QUEBRA DO DEVER DE SIGILO
CRIMES DE PECULATO E DE TRÁFICO DE PRODUTOS ESTUPEFACIENTES
SEGREDO PROFISSIONAL DO MÉDICO
Sumário


Tendo sido suscitado incidente de quebra de sigilo nos termos do disposto no art. 135.º, n.º 3 do CPP, em processo no qual se investigam factos que, em abstracto, poderão configurar a prática de um crime de peculato (artigo 375.º do CP) e de um crime de tráfico de produtos estupefacientes agravado (artigos 21.º e 24.º/-e) do DL 15/93, de 22/01);
E ouvido na qualidade de testemunha médico que invocou segredo profissional, por ter conhecimento dos factos em virtude do exercício da sua actividade profissional;
Tendo a Ordem dos Médicos já afirmado posição nos autos, no sentido da legitimidade da escusa;
Conclui-se que, no caso em apreço, foi legítima a recusa em causa, sendo que face à preponderância do interesse da administração da justiça é de quebrar o sigilo profissional.

Texto Integral


Profere-se, neste Tribunal da Relação de Guimarães, a decisão seguinte:
- Incidente de quebra de sigilo, nos termos do disposto no art. 135º, n.º 3 do C. P. Penal:

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Foi solicitado pelo M.mº Juiz de Instrução Criminal ... – Juiz ... – Tribunal Judicial da Comarca ... - incidente de quebra de sigilo nos termos do disposto no art. 135.º, n.º 3 do CPP.
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Tendo na 1ª instância sido proferido o despacho seguinte:

“Nos dizeres do MP investigam-se nos presentes autos factos que, em abstracto, poderão configurar a prática de um crime de peculato (artigo 375.º do CP) e de um crime de tráfico de produtos estupefacientes agravado (artigos 21.º e 24.º/-e) do DL 15/93, de 22/01).
Ouvido na qualidade de testemunha o médico AA invocou segredo profissional por ter conhecimento dos factos em virtude do exercício da actividade profissional de médico, tendo-o feito em conformidade com a posição do consultor jurídico da Conselho Nacional da Ordem dos Médicos.
Dispõe o artigo 135.º/4 do CPP "Nos casos previstos nos n:" 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável".
A Ordem dos Médicos afirmou já posição nos autos, no sentido da legitimidade da escusa.
Legitimidade de escusa de depoimento que efectivamente se verifica, considerando que o MP pretende que o médico revele factos de que o mesmo tomou conhecimento aquando da relação médico-doente e também este respeitantes.
Assim sendo, ao abrigo do disposto no artigo 135.º/4 do CPP, cabe ao Tribunal superior (no caso TRG) decidir o incidente.
Para tanto instrua autonomamente o presente incidente com certidão de fls. 3, 4, 14 a 18, 21 a 24 e este despacho.
Após, assim instruído, remeta-o ao Tribunal da Relação de Guimarães.
Devolvendo posteriormente o inquérito ao MP.”.
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A Digna PGA deu o seu parecer, entendendo que no caso concreto a quebra do segredo profissional se mostra justificada.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, prosseguiram os autos para conferência, na qual foi observado todo o formalismo legal.
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- Cumpre apreciar e decidir:

Desde já se refere que concordamos com o mencionado pela Digna PGA, no seu parecer com o teor seguinte:
“Em nosso entender, nada obsta ao conhecimento do pedido efetuado pelo M. mo Juiz do Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., tendo em vista a quebra do sigilo e o disposto no art.º 135, nº 3 do CPPenal.
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O inquérito em causa iniciou-se com uma participação da ARS Norte/ACES ... noticiando que, numa consulta médica, um utente "ex-"toxicodependente, durante a investigação de algumas queixas álgicas, revelou que faz uso de morfina subcutânea que "uma amiga" que trabalha no Hospital ... "lhe dá", descrevendo, detalhadamente, quer a embalagem da morfina quer o procedimento, inclusive com uso de agulhas subcutâneas que a mesma "amiga" lhe fornece.
Nessa sequência, considerou o Ministério Público que tal factualidade, em abstracto, pode integrar a prática dos crimes de peculato, p. e p. no artigo 375.º do CP e de um crime de trafico de produtos estupefacientes agravado p. e p. nos art.ºs 21.º e 24.º/-e) do DL 15/93, de 22/01.
Iniciadas as diligências de investigação, foi designada data para inquirição do médico que, nessa consulta, obteve tais informações, o Sr. Dr. AA, o qual confirmou a situação mas, instado no sentido de identificar o utente e citada amiga que trabalhava no Hospital, invocou o dever de segredo ao abrigo do art.º 139.º n. 6 al. b) do Estatuto da Ordem dos Médicos na redacção da Lei n.º 117/2015 de 31-08 e do art.º 32.º do Código Deontológico aprovado pelo Regulamento 707/2016 publicado no DR a 21-07-2016.
Solicitada a necessária autorização à Ordem dos Médicos, esta entidade remeteu a sua decisão, já junta aos autos, conferindo legitimidade à posição do clínico, não autorizando o levantamento do sigilo profissional do Dr. AA.
Por despacho de 20/12/2022 considerou a magistrada do Ministério Público titular do inquérito que, sem essas informações, não se consegue identificar os suspeitos dos crimes, nem desenvolver quaisquer outras diligências de investigação, sendo imprescindível, para a descoberta da verdade material, o depoimento do referido médico onde este identifique o citado utente.

