LEGITIMIDADE PROCESSUAL
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
ABUSO DE DIREITO
Sumário


I - A legitimidade processual afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor, na petição inicial, e é nestes termos que tem de ser apreciada.
II - Já a legitimidade substancial ou substantiva respeita à efetividade da relação material. Prende-se com o concreto pedido e a causa de pedir que o fundamenta e, por isso, com o mérito da causa, sendo requisito da procedência do pedido.
III - O abuso de direito, na modalidade suppressio, exige não só o decurso de um período de tempo razoável sem exercício do direito, mas também a verificação de indícios objetivos de que esse direito não irá ser exercido. Indícios objetivos esses que geram na contraparte (beneficiário do não exercício) a confiança na inação do agente.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
Zembe - Distribuição e Soluções de Material Elétrico, S.A. instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 6.897,80, acrescida de juros de mora desde a instauração da ação até integral e efetivo pagamento.
Alegou, em síntese, que forneceu material elétrico a solicitação do réu, no valor global de € 4.694,39 e, por indicação daquele, as faturas que titulam o referido fornecimento, foram emitidas a favor da sociedade Sofranes- Gestão de Projectos, S.A., sendo que na data de vencimento de tais faturas, nem a mencionada sociedade, nem o réu, procederam ao seu pagamento, tendo aquela sociedade fundado a sua recusa no facto de ser alheia à encomenda que foi efetuada pelo réu.
Mais alegou a autora que instaurou procedimento de injunção contra a referida sociedade, a qual, porém, foi absolvida do pedido.
O réu contestou, alegando ser parte ilegítima, por ter atuado na qualidade de dirigente do Portimonense Sporting Club, entidade à qual foram entregues os materiais adquiridos, e que ocorre in casu uma situação de abuso de direito, dada a morosidade que caracterizou a cobrança do presente crédito, alegando, por último, ter ocorrido a prescrição dos juros que tenham mais de cinco anos.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, que julgou improcedente a exceção dilatória da ilegitimidade passiva, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença em cujo dispositivo se consignou:
«Em face do exposto, decido julgar a presente ação parcialmente procedente, e em consequência, condeno o réu AA a pagar à autora “Zembe – Distribuição e Soluções de Material Elétrico, SA” a quantia de €4694,39 (quatro mil seiscentos e noventa e quatro euros e trinta e nove cêntimos), acrescida de juros de mora, contados, a taxa de juro em vigor para os juros civis, desde 23.06.2016, até efetivo e integral pagamento, absolvendo o réu do que demais foi peticionado.»
Inconformado, o réu apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1.º - O recorrente, na presente ação, defendeu-se alegando a exceções de ilegitimidade e do abuso de direito, sendo que o tribunal “a quo” decidiu que nenhuma daquelas exceções se verificava.
2.º - Quanto à exceção de ilegitimidade invocada, alegou o recorrente na sua contestação, artigos 1.º a 8.º, as suas razões de facto e direito que conduzem à sua ilegitimidade.
3.º - O tribunal “a quo” decidiu, no despacho saneador, que o recorrente era parte legitima na presente ação, nesta fase, relegando o conhecimento desta questão para momento posterior, sendo que na sentença, ora recorrida, nada refere acerca desta questão.
4.º - O quarto parágrafo da sentença proferida pelo tribunal “a quo” diz o seguinte, sic:
“Foi proferido despacho saneador que conheceu da exceção ilegitimidade, fixou o objeto do processo e os temas da prova e relegou, para momento posterior, o conhecimento da demais matéria de exceção que foi invocada.”.
5.º - Com uma leitura atenta ao douto despacho saneador verifica-se que quanto às matérias das restantes exceções invocadas pelo recorrente (abuso do direito e prescrição dos juros) nada foi referido, existindo uma clara contradição entre o referido na sentença e o constante no despacho saneador.
6.º - A Meritíssima Juiz do tribunal “a quo” refere que relega para momento posterior o conhecimento desta exceção, e não outras, para momento posterior, tendo em conta o que havia referido anteriormente.
7.º - A sentença é omissa quanto ao conhecimento final da exceção invocada da ilegitimidade do recorrente.
8.º - Os factos dados como provados pelo tribunal “a quo” contradizem claramente a decisão, ou falta dela, da legitimidade do recorrente.
