..., de que estes autos são apenso;
- O recurso interposto pelo arguido AA, que incidiu sobre aquele despacho;
- O despacho proferido naquele processo que admitiu esse recurso, e, consequentemente;
- Improcedente o presente recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) Ucs, nos termos do disposto no art. 513º, nº 1, do CPP. E art. 8º, nº 9, e tabela anexa III, do RCP:
Notifique
(Consigna-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos subscritores).
Guimarães, 23 de janeiro de 2023

Os Juízes Desembargadores
Relator - José Júlio Pinto
1º Adjunto – Armando Azevedo (em substituição do Dr.º Pedro Cunha Lopes)
2º Adjunto – Fátima Furtado