Assim, tendo sido invocado tal sigilo pelo Dr. AA para se recusar a prestar essa informação, e sendo esta essencial para o desenrolar do inquérito, foram os autos conclusos ao M.mº Juiz, tendo em vista o disposto no art.º 135, n.º 3 do CPPenal, o qual considerou legítima a recusa e determinou a remessa do processo a este Tribunal da Relação de Guimarães.
Como referido, o M. P. titular do inquérito pretende que o médico em causa identifique o utente que lhe relatou a situação em ordem a apurar-se a identificação da amiga, funcionária do Hospital ... que lhe dá a morfina e agulhas subcutâneas nas circunstâncias descritas.
O art.º 135 do CPPenal, ao aludir ao “Segredo Profissional” no seu nº 1, prevê que “ … os médicos (…) podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos por aquele segredo”, dizendo o nº 3 do mesmo normativo que a intervenção do “tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente se tiver suscitado”, “… pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos (…)””.
Assim, o dever de segredo profissional não é um dever absoluto, isto é, não prevalece sempre sobre qualquer outro dever que com ele entre em conflito.

Segundo o art.º 139.º n. 6, al. b) do Estatuto da Ordem dos Médicos na redacção da Lei n.º 117/2015 de 31-08:

1 - O segredo médico profissional pressupõe e permite uma base de verdade e de mútua confiança e é condição essencial ao relacionamento médico-doente, assentando no interesse moral, social, profissional e ético, tendo em vista a reserva da intimidade da vida privada.
2 - O segredo médico profissional abrange todos os factos que tenham chegado ao conhecimento do médico no exercício da sua profissão ou por causa dela e compreende especialmente:
a) Os factos revelados diretamente pela pessoa, por outrem a seu pedido ou por terceiro com quem tenha contactado durante a prestação de cuidados ou por causa dela;
b) Os factos apercebidos pelo médico, provenientes ou não da observação clínica do doente ou de terceiros;
c) Os factos resultantes do conhecimento dos meios complementares de diagnóstico e terapêutica referentes ao doente;
d) Os factos comunicados por outro médico ou profissional de saúde, obrigado, quanto aos mesmos, a segredo.
3 - A obrigação de segredo profissional existe quer o serviço solicitado tenha ou não sido prestado e seja ou não remunerado.
4 - O segredo profissional mantém-se após a morte do doente.
5 - É expressamente proibido ao médico enviar doentes para fins de diagnóstico ou terapêutica a qualquer entidade não vinculada ao segredo profissional.
6 - Exclui-se do dever de segredo profissional:
a) O consentimento do doente ou, em caso de impedimento, do seu representante legal, quando a revelação não prejudique terceiras pessoas com interesse na manutenção do segredo profissional;
b) O que for absolutamente necessário à defesa da dignidade, da honra e dos legítimos interesses do médico, do doente ou de terceiros, não podendo em qualquer destes casos o médico revelar mais do que o necessário, nem o podendo fazer sem prévia autorização do bastonário;
c) O que revele um nascimento ou um óbito;
d) As doenças de declaração obrigatória.
E como se refere no acórdão do TRC de 05/04/2017, proc. 309/15.9JACBR-A.C1, sendo dele relator o desembargador INÁCIO MONTEIRO “I - Por norma aquele que está sujeito ao dever de guardar segredo ou sigilo, obteve conhecimento de factos devido a uma especial relação de confiança com quem lhe presta a informação, justificando-se assim a não divulgação, sem consentimento ou causa justificativa. II - O princípio da prevalência do interesse preponderante impõe ao tribunal superior a realização de uma atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá, in casu, prevalecer. III - O interesse da investigação criminal é preponderante em relação ao interesse protegido pelo sigilo profissional, pelo que se justifica a sua quebra, mediante a prestação dos depoimentos pretendidos.”.
Neste preciso contexto e onde a excecionalidade é regra, um concreto critério legal deve observação aquando do levantamento do sigilo profissional, máxime, do sigilo profissional do médico: a prevalência do interesse preponderante, tendo em conta, particularmente, a imprescindibilidade do depoimento recusado para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.