9.º - Ficou provado pelo tribunal “a quo”, nos números 3 e 4, que o recorrente informou a recorrida que o material se destinava a uma obra que se encontrava a decorrer num dos estádios do Portimonense Sporting Clube e que o mesmo era, à data, Vice-Presidente do clube, não podendo este ser parte legitima no presente processo.
10.º - O tribunal “a quo”, pelos factos provados, deveria ter decidido que o recorrente não era parte legítima, decidindo-se, como de direito, pela sua ilegitimidade e em consequência absolve-lo da instância.
11.º - O recorrente não é parte legítima no presente processo pelo que a decisão ou falta dela, deverá ser revogada por V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores, e este ser absolvido da instância, em virtude da nulidade da sentença nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Caso, assim não seja o entendimento de V. Exas., sempre se dirá o seguinte:
12.º - Por outro lado, o recorrente invocou, também e como acima referido, a exceção do abuso de direito, com os fundamentos contidos noa artigo 9.º a 33.º da sua contestação.
13.º - Quanto a esta matéria, o despacho saneador é omisso, sendo que a sentença refere que no despacho saneador esta questão havia sido relegada para momento posterior, o que não corresponde à verdade.
14.º - O tribunal “a quo”, deu como provados os factos (que para esta matéria relevam), constantes nos números 2, 9 e 10 da sentença, onde se verifica que decorreram cerca de 12 anos entre a emissão das faturas e a propositura da ação.
15.º - A decisão do tribunal “a quo”, na sua fundamentação de direito, sobre esta matéria foi a seguinte, sic:
“iii) Da inexistência de “abuso de direito” imputável à autora
Desde já antecipamos que inexiste qualquer atuação abusiva que possa ser imputada à autora (cfr. art.º 334.º do Código Civil), quando a mesma apenas tenta reaver do réu, por via da instauração dos presentes autos, em 15.09.2021, quer o pagamento do preço dos bens/materiais cujo fornecimento foi por si realizado ( a solicitação do próprio demandado, quer os juros de mora.
Isto porquanto a morosidade que informou a cobrança do crédito que é objeto destes autos é afinal um mero reflexo ou consequência do acatamento, por parte da própria proponente, do “esquema”, aliás muito pouco claro, que o réu definiu e do qual se socorreu para contratar, indicando como devedora uma entidade que, em bom rigor, nada encomendou à autora, nem poderia ter sequer mandatado o ora réu para esse efeito, dado que apenas foi indicada, uma vez finalizado o fornecimento do material, como uma mera entidade que deveria figurar nas faturas a emitir.
Pelo que não há assim qualquer inércia que releve em sede de abuso de direito e que seja apta a criar no réu a convicção de que nada lhe poderia vir a ser exigido e bem assim a isenta-lo do pagamento quer do capital, quer dos próprios juros (não prescritos) e que são devidos.
É que a autora não ficou inerte desde da data de emissão das faturas.
Tendo até interpelado o réu para pagar. E porque nada foi pago instaurou um processo judicial contra a sociedade que o réu indicou como sendo a devedora. E porque a ação improcedeu retornou a autora a exigir o pagamento das farturas ao réu. Percurso esse que nada tem de abusivo.
Sendo, também, totalmente despropositada a própria “vitimização probatória” que réu invoca. É que o réu será, quanto muito, uma vítima da sua própria atuação negocial; atuação essa que não se acha informada pela necessária seriedade, mas, sim, e, até, por uma estranha promiscuidade familiar. Sendo que tal atuação é na sua globalidade, pouco séria, e, como tal, não se afigura merecedora de qualquer tutela.”.
16.º - Esta é, pois, a “fundamentação de direito” do tribunal “a quo” para se decidir pela não verificação do abuso do direito invocado pelo recorrente, cuja única a referência é ao artigo 334.º do CC, referindo que nenhuma atuação abusiva pode ser imputada à recorrida.
17.º - Tudo o resto são juízos de valores que em nada relevam para a matéria em questão e que apenas surgem pela inércia da recorrida que demorou, como provado, entre a emissão das faturas e a propositura da presente ação, cerca de 12 anos!
18.º - O recorrente, com todo este lapso de tempo, ficou prejudicado na sua defesa em virtude do lapso temporal decorrido, não podendo ser exigido a nenhum “bom pai de família” que a sua memória sobre os factos seja a mais fiel e que a esta altura tivesse disponível todos os elementos de prova, quer documental, quer testemunhal.
19.º - Exemplo disso, o Sr. BB, nome referido na sentença recorrida, que foi quem aplicou os materiais nas obras, faleceu pouco tempo antes da propositura da ação, inviabilizando mais uma prova de que os materiais foram para obras de um dos estádios do Portimonense Sporting Clube.
20.º - A decisão do tribunal “a quo” vai ao arrepio da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, devendo por isso V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores, revoga-la, e em consequência absolver o recorrente do pedido, em virtude da nulidade da sentença, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Por último, e caso V Exas. assim não entendam sempre se dirá que:
21.º - Os factos dados como provados pelo tribunal “a quo” e a decisão com base nos mesmos é perfeitamente desajustada da realidade.
22.º - O tribunal “a quo” em quase todo o texto da sua sentença faz juízos de valor acerca do depoimento do recorrente referindo entre outras, expressões como “memória seletiva”, que a sua atuação na globalidade foi “pouco séria”, etc., etc..
23.º - À luz da definição do homem médio ou bom pai de família, está mais que estabelecido que a atuação do recorrente, passados cerca de 12 anos sobre os factos, não poderia ter outra postura, postura essa que se reitera é a do homem médio e do bom pai de família.
24.º - Os factos provados permitem concluir que o recorrente não encomendou o material para seu proveito próprio, que há data era Vice-Presidente do Portimonense Sporting Clube e que o material era para a execução das obras num dos estádios daquele clube.
25.º - Outrossim, ficou não provado, que o recorrente tivesse assumido que seria ela a pagar o material, cfr. número 1 dos factos não provados.
26.º - Como tal, perante tais contradições entre os factos provados e a decisão proferida, deverão V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores, revogar a sentença e em consequência absolver o recorrente do pedido, sendo a mesma nula, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Nestes termos:
- Deve a sentença recorrida ser revogada na parte referente à exceção invocada da ilegitimidade por ser a mesma nula nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC e em consequência o R. absolvido da Instância, caso assim não se entenda;
- Deve a sentença ser revogada na parte referente à exceção de abuso de direito na modalidade de supressio, por a mesma ser nula nos termos da alínea b) do n,º 1 do artigo 615.º do CPC e em consequência o R. absolvido do pedido, caso assim não se entenda, o que apenas academicamente se admite;
- Deve a sentença ser revogada em virtude da mesma ser nula nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC e em consequência o R. absolvido do pedido.»

Contra-alegou a autora, defendendo a manutenção da sentença recorrida.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial a decidir consubstancia-se em saber se a sentença recorrida enferma das nulidades que lhe imputa o réu/recorrente.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1) A sociedade autora dedica-se à distribuição e comercialização de material elétrico, eletromecânico e eletrónico; fabrico de quadros elétricos e execução de instalações elétricas; instalação, manutenção e comercialização de: sistemas automáticos e dispositivos autónomos de deteção de incêndio e de deteção de gases, sinalização de segurança, iluminação de emergência e atividades associadas (CIM); de painéis de energia solar fotovoltaicos, incluindo todos os equipamentos conexos; de carregadores elétricos de viaturas e todos os equipamentos conexos e comércio de importação, exportação e representações.
2) No âmbito da sua atividade, a autora forneceu, em datas não concretamente apuradas, mas que se situarão entre os meses de Setembro e Outubro de 2009, a pedido do réu, diversos materiais elétricos, os quais se acham melhor identificados nas faturas: a) n.º 206998, de 09.12.2009, no valor de €3.037,46; n.º 206999, de 09.12.2009, no valor de €928,68 e n.º 207000, de 09.12.2009, no valor de €728,25.
3) O réu informou a autora que o referido material se destinava a uma obra que estava a ser executada num dos estádios do “Portimonense Sporting Clube” (Estádio dos Dois Irmãos), em Portimão, e, solicitou, já depois de terminado o fornecimento do material por si encomendado, que as faturas fossem emitidas em nome da sociedade “Sofanes - Gestão e Projectos, S.A”.
4) O réu, à data, era vice-presidente do “Portimonense Sporting Clube” - o que gerou uma maior confiança na concretização do pagamento do material fornecido - não tendo, contudo, solicitado à autora, em momento algum, que tal material fosse faturado em nome do referido clube.