Ora:
No caso in judice, verifica-se que o Ministério Público pretende o testemunho do médico relativamente tão somente à identificação do utente (e, eventualmente, amiga do Hospital ...), ou seja, tão pouco se pretende obter quaisquer informações clínicas do mesmo, identificação essa sem a qual, efectivamente, se torna impossível a investigação dos crimes citados que, obviamente, assumem grande gravidade.
Por essa razão, afigura-se-nos estarem reunidos os requisitos para que seja levantado o dever de sigilo por parte daquele, devendo deferir-se o presente incidente.”.
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Vejamos.
O sigilo profissional respeita à “reserva” devida por determinados profissionais relativamente a factos de que tiveram conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas. Isto porque, o recurso a determinados profissionais importa para quem a eles recorre a necessidade de revelar factos que importam à sua esfera íntima (física ou jurídica). A obrigação de sigilo visa a garantia da confiança que em tais relações se estabelece e as mais das vezes pressupõe.
O dever de sigilo enquanto interesse público, pode contender com outros valores e interesses públicos, como o da realização da justiça.
A resolução da questão passa, pois, pela ponderação dos interesses em conflito no caso. De um lado os interesses quanto à reserva a que no caso o médico se encontra obrigado, relativos à tutela da confiança dos pacientes/ utentes a quem presta assistência, o interesse público que constitui a garantia de sigilo enquanto visa a garantia da confiança nas relações entre médico e utente; De outra banda, essencialmente, o interesse no acesso à prova e o interesse público na realização da justiça.
A questão volve-se, pois, em saber se a salvaguarda do segredo profissional imposto pela lei (dever de segredo ao abrigo do art.º 139.º n. 6 al. b) do Estatuto da Ordem dos Médicos na redacção da Lei n.º 117/2015 de 31-08 e do art.º 32.º do Código Deontológico aprovado pelo Regulamento 707/2016 publicado no DR a 21-07-2016, no caso o invocado) deve ou não ceder em face dos interesses que reclamam a sua dispensa, designadamente o interesse da efectiva realização dos fins da actividade judicial (artº 205º da C.R.P.).
O incidente processual de quebra do segredo profissional, regulado no art. 135º do C. P. P., visa equilibrar os valores subjacentes ao segredo em contraposição com os valores acautelados pelos direitos penal e processual penal, ou seja, com valores de ordem pública e social.
Aqui a escusa a depor é legítima mas, mesmo assim, a ordem jurídica manda valorar esse dever de sigilo com outros valores que se podem, no caso, sobrepor àquele.
De que falamos em concreto? De uma ponderação de valores entre os interesses que sustentam a existência de sigilo (maioritariamente particulares) e valores que se concretizam na imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos, bens essencialmente públicos e de grande relevo.
E isso obtém-se usando como ferramenta o “princípio da prevalência do interesse preponderante” (a habitual ponderação de valores), como decorre do nº 3 do dito artigo 135º do C.P.P.
E essa ferramenta irá determinar qual dos valores, qual dos interesses em conflito, deverá prevalecer no caso em análise.

Atenta a matéria em causa, mostra-se adequado e relevante para a averiguação da factualidade em causa o solicitado, visando o interesse público na realização da justiça.

Sendo esta a posição da nossa jurisprudência a este respeito, em casos idênticos, verificando-se os seus pressupostos, indicando-se mutatis mutandis por todos o Ac. deste TRG, com o sumário seguinte:
“- A tutela do segredo profissional visa a garantia da confiança que em determinadas relações profissionais se estabelece e as mais das vezes tais relações pressupõe, constituindo necessidade social, e assim interesse público, a confiança nessas profissões e profissionais.
- Tal interesse pode conflituar com outros interesses públicos, designadamente com o interesse na realização da justiça e o inerente dever de colaboração.
- Na ponderação dos interesses em jogo de acordo com princípio da prevalência do interesse preponderante, verificando-se que não sendo tomado o depoimento (…) fica comprometida a realização da justiça (…) justifica-se a quebra do sigilo profissional.” (Ac. do TRG de 14-05-2009, Rel A. Veiga, no Proc. n.º 600/07.8TB PVL-D.G1, in www.dgsi.pt).
No caso, para apurar do cometimento dos supra referenciados crimes e da respectiva autoria revela-se, assim, manifesta a indispensabilidade do solicitado.
Como refere o M. P. na 1ª instância, há que ter em conta a “(…) imprescindibilidade do depoimento do Dr. AA para a descoberta da verdade, a gravidade dos crimes e a necessidade de protecção de bens jurídicos.”.
Nessa conformidade, é, pois, de concluir que no caso concreto foi legítima a recusa em causa, sendo que, face à preponderância do interesse da administração da justiça, é de quebrar o sigilo profissional.
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- DECISÃO:

Face ao exposto, decide-se neste Tribunal da Relação de Guimarães, em concluir que, no caso em apreço, foi legítima a recusa em causa, sendo que face à preponderância do interesse da administração da justiça é de quebrar o sigilo profissional.
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Sem custas.
Notifique.
D. N.
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(Documento exarado com recurso a processador de texto, lido e revisto pela signatária, que o elaborou, nos termos do disposto no art. 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sendo datado e assinado eletronicamente no canto superior esquerdo, na primeira página).