5) Sucede, que na data do vencimento das faturas, nem o réu nem a sociedade “Sofanes - Gestão e Projectos, S.A” procederam ao pagamento das faturas referidas em 2).
6) A sociedade “Sofanes - Gestão e Projectos, S.A” depois de interpelada, em 11.11.2010, pela a autora, para pagar as faturas mencionadas em 2), através de missiva datada de 17.11.2010, que remeteu à proponente, asseverou ser completamente alheia à encomenda efetuada pelo réu, tendo ainda solicitado a anulação das faturas em causa.
7) Em data não concretamente apurada, mas anterior a 02.08.2011, a autora, interpelou o réu para no prazo de 8 (oito dias) regularizar a situação mediante o pagamento da quantia de €4721,03.
8) Em resposta à comunicação a referida em 6), o réu, através de e-mail datado de 02.08.2011, afirmou que nenhuma relação tinha com a “Sofanes - Gestão e Projectos, S.A”, ressalvada a relação familiar que tinha com “dono” de tal sociedade, que existia um atraso, imputável à Câmara Municipal de Portimão, no pagamento à entidade adjudicante e que iria reenviar a interpelação mencionada em 5) à sociedade “Sofanes - Gestão e Projectos, S.A”, para que esta desse rápida resposta a mesma.
9) A autora acionou, em data não concretamente apurada do ano de 2013, a sociedade “Sofanes - Gestão e Projectos, S.A”, o que fez mediante instauração de procedimento de injunção, que foi convertido numa ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, a qual correu, por sua vez, termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz 2, sob o número de processo 110354/13.7YIPRT, tendo a referida sociedade sido absolvida do pedido, por sentença datada de 20.05.2015.
10) Os presentes autos foram instaurados em 15.09.2021 e o réu foi citado no dia 21.09.2021.

E foi considerado não provado que:
1) O réu tenha assumido, perante a autora, a obrigação de pagar as faturas mencionadas em 2).
2) O réu tivesse sido mandatado para comprar o material que a autora forneceu, e, que foi faturado em 09.12.2009, em nome e em representação da sociedade “Sofanes - Gestão e Projectos, S.A”.
3) A sociedade “Sofanes - Gestão e Projectos, S.A” tivesse executado a obra na qual foi aplicado o material que foi fornecido pela autora.

O DIREITO
Começa o recorrente por imputar à sentença a causa de nulidade prevista na al. c) do artigo 615º do CPC, por alegadamente a sentença ser omissa «quanto ao conhecimento final da exceção invocada da ilegitimidade do recorrente», sendo que «[o] tribunal “a quo”, pelos factos provados, deveria ter decidido que o recorrente não era parte legítima, decidindo-se, como de direito, pela sua ilegitimidade e em consequência absolve-lo da instância».
Ora, a haver uma omissão de pronúncia sobre a referida matéria, então a nulidade a considerar seria a prevista na alínea d)[1] e não a da alínea c)[2], como se afigura evidente.
Mas não tem razão o recorrente, que faz assentar a referida omissão num pretenso não conhecimento “final” da exceção da invocada ilegitimidade passiva.
Na verdade, começa o recorrente por dizer nos artigos 2º a 7º das conclusões, que existe uma contradição entre o proferido no despacho saneador e o conteúdo da sentença, uma vez que, por um lado, o despacho saneador considera o réu/recorrente como parte legítima, mas relega o conhecimento dessa questão para momento posterior, e, por outro lado, ao referir que a questão da legitimidade foi decidida no despacho saneador, a sentença acaba por ser omissa quanto à questão da legitimidade.
Ora, este raciocínio do recorrente, que se mostra inquinado nas suas premissas, confunde o que seja legitimidade processual e legitimidade substantiva. Senão vejamos.
Ao apuramento da legitimidade processual - pressuposto processual que se reporta à relação de interesse das partes com o objeto da ação - releva, apenas, a consideração do concreto pedido e da respetiva causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última e do mérito da causa. A legitimidade processual afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor, na petição inicial, e é nestes termos que tem de ser apreciada.
Já a legitimidade substancial ou substantiva respeita à efetividade da relação material. Prende-se com o concreto pedido e a causa de pedir que o fundamenta e, por isso, com o mérito da causa, sendo requisito da procedência do pedido.
Isto mesmo foi devidamente tido em consideração pelo Tribunal a quo, quando no despacho saneador se escreveu:
«In casu, a aferição da circunstância de o autor ter, ou não, poderes para atuar em nome de terceiros, e, se essa atuação o desonera, ou não, da obrigação de pagar o preço do material que foi vendido, releva como questão de mérito que contradiz a versão dos factos alegados pela autora, motivo pelo qual importa concluir pela sua legitimidade processual do demandado, relegando-se, assim, para momento posterior o conhecimento da referida questão.»
Daqui decorre, com meridiana clareza, que o Tribunal a quo, apreciou efetivamente a invocada exceção de (i)legitimidade processual, reconhecendo que o réu tinha interesse direto em contradizer, traduzido no prejuízo que da procedência da ação lhe pudesse advir, aferindo esse interesse em face da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor na petição inicial [art. 30º, nº 3, do CPC].
Já a legitimidade substantiva - porquanto diz respeito à própria titularidade do direito invocado, e a aferição da circunstância de o recorrente ter ou não poderes de um terceiro para a celebrar o contrato em causa, e se tal o desonera das obrigações assumidas no contrato -, respeita ao mérito da causa por se consubstanciar em factos que contradizem a versão dos factos alegados pela autora/recorrida.
Assim, dúvidas não há que o despacho saneador conheceu expressamente da legitimidade processual e relegou para momento posterior o conhecimento da legitimidade material ou substantiva.
Com efeito, não fornecendo os autos todos os elementos para conhecer do mérito da causa no despacho saneador, a questão da legitimidade substantiva só podia ser conhecida na sentença, como efetivamente foi, após a realização da audiência de julgamento e consequente produção de prova.
Basta, aliás, uma leitura minimamente atenta da sentença, para se ver que a questão da legitimidade substantiva, foi expressamente apreciada na respetiva fundamentação de direito, na sua alínea ii), sob a epígrafe «Da ausência de poderes de representação do Réu», onde se escreveu:
«Ora, in casu, o réu não atuou, ao encomendar o material elétrico, em nome próprio, como a própria autora o reconhece.
Tendo já depois de ter sido efetuado o fornecimento do material que contratou o demandado, identificado como sendo a entidade devedora a sociedade “Sofranes- Gestão de Projectos, SA”.
Em todo o caso, a referida sociedade não viria a ratificar o negócio que foi celebrado pelo réu, tendo a responsabilidade da sociedade “Sofranes- Gestão de Projectos, SA” pelo pagamento das faturas emitidas pela autora sido afastada, incluindo, em sede judicial.
Em todo o caso, competia ao réu ter feito prova de que tinha poderes para atuar em representação da referida sociedade, o que não logrou fazer (artigo 342.º, n.os 1 e 3 do Código Civil).
Na verdade, se por um lado solicitou que as faturas fossem emitidas em nome da sociedade “Sofranes- Gestão de Projectos, SA”, por outro lado não se coibiu, numa derradeira tentativa de desresponsabilização, de vir agora afirmar que atuou na qualidade de dirigente do “Portimonense Sporting Club”.
Em todo o caso, a factualidade dada como provada não atesta que o réu tenha atuado, ao celebrar o contrato de fornecimento, na qualidade de dirigente do “Portimonense Sporting Club” e com o intuito de vincular esta mesma pessoa coletiva – sendo que apenas este último segmento teria efeito um defensivo útil.
O que o réu fez, em bom rigor, foi servir-se do cargo de dirigente do “Portimonense Sporting Club” para acelerar um fornecimento, garantido, junto da autora, um pagamento que, em todo o caso, não tencionava suportar a título pessoal.
E não tendo a sociedade alegadamente representada pelo réu, ou seja, a “Sofranes- Gestão de Projectos, SA”, ratificado o negócio que foi celebrado entre o réu e a autora, importa concluir que este último não tinha, pois, poderes de representação, para vincular a referida sociedade. Sendo que a consequência da representação sem poderes, nos termos do art. 268º, nº. 1, do Cód. Civil, é a de ineficácia do negócio, mas apenas em relação à pessoa em nome de quem o contrato de fornecimento foi celebrado. Podendo ainda a contraparte, enquanto o negócio não for ratificado, revogar ou rejeitar o mesmo, salvo se, no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes do representante. E, in casu a autora, na medida em que há muito que realizou a prestação devida, não manifestou o propósito de revogar o negócio. Pelo que, no caso concreto, o contrato que foi celebrado com intervenção do réu, enquanto alegado representante da sociedade “Sofranes- Gestão de Projectos, SA”, mas sem poderes, vincula, pois, o próprio demandado, que assim se torna responsável pelo pagamento dos fornecimentos que contratou e que não foram pagos. E nestes termos, quem responde pelo pagamento do preço devido pelo fornecimento de materiais elétricos que foi efetuado pela autora (prestação essa cuja realização não foi sequer impugnada), deverá ser de facto o demandado
Inexiste, por conseguinte, qualquer contradição entre o afirmado no despacho saneador e na sentença recorrida, não enfermando esta da nulidade que lhe é assacada pelo recorrente.

Nos artigos 8º a 11º das suas conclusões, diz o recorrente que os factos dados como provados «contradizem claramente a decisão, ou falta dela, da legitimidade do recorrente», pois ficou provado nos pontos 3 e 4 da factualidade assente, «que o recorrente informou a recorrida que o material se destinava a uma obra que se encontrava a decorrer num dos estádios do Portimonense Sporting Clube e que o mesmo era, à data, Vice-Presidente do clube, não podendo este ser parte legitima no presente processo».
Trata-se, evidentemente, na ótica do recorrente, de um eventual erro de julgamento e não de nulidade da sentença. Contudo, sempre se dirá que não colhe a argumentação do recorrente, que parece olvidar não ter ficado demonstrado que o mesmo tivesse sido mandatado para comprar o material que a autora forneceu, o qual foi faturado em nome e em representação da sociedade “Sofanes - Gestão e Projectos, S.A.”, e que esta sociedade tivesse executado a obra na qual foi aplicado o material que foi fornecido pela autora ao réu [cfr. pontos 2 e 3 dos factos não provados].
Assim, contrariamente ao defendido pelo recorrente, uma vez que os dados para faturação disponibilizados pelo recorrente à autora foram os da empresa em nome da qual alegou ter contratado, sem os devidos poderes de representação, tornou-se o mesmo, como referido supra, responsável pelo pagamento dos fornecimentos que contratou e que não foram pagos.
Não faz assim o menor sentido a afirmação contida no artigo 11º das conclusões, de que o recorrente «não é parte legítima no presente processo” e que por isso deveria «ser absolvido da instância, em virtude da nulidade da sentença nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC», o que não deixa de refletir, aliás, o equívoco em que labora o recorrente sobre o que seja legitimidade processual e legitimidade substantiva, as quais se verificam no presente caso.

A propósito do instituto do abuso do direito, diz o recorrente nos artigos 12º a 20º das conclusões, que o despacho saneador foi omisso a esse respeito, sendo que na sentença se afirma que no saneador se relegou o seu conhecimento para momento posterior, o que o recorrente considera ser falso.
Não se percebe muito bem esta alegação do recorrente, que se acolhe a uma frase do relatório da sentença, para concluir que estamos perante a nulidade da sentença prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 615º do CPC.
Ora, da simples leitura do despacho saneador verificamos que que consta do capítulo iii) b), enquanto objeto do litígio, saber se a reclamação do pagamento do crédito que é objeto destes autos se afigura abusiva.
Claramente, quanto a esta exceção, o despacho saneador relegou para a decisão final a pronúncia sobre tal matéria, pelo que carece de total fundamento a alegação do recorrente, não se verificando in casu qualquer nulidade da sentença, como é bom de ver.
Relativamente às considerações que o recorrente tece sobre a fundamentação de Direito da sentença sobre a exceção em apreço, de que a sentença apenas faz juízos de valor que em nada relevam para a matéria em questão, e que de Direito apenas tem a referência ao artigo 334º do CC, não têm as mesma razão de ser, pois dado o tema em discussão, atento o seu aspeto suficientemente vago, «afigura-se natural que o mesmo necessite do devido preenchimento com recurso a considerações valorativas decorrentes de conclusões sobre os factos, os quais, dada a conduta demonstrada como provada do recorrente, motivam as afirmações do Tribunal a quo que se acham na douta sentença», como bem observa a autora na resposta ao recurso.
Confundindo uma vez mais o que seja nulidade da sentença e eventual erro de julgamento, afirma o recorrente que o Tribunal apreciou mal a questão ao não dar provimento à exceção por si alegada, pois ficou prejudicado na sua defesa em virtude do lapso temporal ocorrido por inércia da autora/recorrida até à propositura da ação, o que, segundo o recorrente, contraria a jurisprudência por si alegada na contestação.
Mas não tem razão.
O abuso de direito, na modalidade suppressio, exige não só o decurso de um período de tempo razoável sem exercício do direito, mas também a verificação de indícios objetivos de que esse direito não irá ser exercido. Indícios objetivos esses que geram na contraparte (beneficiário do não exercício) a confiança na “inação do agente”[3].
Dos factos provados nada permitia ao réu concluir que, por parte da autora, esta não reclamaria a quantia devida pelos materiais elétricos fornecidos e titulada pelas faturas juntas ao processo, até porque essa quantia foi reclamada mais cedo, em 2015, em ação intentada pela autora contra a sociedade Sofanes - Gestão e Projectos, S.A., em nome de quem as faturas foram emitidas a pedido do próprio recorrente, o qual fez crer à autora que foi essa sociedade que adquiriu aquele equipamento, o que não se provou, com a consequente absolvição da mesma do pedido.
Ademais, o recorrente não alegou sequer que desde a sentença proferida na referida ação, em 2015, as suas opções de vida tenham sido orientadas no sentido de que não lhe seria exigido o pagamento da dívida.
Nem se diga que o recorrente ficou prejudicado no seu direito de defesa, pois como bem observa a autora/recorrida, nem ela nem o Tribunal têm culpa que o recorrente não tenha o logrado fazer prova da sua tese, não detendo «consigo qualquer forma de demonstrar algo tão simples, para quem diligencia razoavelmente na conclusão de um contrato em nome de outrem, um comprovativo da existência do elemento basilar nesse tipo de contratos: o poder de representação!».
Vir a autora exigir judicialmente o pagamento do material elétrico fornecido ao recorrente, ou seja, exigir que este cumpra a sua obrigação contratual, é exercício legítimo de um direito seu que, não excede, manifestamente, os limites impostos pela boa-fé.

Por último, diz o recorrente nos artigos 21º a 26º das conclusões, que a sentença contraria os factos provados e profere uma decisão desajustada da realidade, recorrendo a juízos de valor sobre o depoimento do recorrente, depreciando-o, e quanto aos depoimentos das testemunhas da recorrida apenas tece elogios.
Mas se é assim, então porque não impugnou o recorrente a decisão sobre a matéria de facto, em vez de imputar à sentença nulidades de todo inexistentes?
São assim totalmente irrelevantes e inconsequentes as considerações a esse propósito tecidas pelo recorrente, essas sim desajustadas da factualidade apurada.
Com efeito, tendo sido o recorrente a assumir a responsabilidade de adquirir à autora os materiais elétricos em causa, e face à ausência de quaisquer poderes de representação, só pode concluir-se que o mesmo contratou em nome próprio, com a consequente ineficácia do negócio relativamente à sociedade que o recorrente alegou ter representado, não havendo por isso qualquer dúvida que é o recorrente quem ocupa a posição de parte no contrato, estando adstrito ao cumprimento da obrigação dele emergente, ou seja, o pagamento do preço dos matérias elétricos adquiridos.
Não faz assim qualquer sentido invocar a existência de oposição entre os fundamentos e a decisão ou alguma ambiguidade que torne esta ininteligível, sendo a sentença, aliás, de uma clareza cristalina.
Em suma, a sentença recorrida não enferma de qualquer nulidade, e fez uma correta subsunção dos factos ao direito, não merecendo por isso qualquer censura.
Por conseguinte, o recurso improcede.
Vencido no recurso, suportará o réu/recorrente as respetivas custas – artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.

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Évora, 12 de janeiro de 2023
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Albertina Pedroso (1ª adjunto)
Francisco Xavier (2º adjunto)

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[1] Na qual se dispõe que a sentença é nula quando «[o] juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
[2] Onde se dispõe que a sentença é nula quando ««[o]s fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível».
[3] Cfr., inter alia, o acórdão do STJ de 04.11.2021, proc. 17431/19.5T8LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.